Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/21.0PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES OU SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS
ELEMENTOS DO TIPO
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 292.º, N.º 2, DO CP
Sumário: I – Não basta, para o preenchimento do crime do nº 2 do artigo 292º do CP, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.

II – Se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve ser lograda através de todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória completa e integrada, com uma clara ponderação das vicissitudes do caso concreto e com o apoio do conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.

III – Exige-se a prova de que o consumo do estupefaciente impediu o agente de exercer a condução em segurança, e isto independentemente do resultado danoso que possa ter ocorrido – como tal, importa apenas apurar que a cannabis no seu organismo o impedia de conduzir em segurança, não se curando se saber se um concreto acidente ou despiste foi por culpa sua.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
1. A SENTENÇA RECORRIDA

No processo abreviado n.º 4/21.0PTCBR do Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz 3 -, por sentença ditada para a acta de 8 de Novembo de 2021, foi decidido: 
· Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de CONDUÇÃO DE VEÍCULO SOB INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho a favor da comunidade em instituição a designar pela DGRSP, em moldes e termos a definir pela mesma, acrescendo ainda a sua condenação na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 7 meses [nos termos do artigo 69º, n.º 1, alínea a) do CP].

            2. O RECURSO
Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

I. Emerge o presente recurso da sentença, douta aliás, que condenou o arguido
pela prática de um crime de condução sob influência de estupefacientes, p . e p. pelo artigo 292.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho a favor da comunidade em instituição a designar pela Direção Geral de Reinserção Social, em moldes e termos a definir pela mesma e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 7 (sete) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
II.        Entende o arguido que a mesma peca por errada apreciação dos elementos dos autos e, consequentemente, errada interpretação e aplicação do princípio da legalidade previsto nos artigos 8.º, n.º 4 e 29.º, n. º3, ambos da CRP, do princípio
da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1 da CRP e do artigo 292.º, n.º 2 do Código Penal.
III.       A Meritíssima Juiz a quo assentou a sua decisão na seguinte factualidade dada como provada (a mesma que a constante do libelo acusatório):
«No dia 2 de Outubro de 2020, pelas 09h50, na A... (…), (…), em (…), o arguido conduzia o motociclo de marca ..., com matrícula (…), após ter consumido canábis e sob a influência do referido estupefaciente, tendo sido interveniente em acidente de viação que consistiu em despiste.
Na sequência do acidente de viação, o arguido foi transportado ao Centro Hospitalar e ..., onde lhe foi recolhida amostra de sangue para análise laboratorial.
Do exame laboratorial referido resultou que o arguido apresentava no sangue a presença de 3,4+/-1,2 ng/ml de 11-nor-9-carboxi-delta-9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) e de 1,7+/-0,6 ng/ml de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), confirmando-se a existência de canabinóides no sangue por LC/MC e ainda a presença de 60+/-18 ng/ml de morfina, acusando positivo para opiáceos. A presença de morfina e positividade de opiáceos poderá dever-se a administração de substâncias durante a assistência pré-hospitalar e hospitalar.
O arguido, antes de conduzir, havia consumido canábis que lhe provocou a alteração da visão e percepção e diminuição da coordenação motora e reflexos, tendo, mesmo assim, decidido conduzir o aludido veículo e sofrido acidente de viação. O arguido tinha conhecimento dos princípios activos, das características químicas, natureza e efeitos das substâncias que consumiu e que o respetivo consumo colocava em causa a segurança no exercício da condução e, não obstante, decidiu conduzir.
O arguido actuou de forma livre e voluntária, bem sabendo que se encontrava sob a influência de produtos estupefacientes e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo a motor na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei».
IV.       Com o devido respeito, resulta evidente que o libelo acusatório é omisso quanto ao facto de o arguido estar ou não em condições de conduzir o veículo em segurança.
V.        Por conseguinte, o mesmo sucede quanto à factualidade dada como provada na douta sentença recorrida.
VI.       A doutasentençarecorrida éomissa quantoà “clausula geral penal” de oarguido “não estar em condições de conduzir o veículo com segurança”.
VII.     Não obstante, resultar provado o consumo de estupefacientes, não se demonstra o nexo de causalidade entre o consumo da substância estupefaciente e o acidente de viação ocorrido que consistiu num despiste.
VIII.    Dispõe o artigo 292.º do Código Penal (sob a epigrafe “Condução de veículo em
estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas”) que:
            “1 Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.”
IX.       São elementos integradores do crime imputado ao arguido: a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada; b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou
psicológica; c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
X.        Uma análise crítica da factualidade apurada, dada como provada, permite concluir que não resultou demonstrado que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o arguido não estivesse em condições de fazer com segurança tal condução.
XI.       Pelo que, não estão verificados todos os requisitos objetivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, impondo-se a sua absolvição.
XII.     Cite-se a este respeito, o Tribunal da Relação de Coimbra, que no âmbito do processo n.º 1017/08.2TAAVR.C2, em 6 de abril de 2011, decidiu o seguinte:
“(…) Que o arguido não estava “em condições de o fazer em segurança”, o exercício da condução, tem de ser facto apurado e, por conseguinte, constar da matéria de facto da acusação.
Assim, também entendemos que a presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, a mesma tem de ser “perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica” para a condução. Não se apurando tal facto, apenas fica demonstrado que o arguido se encontra sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o que não preenche o tipo de crime do artigo 292 n.º 2 do CP, mas preenche os elementos da contraordenação prevista no artigo 81 do C. Estrada, porque, para tal, basta conduzir sob a influência de produtos psicotrópicos, “É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas”.
(…) O art. 292 n.º 2 do CP não prevê o típico crime de perigo comum. Não basta a presença de substância psicotrópica no corpo, é necessário que a mesma influencie e torne ocondutor incapaz de conduzircom segurança (aqui independente do resultado danoso que possa haver).
Diferente é a previsão do n.º 1, em que basta a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, independentemente da influência que essa taxa de álcool exerça no condutor, ou mesmo que não afecte as condições de condução com segurança”.
XIII.    Face ao quadro probatório supra exposto, pugnao arguido pelasua absolvição, por considerar que a sua conduta não preenche objetivamente o tipo legal de condução sob influência de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 2 do Código Penal.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exªs doutamente suprirão, deverá proceder o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida».


3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o recurso não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se neles, de forma assaz desenvolvida, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Desta forma, muito embora o recorrente invoque e nominalize que apenas recorre da matéria de DIREITO, a verdade é que insinua, ao longo de toda a sua peça recursória, a existência de um alegado «erro de julgamento» que mais não é do que um dos vícios do artigo 410º, n.º2 do CPP, mais concretamente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [alínea a) de tal preceito].
Assim sendo, são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há algum vício de insuficiência para a decisão da matéria dada como provada?
a. Era necessário alegar e provar que o arguido não estava em condições de conduzir em segurança?
b. Em caso afirmativo, provou-se tal circunstância?
c. Está o delito do n.º 2 do artigo 292º do CP perfectibilizado nos seus elementos objectivos e subjectivos?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):

«Factos Provados (retirados da audição cuidada que se fez da gravação da sua leitura no dia 8/11/2021)


1. No dia 2 de Outubro de 2020, pelas 09h50, na Avenida (…), (…), em (…), o arguido conduzia o motociclo de marca Kynco, com matrícula (…), após ter consumido canábis e sob a influência do referido estupefaciente, tendo sido interveniente em acidente de viação que consistiu em despiste.
2. Na sequência do acidente de viação, o arguido foi transportado ao Centro Hospitalar e ..., onde lhe foi recolhida amostra de sangue para análise laboratorial.
3. Do exame laboratorial referido resultou que o arguido apresentava no sangue a presença de 3,4 +/- 1,2 ng/ml de 11-nor-9-carboxi-delta-9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) e de 1,7 +/- 0,6 ng/ml de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), confirmando-se a existência de canabinóides no sangue por LC/MC e ainda a presença de 60 +/- 18 ng/ml de morfina, acusando positivo para opiáceos. A presença de morfina e positividade de opiáceos poderá dever-se a administração de substâncias durante a assistência pré-hospitalar e hospitalar.
4. O arguido, antes de conduzir, havia consumido canábis que lhe provocou a alteração da visão e percepção e diminuição da coordenação motora e reflexos, tendo, mesmo assim, decidido conduzir o aludido veículo e sofrido acidente de viação. O arguido tinha conhecimento dos princípios activos, das características químicas, natureza e efeitos das substâncias que consumiu e que o respectivo consumo colocava em causa a segurança no exercício da condução e, não obstante, decidiu conduzir.
5. O arguido actuou de forma livre e voluntária, bem sabendo que se encontrava sob a influência de produtos estupefacientes e que, nessas condições, lhe estava vedada a condução de veículo a motor na via pública, não se coibindo de o fazer, o que representou.
6. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. O arguido está actualmente desempregado, a tirar o Curso de Psicologia e a preparar-se para uma formação pós-laboral para vir a ser instalador na ....
8. Vive sozinho com um filho de quem tem a residência alternada, vivendo em casa arrendada, pela qual paga € 260 mensais de renda, recebendo ainda € 500 de subsídio de desemprego.
9. O arguido apenas confessou que conduzia o seu motociclo naquela manhã, que se despistou indo com um lancil do passeio que o projectou na direcção de um poste, e que teve graves sequelas deste embate.
10. O arguido tem antecedentes criminais em matéria rodoviária: por sentença transitada em julgado em 7/7/2016, foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de condução ilegal de veículo automóvel; por sentença transitada em julgado em 13/11/2017, foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez; e por sentença transitada em julgado em 3/2/2021, foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.


2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, inexistem.

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada com base no depoimento do arguido, livremente apreciado, nos documentos existentes nos autos – mormente os de fls 81-82 e 85 - e nos depoimentos da testemunha de acusação Agente PC e do perito do INML, MD, este a ajudar de forma veemente a esclarecer a questão da existência da cannabis no organismo do arguido e a duração dos seus efeitos no mesmo.
            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. DOS VÍCIOS DA MATÉRIA DE FACTO

3.1.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (O QUE NÃO É O NOSSO CASO – cfr. artigo 431º do CPP;
- e, se for o caso, a dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Olhando para a peça do recurso, é claro que o recorrente não seguiu este caminho, não tendo invocado qualquer autêntico «erro de julgamento» que justifique a audição das gravações do julgamento – apenas e só invoca que não deveria ter sido condenado pois não existem factos provados suficientes para tal.
Se assim é, caímos no campo dos vícios - de conhecimento oficioso até – do artigo 410º, n.º 2 do CPP (apesar de o recorrente insistir em classificar este recurso apenas DE DIREITO).
Nesta 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, n.º 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

3.1.2. Quais são os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP?
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1].
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2].
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3].

3.1.3. Repete-se: embora o recorrente alegue que apenas quer recorrer da matéria de DIREITO e que houve erro de julgamento (duas imprecisões processuais, face ao que, de facto, acaba por articular e concluir no seu recurso), o que na verdade vem suscitar é a falta de factos que considera essenciais à sua condenação, o que nos reconduz para o vício do artigo 410º, n.º 2, alínea a) do CPP.
Entende o recorrente que os factos narrados na acusação e dados como provados não são suficientes para a sua condenação.
E que facto ou factos são esses?
Vejamos.

3.1.3.1. O facto em causa é o seguinte:
«CONCLUSÃO IV - No caso em concreto, o libelo acusatório é omisso quanto ao facto de o arguido estar ou não em condições de conduzir o veículo em segurança.
CONCLUSÃO V - Por conseguinte, o mesmo sucede quanto á factualidade dada como provada na douta sentença recorrida».
Portanto, na lógica do recurso falta demonstrar o nexo de causalidade entre o consumo de estupefaciente e o acidente de viação ocorrido que consistiu num despiste, faltando aquilo que caracteriza como «cláusula geral penal» de o arguido «não estar em condições de conduzir o veículo com segurança».
.
3.1.3.2. Analisemos o delito em causa.
Prevê o art.º 292º, nº 2 do Código Penal o crime de «condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas», dispondo que nele incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica, punindo-o com a pena de prisão até um ano OU com uma pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Desta forma, são elementos integradores do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas:
a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada;
b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;
c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução;
d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
     Ou seja, não basta a presença de estupefaciente, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir com segurança, sendo este um facto a apurar.
     À semelhança do que acontece com o crime de condução de veículo em estado de embriaguez (previsto no nº 1 do mesmo art.º 292º do Código Penal), também o crime aqui em causa é de qualificar como crime de perigo, ou seja, é valorado o mero perigo de lesão de bens jurídicos, e abstrato porquanto é a própria ação em si que é considerada perigosa, atendendo à experiência comum, independentemente de na situação concreta se ter criado um perigo de violação de determinados bens jurídicos, como seja a vida, a integridade física ou os interesses patrimoniais de outrem.
     Todavia, o crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas associa de forma inelutável a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.
     Se assim é, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Por conseguinte, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir veículo na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e se constate que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança[4].
No acórdão da Relação do Porto acima citado explana-se com propriedade e muito acerto o seguinte:
«Como se escreve no acórdão do TRE de 24.05.2016, a prova de que o condutor se encontrava em estado de influenciado por substâncias psicotrópicas terá de ser feita por algum dos meios médico-periciais respetivamente previstos nos arts. 12.º e 13.º do Regulamento anexo à Lei n.º 18/07 de 17/5, sendo admissível lançar mão do segundo apenas quando a produção do segundo se mostrar inviável, mas a demonstração de que o mesmo não está em condições de conduzir com segurança operar-se-á mediante a consideração de todo acervo probatório, pericial ou não (sublinhou-se).
Cita esse aresto, o acórdão também do TRE de 11.07.2013, no qual se refere de forma clara como pode ser feita a prova: deste modo e por oposição ao seu nº 1 – relativo à condução sob o efeito de álcool – não basta, para o preenchimento do crime, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.
Onde se discorda contudo, do atrás decidido é que essa conclusão apenas possa ser adquirida por via do exame médico que atrás se mencionou.
Na verdade, este exame visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes, mas a valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
A insegurança na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução.
Estamos, como se disse, perante um crime de perigo comum, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade atual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, suscetíveis de fazerem perigar o bem-estar e segurança da comunidade em geral.
Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros.
Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução.
Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica.
Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.
Se assim não fosse seria incompreensível a inserção sistemática efetuada pelo legislador no que respeita ao crime em referência.
Ora, se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve, ser logrado, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida (sublinhou-se).
Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal».
Dito de outra forma:
· Por oposição ao nº 1 do artº 292º do CP – relativo à condução sob o efeito de álcool[5] – não basta, para o preenchimento do crime do nº 2 do mesmo preceito legal, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.
· Essa conclusão não é adquirida por via do exame médico que visa assegurar que o condutor conduzia influenciado pelo consumo de estupefacientes.
· A valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
3.1.3.3. No caso em apreço, ficou assente que o arguido conduzia motociclo na via pública e que na altura tinha consumido recentemente substâncias estupefacientes (o perito médico ouvido foi claro e nós fomos ouvi-lo, apesar de a isso não sermos obrigados face à forma como é intentado este recurso – estamos a falar de um consumo considerável em dose, recente e não tardio, só assim se justificando os valores encontrados no sangue, caindo, pois, por terra a versão do arguido de que havia consumido esporadicamente umas «passas» numa festa de amigo há 15 dias) – facto n.º 3 (cfr. ainda documentos de fls 81-82 e 85).
Provado também ficou que o arguido teve um despiste naquela manhã.
E mais provado ficou[6] – factos 1 - «…conduzia…, após ter consumido canábis e sob a influência do referido estupefaciente» e 4 - «O arguido, antes de conduzir, havia consumido canábis que lhe provocou a alteração da visão e percepção e diminuição da coordenação motora e reflexos, tendo, mesmo assim, decidido conduzir o aludido veículo e sofrido acidente de viação. O arguido tinha conhecimento dos princípios activos, das características químicas, natureza e efeitos das substâncias que consumiu e que o respectivo consumo colocava em causa a segurança no exercício da condução e, não obstante, decidiu conduzir» - que o arguido sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, ficando, assim, demonstrado que o consumo de estupefacientes o impedia naquela ocasião de conduzir com segurança.
A sentença foi clara e nela inexistem quaisquer dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do CPP, mormente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
E REPETE-SE: note-se que não basta a presença da substância psicotrópica no corpo do agente do crime rodoviário, sendo necessário que a mesma tenha influenciado e tornado o agente incapaz de conduzir em segurança e com segurança, e isto independentemente do resultado danoso que possa ter ocorrido[7].
Portanto, importaria apenas apurar que a cannabis no seu organismo o impedia de conduzir em segurança, prova que foi feita lendo o rol de factos provados -, não se curando se saber se aquele despiste foi por culpa sua (o tal crime de perigo abstracto)[8].
E tal prova foi feita pelo perito ouvido, consubstanciado também na ideia de que:
· é hoje incontroverso que o THC é um vasodilatador periférico que provoca efeitos na visão e que perturba a perceção do tempo, da velocidade e da distância;
· sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada significativamente após o consumo de canábis;
· os efeitos mais fortes fazem-se sentir quando a concentração no sangue depois de atingir um pico máximo (que ocorre cerca de 1 hora após o consumo fumado), começa a diminuir, havendo nessa altura um aumento de risco, razão pela qual se considera que 2ng/ml de THC corresponde a um aumento de risco significativo e 5ng/ml um aumento de risco muito elevado.
O arguido tinha no seu sangue uma taxa quase a atingir os 2 ng, o que nos parece suficiente para se ter dado como provado que ele não estava em condições para conduzir o seu motociclo em segurança, perfectibilizando-se, assim, o elemento objectivo do delito em causa.

3.1.3.4. Em conclusão, a factualidade provada é assim suficiente para dizer que o arguido não se encontrava em condições de efetuar uma condução segura, pois são consabidas as consequências do consumo de estupefacientes (em geral), na condução de veículos, que levaram o legislador a criar o tipo legal de perigo abstracto previsto no artigo 292º do CP.
Face ao exposto e tendo em conta a factualidade apurada e os pressupostos do crime em referência, entendemos que os mesmos se encontram preenchidos, não existindo qualquer censura a fazer no que respeito ao enquadramento jurídico efectuado pela sentença recorrida.
Se assim é, naufraga em absoluto este recurso, só havendo que confirmar a sentença recorrida (note-se que o segmento da pena não foi colocado directamente em causa, parecendo-nos razoável e bem fundamentada).

3.2. Após trânsito, e devolvidos os autos à 1ª instância, recomenda-se que se dê DE NOVO cumprimento ao disposto no Acórdão do STJ n.º 2/2013 (AUJ), de 8/1/2013, segundo o qual: «Em caso de condenação (…) e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, nº 1, al. a) – ou outra alínea - , do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, nº 3 do CP e art. 500.º, nº 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, nº 1, al. b), do CP».

3.3. Em sumário da nossa decisão:
· 1º- Não basta, para o preenchimento do crime do nº 2 do artigo 292º do CP, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.
· 2º- Se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve ser lograda através de todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória completa e integrada, com uma clara ponderação das vicissitudes do caso concreto e com o apoio do conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.
· 3º- Exige-se a prova de que o consumo do estupefaciente impediu o agente de exercer a condução em segurança, e isto independentemente do resultado danoso que possa ter ocorrido – como tal, importa apenas apurar que a cannabis no seu organismo o impedia de conduzir em segurança, não se curando se saber se um concreto acidente ou despiste foi por culpa sua.
 
            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs [artigos 513.º, n.o 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa], sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que possa vir a gozar.

Coimbra, 17 de março de 2022
 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)
Paulo Guerra (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)



[1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
[2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


[3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir-se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
[4] O aresto da Relação do Porto datado de 20/2/2019, exarado no Pº 540/17.2GBILH.P1) explica muito bem a evolução legal neste particular:
 «Tal está claro na «exposição de motivos» da Proposta de Lei nº 69/VIII (que levou à Lei nº 77/2001, de 13 de julho, que alterou o Código Penal, entre o mais o art.º 292º acrescentando o nº 2), onde é referido a propósito do crime agora em causa: … criminaliza-se a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, por via do aditamento de um n.º 2 ao artigo 292.º do Código Penal.
A fundamentação da iniciativa incriminadora é idêntica à subjacente ao crime de condução em estado de embriaguez previsto no n.º 1 do referido artigo, dado que em ambas as situações se pode presumir perigo para a segurança da circulação rodoviária.
Este crime não se confunde com a contra ordenação prevista no Código da Estrada (alínea j) do artigo 147.º), nem com o crime de condução perigosa já previsto no artigo 291.º no Código Penal. Ao contrário do que sucede no âmbito do ilícito de mera ordenação social, ter-se-á de provar nesta nova incriminação que o agente não estava em condições de conduzir com segurança. Mas não será necessário provar a criação de um perigo concreto para bens jurídicos como a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, assim se distinguindo tal incriminação do crime previsto no artigo 291.º, que é mais grave.
[5] Neste delito do n.º 1, basta a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, independentemente da influência que essa taxa de álcool exerça no condutor, ou mesmo que não afecte as condições de condução com segurança.
[6] Não sendo omissa neste ponto a acusação deduzida nos autos, de onde resulta com suficiente clareza a ligação entre o grau de canabinóides detectado no organismo do arguido e a circunstância de, por isso, não estar nas melhores condições para conduzir naquela manhã.
[7] Repare-se que a esta mesma conclusão chega o aresto desta Relação invocado nas alegações de recuso – Pº 1017/08.2TAAVR.C2).
[8] Caindo por terra o alegado na conclusão VII deste recurso pois o tribunal não tem de achar esse nexo causal.