Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2430/07.8TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: NEGÓCIO USURÁRIO
ÓNUS DA PROVA
AMPLIAÇÃO DE FACTO
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.282, 283 CC, 266, 511, 712 Nº4 CPC
Sumário: I - O artigo 282.º do CC exige como requisito da anulabilidade ou da modificação do negócio usurário prevista no artigo 283.º da mesma codificação legal, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém. Porém, não basta a verificação dum daqueles estados, sendo necessário que haja a consciência de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem para alcançar um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, em proveito próprio ou de terceiro, ficando esta determinação entregue ao prudente arbítrio do julgador e só verificados todos estes requisitos pode o negócio ser havido como usurário.

II - Assim, para que a acção proceda com base neste instituto, aos autores incumbe a alegação dos factos que sustentem os referidos requisitos legais conformadores do pedido formulado, o mesmo é dizer, os factos que integrem a causa de pedir.

III - Tendo os autores alegado factos com interesse para a decisão da sua invocada inexperiência que não foram levados à base instrutória, impõe-se oficiosamente determinar nessa medida a ampliação da matéria de facto com vista ao julgamento de tal matéria.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

1. A (…), Lda, CM (…), AR (…) e SM (…), instauraram contra CA (…) e ML (…) a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação dos réus:

- a pagarem aos autores a importância de 17.447,71€, a título de danos patrimoniais;

- a verem declarado que o contrato de trespasse celebrado com os autores é um negócio usurário;

- a verem modificado o negócio segundo juízos de equidade, o que se deve repercutir na redução do preço pago pelos autores;

- a entregarem aos autores a parte do preço que resultar da modificação do negócio, a qual deverá constar de uma importância liquida ou a liquidar em execução de sentença;

- a pagarem a cada um dos 2º, 3º e 4º autores a importância de 2.500,00€ a título de danos não patrimoniais;

- a reconhecerem que o cheque nº 870000003, datado de 31.12.2004, no valor de 17.500,00€, é um cheque de garantia que deveria ser devolvido após a celebração da escritura de cessão de quotas;

- e a pagarem juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 10,58% sobre o montante dos danos patrimoniais referidos na alínea a), os quais, para facilidade de cálculo, são devidos desde 28-11-2005.

      Em fundamento, alegaram ter celebrado uma escritura pública em 13 de Agosto de 2004, nos termos da qual os 2º, 3º e 4º autores adquiriram onerosamente as quotas da sociedade C (…), Lda, tendo os outorgantes acordado que os réus se obrigavam a pagar todas as dívidas existentes ou que viessem a surgir relativas ao período de exploração anterior à data da outorga da escritura pública.

Sucede que na conta de que a autora é titular vieram a ser debitados os valores identificados no artigo 12º da p.i. sem conhecimento e contra a vontade dos autores, que também liquidaram ainda os valores indicados no artigo 15º, que se reportam a despesas relativas ao período de gerência dos réus, no total de 648,39€.

Mais acordaram os outorgantes que os custos no valor de 372,13€ relativos a despesas inerentes ao cumprimento de regras relativas à saúde, higiene e segurança no trabalho, efectuadas na sequencia da vistoria realizada pela Medicar seriam suportadas pelos réus, tendo-se ainda os réus obrigado a pagarem o IVA relativo ao mês de Julho de 2004.

Os réus, nos termos acordados, deveriam solver na íntegra as dívidas que contraíram perante D (…), Lda, na sequência da aquisição do estabelecimento comercial, por trespasse celebrado em 28.11.2002.

Porém, para pagamento das obrigações assumidas nesse trespasse os autores pagaram a importância de €839,13, suportando ainda a autora o pagamento de 988,00€ relativo ao IVA decorrente de uma alienação de uma viatura efectuada em 31-07-2004 pelos réus, e os autores pagaram à Segurança Social a quantia de 447,58€ relativa a obrigações que os réus deixaram de cumprir no período da sua gestão relativamente a uma trabalhadora.

 Acresce que os réus nunca entregaram bens no valor de €2.462,79, que estavam identificados no inventário do estabelecimento comercial.

Mais alegaram os autores que antes da formalização da referida escritura de cessão de quotas, em 30-07-2004 haviam celebrado com os réus um contrato-promessa de cessão de quotas, e que apesar de terem sido cedidas as quotas pelo valor nominal, o preço contratualmente fixado foi de 109.800,00€, mas os autores entregaram ainda um outro cheque no valor de 12.500,00€ e os réus pretendem cobrar-se da quantia de €140.000,00, tendo instaurado uma execução para pagamento dum outro cheque de 17.500,00€.

Os termos em que o contrato foi celebrado atesta o facto dos réus se terem aproveitado da inexperiência dos autores para conseguirem benefícios económicos, e nessa medida, deram causa a um negócio usurário, cuja anulação ou alteração os autores requerem seja efectuada com recurso à equidade, pedindo que o contrato seja modificado de forma a reduzir os lucros/benefícios usurários recebidos pelos réus.

Por fim aduzem que toda a conduta dos réus lhes causou ainda danos não patrimoniais, que computam em quantia não inferior a 7.500,00€.

2. Contestaram os R., por impugnação, alegando que as negociações desenvolvidas para a celebração da cessão de quotas da sociedade C (…), Ld.ª foram acompanhadas por técnicos de contas das partes intervenientes, que analisaram os valores de activo e passivo, sendo certo que os valores económicos pelos quais os réus aceitaram ceder as quotas são semelhantes aos valores reais do activo e do passivo.

E foi por essa razão que acordaram em levar “a zero as verbas de exploração de forma a efectuar a respectiva cessão pelos respectivos valores notariais e registrais”, sendo que os valores que constam do contrato promessa então celebrado correspondem aos efectivos valores de que os réus eram titulares ou acordaram assumir.

Mais alegam que os autores pretendiam iniciar a laboração do estabelecimento em 1 de Agosto, o que sucedeu, mas numa fase pré-negocial acordaram as partes o destino de alguns dos bens pertencentes à sociedade cujas quotas foram cedidas.

Impugnam, ainda, a factualidade atinente aos valores cujo pagamento os autores reclamam, invocando não lhes ser devido tal pagamento.

3. Dispensada a realização da audiência preliminar foi proferido despacho saneador onde se elencou a matéria de facto assente e seleccionou a que constituiria a base instrutória, a qual não foi objecto de reclamação.

4. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença julgando-se a acção parcialmente procedente e condenando-se os réus a pagarem aos autores a quantia de 1.450,64 euros, acrescida de juros contabilizados desde a citação até integral pagamento, à taxa legal para as operações comerciais.

5. Inconformados com esta decisão, os Autores interpuseram o presente recurso de apelação da sentença proferida, pedindo que a mesma seja revogada e substituída por acórdão que julgue procedente a acção, formulando para o efeito as seguintes conclusões:

«a) Resulta dos autos que o preço contratualmente fixado para a cessão de quotas foi de 109.000,00€, mas que para além deste valor os RR. ainda receberam um outro cheque no montante de 12 500,00€;

b) Tal conclusão consta do relatório pericial, e dela resulta que os RR. obtiveram para si um benefício ilegítimo com a outorga do contrato em apreço;

c)  Lograram tal objectivo face à situação de inferioridade (idade e inexperiência no mundo dos negócios) em que os apelantes se encontravam;

d) Os apelados obtiveram ilegitimamente "um benefício excessivo e injustificado, pelo que estamos claramente perante um negócio usurário;

e) O qual deve ser modificado à luz dos princípios da equidade, e ipso facto, serem os apelados condenados a devolver tal importância aos recorrentes;

f) Ao não decidir assim, o tribunal violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 282.º e 283.º, ambos do Código Civil;

g) Os AA./Apelantes vieram a juízo peticionar o recebimento de determinadas importâncias que correspondem a débitos da empresa C (…) Lda, e cujo pagamento os RR/Apelados assumiram pessoalmente, ou a activos da empresa cedida e que os recorridos não entregaram;

h) Encontra-se assente que os RR. se obrigaram, verbalmente, perante os AA a pagar todas as dívidas existentes, ou que viessem a surgir e que se reportassem ao período de exploração anterior à data da outorga da escritura de cessão de quotas;

i)   A decisão recorrida apenas condenou os RR. no pagamento de algumas dessas quantias, quando deveria ter condenado no pagamento de todas as que se mostram peticionadas e que foram levadas à base instrutória;

j) ou seja, face à prova inserta nos autos, os apelados devem ser condenados a pagar aos apelantes todas as importâncias constantes dos artigos 3° e 11° da base instrutória;

k)  A resposta de “não provado" ministrada ao artigo 16° da BI deve ser alterada, porquanto tal resulta da resposta dada pelos senhores peritos ao quesito 16° do relatório pericial;

l)   E, em consequência, devem os apelados ser condenados a pagar os valores insertos nos cheques que os AA. liquidaram e que constituíam obrigações assumidas pelos RR.;

m) Os RR. obrigaram-se a entregar à Fazenda Nacional o IVA relativo ao mês de Julho/2004;

n)  Porém quem liquidou a importância de 2 230,29€ foram os AA., importância que lhes deve ser restituída pelos RR., o que aqui se pede;

o) Os recorridos devem igualmente ser condenados entregar aos apelantes o valor do automóvel ligeiro de matrícula RP (..) , avaliado em 5 200,00€, o qual foi vendido pelo R. marido depois de ter outorgado no contrato-promessa de cessão de quotas;

p) O IVA resultante de tal transacção, no montante de 988,00€ foi suportado pelos AA., mas os RR. devem ser condenados na entrega deste valor;

q} O veículo automóvel fazia parte do inventário do estabelecimento comercial e foi alienado sem conhecimento dos apelantes;

r)  Ao não decidir em conformidade, mostram-se lesados por errada interpretação e aplicação seguintes normativos: artigos 762.º,763.º, n.º 1, 406.º, n.º 1 e 444°, todos do Código Civil».

6. Os réus não apresentaram contra-alegações.


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Mantém-se a validade e regularidade da instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso[1].

Em face das conclusões das alegações de recurso, são as seguintes as questões cuja apreciação os Apelantes pedem a este tribunal:

- saber se o negócio entre as partes configura um negócio usurário;

- na afirmativa, se deve ser modificado à luz da equidade;

- reapreciação da matéria de facto com alteração da resposta ao artigo 16.º da base instrutória;

- saber se os autores têm direito ao recebimento das importâncias que peticionaram referentes a despesas suportadas e que o deviam ter sido pelos réus, bem como ao recebimento do valor correspondente ao veículo automóvel vendido pelos réus e que devia ter integrado o património da sociedade autora.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto

Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:

1. Os 2º, 3º e 4º autores são sócios da 1ª autora (A (…) Lda) (al. A).

2. Em 30.7.2004 autores e réus celebraram um contrato promessa de cessão de quotas, junto a fls. 40 e ss, nos termos do qual os réus prometeram vender aos autores as quotas de que eram titulares na sociedade C (…), Lda, mediante o preço de €109.800, nos seguintes termos: como sinal e princípio de pagamento a quantia de €5.000,00, a restante parte seria paga através de dois cheques, um no valor de €87.300,00 e outro no valor de €17.500,00 (artºs 21º, 22º, 25º a 27º).

3. Do património da dita empresa fazia parte o direito de utilização do estabelecimento de restauração e bebidas com designação de Café Snack Bar C (..) , sito na (..) , nº (..) , em (..) , Coimbra (artº 23º).

4. Tal estabelecimento possui o alvará de utilização nº 327/98 emitido pela Câmara Municipal de Coimbra e havia sido adquirido pelos réus através de contrato de trespasse celebrado por escritura pública outorgada em 28.11.2002, no primeiro Cartório Notarial de Coimbra (artº 24º).

5. Os autores começaram a explorar a sociedade cujas quotas vieram a ser cedidas por escritura pública de 13.8.2004 em data não posterior a 2 de Agosto de 2004 (artº 10º da p.i. e 16º da contestação).

6. Por escritura pública de 13.8.2004, celebrada no Cartório Notarial do Centro de Formalidades de Empresas de Coimbra, os 2º, 3º e 4º autores adquiriram onerosamente aos réus as quotas de C (…) Lda, de que estes eram proprietários (al. B).

7. A referida sociedade foi alienada pelos réus, possuía a mesma sede da autora (al. C).

8. As quotas foram adquiridas pelo valor nominal das mesmas, tendo os réus recebido o respectivo preço no acto da celebração da escritura pública (al. D).

9. Os réus obrigaram-se, verbalmente, perante os autores a pagar todas as dívidas existentes, ou que viessem a surgir e que se reportassem ao período de exploração anterior à data da outorga da escritura de cessão de quotas (artº 1º).

10. A conta bancária cujo titular era C (…), Lda (com o nº 000-51-893226020) passou a ser titulada pela autora A (…), Lda (doc. de fls. 16 e 33).

11. Os réus em 2.8.2004, ao transferirem para uma sua conta particular a importância de €3.621,40, existente na conta da empresa que através de contrato escrito já haviam prometido alienar aos autores, deixaram aquela reduzida a zeros (artº 2º).

12. Na conta bancária titulada na agência do Banco Totta, por A (…), Lda foram debitados os cheques nº 786, no valor de €149,00, em 4.8.2004, nº 784, no valor de €415,00, em 23.8.2004 e nº 774, no valor de €74, em 3.9.2004 (artº 3º).

13. Todos estes cheques foram emitidos pelo réu marido, sem conhecimento e contra a vontade dos autores (artº 4º).

14. Na conta bancária titulada na agência do Banco Totta por A (…), Lda foram debitados as seguintes quantias relativas a despesas ocorridas e serviços prestados no período de gerência dos réus (Junho, Julho e Agosto de 2004) (artº 5º):

- utilização/pagamento de ATN no valor de €35,00, em 5.8.2004, referente ao período compreendido entre 1.7 e 31.7;

- PT - Telecom no valor de €77,74, em 9.8.04, referente ao período compreendido entre 21.6 e 21.7;

- gás no valor de €58,84, em 10.8.04, referente ao período compreendido entre 26.7 e 2.8;

- EDP no valor de €207,44, em 19.8.04, referente ao período compreendido entre 2.7 e 2.8;

- água no valor de €224,58, em 27.8.04, referente ao período de Junho e Julho/2004;

- PT - Telecom no valor de €22,96, em 6.9.04, referente ao período compreendido entre 22.7 e 2.8.

15. Através da conta bancária titulada na agência do Banco Totta por AFP (..) , Lda foi pago o cheque emitido à ordem da Prossegur no valor de €20,93, referente ao mês de Julho de 2004, relativo a serviços prestados no período de gerência dos réus (Julho de 2004) (artº 6º).

16. Os RR obrigaram-se perante os autores a suportar o pagamento à Fazenda Nacional do IVA relativo ao mês de Julho de 2004, através da compensação com um crédito que a sociedade tinha sobre o Recheio Cash & Carry, no valor de €1.838,40, que foi creditado na conta da 1ª autora em 22.11.2004. No âmbito do acordado, foram os autores que procederam ao pagamento do IVA relativo ao mês de Julho de 2004 no valor de €2.230,29 (artºs 7º e 8º e 45º a 47º).

17. A M (…), Lda visitou a sociedade C (…), Lda, tendo concluído no relatório que elaborou em 20.7.2004 que havia necessidade de reparar algumas irregularidades, que deram lugar a custos (artºs 9º e 10º).

18. Em 15.9.2004 foi emitida uma venda a dinheiro a A (…)Lda relativa à revisão e fornecimento de extintor, no valor de €66,94; em 4.10.2004 foi emitida à mesma sociedade uma factura no valor de €231,41 relativa a um electrocaptador e em 13.10.2004 foi emitida à mesma sociedade uma venda a dinheiro no valor de €73,78 relativa a sinalização variada (artº 11º).

19. D (…) Lda celebrou com o réu, em representação de C (…) Lda, em 28.11.2002, a escritura de trespasse junta a fls. 25 e seg., nos termos da qual aquela trespassou a esta o estabelecimento comercial de bebidas, designado por “Café Sack Bar CS (..) ”, sito na (..) , nº (..) (que fazia parte do património da sociedade referida em B), pelo preço global de €99.759,60, do qual a quantia de €29.927,88 já se encontrava paga no acto da escritura e o restante seria pago em 36 prestações mensais no valor de €1.939,77, cada uma (artºs 12º a 14º).

20. Do inventário do estabelecimento comercial designado por Café Snack bar “ CS (..) ” fazia parte um veículo ligeiro de mercadorias marca Fiat, com matrícula RP (..) , que foi vendido em 31.7.2004 pelo preço de 31.7.2004, no período de gerência do réu, tendo tal venda sido lançada na contabilidade C (…)Lda (artº 17º).

21. Na declaração do IVA, modelo B, de A (…) Lda, respeitante ao período 2004/09T, foi declarado o imposto a favor do Estado de €988,00 relativo a tal venda (artº 18º).


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III.2. – O mérito do recurso

III.2.1. – Apreciação da questão de saber se o negócio entre as partes configura um negócio usurário

Os Apelantes (…)  pela via do recurso de apelação interposto da sentença recorrida, pretendem trazer à apreciação deste Tribunal, prima facie a questão que sintetizam nas conclusões a) a f), referente aos pedidos que haviam formulado de condenação dos RR. a verem declarado que o contrato de trespasse celebrado com os autores é um negócio usurário; a verem modificado o negócio segundo juízos de equidade, o que se deve repercutir na redução do preço pago pelos autores; a entregarem aos autores a parte do preço que resultar da modificação do negócio, a qual deverá constar de uma importância liquida ou a liquidar em execução de sentença.

Para tanto, concluem que:

«a) Resulta dos autos que o preço contratualmente fixado para a cessão de quotas foi de 109.000,00€, mas que para além deste valor os RR. ainda receberam um outro cheque no montante de 12 500,00€;

b) Tal conclusão consta do relatório pericial, e dela resulta que os RR. obtiveram para si um benefício ilegítimo com a outorga do contrato em apreço;

c)  Lograram tal objectivo face à situação de inferioridade (idade e inexperiência no mundo dos negócios) em que os apelantes se encontravam;

d) Os apelados obtiveram ilegitimamente "um benefício excessivo e injustificado, pelo que estamos claramente perante um negócio usurário;

e) O qual deve ser modificado à luz dos princípios da equidade, e ipso facto, serem os apelados condenados a devolver tal importância aos recorrentes;

f) Ao não decidir assim, o tribunal violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 282.º e 283.º, ambos do Código Civil».

A este propósito discorreu-se na sentença recorrida que:

«Alegam os autores que os termos em que o contrato foi celebrado atesta o facto dos réus se terem aproveitado da inexperiência dos autores para conseguirem benefícios económicos. Nessa medida, os réus deram causa a um negócio usurário, cuja anulação ou alteração requerem, de modo a reduzir os lucros ou benefícios usurários recebidos por aqueles.

Dispõe o artº. 282º, nº 1 do Cód. Civil que “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

São pressupostos do preenchimento de tal preceito que se verifique uma situação de necessidade do declarante e a exploração dessa situação pelo usurário. E para que a situação de necessidade venha a afectar a liberdade negocial e tenha determinado a declaração negocial colocada em causa tem que se verificar no momento em que o negócio é celebrado. A situação de necessidade traduz-se numa situação de inferioridade relativamente à qual o usurário se aproveite de forma consciente, prometendo ou concedendo benefícios excessivos ou injustificados por parte de quem se encontra na situação de necessidade.

Acresce que a verificação de uma situação de usura exige que se avaliem as prestações, a existência de desequilíbrio entre ambas, bem como a respectiva justificação (ou ausência dela). Tal avaliação não poderá ser efectuada em termos puramente objectivos, em face da importância que as considerações subjectivas assumem na determinação da formação da vontade negocial.

Efectuadas estas considerações e em face dos factos que se provaram (ou da ausência deles) temos que concluir não há elementos que nos permitam afirmar que os autores se encontrassem numa situação de inferioridade (ou de inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter) quando emitiram as suas declarações negociais. Nessa medida e sem necessidade de tecer outras considerações, a pretensão dos autores que se suporta no reconhecimento que o negócio celebrado entre as partes foi usurário, está toda ela votada à improcedência.»

As considerações efectuadas pela Mm.ª Juíza afiguram-se correctas do ponto de vista do enquadramento jurídico da questão e é também certo que, em face dos factos submetidos a julgamento, não existem factos provados para concluir pela situação de inexperiência dos autores na concretização do negócio.

Como vimos, nas suas alegações, os autores insistem que existiu um aproveitamento dos RR. da situação de inferioridade dos autores, em face da sua idade e inexperiência no mundo dos negócios, mercê da qual aqueles obtiveram um injustificado benefício.

Ora, em face do disposto nos artigos 282.º e 283.º do Código Civil, “quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”, pode a parte que se considera lesada pela celebração do negócio jurídico nos referidos termos, requerer a anulação ou a modificação do negócio segundo juízos de equidade, e foi esta última a opção dos autores.

Com o disposto no referido preceito «o legislador concede sob a designação de usura, alguma relevância ao velho instituto da lesão, não sancionando um critério puramente objectivo, mas exigindo, em conformidade com a fisionomia moderna do instituto (§ 138 do Cód. alemão; art. 1448.°do Cód. italiano), a verificação de requisitos objectivos (benefícios excessivos ou injustificados) e requisitos subjectivos (exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem). Entre estes requisitos subjectivos figura, pois, ao lado de outras situações, o estado de necessidade.

Devem, portanto, verificar-se requisitos objectivos: benefícios excessivos ou injustificados. Tem de haver uma desproporção manifesta entre as prestações. Só haverá benefícios excessivos ou injustificados, quando, segundo todas as circunstâncias, a desproporção ultrapassa os limites do que pode ter alguma justificação.

Devem, igualmente, verificar-se requisitos subjectivos, a saber:

1.° A exploração de situações tipificadas, que não é excluída pelo facto de a iniciativa do negócio provir do lesado;

2.° Uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter.

O requisito exploração implica necessariamente momentos subjectivos, a saber, a consciência das situações tipificadas no artigo e a consciência da causalidade entre essas situações e os benefícios recebidos, embora, na prática, este segundo momento (causalidade) resulte, muitas vezes, de uma prova por presunções»[2].

Portanto, exige-se, como requisito da anulabilidade ou modificação do negócio, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém, mas não basta a verificação dum daqueles estados, sendo necessário que haja a consciência de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem para alcançar um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, em proveito próprio ou de terceiro, ficando esta determinação entregue ao prudente arbítrio do julgador e só verificados todos estes requisitos pode o negócio ser havido como usurário[3].

Desta sorte, estando o juiz limitado pelos pedidos das partes, e não podendo deles extravasar na sentença, porquanto quer a decisão final seja condenatória, quer seja absolutória, o juiz não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, sob pena de nulidade da sentença, devendo o objecto desta coincidir com o objecto do processo – cfr. artigo 661.º, n.º 1, do CPC -, mas não podendo também o juiz ficar aquém do que lhe foi pedido, uma vez que deve decidir todas as questões que lhe foram submetidas pelas partes para apreciação – artigo 660.º, n.º 2, do CPC -, constitui monopólio das partes a conformação da instância, nos seus elementos objectivos e subjectivos, já que o tribunal está limitado aos factos alegados pelas partes – artigo 664.º do CPC.

Assim, para que a acção proceda com base neste instituto, e constituindo a petição inicial “a base de todo o processo”[4], uma vez que se trata do articulado em que o autor propõe a acção, em que solicita ao tribunal a tutela jurisdicional pretendida para o caso concreto que leva a juízo, tudo em decorrência do princípio do dispositivo consagrado nos artigos 3.º e 264.º do CPC, e sendo as partes que, através do pedido e da defesa, circunscrevem o thema decidendum[5], em face do ónus de alegação e prova consagrado também no artigo 342.º do CC, aos autores incumbe no referido articulado alegarem os factos que sustentem os referidos requisitos legais conformadores do pedido formulado, o mesmo é dizer, os factos que integrem a causa de pedir, e aos réus competirá alegar os factos que servem de base a sua defesa em face precisamente daqueles que foram os factos integradores da causa de pedir, que assim se arvora em manifestação do próprio princípio do contraditório.

Ora, sendo a causa de pedir definida no n.º 4 do artigo 498.º do CPC a propósito dos requisitos da litispendência e do caso julgado, como o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, a falta de alegação de determinados factos constitutivos do invocado direito pode comprometer o reconhecimento do direito de que a parte seja titular.

De facto, a causa de pedir é integrada pelo facto ou factos simples produtores do efeito jurídico pretendido e não se confunde com a valoração jurídica que aos mesmos seja atribuída pelo autor, já que enquanto aquela alegação limita o tribunal esta não é vinculativa, mercê do princípio consagrado no aludido artigo 664.° do CPC, conformador da relação entre a actividade das partes e ao juiz, de acordo o qual o tribunal conhece oficiosamente do direito aplicável.  

Aplicados estes ensinamento ao caso dos autos temos que os autores, além de cumprirem o dever de formular o pedido de modificação do negócio jurídico (artigo 3.º, n.º 1, e 467.º, n.º 1, al. e), do CPC), alegaram os factos concretos que, em seu entender, são geradores do efeito jurídico pretendido, ou seja, os factos constitutivos da situação jurídica que quiseram fazer valer em juízo, cumprindo outrossim o preceituado nos artigos 467.º, n.º 1, d) e 498.º, n.º 4, do CPC.

Por seu turno, os Réus, citados para contestar, expuseram no respectivo articulado as razões de facto e de direito por que se opõem às deduzidas pretensões, e retiraram ainda conclusões emergentes daqueles.

Ora, “a prova (...) só pode ter por objecto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória"[6].

Na verdade, como resulta do disposto no artigo 511.º do CPC, o juiz, ao fixar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, deve fazê-lo segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida.

                        Este normativo traz à colação a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que constitui um dos alicerces do nosso processo civil, e tem consagração noutras disposições legais, nomeadamente nos artigos 653.º e 659.º, n.º 2, do CPC, matéria sobre a qual muito se tem escrito, quer na doutrina quer na jurisprudência.

                        De facto, apesar da aparente simplicidade da divisão, acontece que, na prática, nem sempre a distinção nos aparece tão evidente como as normas em questão parecem fazer crer.

                        Assim, "o questionário deve conter só matéria de facto. Deve estar rigorosamente expurgado de tudo quanto seja questão de direito; de tudo quanto envolva noções jurídicas (…). Os factos materiais que possam interessar a estas noções é que devem ser quesitados. O órgão competente para conhecer de direito ajuizará depois se eles (os que estiverem provados segundo a decisão proferida sobre a matéria de facto) correspondem ou não aos elementos integradores dessas noções. Por vezes o mesmo termo é usado na linguagem jurídica e na linguagem comum. Na formulação do questionário deve arredar-se o emprego desses termos. Quando todavia lá figure algum deles, deve entender-se que foi tomado no seu sentido vulgar, pelo menos quando este seja (como tal) bem claro e preciso[7].

            Na verdade, "são ainda de equiparar aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como "pagar", "emprestar", "vender", "arrendar", "dar em penhor", etc.

          Poderão então figurar, nesses próprios termos, devendo tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles, podendo ainda figurar sempre na especificação e ainda no questionário quando não constituam o próprio objecto do quesito”[8].   

            Por aqui já podemos antever as dificuldades que muitas vezes se apresentam às partes para alegar os factos concretos dos quais emerge o direito que pretendem fazer valer, as quais necessariamente se irão reflectir também no labor judicial nos momentos em que tal distinção se apresenta mais necessária, tanto mais quando “os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas, neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (por exemplo, o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção”[9].

            Uma dessas dificuldades, prende-se, como vimos, com a coincidência entre os termos empregues pelo legislador, a "linguagem jurídica", e os usados na linguagem vulgar, como acontece com os já referidos, podendo gerar-se, consequentemente, alguma confusão terminológica com a redacção dos factos.

            Mas, pode ainda surgir outra dificuldade, que consiste em saber até que ponto se devem decompor os conceitos factuais, de modo a não se discutirem conclusões, questão que se prende com a evidência de que qualquer conceito jurídico, por mais acessível que seja, como os já referidos supra, tem sempre que ter uma referência factual subjacente.

           Assim, “perante um conflito que vai desaguar em litígio judicial, há que levar a cabo uma operação de circunscrição tão nítida quanto possível, em ordem a que a discussão se situe apenas na zona circunscrita. (…) Levada a cabo a circunscrição, logo vemos que tem de se ser muito menos exigente, quanto à "pureza" da redacção factual na parte que está de fora e que serve apenas para situar o conflito do que relativamente aos factos próprios deste.

          Se assim não se pensar, à delicadeza que sempre encerra a resolução dum conflito acrescentamos complicação particularmente acrescida e afastamo-nos, negligentemente, dos objectivos de justa composição do litígio que as partes pretendem. Violando o princípio da celeridade que o artigo 266.º, n.º1 do Código de Processo Civil contempla. Mas mesmo entre muros da factualidade que caracteriza o conflito, onde a pormenorização e o afastar dos conceitos jurídicos deve ser mais premente, há que atender a que o arredar das conclusões (…) deve ser entendido em termos de razoabilidade. De outro modo, (…) atribuía-se aos articulados uma premência de gongorismo, com perdas imensas de eficiência e celeridade processuais sempre a determinarem o afastamento da prossecução dos fins do processo e do almejado pelas partes”[10].

            Ora, “factos singulares são aqueles que, existindo e sendo reconhecidos por si próprios, encerram em si uma determinada ocorrência ou constatação histórica; factos conclusivos são os que constituem uma consequência lógica dos primeiros e que, por isso, não perdem a natureza fáctica e devem merecer o mesmo tratamento”[11].

            Na verdade, “não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”[12].

Ora, a primeira instância, aquando da selecção da matéria de facto que foi submetida a julgamento, não deu integral cumprimento ao disposto no artigo 511.º do CPC, porquanto omitiu matéria relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e que se mostrava controvertida, integrando a causa de pedir primeiramente invocada pelos autores, e cujo ónus de prova sobre estes impende.

De facto, para fundar o invocado pedido de ver declarado que o contrato de trespasse celebrado entre as partes é um negócio usurário, cuja modificação com redução do preço pretendiam, invocaram os autores - para além do mais que serão conclusões a retirar caso os factos simples se demonstrem -, com interesse para a decisão desta questão, que:

Artigo 60.º da p.i: Os RR. à data da negociação e conclusão do contrato de trespasse eram pessoas experientes, atenta a sua idade e as diversas actividades económicas lucrativas de que fazem vida;

Artigo 61.º da p.i.: E no negócio que celebraram com três jovens estudantes que procuravam pela primeira vez estabelecer-se por conta própria, aproveitaram-se de toda a inexperiência exibida por aqueles, pois nunca antes haviam contratado o que quer que fosse;

Artigo 62.º da p.i.: tendo com isso logrado obter benefícios económicos, que, se tratassem com outra gente igualmente experiente, não conseguiriam obter;

Artigo 67.º da p.i: e fizeram-no querendo explorar a situação de inexperiência em que os 2.º, 3.º e 4.º AA. se encontravam.

Estes factos constituem a causa de pedir deduzida pelos autores com vista à declaração de se tratar de um negócio usurário aquele que celebraram com os RR., mas nenhum deles foi levado à base instrutória, apesar de a tal nada obstar.

      De facto, compulsada a petição inicial, verificamos que os autores alegaram factos com vista ao apuramento da alegada inexperiência dos autores por contraponto à experiência dos réus, os quais, - ainda que alguns deles se encontrem “misturados” com factos que são, por si só, conclusivos -, estão estribados em factos simples também alegados pelos autores, com linguagem que pode qualificar-se como comum, v.g., a referida inexperiência, a retirar doutros factos também alegados: a idade, o facto de serem estudantes e nunca antes terem feito qualquer negócio; por contraponto ao mesmo tipo de factos, no pólo inverso, quanto aos réus.

      Porém, tratando-se a idade de autores e réus de facto a demonstrar pela junção dos respectivos assentos de nascimento, os demais constituem factos que não são demonstráveis por documento que relativamente aos mesmos constitua prova plena e, sendo factos simples e controvertidos, devem ser submetidos a julgamento.

Efectivamente, o que se nos aparenta ter acontecido foi que o Mm.º Juiz que elaborou a selecção da matéria de facto controvertida, parece ter entendido que o ónus da prova desta factualidade incumbia aos RR. tendo assim levado à base instrutória os factos constantes dos artigos 33.º a 52.º, relevantes para contraprova do indicado benefício económico excessivo que os autores haviam alegado e também da invocada inexperiência.

Na verdade, a este respeito, haviam os réus alegado que - ao contrário do que invocavam os autores - os mesmos já tinham experiência profissional como gerentes de loja na Telepizza. Porém, o facto de se ter perguntado tal matéria no artigo 53.º, que veio a merecer resposta negativa, não pode significar, como é consabido, a prova do contrário, ou seja, de que os autores eram então pessoas inexperientes, daí que o apuramento dos factos supra referidos que haviam sido alegados pelos autores é essencial para a decisão relativa aos referidos pedidos.

Não tendo a Mm.ª Juiz que procedeu ao julgamento usado os poderes que lhe estavam conferidos pelo artigo 650.º, n.º 2, alínea f), providenciando até ao encerramento da discussão pela ampliação da base instrutória da causa, a conclusão pela mesma na sentença de que inexistiam factos para que os autores provassem o alegado negócio usurário, afigura-se prematura porquanto o que aconteceu foi que, alegados os mesmos, não foram sujeitos a julgamento e, como tal, não foram atendidos na elaboração da sentença.

Porém, os Autores insistem no recurso interposto na sua verificação, mantendo-se consequentemente a necessidade da sua apreciação, concluindo mesmo as suas alegações como se aqueles factos tivessem sido provados, e não foram porque nem sequer foram sujeitos a prova, dependendo, portanto, o sucesso ou insucesso da respectiva pretensão, quanto a esta matéria, do seu prévio julgamento.

Ora, nos termos do artigo 712.º, n .º 4, do CPC, pode a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida em 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação desta, como acontece no caso em apreço, e que impõe que tal se determine por ser indispensável a uma correcta apreciação e decisão da presente questão.

A repetição do julgamento, porém, apenas se destina à apreciação dos factos atrás referidos com interesse para a decisão relativa à qualificação ou não do negócio havido entre as partes como usurário, não abrangendo toda a demais decisão relativa à matéria de facto que não está viciada pela referida omissão.

Em face do exposto, fica prejudicado, por ora, o conhecimento das demais questões, mormente da reapreciação da matéria de facto quanto à matéria do artigo 16.º da base instrutória, a qual será oportunamente apreciada, sendo caso disso, conforme agora foi suscitada ou conjuntamente com reapreciação que o aditamento ora ditado possa suscitar.


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III.3. - Síntese conclusiva

I - O artigo 282.º do CC exige como requisito da anulabilidade ou da modificação do negócio usurário prevista no artigo 283.º da mesma codificação legal, a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém. Porém, não basta a verificação dum daqueles estados, sendo necessário que haja a consciência de que se está a tirar proveito da inferioridade de outrem para alcançar um benefício manifestamente excessivo ou injustificado, em proveito próprio ou de terceiro, ficando esta determinação entregue ao prudente arbítrio do julgador e só verificados todos estes requisitos pode o negócio ser havido como usurário.

II - Assim, para que a acção proceda com base neste instituto, aos autores incumbe a alegação dos factos que sustentem os referidos requisitos legais conformadores do pedido formulado, o mesmo é dizer, os factos que integrem a causa de pedir.

III - Tendo os autores alegado factos com interesse para a decisão da sua invocada inexperiência que não foram levados à base instrutória, impõe-se oficiosamente determinar nessa medida a ampliação da matéria de facto com vista ao julgamento de tal matéria.


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      IV - Decisão

      Face ao exposto, acorda-se em anular parcialmente a decisão recorrida, ordenando-se a ampliação da matéria de facto, nos termos supra precisados.

      Custas pela parte vencida a final.

      Notifique.


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Albertina Pedroso ( Relatora ) 

Virgílio Mateus

Carvalho Martins


[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, págs. 533 e 534.

[3] Cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol I., 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1982, pág. 259.
[4] Jorge Augusto Pais de Amaral, ob. cit., pág. 173.
[5] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 374.
[6] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 212.
[7] Cfr. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 187.
[8] Cfr. Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil, Almedina, 1982, vol. III, pág. 269.
[9] Cfr. Ac. STJ de 22-04-2009, processo 08S1901, disponível em www.dgsi.pt.

[10] Cfr. Ac. STJ de 02-11-2006, processo n.º 06B3267, disponível em www.dgsi.pt.

[11] Cfr. Ac. STJ de 24-09-1998, processo n.º 98P041, com sumário disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. STJ de 13-11-2007, processo n.º 07A3060, disponível em www.dgsi.pt.