Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
69026/17.1YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: SANEADOR
CONHECIMENTO DE MÉRITO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CRÉDITO
PAGAMENTO
CREDOR APARENTE
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 595 Nº1 B) CPC, REGULAMENTO (CE) Nº593/2008 DO PARLAMENTO E CONSELHO DE 17/7/2008, ART.1164 CC ESPANHOL
Sumário: I - Se o réu/recorrente taxa a decisão de mérito na fase de saneamento de intempestiva, por lhe impedir o direito a provar factos que tem por essenciais para a sua pretensão, o vício da mesma não é o da sua nulidade por infundamentada ou por conter excesso de pronúncia, mas o da sua ilegalidade por ser precoce e tolher o direito à prova.

II - A decisão de mérito na fase de saneamento apenas pode, nuclearmente, ocorrer, quando: toda a matéria de facto relevante para a decisão segundo as várias soluções juridicamente plausíveis se encontre provada; seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos.

III - Estando em causa a aplicação do artº 1164º do CC Espanhol que exonera o devedor se pagou, de boa fé, a terceiro que aparenta a titularidade do crédito, e alegando o réu factos que podem imputar tal mau pagamento à autora, como seja, vg., o ela ter permitido o acesso ao seu sistema informático a terceiros intrusos, tais factos podem relevar, quer para a apreciação da verificação destes requisitos, quer para a imputação à autora ou a outrem do pagamento indevido que fez ao terceiro fraudulento, pelo que a decisão de mérito no saneador com o argumento de que foi apenas o devedor pagador que crassamente errou, assume-se - porque inviabiliza outra possível, qualitativa e/ou quantitativamente, diversa decisão -, intoleravelmente precoce.

Decisão Texto Integral:



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE COIMBRA

1.

A (…), S.A. instaurou contra  C (…) S.A.,  requerimento de injunção.

Pediu:

A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €65.512,31.

Alegou:

Um contrato de fornecimento de bens (amêndoas) à  ré, cujo preço esta não lhe satisfez.

A requerida opôs-se.

Alegou, em apertada síntese:

Depositou a quantia peticionada em conta que lhe foi indicada, ao menos inicialmente, por emails provenientes do endereço de e-mail habitualmente utilizado pela Requerente, que se encontra registado no domínio “www.(....)” pertencente a uma das empresas do grupo da Requerente.

Após  ter efectuado o depósito e se apercebido ter sido objecto de  fraude  telefonou imediatamente à requerente no sentido de esta contactar com o banco espanhol depositário da verba em causa no sentido  suspender qualquer levantamento ou transferência da mesma, o que ainda não tinha acontecido, pois que os burlões antes  a tinham contactado para que a verba ficasse na disponibilidade de C (…)S.A.

Desconhecia, à data da troca de e-mails e, consequentemente à data da realização da transferência bancária, que os documentos internos, os servidores ou servidor de email, eram acedidas ilicitamente por terceiros que não a Requerente

A dívida foi já liquidado por parte da Requerida, sendo que, em virtude de circunstâncias a que é alheia, a Requerente foi impedida por terceiros de rececionar tal pagamento, o que é, e sempre foi, do conhecimento da Requerente.

Pediu:

A improcedência da acção.

A requerente respondeu.

Disse:

A ré tudo aceitou para se deixar enganar.

 Pois, aceitou como provenientes da autora, comunicações provenientes de endereços de correio electrónico com domínio sito nos Estados Unidos da América como é o caso das comunicações provenientes de: (…),

Aceitou mensagens de correio electrónico com erros ortográficos grosseiros no respectivo endereço,considerando a designação social da autora como os e-mails provenientes de: (…).com, apesar de na língua Castelhana, as “amêndoas” na designação social da autora se escrever “almendras” e não “almondras”,

 Como também aceitou pedidos expressos de transferências bancárias para beneficiários que não correspondiam ao fornecedor e aqui autora.

2.

Realizada a audiência prévia o julgador considerou-se habilitado a decidir e, após comunicação às partes dessa sua intenção, e de operado o contraditório, foi proferida a seguinte  sentença:

«Julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência,

2. Condeno a Ré C (…), S.A. a pagar à Autora A (…), S.A., a quantia de €65.512,31 (sessenta e cinco mil, quinhentos e doze euros e trinta e um cêntimos), acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal até efectivo pagamento.»

3.

Inconformada recorreu a requerida.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. A Sentença do Tribunal de 1.º Instância é profundamente injusta e violadora do Direito à Prova.

II. A Sentença do Tribunal de 1.º Instância é também por isso uma sentença nula.

III. A Sentença do Tribunal de 1.º Instância não se pronunciou sobre os concretos factos que fundamentam a oposição da Ré.

IV. A norma do ordenamento jurídico espanhol aplicada pelo Tribunal a quo não é a norma aplicável situação sub iudice.

V. A Ré apresentou, no seu articulado de Oposição, e nos requerimentos posteriores, os seus requerimentos de prova.

 VI. Por Despacho, o Senhor Juiz - afirmou numa análise “meramente perfunctória” (temporária, passageira, transitória?) que estado dos autos lhe permitiria decidir do mérito da causa, dando às partes o contraditório.

VII. E a Ré, em 16 de abril de 2018 e em 27 de abril de 2018, juntou um relatório complementar efetuado pela entidade (…) que já havia elaborado o primeiro relatório.

VIII. Em 21 de Setembro de 2018, o Tribunal a quo proferiu sentença, afirmando-se sem necessidade de produzir mais provas, decidir imediatamente todo o mérito da causa.

 IX. O Tribunal a quo coartou todos os meios de defesa da Ré,

 X. O Tribunal a quo impossibilitou a Ré de produzir qualquer meio de prova constituendo.

XI. O Tribunal a quo, desde muito cedo, preconcebeu que apenas era necessário apurar se a prestação pecuniária foi ou não efetuada à Autora.

 XII. O Tribunal a quo não teve em conta a complexidade factual alegada pelas partes e, em concreto a alegação por parte da Ré, da necessidade de prova da participação, negligente ou dolosa, da Autora, no sentido de criar um credor aparente à Ré.

XIII. No domínio da lei materialmente aplicável, o Tribunal a quo impediu a Ré de fazer prova da sua boa-fé, impediu a Ré de fazer prova da culpa da Autora, impediu a Ré de provar quem é que efetivamente recebeu o pagamento, impediu a Ré de exercer um eventual direito de regresso, impediu a Ré de fazer prova da eventual relação entre o recetador e a Autora, impediu a Ré de fazer prova da existência de outros clientes da Autora afetados pelo esquema fraudulento.

XIV. Para além disso, o Tribunal a quo parte de pressupostos de facto errados, porque erra ao afirmar que todos os emails recebidos pela Ré eram provenientes dos EUA, o que não é verdade e o Tribunal a quo tinha obrigação de o saber.

 XV. Os documentos 2 a 6 juntos com a Oposição, demonstram que o email original e o posterior são provenientes da Autora e não dos EUA.

XVI. A primeira informação da nova conta bancária que antecedeu todas as que se sucederam num processo lógico foi enviada do correio eletrónico da Autora.

XVII. Ao contrário do que se afirma na sentença a quo, a transferência efetuada pela Ré através do seu banco ((…)) identifica claramente o beneficiário da transferência como “A (…)”.

XVIII. A transferência não deveria ter sido aceite pelo banco espanhol ao verificar que o beneficiário indicado (ALMENDRAS M (...) ) não era o mesmo que o titular do IBAN ((…) e por isso o seu chamamento, também ele indeferido.

XIX. A Ré não indicou na transferência a sociedade C (…), como beneficiária (cfr Doc. 20 da Oposição).

XX. Não tendo sido fixados quaisquer temas de prova pelo Tribunal a quo, devem ser sujeitos a instrução todos os factos alegados.

 XXI. O Tribunal a quo, foi omisso em qualquer decisão relativa à produção de qualquer prova constituenda: não admitiu, nem rejeitou. Desprezou, afastando-se do apuramento da verdade e da justa composição do litígio.

XXII. Tendo revelado, desde cedo, repulsa, nomeadamente, por trazer aos autos o banco chamado, afirmando que a citação de pessoa coletiva no estrangeiro e a eventual invocação por esta de questões não alegadas pela Ré poderia perturbar o normal andamento do processo.

XXIII. O direito à tutela jurisdicional efetiva contido na Constituição implica o direito à prova, que engloba a possibilidade de propô-la e produzi-la.

XXIV. É contrária à Constituição a proibição absoluta da prova testemunhal, se tal restrição eliminar a possibilidade de prova de factos relevantes para a decisão, como é o caso dos autos.

XXV. O Tribunal a quo não fundamentou a sentença, como lhe impunha a norma do art. 607.º, n.º 4 do CPC

XXVI. Há insuficiência de matéria de facto provada para que o Tribunal condene a Ré.

XXVII. Foi aplicável norma (civil espanhola) não subsumível à situação sub iudice.

 XXVIII. O Tribunal a quo não cumpriu o disposto no n.º 1 do Artigo 23.º do Código Civil Português

XXIX. No domínio da lei aplicável, a presente ação não se resume em saber se a Ré entregou o preço devido à Autora na conta por esta indicada, mas em saber se a eventual entrega do preço a terceiro que se fez passar pela Autora desonera a Ré da obrigação em relação a esta,

 XXX. A norma aplicável é a do artigo 1164.º do Código Civil Espanhol

XXXI. No Direito Espanhol, diferentemente do direito português, a prestação de boa fé efetuada a um credor aparente liberta o devedor.

XXXII. Não está em questão o local do cumprimento da obrigação por parte da Ré, devedora, mas o pagamento feito a terceiro (aparente),

 XXXIII. O local de cumprimento da obrigação de pagamento seria sempre o domicílio do credor (Espanha) e não a específica conta bancária deste, que até era em Portugal e não em Espanha

XXXIV. Estão alegados os pressupostos da aplicação do instituto do credor aparente; falta prová-los ou não os provar para podermos chegar a uma decisão de mérito.

 XXXV. Dentro desses pressupostos, está a atuação de boa fé do devedor no sentido de recuperar o valor erradamente pago, profusamente demonstrada e demonstrável nos autos.

 XXXVI. Foram, por isso, e salvo o devido e merecido respeito, violadas as seguintes normas: o Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, o n.º 1 alínea b) e e) do Artigo 615.º do CPC e o Artigo 411.º também do CPC.;

XXXVII. A norma do Artigo 1.164 do Código Civil Espanhol é a norma aplicável à situação sub iudice e não a norma do artigo 1.171 do mesmo diploma fundamental referida na sentença a quo.

Contra alegou a recorrida pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

 - A  boa fé não é suposta ignorância, assim como a confiança não é entrega cega. Estes princípios perseguem apenas a salvaguarda do terceiro que tenha sido diligente no conhecimento do negócio e suas circunstâncias.

- No caso sub judice, é evidente que a recorrente não foi diligente, já que as comunicações electrónicas provinham de endereços manifestamente fraudulentos, o que é objectivo, e nem sequer foi (como não podia ser) enviado o documento bancário solicitado pela recorrente. Mas ainda assim, a  recorrente decidiu fazer uma transferência para uma conta bancária que bem sabia não pertencer à recorrida, o que não pode exonerá-la do pagamento à recorrida.

 - Aliás, em boa verdade, a recorrente nem sequer alegou que fez o pagamento a terceiro, pois o que alegou foi que estava convencida que fez o “pagamento” à autora, quando o fez a terceiro que a logrou burlar.

 - Falta, assim, in totum, qualquer “terceiro” que tenha actuado ou sequer pretendido actuar, como titular do direito de crédito.

- De qualquer forma, e para a aplicação de tal preceito, tal terceiro teria que ter demonstrado junto da recorrente o seu direito de crédito (ao menos aparentemente) como a recorrente enuncia como pressuposto da aplicação daquele normativo mas que, curiosamente, nem sequer aborda nas suas doutas alegações, já que tal demonstração de direito de crédito nunca ocorreu por quem terá recebido as quantias transferidas.

 - Faltam, assim, em absoluto a boa-fé do “pagador”, ora recorrente, como falta a demonstração do direito de crédito na posse de terceiro, o que inviabiliza decisivamente a aplicação daquele normativo do Código Civil Espanhol.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as quesões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Nulidade da sentença – als. b) e e) do nº1 do artº 615º do CPC.

2ª - Intempestividade do conhecimento de mérito antes da audiência final e da produção de prova.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Clama a recorrente que a sentença é nula por violação do disposto nas als. b) e e) do nº1 do artº 615º do CPC.

Ou seja que o juiz não especificou os fundamentos e facto e de direito que justificaram a decisão e  que condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do  pedido.

Alcança-se meridianamente fácil, e quasi evidente, que tais vícios inexistem.

Este são vícios formais da sentença, enquanto peça jurídico-processual, que está sujeita  a certos requisitos para que possa, jurídico formalmente, ser considerada válida.

A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.

Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.

Porque a decisão não é, nem pode ser, um ato arbitrário, mas a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, maxime a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.

E mesmo que da decisão não seja admissível recurso o tribunal tem de justificá-la.

É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, pois que estes destinam-se a convencer que a decisão é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.

Mas se assim é, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais se retira que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.

Na verdade a lei não comina com tão severo efeito uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.

Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.

O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável. Tal só acontece com a total falta de fundamentação. Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou insuficiente tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.

O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.

Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004 e de 16.12.2004, dgsi.pt.

Já no atinente ao excesso de pronúncia, urge ter presente que há decisão “ultra petitum” sempre que o julgador não confina o julgamento da questão controvertida ao pedido formulado pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu e conhece, fora dos casos em que tal lhe é permitido “ex officio”, questão não submetida à sua apreciação.

Condenando em quantidade superior ou em objeto diverso o juiz excede o limite imposto por lei ao seu poder de condenar e infringe o princípio do dispositivo que assegura à parte a faculdade de circunscrever o thema decidendum.

Para que não se verifique tal vício terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão, isto é, a sentença não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos formulados pelo demandante.

Este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, p.06A2464  in dgsi.pt

5.1.2.

No caso vertente  o julgador depois de abundantemente expor as posições das partes, as quais, assim, abarcam todos os factos relevantes por elas aduzidos, operou uma subsunção dos mesmos e posterior interpretação  dos preceitos legais, máxime da lei espanhola, que teve por pertinentes.

E, a final, concluiu pela procedência da pretensão da autora e na consequente condenação da ré no pedido.

Nesta conformidade, não se antolha minimamente onde queda a falta de fundamentação da sentença e o excesso de pronúncia.

Pois que aquela foi aduzida e esta foi produzida, apenas e só, no âmbito e âmago do objecto da acção tal como definido pelos litigantes.

Questão diversa é saber se a exegese efectivada pelo julgador se mostra curial e conforme aos factos invocados e à lei aplicável.

Ou seja, a questão não está na nulidade da sentença, mero vício formal da mesma, mas antes na sua ilegalidade, rectius na sua intempestividade.

Trata-se de uma questão de ilegalidade, ainda que de cariz mais processual – pronuncia temporã – que não de nulidade, a qual, como se viu, é vício formal da própria sentença.

Perscrutemos, pois, o cerne da questão.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Nos termos dos artºs 595º nº 1 al. b) do CPC, o despacho saneador destina-se a:

«conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória».

O estado do processo permitirá conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas sempre que a questão seja apenas de direito, ou, sendo de direito e de facto, o processo contiver todos os elementos, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

E não apenas tendo em vista a perfilhada pelo juiz da causa – Abílio Neto, CPC, Anotado, 16ª ed. p.727.

Por outras palavras, pode conhecer-se do mérito da causa sempre que os factos necessários para a resolução do litígio estejam já provados no processo, não carecendo de ulterior instrução ou actividade probatória.

Tal verifica-se seguramente:

- quando toda a matéria de facto relevante  para a decisão segundo as várias soluções plausíveis se encontre provada;

- Quando seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos;

- Quando todos os factos controvertidos relevantes para aquele efeito apenas possam ser provados por documentos, atento o disposto no artº 646º nº4 do CPC (então vigente) – cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, 2º, 638 e Abrantes Geraldes, Temas,  2º, 131/32.

Havendo ainda quem aceite um julgamento de mérito antecipado mesmo no caso de alguns factos atinentes à decisão se encontrarem controvertidos, desde que o juiz, através de um juízo de prognose fundado em critérios objectivos, conclua que os já provados permitem a prolação de uma decisão final conscienciosa e segura, o que se verifica no caso de os factos controversos, mesmo a provarem-se, não permitirem a defesa de outra solução que não a adoptada – A. Geraldes, ob. cit. 133/34.

5.2.2.

No caso sub judice.

O Sr. Juiz decidiu nos seguintes termos:

«Considerando os factos alegados por ambas as partes e os documentos juntos aos autos é possível decidir imediatamente o mérito da causa, sem necessidade de produzir mais provas, como se demonstrará.

Com efeito, embora a Ré tenha iniciado a sua oposição a impugnar todos os factos invocados pela Autora, mais à frente alega um conjunto de factos de onde resulta expressamente não colocar em causa o recebimento dos produtos encomendados à Autora, bem como, é a própria Ré que, já em sede de alegações, admite pelo menos a seguinte factualidade:

«Neste sentido, entendemos poder considerar que se encontra aceite pelas partes, pelo menos, a seguinte factualidade genérica:

1. Que a Autora forneceu produtos à Ré;

2. Que, para pagamento desse fornecimento, foi emitida uma fatura no valor total de €127.012,31.

3. Que foi emitida uma nota de crédito no valor de € 61.500;

4. Que a Ré pagou o montante o remanescente de € 65.512,31 a um terceiro pensando que o estava a fazer à Autora.».

Em primeiro lugar, atenta a conexão existente entre dois ordenamentos jurídicos distintos, importa apurar qual o aplicável – o ordenamento português ou o espanhol:

Considerando que na falta de escolha das partes de qual a lei aplicável, o contrato de compra e venda de mercadorias é regulado pela lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual   (cfr. art. 4.º, n.º a, al. a), do Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I), tendo em conta que no caso concreto em apreciação está em causa o contrato de compra e venda de mercadorias e porque a vendedora (ora Autora) tem a sua sede em Espanha, é precisamente a lei espanhola a aplicável.

Nesta sequência o contrato celebrado entre as partes rege-se pelo regime do contrato de compra e venda previsto nos artigos 1445.º, e ss., do Código Civil Espanhol2 (doravante CCE), bem como, pelo regime das obrigações, regulado nos artigos 1088.º, e ss., do CCE, do mesmo diploma.

O contrato de compra e venda celebrado entre as partes tem como obrigações principais as seguintes:

- O vendedor está obrigado a entregar o objecto da venda (cfr. art. 1461.º, do CCE);

- O comprador está obrigado a pagar o preço da coisa vendida no tempo e lugar fixado no contrato (cfr. art. 1500, do CCE).

Em segundo lugar, importa saber se a transferência bancária efectuada pela Ré para terceiros extingue, ou não, a sua obrigação.

Ora, no caso concreto está em causa a obrigação de pagar o preço (regulada nos artigos 1157.º, e ss., do CCE), cuja forma deve respeitar os requisitos de identidade (cfr. art. 1166.º, do CCE), integridade (cfr. art. 1157.º, do CCE) e indivisibilidade (cfr. art. 1169.º, do CCE), bem como, deve atender-se ainda ao tempo (cfr. art. 1118.º, do CCE) e lugar (cfr. art. 1171.º, do CCE) acordados para o pagamento.

Importa salientar que o pagamento tem de ser feito no lugar acordado e, se nada tiver sido estipulado, o pagamento tem de ser feito no domicílio do devedor (cfr. art. 1171.º, do CCE).

No caso concreto em apreciação, o lugar estipulado para pagar o preço é no lugar para onde deve ser realizada a transferência bancária, ou seja, a conta identificada pela credora (ora Autora) na respectiva factura (junta aos autos pela própria Ré na oposição):

 «FORMA DE PAGO:

TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA A LA DESCARGA DE LA MERCANCIA A NUESTRA CUENTA DE (…)

Deste modo, é incontroverso (a própria Ré admite) que o pagamento do preço não ocorreu no lugar acordado pelas partes, uma vez que foi efectuado para conta diferente e ainda em titular diverso do credor, bem como, nem sequer foi feito no domicílio do devedor.

Assim sendo, o pagamento feito em lugar diferente do acordado e feito a terceiros não extingue a obrigação perante a Autora.

Importa referir ainda que, já em sede de alegações a Ré invocou ainda a aplicabilidade do disposto no art. 1164.º, do CCE, interpretando/traduzindo este preceito no seguinte sentido: “o pagamento efetuado de boa fé a quem se apresente como credor, liberta o devedor.”

Nos termos do citado preceito, «El pago hecho de buena fe al que estuviere en posesión del crédito, liberará al deudor», ou seja, o pagamento feito de boa-fé àquele que estiver na posse do crédito, libertará o devedor.

Como já acima analisado, no caso concreto não está em causa o pagamento da Ré a um terceiro que estivesse na posse de qualquer crédito, mas antes está em causa um pagamento feito pela Ré em lugar diferente do acordado, por isso ineficaz em relação à Autora, o que prejudica a aplicabilidade do disposto no invocado art. 1164.º, do CCE.

De todo o modo, mesmo que por hipótese abstracta se entendesse ainda ser aplicável tal preceito (art. 1164.º, do CCE), importa proceder à sua análise.

…a ré …procedeu ao pagamento do preço, através de transferência bancária para determinada conta que julgava tratar-se de conta pertencente à Autora mas afinal não pertence…

A Ré entende que ficou exonerada de proceder a qualquer pagamento à Autora porque o pagamento que fez a terceiros não foi por culpa sua.

Contudo, todas as comunicações electrónicas que terão sido enviados por terceiras pessoas à Ré são nitidamente fraudulentas (resulta do teor objectivo das próprias comunicações electrónicas).

Isto é, a Ré admite o equívoco em que incorreu, independentemente de ter sido enganada por terceiros e de poder ter sido praticado algum crime (questões estas que não são objecto do presente litígio).

Com efeito, objectivamente (resulta dos factos alegados pela Ré e dos documentos juntos) as comunicações electrónicas em causa são provenientes de endereços de correio electrónico com domínio sito nos Estados Unidos da América como é o caso das comunicações provenientes de: (…)

Além disso, a Ré considerou como normais mensagens de correio electrónico com erros ortográficos grosseiros no respectivo endereço, considerando a designação social da autora como os e-mails provenientes de: (…) com, apesar de na língua Castelhana, as “amêndoas” na designação social da autora se escrever “almendras” e não “almondras”.

A Ré aceitou ainda pedidos expressos de transferências bancárias para beneficiários que não correspondiam ao fornecedor (a Autora).

Nos diversos e-mails que a Ré juntou aos autos o pedido de transferência para a alegada e fraudulenta nova conta do fornecedor tinha expresso o nome de um beneficiário que não era o fornecedor, ora Autora.

Efectivamente, nos e-mails que a Ré alega ter recebido (e que juntou cópia aos autos) referem expressamente que o beneficiário é “C (…), S.A.” e não a Autora A (…), S.A..

Por isso, a transferência não foi para a conta indicada pela Autora, mas antes para a conta de terceiros: sociedade C (…) , S.A..

Provavelmente, a Ré terá sido alvo de fraude/burla informática, como admite.

Assim sendo, com o devido respeito por diversa opinião, mantém-se a obrigação de pagamento do preço devido à Autora, ao contrário do que alega a Ré.

Lateralmente, importa referir que se fosse aplicável a lei portuguesa conduziria à mesma solução – cfr. artigos 762.º, 769.º, 770.º, 772.º e 774.º, todos do Código Civil.

Em suma, o pagamento indevido efectuado pela Ré a terceiros, a pessoa diferente da credora, ora Autora e ainda em lugar diferente do acordado, não extingue a obrigação da Ré pagar à Autora o preço devido pelas mercadorias que lhe comprou e esta lhe forneceu.»

Perscrutemos.

Desde logo e como alega a recorrente, a questão, tal como está delineada pelas partes, mais se subsume no pagamento feito pelo devedor a terceiro - liberatório, ou não, é outra nuance ou questão que não invalidada tal subsunção -  do que no incumprimento do lugar da prestação.

Certo é que, em sentido estrito, o pagamento não foi feito no lugar indicado pela autora, a saber, a conta bancária sua aberta no B (…) em Évora.

Mas o pagamento na conta e lugar efectivada, seria irrelevante se ela beneficiasse a autora  com o pagamento da dívida do fornecimento.

Assim, em última análise, o que releva é saber se o depósito efectuado a terceiro, como o foi, e independentemente da conta e lugar em que foi feito, exonera, ou não, a ré.

Por outro lado, certo é que está assente o pagamento da ré a terceiro em conta bancária diferente da indicada pela autora e a beneficiário que, apesar de algumas similitudes ortográficas, claramente não coincide com a requerente.

Mas também é certo que a requerida alega uma série de circunstâncias factuais, imputáveis à requerente ou a outros, em função das quais se pretende eximir da sua responsabilidade, pois que entende que tais circunstâncias justificam o erro que cometeu.

Assim, e nomeadamente, diz:

- Que o email original que recebeu e o posterior  que despoletou todo o processo enganoso foram  provenientes da Autora do endereço de e-mail habitualmente utilizado pela Requerente, que se encontra registado no domínio “www.(...)” pertencente a uma das empresas do grupo da Requerente.

- Que tal comunicação (via e-mail) acentuou para a Requerida a convicção de que se tratava de um procedimento normal, sendo que os referidos e-mails surgiam em resposta e seguimento de anteriores comunicações, também efetuadas por e-mail,

 - Que só quem tivesse acesso ao email original proveniente comprovadamente do servidor de email da Requerente é que poderia continuar as comunicações, de forma aparentemente lógica com os serviços administrativos da Requerida.

- Que  desconhecia, à data da troca de e-mails e, consequentemente à data da realização da transferência bancária, que os documentos internos, os servidores ou servidor de email, eram acedidas ilicitamente por terceiros que não a Requerente.

-  Que nos emails   se aludiu à fatura n.º 63/000519 que motiva e se encontra em discussão, tal demonstrando que  quem os enviou tinha acesso à informação dos servidores / ao alojamento / à base de dados ou mesmo acesso direto da informação interna da Requerente, pois, caso contrário, não saberia que faturas estavam pendentes e a pagamento, nem teria acesso ao modelo e logótipo insertos nas cartas usadas pela Requerente.

 - Que logo que se apercebeu de um “esquema” montado, contactou telefonicamente a ré para que diligenciasse no sentido de o banco em x (...) suspender qualquer levantamento ou transferência do depósito efectuado.

- Que tal  ainda seria possível, pois que o levantamento ainda não se tinha verificado,  caso contrário, os autores do esquema não teriam pedido a alteração do beneficiário para tal efeito.

 - Que a transferência efetuada pela Ré através do seu banco ((…)) identifica claramente o beneficiário da transferência como “A (…)” pelo que a transferência não deveria ter sido aceite pelo banco espanhol ao verificar que o beneficiário indicado (A (…)) não era o mesmo que o titular do IBAN (…)

Ao caso é aplicável o artº 1164º do Código Civil Espanhol, na redacção referida na sentença,  e supra aludida, ou seja:

«El pago hecho de buena fe al que estuviere en posesión del crédito, liberará al deudor», ou seja, o pagamento feito de boa-fé àquele que estiver na posse do crédito, libertará o devedor.

 Este preceito, e tal como expende a recorrente, exige para a sua aplicação, a verificação de três requisitos, a saber:

- O pagamento pelo devedor a terceiro;

- A aparência do crédito na titularidade deste; 

- A boa fé do devedor pagante.

Ora  na sua contestação, a requerida/recorrente toma uma posição, vg. em função dos factos supra mencionados, no sentido de provar e convencer que tais pressupostos estão verificados.

Assim, os factos alegados não são irrelevantes ou inócuos nesse sentido e para essa finalidade.

Antes pelo contrário.

No mínimo, se a requerida lograr prová-los, total ou parcialmente, poderá concluir-se por uma situação de total, ou parcial, responsabilidade da requerente na formação do próprio iter que despoletou o alegado convencimento da requerida de que estava a pagar bem.

E, assim, encontrarmo-nos perante um caso de responsabilidade da requerente/recorrida, ou, ao menos, perante uma situação de concausalidade/co/responsabilidade.

E não sendo de descurar/irrelevar/desvalorizar que a requerida/recorrente mais alegou que ainda diligenciou atempadamente pela não efectivação do indevido pagamento ao terceiro, e que tal só não aconteceu por incúria ou ineficácia de outrem.

Tudo com as inerentes consequências para o desfecho da causa, o qual assim, não tem, necessária e inelutavelmente, de apenas ser, qualitativa e/ou quantitativamente, o ora concluído pelo julgador.

Destarte, se alcança a final conclusão de que existem factos, ainda controvertidos que são essenciais para a boa decisão da causa.

O que, claramente, tolhe a possibilidade de prolação de decisão já nesta fase processual, antes devendo prosseguir os autos para sobre aqueles ser produzida prova.

Procede o recurso.

6.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - Se o réu/recorrente taxa a decisão de mérito na fase de saneamento de intempestiva, por lhe impedir o direito a provar factos que tem por essenciais para a sua pretensão, o vício da mesma não é o da sua nulidade por infundamentada ou por conter excesso de pronúncia, mas o da sua ilegalidade por ser precoce e tolher o direito à prova.

II - A decisão de mérito na fase de saneamento apenas pode,  nuclearmente,  ocorrer,  quando: toda a matéria de facto relevante  para a decisão segundo as várias soluções juridicamente plausíveis se encontre provada; seja indiferente para qualquer dessas soluções a prova dos factos que permaneçam controvertidos.

 III -  Estando em causa a aplicação do artº 1164º do CC Espanhol que exonera o devedor se pagou, de boa fé, a terceiro que aparenta a titularidade do crédito, e alegando o réu factos que podem imputar tal mau pagamento à autora, como seja, vg., o ela ter permitido o acesso ao seu sistema informático a terceiros intrusos, tais factos podem relevar, quer para a apreciação da verificação destes requisitos, quer para a imputação à autora ou a outrem do pagamento indevido que fez ao terceiro fraudulento,  pelo que a decisão de mérito no saneador com o argumento de que foi apenas o devedor pagador que crassamente errou, assume-se -  porque inviabiliza outra possível, qualitativa e/ou quantitativamente, diversa decisão -,  intoleravelmente precoce.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença e ordenar o legal prosseguimento dos autos.

Custas pela recorrida.

Coimbra, 2019.05.28.

Carlos Moreira ( Relator)

Moreira do Carmo

Fonte Ramos