Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3502/09.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARRESTO
Data do Acordão: 02/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Legislação Nacional: ARTS.392, 406, 421 DO CPC
Sumário: I – Nos procedimentos cautelares, o tribunal goza de amplos poderes para decretar a(s) providência(s) que tiver por mais adequada(s), não estando adstrito ao princípio do pedido;

II – Requerido o arrolamento de determinado bem, pode o tribunal vir a decretar o arresto desse mesmo bem, caso se verifiquem os respectivos requisitos legais;

III – Constituem requisitos do procedimento cautelar de arresto a probabilidade da existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

A (…), instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, a presente «providência cautelar de arrolamento» contra:

- B (…) e mulher, C (…); e

- D (…), S.A., pedindo que se decretasse o arrolamento de uma conta bancária da X.... com o NIB ...... até ao montante de 150.000,00 euros.

Alegou, para tanto, em resumo, que concedeu crédito aos 1ºs requeridos, em 9-03-2001, crédito esse que ficou garantido por uma hipoteca constituída pelos requeridos a favor do requerente sobre um prédio urbano; tendo o 1º requerido marido solicitado à requerente o distrate dessa hipoteca, a requerente anuiu “contra a liquidação do crédito existente”, sendo que, na sequência desse acordo, encontrando-se a conta corrente dos requeridos provisionada, a requerente emitiu e entregou-lhes a pretendida declaração de distrate; após a entrega desse documento, os requeridos transferiram todo o dinheiro daquela conta para uma conta de terceiros, assim se apropriando desse saldo, cancelaram a hipoteca e, instados a reporem o dinheiro que transferiram, ainda transferiram o dinheiro para outra conta da 2ª requerida; finalmente, alega que os 1ºs requeridos “nada têm em nome pessoal, móveis ou imóveis, susceptível de outra medida cautelar para garantir o pagamento do crédito”.

Proferiu-se, seguidamente, despacho que indeferiu a requerida providência, «por falta dos pressupostos necessários ao decretamento da providência requerida ou de qualquer outra providência».

Inconformada com o assim decidido, interpôs a requerente recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito suspensivo.

Alegou, oportunamente, a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª – “A Requerente abriu a favor dos 1º Requeridos um crédito até ao limite de 150.000,00€ o qual foi utilizado por estes nos termos previstos na escritura de “Abertura de Crédito” de 09.Março.2001;

2ª – O crédito concedido encontrava-se garantido por hipoteca constituída a favor da Requerente, sendo que o prédio em causa era propriedade do filho dos Requeridos; o 1º Requerido marido interveio na referida escritura a título de procurador daquele (vide doc. 1);

3ª – Em 8.Julho.2009 o 1º Requerido solicitou a libertação do distrate do prédio em causa, o que foi autorizado;

4ª – Nessa data, por conta de abertura de crédito referida, os 1º Requeridos haviam utilizado 5.900,00€;

5ª – Em consequência, a respectiva conta corrente, apresentava um saldo no valor de 144.100,00€;

6ª – Ora, em 17.Julho.2009 a Requerente entrega aos 1º Requeridos o doc. para distrate de Hipoteca;

7ª – No mesmo dia, após receber o doc. atrás referido, os 1º Requeridos constatam que aquele saldo ainda se mantinha disponível no sistema informático;

8ª – De imediato, os 1º Requeridos transferem para a conta da 2ª Requerida o saldo disponível, movimento que fazem através de três operações;

9ª – Todas realizadas no mesmo dia 17.Julho.2009 (37.500,00+58.000,00+46.000,00) vide doc. 6;

10ª – E, no mesmo dia, procedem ao cancelamento da hipoteca constituída a favor da Requerida (vide doc. 2);

11ª – Em suma, os 1º Requeridos aproveitam uma eventual falha ou deficiência no sistema informático da Requerente, transferem para a conta da 2ª Requerida um saldo bancário que sabiam não lhes pertencer e, em simultâneo, cancelam a garantia hipotecária até à data existente para garantir o respectivo pagamento;

12ª – Ora, os 1º Requeridos nada têm em seu nome seja móveis ou imóveis;

13ª – Face ao descrito, a única garantia patrimonial de que a Requerente dispõe para assegurar o pagamento da quantia referida em 8º e 9º deste articulado é o depósito daquela quantia a qual se encontra à ordem da 2ª Requerida na conta da X.... identificada nos autos;

14ª – Considerando o comportamento já descrito dos Requeridos, a Requerente receia que estes, em conjugação de objectivos, venham a transferir aquele dinheiro para outra conta ou venham a gastá-lo;

15ª – Facto que pode acontecer a qualquer momento e que, a verificar-se, compromete em definitivo a sua recuperação;

16ª – O qual só poderá ser evitado através do decretamento desta providência;

17ª – Para o qual se encontram reunidos os requisitos legalmente exigidos: existência do crédito e justo receio da Requerente de perder a única garantia patrimonial para a respectiva liquidação;

18ª – A douta sentença recorrida violou o disposto nos artº 381º, Nº 1 e 406º, Nº 1 Cod. Proc. Civil;

19ª – A concluir importa referir ser irrelevante a existência ou não de património por parte da Requerida, já que o mesmo, a existir, não é susceptível de responder pelo crédito celebrado entre a Requerente e os 1º Requeridos”.

Não foi apresentada contra-alegação, sendo de realçar que os requeridos ainda não foram ouvidos.


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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal cinge-se a saber se o deduzido arrolamento podia ser, como foi, liminarmente indeferido.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


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OS FACTOS E O DIREITO

Os factos a ter em conta na decisão do recurso são apenas os que decorrem do relatório supra, para os quais se remete.

Não restam dúvidas de que a apelante instaurou o presente procedimento cautelar como sendo de arrolamento, que é um dos procedimentos cautelares especificados previstos no C. de Proc. Civil.

Nos termos do preceituado no artº 421º, nº 1, daquele código, havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requer-se o arrolamento deles. O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.

O arrolamento tem por objectivo esconjurar uma específica situação de perigo (periculum in mora) relacionada com o extravio, ocultação ou dissipação de bens ou documentos, sendo este perigo concreto que constitui o elemento verdadeiramente integrante da causa de pedir (vide Ac. desta Relação de 20/1/2004, in www.dgsi.pt, proc. 2819/03).

O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos. Mas «aos credores só é permitido requerer arrolamento nos casos em que haja lugar à arrecadação da herança» (artº 422º do mesmo código). 

Não é esse o caso dos autos, como bem refere o despacho recorrido, cuja bondade, nesta parte, a apelante nem sequer questiona.

Por isso, o presente procedimento cautelar foi indevidamente instaurado como sendo de «arrolamento», o que, aliás, a apelante reconhece na sua alegação recursiva, onde, virando o bico ao prego, passa a defender a verificação dos requisitos do arresto.

Mas o despacho recorrido acabou por concluir também que não estavam preenchidos os requisitos do procedimento cautelar de arresto.

De acordo com o disposto no artº 392º, nº 3, do C. de Proc. Civil, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.

Nos procedimentos cautelares, o tribunal goza de amplos poderes para decretar a(s) providência(s) que tiver por adequada(s), não estando adstrito ao princípio do pedido, ou seja, à concessão ou denegação apenas da «providência concretamente requerida».

Por outro lado, observados os requisitos de compatibilização processual, fixados nos nºs 2 e 3 do artº 31º, pode ainda decretar medidas em regime de cumulação (artº 392º, nº 3), socorrendo-se, se necessário, de provas recolhidas oficiosamente, nos termos do artº 386º, nº 1 (vide Abílio Neto, C.P.C. Anotado, 20ª ed., 556).

Quer isto dizer que a parte pode ter requerido, por exemplo, o arrolamento de determinado bem, mas o tribunal decretar o arresto desse mesmo bem, se entender que esta é a providência que mais se adequa ao caso concreto.

Por isso, não podendo ser decretado o requerido arrolamento, tudo está em saber se, no caso presente, pode vir a ser decretado o arresto do bem em causa.

Segundo o disposto no art.º 406.º, n.º 1, do C. de Proc. Civil, “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.

O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos (artº 407º, nº 1, do mesmo código).

São, pois, requisitos da procedência do pedido de arresto preventivo a prova de que: a) «é provável a existência do crédito», isto é, não que o seu crédito é certo, indiscutível, mas antes que há grandes probabilidades de ele existir; b) se justifique o seu receio de perder a garantia patrimonial, isto é, que qualquer pessoa de são critério, em face do modo de agir do devedor, colocado no seu lugar, também temeria vir a perder o seu crédito não se impedindo imediatamente o devedor de continuar a dispor livremente do seu património (vide Ac. desta Relação de 13/11/79, B.M.J. nº 293º, 441, e Ac. da Relação do Porto de 21/11/91, B.M.J. nº 411º, 651).

O requisito «provável existência do crédito» reconduz-se à ideia da «aparência do direito».

Mas, para além da probabilidade da existência do crédito, com vista ao decretamento do arresto, exige-se um outro requisito: o justo receio da perda da garantia patrimonial.

Como escreveu Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 119/120), integra o conceito de justo receio qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio; pode tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos bens e das suas dívidas) ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou ousar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas); ou do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está tentando fazê-lo) ou de qualquer outra actuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito.

E, como decidiu o S.T.J. (Ac. de 03/03/98, C.J., S.T.J., Ano 6.º, 1.º, 116), o receio por parte do credor, para ser considerado justo, há-se assentar em factos concretos, que o revelem à luz de uma prudente apreciação, isto é, tem de assentar em dados objectivos (factos, atitudes ou, pelo menos, certa maneira de ser) que denunciem uma disposição do devedor de subtrair o património à acção dos credores.

Em suma, o receio de perda da garantia patrimonial não pode assentar numa mera suspeita do credor, de ordem subjectiva, pelo que não basta o receio subjectivo, porventura exagerado, do credor, de ver satisfeita a prestação a que tem direito (Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, 268).

No caso presente, a ora apelante alegou factos – sobre os quais o tribunal ainda não se pronunciou, ou seja, considerando-os, ou não, como provados – bastantes para se poder concluir ser ela credora dos 1ºs requeridos. Nem a decisão recorrida coloca isso em causa.

O que o despacho recorrido questiona é a existência, perante os factos alegados, do invocado justo receio de perda da garantia patrimonial, concluindo pelo não preenchimento desse requisito. Mas, salvo o devido respeito, não acompanhamos, quanto a este ponto, a decisão recorrida.

De nada releva, para este efeito, a situação patrimonial da 2ª requerida, que só foi accionada por ser da sua titularidade a conta cujo arrolamento vem requerido. Não importa, para a economia destes autos, a situação económica da 2ª requerida, já que não vem invocado crédito algum da requerente sobre ela. Na verdade, só os 1ºs requeridos serão devedores perante a ora apelante, segundo o alegado.

E quanto aos 1ºs requeridos vem alegado todo um conjunto de factos que, a resultarem provados, podem preencher o aludido requisito de justo receio de perda da garantia patrimonial.

Repare-se que a apelante alegou factos que configuram uma apropriação ilícita de dinheiro por parte dos 1ºs requeridos, que se terão aproveitado de alguma ingenuidade da requerente, ao entregar-lhes o documento para cancelamento da hipoteca, quando ainda tinha a conta por eles titulada com saldo, no sistema informático, o que terá permitido que aqueles, como se diz na gíria, lhe «passassem a perna».

Este comportamento dos 1ºs requeridos, a resultar provado, pode demonstrar intenção de enganarem a requerente e de se apropriarem ilicitamente de bens alheios.

Além disso, vem também alegado que o 1º requerido terá transferido a quantia de que ilegitimamente se terá apropriado para uma conta da 2ª requerida, de que era então administrador um seu filho.

Ora, é sabido que o dinheiro é a coisa mais fácil de ser ocultada.

Acresce que também vem alegado que os 1ºs requeridos nada têm em nome pessoal, móveis ou imóveis, capaz de garantir o crédito da requerente.

Estes factos, a resultarem provados, são susceptíveis de justificar o receio da requerente da perda da garantia patrimonial do seu crédito sobre os 1ºs requeridos. Qualquer outra pessoa, colocada na mesma situação, temeria vir a perder a garantia patrimonial do seu crédito.

Não pode, por isso, manter-se o despacho recorrido, o qual terá de ser revogado, a fim de os autos prosseguirem os seus ulteriores termos, inquirindo-se as arroladas testemunhas e decidindo-se em conformidade com os factos que resultarem provados.

Sumário:

1 – Nos procedimentos cautelares, o tribunal goza de amplos poderes para decretar a(s) providência(s) que tiver por mais adequada(s), não estando adstrito ao princípio do pedido;

2 – Requerido o arrolamento de determinado bem, pode o tribunal vir a decretar o arresto desse mesmo bem, caso se verifiquem os respectivos requisitos legais;

3 – Constituem requisitos do procedimento cautelar de arresto a probabilidade da existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial.


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DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a fim de os autos prosseguirem com a produção da prova oferecida pela requerente.

Sem custas.