Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3429/16.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DÍVIDAS DOS CÔNJUGES
DIVÓRCIO
PARTILHA
PROCESSO DE INVENTÁRIO
CRÉDITO DE COMPENSAÇÃO
EXIGIBILIDADE
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.1691 Nº1 A), 1695, 1697, 1730, 1788, 1789 CC
Sumário:
1. - O pagamento, a lograr ser demonstrado, por um dos ex-cônjuges, com fundos seus, de prestações de uma dívida comum de ambos, faz nascer, no âmbito das relações internas, um crédito sobre o outro ex-cônjuge pelo que o primeiro haja pago além do que lhe competia.

2. - Esse crédito sobre o ex-cônjuge só é exigível, nos regimes da comunhão de bens, no momento da partilha do património comum do casal (art.º 1697.º, n.º 1, do CCiv.).

3. - Se, em processo de inventário, foi realizada tal partilha, com aprovação e repartição do passivo comum, tendo ali sido discutida a questão do pagamento daquelas prestações, e, pagas as tornas devidas, foi assinado recibo de quitação quanto a estas, com declaração de nada mais se ter a reclamar, seja a que título for, do outro ex-cônjuge, sem menção ou ressalva para qualquer crédito não satisfeito no plano das relações internas, tal declaração deve ser interpretada como reportada à liquidação integral das relações patrimoniais entre as partes, incluindo, pois, todas as dívidas, nas relações externas ou internas dos ex-cônjuges.

Decisão Texto Integral:


Apelação n.º 3429/16.9T8LRA.C1
2.ª Secção – Cível




***
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


I – Relatório
M (…), com os sinais dos autos,
intentou (() Em 08/11/2016.) ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra
F (…), também com os sinais dos autos,
pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 7.847,44, “a título de capital, juros de dívida de capital, seguros, IMI e demais despesas bancárias pagas pela Autora”, acrescida de juros legais de mora, desde a citação e até efetivo e integral pagamento (cfr. fls. 06 v.º dos autos em suporte de papel).
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- tendo A. e R. contraído entre si casamento em 12/08/1986, no regime da comunhão de adquiridos, foi decretado o respetivo divórcio, por mútuo consentimento, por sentença transitada em julgado em 05/03/2014, após o que correu termos processo de inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal, tendo sido adjudicada ao R. a verba correspondente à casa de morada de família;
- para a realização de benfeitorias nesse imóvel, A. e R., na constância do casamento, contraíram um empréstimo bancário, obrigando-se ambos, na qualidade de mutuários, ao pagamento das respetivas prestações, embora somente a A. tenha participado em tal pagamento, por o R. ter deixado de pagar a prestação da mesma, razão pela qual a A., para evitar o incumprimento perante o credor, pagou, entre setembro de 2012 e setembro de 2014, a totalidade das prestações devidas, no montante de € 12.481,37, bem como os valores referentes ao seguro de vida, no total de € 1.967,50, e o Imposto Municipal sobre Imóveis, no total de € 1.246,02 (anos de 2012, 2013 e 2014);
- tais valores pagos pela A. correspondem a dívidas comuns de ambos os devedores, tendo ela direito de regresso de 50% dos mesmos, o que é exigível a todo o tempo (regra da metade a que se reporta o art.º 1730.º, do CCiv.).
Contestou o R., alegando – para além de invocar a incompetência absoluta do Tribunal e o erro na forma de processo –, que:
- no dito inventário, A. e R. puseram termo à comunhão hereditária, partilhando todo o ativo e passivo existente, bem como a todas as contas entre eles, tendo o R. pago à A., em 08/07/2015, o montante de € 20.000,00, para liquidação das tornas, tendo esta assinado o respetivo recibo de quitação, no qual declarou que, com o recebimento daquele valor, nada mais tinha a reclamar do R. (este nada mais lhe devia, fosse a que título fosse);
- nada devendo o R. à A., esta vem a juízo reclamar quantia que sabe não lhe ser devida, litigando, assim, de má-fé e devendo ser condenada em multa e em indemnização ao R., que deve ser fixada em 20 UCs..
Impugnando, no essencial, a factualidade alegada pela A., pugnou pela improcedência da ação.
A A., no exercício do contraditório, concluiu pela improcedência da matéria de exceção e do incidente de litigância de má-fé, enfatizando ter apenas ficado acordado, no respeitante ao processo de inventário e relação de bens comuns do casal, que nada mais haveria a reclamar, nada tendo sido decidido quanto às despesas suportadas e em discussão nestes autos.
Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador – onde foi julgada improcedente a invocada matéria de incompetência e de erro na forma de processo –, com admissão de requerimentos de prova e marcação de data para a audiência final.
Realizada esta, foi proferida sentença (() Datada de 02/03/2018.), que decidiu de facto e de direito, julgando totalmente improcedente a ação e o incidente de litigância de má-fé.
Inconformada com o assim decidido, vem a A. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes
Conclusões (() Que se deixam transcritas, com negrito e sublinhado retirados.):
(…)
Não foi apresentada contra-alegação de recurso.
Este foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata (() Considerou-se ainda inexistir nulidade da sentença.), tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime recursivo.
Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso
Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, importa saber (() Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes. ):
a) Se foi impugnada a decisão da matéria de facto e, a tê-lo sido, se existe erro de julgamento em matéria de facto;
b) Se deve alterar-se a decisão de direito, em termos de procedência da ação – designadamente, se está demonstrado o invocado direito de crédito (“direito de regresso” sobre ex-cônjuge, com referência ao pagamento por um deles de dívida comum de ambos), se o mesmo não se mostra extinto e se é exigível (questão do âmbito do processo de inventário ocorrido para partilha do património comum e do ali declarado em recibo de quitação).

III – Fundamentação
A) Quadro fáctico dado como provado
Na sentença recorrida, foi julgado provado o seguinte factualismo:
«1. A Autora e o Réu contraíram casamento, sem convenção antenupcial, em 12 de Agosto de 1986.
2. Por decisão transitada em julgado em 5 de Março de 2014, proferida no Processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.º 3099/2014 da Conservatória do Registo Civil de Leiria, foi decretado entre eles o divórcio, por mútuo consentimento.
3. Posteriormente, correu termos no Cartório Notarial de Leiria do Dr. (…), sob o n.º 1659/14, o processo de inventário referente aos bens comuns do dissolvido casal.
4. No âmbito do referido processo de inventário foi alcançado acordo na Conferência de Interessados, realizada no dia 9 de junho de 2015, quer sobre a composição dos quinhões, quer sobre a aprovação e repartição do passivo, tendo sido adjudicada ao Réu a verba correspondente à casa de morada de família do casal dissolvido, correspondente ao prédio urbano para habitação sito na (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de (…).
5. Para ser utilizado na construção do referido imóvel, a Autora e o Réu, na constância do matrimónio, contraíram um empréstimo junto do M (…), com o n.(…)
6. Em setembro de 2012 o Réu saiu da casa de morada de família.
7. Entre Setembro de 2012 e Setembro de 2014 foram pagas várias prestações/quantias a título de prestações do referido contrato de mútuo celebrado com o M (…), através da conta nº (…), solidária, da Autora e do Réu, designadamente: set-12: 504,46€; out-12: 504,46€; nov-12: 504,46€; fev-13: 554,25€; mar-13: 527,70€; abr-13: 494,53€; mai-13: 494,65€; jun-13:495,45€; jul-13: 494,72€; ago-13: 422,28€; set-13: 145,93€; out-13: 866,93€; nov-13: 473,16€; jan-14: 517,07€; fev-14: 496,40€; mar-14: 497,41€; abr-14: 497,41€, mai-14: 518,15€; jun-14: 520,12€; jul-14: 498,43€; ago-14: 498,48€; set-14: 494,61€
8. A autora foi dotando a conta bancária com quantias, através de transferências bancárias e depósitos em numerário.
9. Ainda no âmbito do referido contrato de mútuo e também durante o mencionado período de Setembro de 2012 a Setembro de 2014, foram pagas através da referida conta prestações referentes ao seguro de vida, no montante global de 701,23€ (sendo 75,55€ as de 2012, 393,50€ as de 2013 e 81,08€ as de 2014).
10. Referentes a tal seguro, a Autora pagou por Multibanco três prestações em 2013, no total de 236,10€.
11. A Autora assegurou o pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis, relativo ao imóvel referido em 4. respeitante ao ano de 2012, no valor de 415,09€ (em abril e novembro de 2013) e ao ano de 2013, no valor de 415,09€ (em abril e novembro de 2013), tendo pago ainda em igual período de tempo, relativamente a prédio rústico o valor anual de 0,24€.
12. O Réu pagou à Autora 20.000,00€, para liquidação das tornas, tendo esta assinado recibo de quitação, datado de 08 de Julho de 2015, com o seguinte teor: “M (…), divorciada residente em (…) Leiria (…), declara que recebeu de F (…), a importância de €20.000,00 (vinte mil euros), para liquidação das tornas do processo de partilha, que correu termos sob o nº 1659/14 do Cartório Notarial de Leiria – notário (…)
Pelo presente instrumento dá quitação do recebimento da quantia supra, declarando nada mais ter aqui a reclamar, seja a que título for, de F (…).”
13. A questão das prestações em causa na presente ação Autora foi discutida no processo de inventário.».
E foram julgados como não provados os seguintes factos:
«1. O empréstimo referido em II-1.A) 5. destinou-se à realização de benfeitorias imóvel em causa.
2. Somente a Autora participou no pagamento das prestações referidas em II-1.A) 7., 9. a 11., com dinheiro próprio/bens próprios.
3. Após ter saído da casa de morada de família, o Réu não contribuiu para o pagamento das prestações do empréstimo.
4. A Autora pagou do empréstimo as prestações de dez-12, no valor de 494,51€, de jan-13, no valor de 470,71€ e dez-13, no valor de 495,09€.
5. Ainda no âmbito do referido contrato de mútuo a Autora pagou valores referentes ao seguro de vida dos meses de dezembro de 2012, janeiro, fevereiro, março, novembro de 2013, janeiro, fevereiro, abril a setembro de 2014.
6. O seguro referido em II-1.A) 9. vencia mensalmente pela quantia de 78,70€, em 2012 e 2014.
7. A Autora assegurou o pagamento do Imposto Municipal sobre Imóveis no valor de 415,34€ respeitante ao ano de 2014.
8. O Réu pagou à Autora a quantia de 20.000,00€ a título de tornas, para que todas as contas ficassem saldadas entre ambos, no inventário “partilharam” “todas as contas entre eles”.
9. A Autora ao escrever na parte final do documento referido em II. 1. A). 12, “… declarando nada mais ter aqui a reclamar, seja a que título for, de (…) refere-se apenas ao processo de inventário, que relativamente à relação de bens comuns nada mais haveria a reclamar.
10. O Réu comprometera-se a pagar fora do processo de inventário as despesas suportadas pela Autora, por conta e em benefício do Réu, mormente as reclamadas neste processo.».

B) Da eventual impugnação da decisão de facto
A A./Apelante não se conforma com a decisão absolutória proferida, manifestando um claro inconformismo em matéria de direito, mormente quanto à aplicação do “instituto da remissão”, que, ao contrário do entendido na sentença em crise, considera inaplicável no caso.
De permeio, procede a Recorrente, no seu acervo conclusivo – em sintonia, aliás, com a sua antecedente alegação recursiva –, a considerações várias, entre elas o expendido na conclusão 10.ª, onde refere que, quanto “a alguns dos factos dados como não provados, existe incorrecção no respectivo julgamento”, para logo salientar que «Em 3. dos factos elencados na douta sentença como não provados consta que “após ter saído da casa de morada de família, o Réu não contribuiu para o pagamento das prestações do empréstimo”» (conclusão 11.ª).
Com o que esgota o alegado quanto a uma eventual incorreção da decisão da matéria de facto e respetiva impugnação recursória, nada mais de útil se podendo retirar, por seu lado, da antecedente alegação de recurso.
Ora, cabe dizer, liminarmente, que são inequívocos os ónus legais a cargo da parte impugnante, em fase de recurso, da decisão da matéria de facto, como resulta expresso do disposto no art.º 640.º do NCPCiv. [cfr. n.ºs 1, al.ªs a) a c), e 2, al.ª a), neste caso se a impugnação se fundar em provas gravadas].
Assim, esperava-se que a Apelante, a pretender impugnar a decisão de facto, esclarecesse/concretizasse, não só (i) quais os concretos pontos de facto que, na sua ótica, o julgador julgou erradamente, como ainda (ii) quais as precisas provas que, uma vez criticamente analisadas/valoradas, obrigavam a uma decisão diversa da adotada em sede de decisão de facto, no sentido de delimitar, de forma motivada, o âmbito probatório da impugnação de facto, e também (iii) qual a decisão a dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1 daquele art.º), para além, em caso de invocação de provas gravadas, de quais as passagens exatas da gravação em que se fundasse o recurso [n.º 2, al.ª a), do mesmo dispositivo legal].
Com efeito, ao impugnar a decisão da matéria de facto, o recorrente, sob pena de rejeição, deve indicar, para além dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (enunciando-os na motivação de recurso e sintetizando-os nas respetivas conclusões), os concretos meios probatórios que, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, impunham decisão diversa da adotada quanto aos factos impugnados, indicando com exatidão, se for o caso, as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição, nunca se demitindo de indicar o diverso sentido decisório que pretende seja adotado (() Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 126 e ss., e Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 153, e ainda, no mesmo sentido, Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, Lisboa, ps. 253 e ss.. Vide também Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, p. 80. No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do STJ, podendo ver-se, por todos, os Ac. desse Tribunal Superior de 04/05/2010, Proc. 1712/07.3TJLSB.L1.S1 (Cons. Paulo Sá), e de 23/02/2010, Proc. 1718/07.2TVLSB.L1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. ).
É que, em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve acesso, tratando-se, assim, da verificação quanto a um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas (formação e fundamentação da convicção), aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento.
Para tanto, se o Tribunal de 2.ª instância é chamado a fazer o seu próprio julgamento dessa específica matéria de facto, o mesmo é comummente restrito a pontos concretos questionados – os objeto de recurso, no mesmo delimitados –, procedendo-se a reapreciação com base em determinados elementos de prova, concretamente elencados, designadamente certos depoimentos indicados pela parte recorrente.
Como explicita Abrantes Geraldes (() Cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 115. ), “A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões”. E acrescenta que se, “para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspectiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir os objectivos pretendidos” (() Op. cit., p. 118, com itálico aditado. ).
Especificamente em matéria de impugnação da decisão de facto, à luz do art.º 640.º do NCPCiv., refere o mesmo Autor:
… podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora passa a vigorar sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto” (() Op. cit., ps. 126 e s., com negrito aditado. ).
Para depois concluir que a rejeição do recurso – total ou parcial – quanto à decisão de facto “… deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (…);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.
Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que afinal devem ser o contraponto dos esforços de todos quantos, durante décadas, reclamaram pela atenuação do princípio da oralidade pura e pela atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto como instrumento de realização da justiça. Rigor a que deve corresponder o esforço da Relação quando, debruçando-se sobre pretensões bem sustentadas, tenha de reapreciar a decisão recorrida …” (() Cfr. op. cit., ps. 128 e s.. ).
Assim sendo, constituindo as conclusões o mecanismo de delimitação do âmbito do recurso, delas deve constar o respetivo objeto, também em matéria de impugnação da decisão de facto, seja quanto ao âmbito fáctico da impugnação recursória (concretos pontos de facto impugnados, por incorretamente julgados), seja quanto ao seu âmbito probatório (concretos meios de prova que, fundamentadamente, obrigam a decisão diversa da recorrida).
Efetivamente, sem a indicação na peça recursiva dos concretos pontos de facto impugnados ou dos concretos meios de prova em que se sustente, fundadamente, o recorrente, por definir fica o dito âmbito/objeto recursório, em termos fácticos ou em termos probatórios, donde que possa dizer-se, em tais casos, que as conclusões são deficientes, designadamente por incompletude/insuficiência, ou obscuras, por não aludirem, mostrando-o, ao caminho seguido pelo impugnante e que evidencia o erro do Tribunal recorrido e que demonstra que a decisão terá de ser no sentido pretendido pelo recorrente.
Pior ainda se o impugnante nem sequer referir qual o sentido decisório concreto que pretende seja adotado.
Assim como ao Tribunal é exigido um esforço de cabal fundamentação, em sede de decisão da matéria de facto, de molde a deixar claramente explicitado o iter decisório, passando por uma análise crítica e conjugada das provas relevantes, sopesando-as, para que seja totalmente percetível o modo como foi fundada/firmada, quanto a cada concreto facto, a convicção da decisão de facto, elencando-se os elementos probatórios que foram decisivos para a formação dessa convicção, e dizendo-se, perante a força probatória atribuída a cada um deles, por que motivos o foram, também, nesse âmbito, o impugnante da decisão de facto, com vista à reapreciação recursória desta, terá de deixar evidenciado onde se manifesta o erro do julgador, elencando, desde logo, os factos que tem por erradamente ajuizados, os meios de prova que determinam uma decisão diversa, o que obriga a que o recorrente proceda também à sua análise crítica, à sua valoração probatória, isolada ou conjugadamente com as demais provas, tudo para mostrar que, face ao pendor da prova produzida, deveria ter-se julgado no sentido por si defendido, sentido esse que deve deixar enunciado em concreto.
Sem essa explicitação/fundamentação probatória e crítica e sem a identificação/delimitação desse caminho decisório a percorrer para chegar ao ponto de convicção fáctica almejado (atento o sentido pretendido pelo impugnante), haverá de considerar-se que as conclusões são deficientes ou até obscuras, pois que não se deixou transparecer, de molde a torná-lo inteligível, o iter decisório que o recorrente pretende seja seguido.
Ante este quadro referencial, parece notório – salvo o devido respeito por diverso entendimento – que a ora Apelante não observou os ónus, a seu cargo, tal como estabelecidos pelo art.º 640.º do NCPCiv. – conjugado com o art.º 639.º do mesmo Cód. –, não delimitando, nas suas conclusões de recurso, nem sequer na antecedente alegação, o âmbito fáctico e probatório da impugnação da matéria de facto, pois que ali não indicou os concretos pontos de facto tidos por incorretamente julgados (() Não basta, atenta a exigência legal de concretização, o vagamente alegado em 10 e 11 do citado acervo conclusivo.) e omitiu por completo a necessária alusão aos concretos meios de prova – sabido que foram produzidas diversas provas – em que se baseasse, para além de jamais sinalizar a decisão diversa que devesse ser proferida sobre algum dos concretos factos julgados provados ou não provados na sentença (() Como vem entendendo a jurisprudência dominante do STJ, “no âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações” – cfr. Ac. STJ de 09/02/2012, Proc. 1858/06.5TBMFR.L1.S1 (Cons. Abrantes Geraldes), disponível em www.dgsi.pt, com itálico aditado, bem como demais jurisprudência ali citada. No mesmo sentido, à luz do NCPCiv., cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., ps. 127 e s..), o que sempre determinaria a improcedência da sua (eventual) pretensão de impugnação da decisão de facto (() Cfr. sobre o tema Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, ps. 95 e 103. ).
Em suma, a entender-se que pretendeu a Recorrente impugnar a decisão de facto – o que não se tem por líquido, face à amálgama de conclusões apresentadas, por vezes aludindo vagamente à prova para contrariar conclusões de direito da sentença em crise –, patente é o incumprimento dos ónus legais previstos no dito art.º 640.º, obrigando à imediata rejeição da impugnação.
Subsiste, pois, inalterado o quadro fáctico – o julgado provado e o julgado não provado – da sentença recorrida, só ele podendo ser tido em conta para decisão da impugnação de direito, que se examinará de seguida.

C) Substância jurídica do recurso
1. - Da (in)existência e (in)exigibilidade do invocado direito de crédito
Inalterado o quadro fáctico da sentença, cabe agora saber se deve alterar-se a decisão de direito, em termos de integral procedência da ação, de molde a reconhecer-se o direito de crédito invocado (“direito de regresso” de ex-cônjuge sobre o outro, com referência ao pagamento por um deles de prestações de dívida bancária comum de ambos), em termos de não se mostrar extinto e ser exigível, o que obriga também a enfrentar a questão do âmbito do ocorrido processo de inventário para partilha do património comum e do ali declarado (pela aqui A.) em recibo de quitação (tal como consta dos factos provados), a dever ser adequadamente interpretado.
Pode ler-se, com relevo, na sentença em apreciação:
«Segundo dispõe o art. 1730º, nº 1 “ Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.”
O divórcio dissolve o casamento – art. 1788º - sendo que as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam, além de outras causas, pela dissolução – art. 1688º.
Segundo o art. 1789º, nº 1 “Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.” (…) No caso dos autos no processo de divórcio não foi fixada a data da separação de facto de Autora e Réu pelo que há que considerar o nº 1.
São da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas pelos dois cônjuges na pendência do casamento, diz o art. 1691º, nº1, a).
Dispõe o art. 1695º que “1. Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. (…)”.
No caso dos autos o empréstimo para a construção da casa de Autora e do Réu foi contraída pelos dois, pelo que é da responsabilidade de ambos devendo ser paga nos termos do nº 1 deste último artigo.
Por seu turno o art. 1697º, nº 1 diz que “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.”
Dos factos provados não resulta que a Autora tenha pago as prestações referidas em II.1.A) 7., 9. a 11., anteriores ao divórcio com dinheiro próprio ou sendo comum em que percentagem participou em tal pagamento. Assim, quanto à[s] prestações pagas até à propositura do divórcio, nos termos dos art.ºs 1789º, nº1, parte final, e 1697º, nº1, nada tem a Autora a haver do Réu.
Quanto às prestações e quantias pagas após aquele momento, ou seja após a cessação das relações patrimoniais entre ao Autora e o Réu, temos que também não logrou a Autora provar, que suportou sozinha tais pagamentos pelo que se torna difícil calcular em que medida é credora do Réu.» (cfr. fls. 83 v.º e s. dos autos em suporte de papel, com itálico aditado).
Concorda-se que estamos perante dívida (ao banco mutuante) que foi contraída por ambos os então cônjuges, sendo, assim, dívida (da responsabilidade) comum, na proporção de metade, dos dois (A. e R.), como resulta dos factos provados 4. e 5. – empréstimo bancário, na constância do casamento, usado na construção da casa de morada da família, contraído por ambos e para ambos – e do disposto nos citados art.ºs 1691.º, n.º 1, al.ª a), 1695.º, n.º 1, e 1730.º, n.º 1, todos do CCiv..
Acresce que, como bem lembra o Tribunal a quo, é incontornável, in casu, o disposto no n.º 1 do art.º 1697.º do mesmo CCiv., segundo o qual:
«Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.» (sublinhado nosso) (() Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (em Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 353), “é devida compensação, quando as dívidas comuns foram pagas com bens próprios de um dos cônjuges”, pois que “cada um dos cônjuges deve ser compensado de tudo quanto tenha sido pago à custa dos seus bens, além do que rigorosamente lhe cumpria subscrever, no plano das relações internas”.).
Quer dizer, a lei é expressa no sentido de o crédito apenas ser exigível no momento da partilha dos bens do casal – “a exigibilidade do crédito é diferida para o momento (…) da partilha dos bens do casal”, e não antes (() Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 354.).
Ora, no caso, a partilha dos bens do casal já teve lugar, em processo de inventário a que alude o facto provado n.º 4, onde foi alcançado acordo – em conferência realizada em 09/06/2015 –, seja quanto à composição dos quinhões (património ativo), seja sobre a aprovação e repartição do passivo, sabido que objeto do inventário e partilha é todo o património comum, ativo e passivo, dos ex-cônjuges, incluindo pois as dívidas comuns (como o aludido empréstimo bancário).
Assim sendo, será de concluir, salvo o devido respeito, que, a haver crédito da A. (o invocado nos autos), ele seria exigível no momento da partilha dos bens do casal, momento esse que já passou, pelo que não se compreenderia bem o porquê de não ter sido exigido então (() Nem foi, sequer, exarada qualquer ressalva/menção para a sua existência/subsistência (de molde a fundar eventual exigência posterior), quando estava em causa a aprovação e repartição do passivo comum e a própria liquidação das tornas, com recibo de quitação e sinalização de nada mais ser devido nesse âmbito, numa visível intenção, feita a partilha, de regulação final das relações patrimoniais existentes.), no momento da liquidação das relações patrimoniais entre os ex-cônjuges, a não ser que as partes, na altura, não o tenham considerado como existente (() Note-se que, mesmo nestes autos, a A. não logrou demonstrar cabalmente a existência e montante do seu invocado crédito. É que, se vêm apurados, quanto ao essencial, os pagamentos aludidos nos pontos 7. e 9. dos factos provados, nem por isso resulta ter sido a A. a exclusiva pagadora, posto que os pagamentos foram efetuados através de conta bancária, solidária, de A. e R., sabendo-se que aquela para ali foi efetuando transferências e depósitos bancários, mas não estando excluído que também o R. tenha contribuído para o provisionamento da conta e, de algum modo, para o pagamento ao banco (cfr. pontos 2., 3., 4., 5., 7. e 10., todos do quadro fáctico não provado).).
2. - Do âmbito do processo de inventário ocorrido e do ali declarado em recibo de quitação e sua interpretação
Do exposto já resulta que o âmbito do processo de inventário para partilha do património comum dos ex-cônjuges (A. e R.) não deixou de fora o passivo comum, como é de lei, sendo que se provou ter sido alcançado acordo, na Conferência de Interessados, realizada no dia 09/06/2015, sobre a composição dos quinhões e, bem assim, sobre a aprovação e repartição do passivo, não se ignorando, nesta parte, a existência da dívida comum ao M (…) (empréstimo contraído por A. e R. para utilização na construção da casa de morada de família, na constância do matrimónio) (() Cfr. factos provados 4. e 5..).
Acresce que, se dúvidas houvesse, do facto provado sob o n.º 13. resulta expressamente que a questão das prestações em causa na ação (dito empréstimo bancário) foi discutida naqueloutro processo de inventário, pelo que não poderia ter sido olvidada aquando do alcançado acordo de partilha (incluindo ativo e passivo, sua aprovação e repartição).
Ora, neste enquadramento, vem também provado que (facto 12.):
«O Réu pagou à Autora 20.000,00€, para liquidação das tornas, tendo esta assinado recibo de quitação, datado de 08 de Julho de 2015, com o seguinte teor: “M (…), divorciada residente em (…) – Leiria (…), declara que recebeu de F (…), a importância de €20.000,00 (…), para liquidação das tornas do processo de partilha, que correu termos sob o nº 1659/14 do Cartório Notarial de Leiria – notário (…)
Pelo presente instrumento dá quitação do recebimento da quantia supra, declarando nada mais ter aqui a reclamar, seja a que título for, de F (…).”».
Quer dizer, na sede processual própria (processo de inventário para partilha do património comum, incluindo ativo e passivo, dos ex-cônjuges) a aqui A. declarou – perentoriamente e sem reservas, em acordo firmado com o ora R. – nada mais ter a reclamar do ex-cônjuge (no âmbito desse inventário e respetiva partilha, na sequência do divórcio), seja a que título for.
Assim sendo, sabida a natureza, o âmbito e a função do aludido processo de inventário, bem como o objeto da respetiva partilha, tal declaração de quitação, nos termos em que redigida e assumida, tem de ser interpretada como tendo eficácia em relação a essa sede processual (aquele processo de inventário), com tudo o que envolve, isto é, as relações patrimoniais ativas e passivas comuns, numa sua liquidação global, sem excluir as prestações agora em causa (reportadas ao passivo comum perante o mencionado banco, mas na perspetiva de crédito de um ex-cônjuge sobre o outro, por via de pagamento para além da sua quota-parte), por também ali discutidas, discussão que desembocou no acordo alcançado, onde o ex-cônjuge mulher (a aqui A.) declarou nada mais ter a reclamar, a qualquer título, do seu ex-cônjuge (o aqui R.), sem – repete-se – qualquer ressalva quanto a qualquer eventual crédito remanescente de um sobre o outro, quando esse era o momento, a subsistir crédito/dívida, da sua exigibilidade.
Com efeito, é essa, salvo o devido respeito, a interpretação adequada à luz do critério interpretativo previsto no art.º 236.º, n.º 1, do CCiv., reportado à figura do declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, em termos de razoabilidade de resultado interpretativo.
Em suma, o que deve extrair-se do declarado aponta no sentido de ter a declarante (ora A.) dado quitação quanto a todo o âmbito material do processo de inventário, incluindo todo o ativo e passivo comum (objeto natural desse processo), assim declarando nada mais ter a reclamar, “seja a que título for”, nada apontando num sentido restritivo quanto ao acordo de partilha e à própria liquidação (global) das relações patrimoniais entre os ex-cônjuges (incluindo, pois, eventuais créditos pessoais de um sobre o outro), de molde a que resultasse excluída alguma parte do ativo ou do passivo ou alguma dívida nas relações internas, sabido que o inventário e partilha são aptos a abranger o conjunto daqueles (ativo e passivo comuns), bem como que o momento da partilha é o da exigibilidade dos créditos em tais relações internas e tendo em conta, ademais, o que resultou não provado sob os n.ºs 9. e 10. do quadro fáctico julgado não provado.
Quer dizer, nesta parte, não mostra a ora A. que a sua declaração (de quitação) tivesse vocação restritiva, de molde a esgotar-se, na sua intenção, no quadro da relação de bens comuns (ativo) e de dívidas comuns (passivo, no plano das relações externas), em termos de deixar adiadas para posterior regulação, apesar da sua exigibilidade imediata, as dívidas pessoais no campo das relações internas.
E se não se compreenderia que no inventário só se cuidasse da partilha quanto ao ativo e se adiasse a regulação do passivo (comum), o que não seria viável, também não se alcança motivo para o adiamento da definição/satisfação de um crédito, já exigível, no plano das relações internas, sabida a sua (agora) invocada relevância e a sua ligação a elemento do ativo (o imóvel que motivou a contratação com o banco credor e que foi contemplado na partilha), sem que, ao menos, apesar de toda a discussão ocorrida em sede de inventário (facto provado 13.), se mencionasse a subsistência deste crédito de um ex-cônjuge sobre o outro.
A dita declaração, assim interpretada, conjugando-se com o sentido útil do citado preceito do art.º 1697.º, n.º 1, segunda parte, do CCiv., este determinante da exigibilidade do eventual crédito aquando da partilha dos bens do casal – em tempo, pois, de liquidação plena do complexo de relações patrimoniais entre os ex-cônjuges (() Na doutrina, a propósito das “compensações” a que se refere o art.º 1697.º do CCiv., alude-se à “regra da exigibilidade diferida para o momento da partilha” como “o fecho de uma conta-corrente específica da comunhão conjugal”, como um “arranjo final” – cfr. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, ps. 426 e s. e 434.) –, implica que não seja agora, ultrapassado, sem reserva ou ressalva, o processo de inventário e partilhado o património comum (incluindo aprovação e repartição do passivo), de considerar como existente/subsistente um crédito anterior sobre o ex-cônjuge, reportado ao passivo de âmbito bancário, depois de se ter declarado, culminando partilha e quitação, nada mais ter a reclamar, a qualquer título, uma vez pagas as tornas a que havia lugar.
Termos em que, seja por força da declaração de quitação oferecida, assim finalisticamente interpretada e contextualizada, seja por falta de prova do alegado (cfr., por exemplo, os factos 9. e 10. do acervo não provado), faltando demonstração bastante do crédito e seu montante, não pode proceder a pretensão da A./Apelante, naufragando, salvo o devido respeito, as suas conclusões recursivas em contrário e tornando-se inútil a apreciação da sua remanescente argumentação jurídica, designadamente a direcionada para a operada qualificação de direito da sentença no quadro da figura contratual da remissão (a que alude o art.º 863.º do CCiv.).
Improcedendo, pois, o recurso, é de manter a decisão absolutória impugnada.

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IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):
1. - O pagamento, a lograr ser demonstrado, por um dos ex-cônjuges, com fundos seus, de prestações de uma dívida comum de ambos, faz nascer, no âmbito das relações internas, um crédito sobre o outro ex-cônjuge pelo que o primeiro haja pago além do que lhe competia.
2. - Esse crédito sobre o ex-cônjuge só é exigível, nos regimes da comunhão de bens, no momento da partilha do património comum do casal (art.º 1697.º, n.º 1, do CCiv.).
3. - Se, em processo de inventário, foi realizada tal partilha, com aprovação e repartição do passivo comum, tendo ali sido discutida a questão do pagamento daquelas prestações, e, pagas as tornas devidas, foi assinado recibo de quitação quanto a estas, com declaração de nada mais se ter a reclamar, seja a que título for, do outro ex-cônjuge, sem menção ou ressalva para qualquer crédito não satisfeito no plano das relações internas, tal declaração deve ser interpretada como reportada à liquidação integral das relações patrimoniais entre as partes, incluindo, pois, todas as dívidas, nas relações externas ou internas dos ex-cônjuges.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a sentença absolutória recorrida.
Custas da apelação a cargo da A./Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 10/07/2018

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro