Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/07.8IDGRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: INQUÉRITO
COMPETÊNCIA DELEGADA
ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA
SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS56.º, 263.º, 262.º E 48.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, E 40.º DO RGIT.
Sumário: 1. Os poderes e funções que o CPP atribui aos órgãos de polícia criminal cabem, durante o inquérito, aos órgãos da administração tributária e aos da administração da segurança social, presumindo-se delegada nesses órgãos a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir-lhes (n.º 2 do artigo 40.º do RGIT), sendo que, em conformidade como o disposto no mesmo artigo, a instauração de inquérito pelos referidos órgãos ao abrigo da competência delegada deve ser de imediato comunicada ao Ministério Público.

2. Sendo assim, a realização dos actos de inquérito, em processo relativo a crime tributário, por parte da respectiva entidade administrativa são actos praticados a coberto da legitimidade do Ministério Público.

3. Deste modo não constitui nulidade do processo o facto do mesmo ter sido instaurado e tramitado, pelos serviços da administração fiscal, à revelia do Ministério Público.

Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No Tribunal Judicial da Guarda, foi submetido a julgamento o arguido P..., residente em Manteigas, sob imputação, na acusação pública a fls. 352/357, da prática, em autoria material, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, do RGIT - Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela lei n.º 15/2001, de 05-06, e 30.º, n.º 2, do Código Penal.


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2. Após julgamento, por sentença de 3 de Março de 2009, o arguido foi condenado, pela prática do imputado crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita à condição de pagamento das quantias em dívida, pelo arguido, no prazo de 1 ano e 6 meses. 

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3. Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso da sentença.

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4. Por acórdão de 07-05-2009 (fls. 473/479), o Tribunal da Relação de Coimbra declarou a nulidade da sentença, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, e, simultaneamente, teve por verificado o vício de contradição insanável da fundamentação, determinando, em consequência, o reenvio parcial do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 426.º do citado diploma.

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5. Após a realização de novo julgamento, em sentença de 22 de Janeiro de 2010, o tribunal de 1.ª instância condenou o arguido P... pela prática, em autoria material e nas formas consumada e continuada, do referido crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, subordinada ao pagamento, por parte do arguido à administração fiscal, no prazo de 5 (cinco) anos, das prestações tributárias retidas que foram dadas como provadas na sentença, sob a alínea D), e seus acréscimos legais, embora apenas quanto ao IVA relativo a todo o ano de 2004, a todo o ano de 2005, excepto o período de Dezembro, e a Junho de 2006.

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6. Ainda não conformado, o arguido  recorreu da sentença, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – A testemunha R... nunca referiu no seu depoimento, que se encontra gravado, conforme consta da acta de audiência de julgamento de 12.01.2010, através do sistema integrado de gravação disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com início às 10:06:14 e termo às 10:26:18, que o arguido tivesse feito as importâncias em discussão nos autos coisa sua, que despendeu na sua actividade industrial, e que tivesse optado por utilizar tais meios líquidos gerados em seu proveito próprio, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas, até porque tais questões não lhe foram colocadas, razão pela qual devem dar-se como não provados, nessa parte, os factos das alíneas C), D), H) e M), absolvendo-se, consequentemente, o arguido por falta de demonstração do elemento objectivo do tipo traduzido na apropriação da prestação tributária.

2.ª - Resulta, ainda, do depoimento de tal testemunha que a “acção inspectiva decorreu no ano de 2007 e envolveu os exercícios anteriores de 2004/2005/2006” e que em “Outubro de 2007 é a data da conclusão da acção inspectiva”, factos que, por terem sido objecto de prova, devem ser dados como provados, nos termos do disposto no art. 124.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, uma vez que se trata de factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime e a punibilidade ou não punibilidade do arguido.

3.ª - Por despacho do Exmo. Sr. Director de Finanças, de 26.12.2007, foi determinado a instauração do competente inquérito, o que foi feito com base na informação anexa de 23.11.2007, onde se dava conta da existência de factos que indiciavam a prática do crime de abuso de confiança, informação esta elaborada tendo em consideração o auto de notícia de 04.10.2007, instauração de inquérito que viria a ser comunicada aos serviços do Ministério Público em 30.11.2007 - Cfr., respectivamente, fls. 4, 5 e 2.

4.ª - O poder de dispor material e juridicamente da investigação pertence ao MP, actuando os órgãos de polícia criminal, como é o caso dos órgãos tributários, sob a sua directa orientação e na sua disponibilidade funcional - arts. 56.° e 263.° do C.P.P. -, cabendo, assim, ao MP, designadamente, realizar diligências de prova no inquérito e ordenar a junção de documentos necessários para os fins do inquérito, bem como validar a junção de documentos efectuada pelos órgãos de polícia criminal, já que, em regra, os documentos devem ser juntos no inquérito ou na instrução - art. 165.°, n.° l, do C.P.P.

5.ª - Ora, no caso concreto, após a determinação da instauração do inquérito, procedeu-se apenas, no decurso do mesmo, à constituição de arguido - Cfr. fls. 212 -, tendo, posteriormente, sido proferido despacho que ordenou a devolução dos “(...) autos à Direcção de Finanças da Guarda/Núcleo de Investigação Criminal, para continuação da actividade de investigação e elaboração de relatório final” - Cfr. fls. 214 - o negrito e sublinhado é nosso -, encontrando-se, no entanto, nessa altura, já apurados todos os factos que seriam levados à acusação, pois esta baseia-se, única e exclusivamente, na factualidade constante do auto de notícia.

6.ª - No caso sub judice, não pode dizer-se, pois, que tenha havido inquérito só pelo facto de ter havido a constituição de arguido, já que o inquérito implica, necessariamente, a prática de actos de investigação e recolha de prova, por forma a fundamentar a objectividade de deduzir acusação, a qual foi deduzida pelo M.P., com base numa informação dos órgãos tributários, da qual não teve imediato conhecimento, já que, quando lhe foi comunicada a instauração do inquérito, a investigação, com recolha de prova, designadamente documental, já se encontrava totalmente realizada por elementos daqueles serviços, sem qualquer intervenção directa do MP, razão pela qual, no decurso do inquérito, não foram realizadas diligências de prova.

7.ª - A investigação foi realizada, em exclusivo, pela administração fiscal, ou seja, o ofendido, sem conhecimento ou autorização do M.P., o que viola clamorosamente o artigo 48.° do Código de Processo Penal, nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusivo do Ministério Público, tendo sido, pois, a administração fiscal quem promoveu a acção penal e prosseguiu com os actos de investigação, sendo, por isso, nulo todo o processado.

8.ª - Não tendo havido inquérito, o qual era obrigatório, uma vez que estamos perante processo comum com intervenção do tribunal singular, e tendo a investigação sido realizada exclusivamente por elementos dos serviços tributários, sem intervenção directa do MP, a omissão de tais prescrições impostas por lei importam em nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, als. b) e d), do CPP.

9.ª - Ainda que assim não fosse, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, sempre se dirá que a douta sentença é nula, nos termos do disposto na al. c) do n.° l do art. 379.° do C.P.P., na medida em que os factos dados como provados assentam em prova documental recolhida à margem do inquérito e sem a intervenção do MP - arts. 262.° e 165.° do C.P.P. -, como é o caso, designadamente, das facturas/recibos de fls. 34 a 103 e retenções de fls. 104 a 193.

10.ª - Só os documentos que contenham declarações é que podem servir de meio de prova, sendo que, para este efeito, um parecer, elaborado nos termos do disposto no art. 42.°, n.° 3, do RGI”, não constitui documento, pois que não têm aptidão a representar ou reproduzir, o objecto da prova, tratando-se apenas de uma peça escrita, sem eficácia probatória, cuja função útil, atento o disposto nos arts. 42.° e 43.° do RGIT, é a de poder contribuir para esclarecer, concluídas que estejam as diligências relativas ao inquérito, o MP na decisão de arquivar ou deduzir acusação.

11.ª - Assim sendo, o parecer de fls. 260 a 277 não pode servir de fundamento para dar como provado a matéria da acusação, como, aliás, consta da fundamentação da sentença recorrida, que diz que foi relevante toda a prova documental constante dos autos e indicada na acusação, onde é referido o dito parecer, pelo que a douta sentença é nula, nos termos do disposto na al. c) do n.° l do art. 379.° do C.P.P., na medida em que conheceu de prova que não podia conhecer.

12.ª - Na audiência de discussão e julgamento realizada em 16.02.2009, foi proferido douto despacho que, de imediato, passou a “(...) excluir os seguintes factos constantes da acusação: Todos os factos relativos a IVA dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Julho de 2006, as retenções na fonte a título de IRS, tanto da categoria A como da categoria B, referente ao exercício de 2004, Outubro e Novembro, ao exercício de 2005 de Fevereiro a Dezembro de 2005 e também ao exercício de 2006 Setembro e Dezembro”, despacho que transitou em julgado, por dele não ter sido interposto o competente recurso.

13.ª - Ora, como consta das als. D) e F) da matéria dada como provada, a sentença recorrida deu como provados todos os factos relativos a IVA dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Julho de 2006, as retenções na fonte a título de IRS, tanto da categoria A como da categoria B, referente ao exercício de 2004, Outubro e Novembro, ao exercício de 2005 de Fevereiro a Dezembro de 2005 e também ao exercício de 2006, Setembro e Dezembro, que já se encontravam excluídos por despacho transitado em julgado, razão pela qual a douta sentença impugnada é nula, nos termos do disposto no art. 379.°, n.° l, al. c), do C.P.P., na medida em que apreciou factos que não podia tomar conhecimento, o mesmo sucedendo com a factualidade dada como provada nas alíneas J) a Q) porquanto contêm matéria relacionada com os factos excluídos.

14.ª - A douta sentença impugnada, ao proceder novamente à apreciação de tais factos, violou o princípio constitucional ne bis in idem.

15.ª - Na motivação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal recorrido realçou o facto de o arguido ter optado “(...) por não prestar quaisquer declarações acerca dos factos e portanto nem sequer o próprio colocou minimamente em causa as conclusões e inferências que acabamos de referir (...)”, tendo, assim, valorado o silêncio do arguido em seu desfavor, isto no justo ponto em que perante tal postura não resultaram conhecidas circunstâncias que, quiçá, justificariam ou excluiriam as conclusões e inferências referidas na douta sentença recorrida, sendo, por isso, nula, nos termos do disposto no art. 379.º, n.° l, al. c), do C.P.P..

16.ª - O Tribunal recorrido não anotou como provado nem como não provado o facto constante da douta acusação de que o arguido foi notificado para efectuar os pagamentos dos montantes em dívida de IVA e IRS nos valores globais de 157.919,73 € e 24.567,00 €, padecendo, pois, a douta sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

17.ª - Aliás, tal erro constitui uma violação clara do disposto no n.° 2 do artigo 374.° do C.P.P. que manda que as sentenças, e na parte da “fundamentação”, enumerem os factos provados e não provados, sendo o vício em causa gerador de nulidade nos termos do disposto no n.° l, al. a) do art. 379.° de tal diploma legal.

18.ª - Do exame e análise da decisão sob recurso decorre que o tribunal “a quo” não acautelou minimamente as exigências legais de fundamentação conforme se conclui da leitura da motivação factual constante da mesma, a qual não concretiza, ainda que de forma concisa, os motivos que levaram a considerar que o depoimento da testemunha R... foi prestado “com elevado conhecimento directo” e quais foram as afirmações e confirmações convictas que foram prestadas por tal testemunha.

19.ª - Nesta motivação, o julgador não explicitou minimamente para os sujeitos processuais e para o cidadão, o seu raciocínio lógico e mental que determinou a sua convicção no sentido de dar os factos como provados sob as alíneas A) a M), tendo-se socorrido de meros juízos conclusivos.

20.ª - Não basta afirmar que o depoimento foi prestado com elevado conhecimento directo e que confirmou convictamente todos os factos objectivos, tem de ser explicado qual é o conhecimento e quais as afirmações e confirmações referidas, não podendo tais elementos ficar resguardados na confidência do julgador, terão de ser reproduzidos, exteriorizados, pois só deste modo, quer os sujeitos processuais quer o tribunal de recurso, ficarão habilitados a apreciar e a sindicar se o julgador ajuizou bem ou não a sinceridade do depoimento.

21.ª - Na presente decisão falta, de todo, indicar o iter formativo da convicção do julgador quanto aos factos que deu como provados nas alíneas A) a M), ou seja, o aspecto valorativo da prova produzida cuja análise há-de permitir se o raciocínio do julgador foi o lógico ou se foi irracional ou absurdo, sendo que, por isso, a sentença é nula - arts. 379.°, n.° l e 374.°, n.° 2, do C.P.P. -.

22.ª - Os montantes de IVA relativos ao período de Dezembro de 2005 e ao IRS retido (categoria B) relativo ao período de Setembro de 2006 constantes da acusação não correspondem às quantias dadas como provadas na sentença, pelo que, não tendo sido dado ao ora recorrente a possibilidade de exercer a sua defesa, a sentença recorrida violou o artigo 32.° da Constituição e os arts. 374.°, 379.°, n.° l, al. b), e 410.°, todos do Código Processo Penal, a qual, por isso, é nula.

23.ª - O Tribunal “a quo” inferiu, através de regras de experiência, os factos dados como provados nas alienas N) a R), inferência que se deveu ao facto de o arguido ter optado por não prestar quaisquer declarações acerca dos factos e por não ter feito “(...) qualquer tipo de prova que tivesse sido produzida”, existindo, assim, uma verdadeira inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, não podendo inferir-se a prova de tais factos dúbios através das regras de experiência, particularmente quando esses factos sejam desfavoráveis ao aqui recorrente, configurando, por conseguinte, a prova de tais factos a violação do princípio in dubio pro reo, pelo que, tendo tomado conhecimento dos mesmos para efeitos de condenação, a sentença é nula nos termos do disposto no art. 379.°, n.° l, al. c), do C.P.P.

24.ª - A sentença recorrida violou, pois, o disposto nos arts. 56.°, 263.°, 165.°, n.° l, 262.°, 48.°, 119.°, als. b) e d), 122.°, n.° l, 379.°, n.° l, als. a) e c), 164.°, n.° l, 124.°, n.° l, 368, n.° 2, 374.°, n.° 2, e 410.°, n.° 2, al. a), do Código de Processo Penal, arts. 40.°, 42.°, n.° 3, e 43.° do RGIT e art. 2.°, 205.º, n.º 2, 29.°, n.° 5, e 32.°, n.° 2, da CRP.

Termos em que deverá ser proferido Acórdão que absolva o arguido do crime por que foi condenado ou, quando assim não se entenda, se ordene, na procedência dos vícios invocados, a anulação da douta sentença recorrida ou o reenvio do processo para novo julgamento, o que constitui uma decisão de justiça.


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7. O Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso nos termos infra transcritos:

1. Face à matéria de facto dada como provada, não merece reparo a decisão ora em recurso.

2. Adere-se, integral e plenamente, à decisão ora em recurso, quer no que toca aos argumentos fácticos quer de ius nela explanados, a qual, na nossa opinião, não merece qualquer reparo, encontrando-se exemplarmente trabalhada e fundamentada.

3. O arguido praticou o crime por que foi condenado pelo que se tem, para nós, isenta de reparos e juridicamente inatacável a sua condenação.

4. Inexistem, por isso, as nulidades arguidas, bem como a violação dos princípios alegados.

5. Ultrapassadas que estão, por isso, as questões mandadas repetir em reenvio parcial pelo Tribunal Superior, crê-se que;

6. A sentença ora em recurso não violou as disposições dos artigos indicados em 24., nem quaisquer outros.


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8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na resposta do Ministério Público no tribunal da 1.ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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9. Notificado, nos termos e para os efeitos consignados no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.

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10. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

No caso sub judice, o objecto do recurso está circunscrito às seguintes questões:

A) Se se verifica a nulidade prevista no artigo 119.º, alíneas b) e d), do CPP;

B) Se a sentença recorrida é nula, nos termos do disposto nas alienas a), b) e c) do artigo 379.º do CPP, e violou os artigos 2.º, 29.º, n.º 5, 32.º e 205.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;

C) Se foram violados os princípios constitucionais ne bis in idem e in dubio pro reo;

D) Se a sentença sob recurso padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

E) Alterabilidade da matéria de facto (provada e não provada);


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2. Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

A) O arguido P..., contribuinte n.º 114293503 (NIF), era pelo menos à data dos factos industrial da construção civil, encontrando-se colectado nos Serviços de Finanças de Manteigas pela actividade de “construção”, com periodicidade trimestral até 31-12-2004, tendo desde então ficado sujeito ao regime de tributação mensal.

B) Em sede de IRS, estava na altura enquadrado no regime de contabilidade organizada.

C) Durante os anos de 2004, 2005 e 2006, no exercício da sua actividade industrial, o arguido, por sua conta e no seu interesse, liquidou e fez seus diversos montantes de IVA recebidos na sua actividade industrial, não os tendo entregue ao Estado.

D) Assim, o arguido P... liquidou, recebeu e fez suas as seguintes importâncias de IVA:

Ano de 2004:

- 1° Trimestre de 2004: 13.597,41 €;

- 2° Trimestre de 2004: 12.134,05 €;

- 3° Trimestre de 2004: 34.717,57 €;

- 4° Trimestre de 2004: 8.953,98 €;

Ano de 2005:

- Abril: 8.542,29 €;

- Maio: 11.184,17 €;

- Junho: 9.545,75 €;

- Julho: 15.037,76 €;

- Setembro: 13.185,93 €;

- Dezembro: 694,89 €;

Ano de 2006:

- Fevereiro: 4.416,94 €;

- Março: 4.036,62 €;

- Abril: 1.893,94 €;

- Maio: 1.017,61 €;

- Junho: 11.949,08 €;

- Julho: 6.811, 74 €,

E) Por outro lado, o arguido efectuou retenções na fonte de IRS, efectuadas sobre o pagamento de rendimentos de trabalho dependente (categoria A – trabalhadores dependentes) e de trabalho independente (categoria B – prestadores de serviços), as quais não foram entregues nos cofres do Estado.

F) Tal falta reporta-se a diversos períodos de exercícios dos anos de 2004, 2005 e

2006, como se segue:

Exercício de 2004:

Outubro – Cat. A: 1.344,00 € - Cat. B: - - Total: 1.344,00 €;

Novembro – Cat. A: 2.081,00 € - Cat. B: - 264,00 - Total: 2.345,00 €;

TOTAIS: Cat. A: 3.425,00 € - Cat. B: - 264,00 - Total: 3.689,00 €;

Exercício de 2005:

Fevereiro – Cat. A: -- € - Cat. B: - 200,00 - Total: 200,00 €;

Março – Cat. A: 1.486,00 € - Cat. B: ----- - Total: 1.486,00 €;

Abril – Cat. A: 1.750,00 € - Cat. B: ------- - Total: 1.750,00 €;

Maio – Cat. A: 1.780,00 € - Cat. B: - 264,00 - Total: 2.044,00 €;

Junho – Cat. A: 1.880,00 € - Cat. B: -------- - Total: 1.880,00 €;

Julho – Cat. A: 2.096,00 € - Cat. B: - ------ - Total: 2.096,00 €;

Agosto – Cat. A: 2.783,00 € - Cat. B: ------- - Total: 2.783,00 €;

Setembro – Cat. A: 1.365,00 € - Cat. B: ----- - Total: 1.365,00 €;

Outubro – Cat. A: 2.210,00 € - Cat. B: ------- - Total: 2.210,00 €;

Novembro – Cat. A: 2.367,00 € - Cat. B: ------- - Total: 2.367,00 €;

Dezembro– Cat. A: 1.989,00 € - Cat. B: 264,00 - Total: 2.253,00 €;

TOTAIS: Cat. A: 19.706,00 € - Cat. B: 728,00 €: Total: 20.434,00 €.

Exercício de 2006

Setembro – Cat. B: - 324,00 - Total: 324,00 €;

Dezembro – Cat. B: 120,00 € - Total: 120,00 €;

TOTAIS: Cat. B: - 444,00 - Total: 444,00.

G) Estes pagamentos ao Estado deveriam ter ocorrido até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao do período a que respeitavam.

H) O arguido não efectuou os pagamentos ao Estado nesse prazo nem nos 90 dias posteriores, tendo feito de tais importâncias coisa sua, que despendeu na sua actividade industrial.

I) O arguido apresentou as declarações periódicas de IVA, onde descriminou o IVA devido ao Estado, nas quantias supra referidas, mas não as fez acompanhar do respectivo meio de pagamento.

J) Para efeitos de IRS, o arguido entregou as declarações de rendimento Mod. 3, bem como as declarações de informação contabilística e fiscal nos prazos legais.

L) O arguido foi notificado para efectuar o pagamento dos montantes em dívida de IVA e IRS nos valores acima descritos, acrescido dos respectivos juros e valor mínimo da coima aplicável pela falta de pagamento daquelas no prazo de 30 dias, o que determinaria a extinção da responsabilidade criminal, sendo que, tal notificação foi feita nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) e pretérito n.º 6 do R.G.I.T.

M) O arguido não efectuou os pagamentos acima descriminados, antes tendo optado por utilizar tais meios líquidos gerados em seu proveito próprio, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas.

N) Isto não obstante ter perfeito conhecimento da existência das dívidas ao Estado e da obrigação legal da sua entrega ao credor tributário.

O) Ficou assim o arguido com tais meios líquidos recebidos dos clientes, integrando-os no seu património.

P) Actuando o arguido no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa do Estado, através da não entrega dos montantes de IVA e IRS, resultantes da actividade desenvolvida, liquidados e recebidos.

Q) O arguido agiu, de forma deliberada, bem sabendo que com a sua conduta se apropriava de quantias que eram destinadas aos cofres do Estado, apropriação que o arguido quis, e que, assim, se produzia um enriquecimento em prejuízo da Fazenda Nacional.

R) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

S) O arguido tem bom comportamento moral e civil e é pessoa considerada profissionalmente e no meio social onde vive.

T) O arguido encontra-se actualmente a trabalhar em empresa pertença dos filhos como preparador de obra, auferindo um salário de pelo menos €500,00. Vive sozinho e em casa emprestada. Aufere ainda reforma por falecimento da esposa, no valor de mais de €700,00 por mês. Incorre em numerosas despesas de saúde.

U) O arguido foi já condenado no âmbito do processo n.º 232/04.2IDGRD do 2º Juízo deste Tribunal Judicial da Guarda, pela prática, em 1 de Janeiro de 2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de um ano de prisão suspensa por três anos, com a condição de pagar a quantia em dívida, juros e acréscimos legais à Fazenda Nacional no prazo de dois anos. Tal decisão transitou em julgado a 14 de Abril de 2008.


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3. Não havendo factualidade não provada a considerar, relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

O tribunal baseou a sua convicção essencialmente no depoimento prestado pela testemunha R…, o qual depôs na qualidade de inspector tributário que procedeu à investigação do caso que nos ocupa, tendo prestado depoimento com elevado conhecimento directo dos factos e sem interesse nos mesmos, afirmando e confirmando convictamente e sem qualquer hesitação todos os factos objectivos que se deram como provados, designadamente sob as alíneas A) a M).

São de efectuar apenas duas precisões quanto aos montantes que demos como provados relativos ao IVA retido relativo ao período de Dezembro de 2005 e ao IRS retido (categoria B) relativo ao período de Setembro de 2006, na medida em que tais montantes que demos como provados diferem dos que constam da acusação. A este respeito, verifica-se que o montante a título de IVA em Dezembro de 2005 se deve a lapso de escrita manifesto da acusação, que fez aí constar o que tinha como total desse ano, e quanto ao IRS de Setembro de 2006, o tribunal baseou-se, como se disse, no depoimento seguro e isento de dúvidas prestado por R… .

Além destes elementos, o tribunal considerou ainda o depoimento prestado pela testemunha L..., também inspector tributário, que no essencial confirmou o depoimento de R…, ainda que de forma significativamente mais vaga e genérica.

Foi relevante ainda obviamente toda a prova documental constante dos autos e que é indicada na acusação. É de referir que nenhum destes elementos foi minimamente contrariado por qualquer outro meio de prova que houvesse sido produzido ou que constasse dos autos.

Aqui chegados, como se viu, o tribunal deu também como provada a matéria constante das alíneas N) a R), essencialmente no sentido de que o arguido tinha perfeito conhecimento da existência das dívidas ao Estado e da obrigação legal da sua entrega ao credor tributário, que ficou com tais meios líquidos recebidos dos clientes, integrando-os no seu património, que actuou no seu próprio interesse, de forma deliberada, livre e consciente, procurando, e conseguindo, obter um enriquecimento indevido à custa do Estado, através da não entrega dos montantes de IVA e IRS, resultantes da actividade desenvolvida, liquidados e recebidos, e que agiu, de forma deliberada, bem sabendo que com a sua conduta se apropriava de quantias que eram destinadas aos cofres do Estado, apropriação que quis, e que, assim, se produzia o seu enriquecimento em prejuízo da Fazenda Nacional, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A este respeito, o tribunal lançou obviamente mão dos factos objectivos que anteriormente se deram como provados pelos motivos já expostos, sendo esses factos conjugados à luz das regras da experiência comum, designadamente no sentido de apurar a motivação interna e a intencionalidade do arguido. Sendo tal arguido empresário da construção civil à data dos factos, ao não entregar à administração fiscal as quantias que obteve e reteve a título de IVA e IRS, natural e óbvio é pois que, na ausência do que quer que seja em sentido diverso, as tenha integrado no seu património e da empresa que detinha, assim como nada nos indicia que desconhecesse a obrigação de entregar tais montantes ao Estado, o que não fez, na medida em que tal obrigação é do conhecimento de qualquer cidadão médio e comum, conhecimento esse que não é sequer de discutir na pessoa de um empresário. É de realçar que o arguido optou por não prestar quaisquer declarações acerca dos factos e portanto nem sequer o próprio colocou minimamente em causa as conclusões e inferências que acabamos de retirar, assim como não o fez qualquer outro tipo de prova que tivesse sido produzida.

Finalmente, acerca da conduta e integração social do arguido, mostrou-se relevante o depoimento prestado pela testemunha António Manuel Saraiva, amigo de longa data do arguido. Quanto às condições pessoais, profissionais, económicas e familiares deste último, foram relevantes as suas próprias declarações, das quais não existem razões para duvidar, e acerca do antecedente criminal apresentado pelo arguido, foi relevante o respectivo CRC que consta dos autos.

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4. Do mérito do recurso:
Havendo agora que dar resposta às questões acima elencadas, a primeira que, por ordem de abrangência de prejudicialidade, se apresenta para conhecimento prende-se com a invocada nulidade do processo, por o mesmo ter sido instaurado e tramitado, pelos serviços da administração fiscal, à revelia do Ministério Público, com violação do estatuído nos artigos 56.º, 263.º, 262.º e 48.º, do Código de Processo Penal, e 40.º do RGIT.
Dispõe o artigo 119.º do CPP:
«Constituem nulidades insanáveis, que devem der oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) (…);
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) (…);
d) A falta de inquérito ou de instrução nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) (…);
f) (…)».
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (cfr. artigo 263.º, n.º 1, do CPP), cabendo àquele, conforme preceituado no artigo 267.º do mesmo Código, praticar actos e assegurar os meios necessários à realização das finalidades referidas no artigo 262.º, n.º 1, ainda do mesmo diploma legal, ou seja, o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Como tem sido posição largamente maioritária da nossa jurisprudência, ancorada na correcta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (cfr. artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), a nulidade plasmada no segmento inicial da al. d) do art. 119.º do CPP só se verifica quando ocorre ausência absoluta e total de inquérito[1].
Efectivamente, não se pode olvidar o modelo de autonomia que em sede de exercício da acção penal o legislador, no âmbito do actual Código de Processo Penal, desenhou para a actividade do Ministério Público, atribuindo a esta Magistratura competência para dirigir o inquérito e vedando a outras entidades a interferência nas diligências que são entendidas como necessárias à realização das finalidades próprias daquela fase processual.
Posto isto, cabe então verificar se no caso concreto, como entende o recorrente, existe falta de promoção do processo pelo Ministério Público e/ou falta de inquérito.
Para dar resposta cabal à questão é imperioso ter em conta as especialidades, ao nível da tramitação do processo penal tributário, da Lei n.º 15/2001, de 05-06.
Adquirida a notícia de um crime tributário procede-se a inquérito, sob a direcção do Ministério Público, com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal (n.º 1 do artigo 40.º do RGIT).
Os poderes e funções que o CPP atribui aos órgãos de polícia criminal cabem, durante o inquérito, aos órgãos da administração tributária e aos da administração da segurança social, presumindo-se delegada nesses órgãos a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir-lhes (n.º 2 do artigo 40.º do RGIT), sendo que, em conformidade como o disposto no mesmo artigo, a instauração de inquérito pelos referidos órgãos ao abrigo da competência delegada deve ser de imediato comunicada ao Ministério Público.
O artigo 41.º, n.º 1, alínea b), do citado diploma, por sua vez, concretiza a delegação presumida, quer quanto aos órgãos envolvidos, quer quanto aos crimes em causa.
Assim, sem prejuízo de a todo o tempo o processo tributário poder ser avocado pelo Ministério Público, a competência para os actos de inquérito a que se refere o n.º 2 do artigo 40.º presume-se delegada, relativamente aos crimes fiscais, no director de finanças que exercer funções na área onde o crime tiver sido cometido ou no director da Direcção de Serviços e Inspecção Tributária nos processos por crimes que venham a ser indiciados por aquela no exercício das suas atribuições [cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 41].
Concluídas as investigações relativas ao inquérito, o órgão da administração tributária ou da segurança social competente emite parecer fundamentado que remete ao Ministério Público juntamente com o auto de inquérito (cfr. n.º 3 do artigo 42.º).
Recebido o auto de inquérito e respectivo parecer, e sem prejuízo de poder ordenar a realização de diligências complementares ou suplementares que tenha como necessárias à realização das finalidades do inquérito, o Ministério Público, conforme os casos, nos termos do disposto no artigo 43.º, toma uma das seguintes decisões: arquivamento do inquérito (cfr. artigo 277.º do CPP); arquivamento do processo em caso de dispensa da pena (cfr. artigo 280.º do CPP e 44.º do RGIT), suspensão provisória do processo (cfr. artigo 281.º do CPP); dedução de acusação (cfr. artigo 283.º do CPP).
Parafraseando Augusto Silva Dias - quando questiona as objecções ancoradas na administrativização da fase do inquérito, através da autonomização do processo de averiguações existente no âmbito do DL n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras – RJIFNA), subtraindo-o aos poderes de controlo e fiscalização do M.º P.º -, em considerações que são plenamente válidas no domínio do RGIT, «pode ver-se na presunção de delegação do n.º 2 do art. 43.º a consagração legal de uma maior autonomia na investigação (a Administração Fiscal dá inicio às averiguações, devendo comunicar esse facto ao M.º P.º, e efectua-se sem necessidade de para tal solicitar a par e passo a autorização daquele órgão), justificada pelo carácter técnico das matérias em causa, mas sem nunca chegar ao ponto de impedir o M.º P.º de exercer as suas competências de direcção do inquérito nos termos dos arts. 53.º, n.º 2, al. b), e 263.º e ss. do CPP, sempre que o julgar oprtuno.
O M.º P.º é uma magistratura e o inquérito, pela intensa actividade de recolha de prova que possibilita, é uma fase processual que bule com direitos e garantias dos cidadãos. Por outro lado, embora presumida, a delegação não deixa de ser isso mesmo: autorização para o exercício de um poder, susceptível de ser avocado a todo o momento.
Esta leitura parece ser confirmada a vários níveis. Desde logo, o preâmbulo do DL 20-A/90 esclarece que o facto de se atribuir aos actos da Administração Fiscal, através da figura da delegação presumida, a mesma autoridade que detêm aqueles cuja prática o M.º P.º concretamente autoriza no domínio do processo penal comum, “não significa que se subtraia ao M.º P.º a direcção do inquérito ou que se limitem quaisquer competências e atribuições que lhe estão cometidas no âmbito penal. O que se pretende é apenas que os actos praticados no âmbito do processo de averiguações» (actualmente, na fase de inquérito) «não sejam meros actos vazios de eficácia e inócuos de resultado”»[2].
 Mais adiante, acrescenta o mesmo autor: «podemos concluir, pois, que a interpretação adequada dos preceitos constitucionais e legais expostos vai, quanto a nós, no sentido de que o processo de averiguações implica a realização de actos de inquérito, os quais apesar da dispensa de delegação concreta do M.º P.º à Administração Fiscal, por razões de eficácia e de operacionalidade, integram uma fase processual penal que, na sua concepção legal, está submetida aos poderes de direcção daquele órgão de administração da justiça e que, por isso, não é meramente administrativa».
Ou seja, a delegação presumida de poderes do Ministério Público na administração fiscal para a realização de actos de inquérito, não significa de todo a subtracção dos poderes de direcção nessa fase processual àquela Magistratura.
Dos artigos 40.º e 41.º do RGIT não resulta que o poder de direcção do inquérito em processo penal tributário seja retirado  ao Ministério Público.
Ao invés, o n.º 2 do artigo 40.º põe antes o agente competente da administração na veste de órgão de polícia criminal, ao prescrever que lhe cabem os “poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui” a tais órgãos. E, tendo em conta a especial preparação técnica desses agentes da administração nas matérias em causa, o mesmo normativo vai mais longe e presume-lhes delegada a prática de actos pelo Ministério Público.
Sendo assim, a realização dos actos de inquérito, em processo relativo a crime tributário, por parte da respectiva entidade administrativa são actos praticados a coberto da legitimidade do Ministério Público.
Por outro lado, é sempre o Ministério Público que detém competência funcional para apreciar a consistência indiciária dos elementos de prova recolhidos e decidir, inter alia, pela dedução da acusação ou pelo arquivamento do inquérito, consoante considere terem ou não sido recolhidos indícios suficientes de ser ter verificado crime e de quem foi o seu agente (artigos 277.º e 283.º, do CPP, para os quais remete o n.º 1 do artigo 43.º do RGIT), podendo, como é evidente, optar, antes de se enveredar por uma das referidas vias, no sentido da realização de quaisquer diligências que repute como úteis à descoberta da verdade material, ao abrigo do seu poder de direcção do inquérito e de titular da acção penal[3].
No presente caso, o inquérito  teve o seu início com o auto de notícia de fls. 6/15, lavrado, em 04-11-2007, por Inspector Tributário da Divisão de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças da Guarda.
Em 26-11-2007, o Sr. Director de Finanças da Guarda, por os factos noticiados indiciarem a prática de crime tributário, nos termos e de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 40.º e alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º, do RGIT, determinou a instauração de inquérito (cfr. fls. 5 e 4).
Em cumprimento do disposto no referido n.º 3 do artigo 40.º, foi efectuada comunicação ao Ministério Público (cfr. fls. 4 e 2).
Em 05-12-2007, o Ministério Público lavrou despacho que em parte se transcreve:
«Continua delegada na Direcção de Finanças da Guarda a competência para a realização das pertinentes diligências de investigação – art. 270.º do CPP.
Prazo: 90 dias».
E em 09-01-2008, designou data não concretizada para constituição/interrogatório de arguido do então denunciado P… (cfr. fls. 203).
Em conformidade com o que ficou exposto, é indiscutível a promoção do processo pelo Ministério Público e bem assim a realização de inquérito pela entidade administrativa competente, no uso de poderes delegados para a investigação que lhe foram conferidos pelo Ministério Público.
Não se verificam, pois, as nulidades previstas nas alíneas b) e d) do artigo 119.º do CPP.
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A questão que importa agora dilucidar radica na invocada nulidade da sentença, ao abrigo do disposto na aliena c) do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, porquanto, na tese do recorrente, os factos dados como provados assentam em prova documental recolhida à margem do inquérito e sem a intervenção do Ministério Público.
Sem curar de saber da adequação, em abstracto, da referida nulidade, são neste contexto plenamente válidas as considerações acima efectuadas, reafirmando-se que, por ter existido inquérito processualmente válido, nenhum óbice existe à valoração, em audiência, da vasta prova documental recolhida nessa fase processual, em consonância com o disposto nos artigos 125.º, 164.º e ss., do CPP.
Por conseguinte, também neste domínio não assiste a mínima razão ao recorrente.
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Na interpretação espúria do recorrente, também existe a nulidade prevista na aliena c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, por o julgador do tribunal de 1.ª instância ter fundamentado a decisão de facto no parecer de fls. 260/277, elaborado, por órgão da administração tributária, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 42.º do RGIT.
Vista a motivação da decisão de facto, para além da demais prova que concretiza, o Sr. Juiz do tribunal a quo alicerçou a sua convicção, de dar como provada a tese factual da acusação pública, em toda a prova documental constante dos autos e que é indicada na referida peça processual.
Sucede que, para além do parecer de fls. 260 a 277, intitulado de prova documental, o Ministério Público indicou variada documentação (auto de notícia de fls. 22 a 31; facturas/recibos a fls. 34/59, 60/71 e 72/103, “retenções na fonte categoria A e B, alusivas aos anos de 2004 a 2006; notificação de fls. 194/277 e escritura de fls. 306/342).
Fazendo a sentença sob recurso alusão expressa à “prova documental” indicada na acusação, só os documentos foram efectivamente objecto de apreciação e valoração.
Ainda nesta vertente, e sem necessidade, também aqui, de verificar, no plano dogmático, da correcção jurídica na invocação da nulidade, o recorrente carece de razão.
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O recorrente volta a invocar a aplicação do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, porquanto, segundo refere, o tribunal a quo valorou o silêncio do arguido em seu desfavor.
Dirige-se directamente à referência contida na motivação da sentença, do seguinte teor: «É de realçar que o arguido optou por não prestar quaisquer declarações acerca dos factos e portanto nem sequer o próprio colocou minimamente em causa as conclusões e inferências que acabamos de retirar, assim como não o fez qualquer outro tipo de prova que tivesse sido produzida».
O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, dever garantir plena efectividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência.
O privilégio contra a auto-incriminação, ou direito ao silêncio, significa que o arguido não pode ser obrigado, nem deve ser condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, isto é, tem o direito a não ceder ou fornecer informações ou elementos que o desfavoreçam, ou a não prestar declarações, em que do silêncio possam resultar quaisquer consequências negativas ou ilações desfavoráveis no plano da valoração probatória.
Volvendo ao caso dos autos, em nenhuma passagem da fundamentação de facto da sentença, nomeadamente a que é referida pelo recorrente, se vê qualquer relevância negativa do silêncio do arguido na decisão de facto proferida pelo tribunal da 1.ª instância. Apenas está constatada, com impressiva objectividade, a realidade evidenciada no julgamento, ou seja, que o arguido, no uso do direito consagrado pelos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), e 343.º, n.º 1, ambos do CPP, optou por não prestar declarações e, deste modo, não colocou em causa os juízos de inferência firmados pelo julgador de 1.ª instância, a partir dos demais meios de prova produzidos em audiência.
Acresce que, a valoração negativa desse direito ao silêncio por parte do arguido, que não se verifica, repete-se, consubstanciaria, não a arguida nulidade da sentença, mas sim uma proibição de prova.
Neste particular, o recurso é também improcedente.
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O último caso que o recorrente configura como de nulidade da alínea c) do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, prende-se com a alegada inclusão na matéria de facto dada como provada na sentença recorrida de prestações de IVA, relativas aos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio e Julho de 2006, e IRS, tanto da categoria A como da categoria B, referentes ao exercício de 2004, Outubro e Novembro, ao exercício de 2005, de Fevereiro a Dezembro, e ainda ao exercício de 2006 (Setembro e Dezembro), em relação às quais já havia sido emitida decisão no sentido da sua irrelevância jurídica, por força do disposto no n.º 1 do artigo 105.º do RGIT [Lei (n.º 64-A/2008, de 31-12-2008) do orçamento para o ano de 2009] - despacho a fls. 416 dos autos, proferido no decurso do 1.º julgamento.
Não obstante esse despacho, sem necessidade, a sentença recorrida deu como provados factos relativos às referidas prestações, como se recolhe de fls. 537/538 e, em sede de aplicação do direito, voltou a considerar a sua irrelevância jurídico-penal.
Todavia, a nosso ver, na situação descrita, o tribunal a quo mais não faz do que reiterar, fundamentadamente, o que, singelamente, havia sido antes decidido. Dito de outro modo, o tribunal de 1.ª instância, em bom rigor, se limitou a repetir uma decisão antes tomada, sem nenhum prejuízo para o arguido.
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Nos termos do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República, «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», dando-se, assim, dignidade constitucional expressa ao clássico nom bis in idem, na expressão universalmente utilizada.
Numa primeira concretização, a doutrina penalista costuma assinalar que o princípio tem uma vertente substantiva e outra processual. Do ponto de vista substantivo, o princípio proíbe a plural imposição de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção; do ponto de vista processual, o nom bis in idem determina a impossibilidade de reiterar, contra o mesmo sujeito, um novo julgamento (ou processo) por uma infracção penal sobre a qual se tenha firmado decisão de absolvição ou condenação[4].
Evidentemente, a situação em análise não traduz violação desse princípio, porquanto, como é bem de ver, o arguido não foi julgado (e condenado) mais do que uma vez pelos mesmos factos consubstanciadores de um crime (continuado) de abuso de confiança fiscal.
Daí que, em contrário da posição manifestada pelo recorrente, não se verifique violação dos normativos plasmados no artigo 2.º e no n.º 5 do artigo 29.º da CRP.
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Ainda no que concerne à arguição de nulidades da sentença, mais invoca o recorrente: o juízo de inferência determinante de se terem dado como provados os factos das alíneas N a R) consubstancia uma verdadeira inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, configurando, por conseguinte, a prova desses factos, violação do princípio in dubio pro reo, razão por que a sentença é nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
No processo penal não existe um verdadeiro ónus da prova, em sentido formal, que recaia sobre qualquer sujeito do processo; nele vigora o princípio da aquisição da prova ligado ao princípio da investigação, donde resulta que são boas as provas validamente trazidas ao processo, sem importar a sua origem, devendo o Tribunal, em último caso, investigar e esclarecer os factos na procura incessante da verdade material.

Relevantes, no domínio probatório, para além dos meios de prova directos, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
O artigo 349.º do Código Civil prescreve que «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido», sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do mesmo diploma).
No plano de análise em que nos movemos, importam as chamadas presunções naturais ou hominis, que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
«Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência)»[5].
As presunções simples ou naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.
As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto[6].
Como é dito no Ac. do STJ de 07-01-2004[7] «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
(...)
A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».
Não se pondo em causa a legitimidade do recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do CPP), a motivação da decisão de facto é bem explícita sobre as razões de convicção que determinaram o Sr. Juiz do tribunal de 1.ª instância a dar como provados os factos das alíneas N) a R), não se antevendo da fundamentação da decisão de facto, sob qualquer prisma, qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento do arguido, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou, porque violadora do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, na vertente processual do in dúbio pro reo.
Aliás, como é jurisprudencialmente reconhecido, a violação do princípio in dubio pro reo - que, como ficou dito, no caso dos autos não ocorre -, consubstancia, em abstracto o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto na aliena c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e nunca o vício de sentença alegado pelo recorrente.
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Em seguida, argumenta o recorrente que o tribunal não anotou, na sentença, como provado nem como não provado, facto constante da acusação, traduzido na notificação do arguido, nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT [redacção conferida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29-12], para proceder ao pagamento, no prazo legal, dos montantes de IVA e IRS nos valores globais de 157.919,73 € e 24.567,00 €.
Só uma leitura menos atenta da sentença justifica tal conclusão, já que esse facto consta expressamente da alínea L) do acervo factológico provado, cujo texto se reproduz: «O arguido foi notificado para efectuar o pagamento dos montantes em dívida de IVA e IRS nos valores acima descritos, acrescido dos respectivos juros e valor mínimo da coima aplicável pela falta de pagamento daquelas no prazo de 30 dias, o que determinaria a extinção da responsabilidade criminal, sendo que, tal notificação foi feita nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4 e pretérito n.º 6 do RGIT» (o sublinhado pertence-nos).
Ora, a referência aos valores acima descritos são inequivocamente os que constam das alíneas D) e E) da factualidade também dada como provada.
Não ocorre, pois, a aludida nulidade da alínea a) do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, e tão pouco o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto [alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP] que o recorrente, em simultâneo, também invoca, porquanto a matéria de facto adquirida é suficiente para a decisão de direito, ou seja para se encarar a solução jurídica do caso sub judice nas vertentes relevantes, tendo presentes os factos alegados pela acusação e pela defesa e os resultantes da discussão da causa.
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Como já acima ficou dito, as prestações tributárias, relativas a IVA, do mês de Dezembro de 2005, e a IRS (categoria B), do período de Setembro de 2006, já haviam sido julgadas juridicamente irrelevantes na determinação da prática do crime e consequências deste.
Daí que a alteração factual identificada pelo recorrente seja, de todo em todo, inócua para a decisão da causa.
Deste modo, a alteração, na sentença, relativamente à acusação, dos valores de IVA (mês de Dezembro de 2005) e IRS (categoria B – período de Setembro de 2006), não impunha o cumprimento do ritual jurídico-processual previsto no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, ou seja, a comunicação dessa alteração ao arguido.
Ainda neste contexto, não ocorre a nulidade referenciada no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP e também não se vislumbra, sob qualquer perspectiva, que o quadro decisório do tribunal a quo tenha sido obtido com provas não formadas no contraditório. Antes o recorrente exerceu o seu direito de defesa constitucionalmente garantido, de se pronunciar sobre todas as questões relevantes e contraditar todos os dados de facto (relevantes) e argumentos jurídicos trazidos ao processo.
Não se registou, assim, violação do artigo 32.º, da CRP.
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Por fim, na exegese do recorrente, o tribunal não cumpriu minimamente as exigências legais de fundamentação da sentença, porquanto não concretiza, ainda que de forma concisa, os motivos conducentes à prova dos factos identificados nas alíneas A) e M), tendo-se socorrido de meros juízos conclusivos.
Vejamos se assim é.
Na al. a) do n.º 1 do supra citado art. 379.º do CPP comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b) do mesmo Código.
Esta disposição está intimamente ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».[8] 
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.[9]

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador.[10]

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão do julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido»[11].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

A análise crítica da prova não terá, no entanto, de ser exaustiva, mas apenas a suficiente para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade.

Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, uma assentada do depoimento das testemunhas, ou seja, que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvida, ainda que de forma sintética.

Como não impõe uma fundamentação autónoma para cada um dos factos.

Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que a exigência normativa do exame crítico das provas torna insuficiente a referência àquilo em que o tribunal se baseou, tornando-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.

Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, verifica-se que o tribunal a quo expôs satisfatoriamente os motivos de facto que fundamentaram o decidido.

Conforme expressa fundamentação, supra reproduzida, o tribunal a quo motivou, suficientemente, as razões que determinaram a formação da sua convicção. Fê-lo ao longo de fls. 540/542 dos autos, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual decorre perfeitamente reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.

Assim, no que agora importa considerar, o tribunal aferiu criticamente a relevância do depoimento da testemunha R…, inspector tributário que procedeu à investigação do caso dos autos, tendo considerado que o mesmo, nessa qualidade, através de um depoimento “com elevado conhecimento directo dos factos e sem interesse nos mesmos”, manifestou pleno conhecimento de todos os factos objectivos que acabaram por ser dados como provados nas alíneas A) e M).

Mas na lógica interna da decisão, a fundamentação sobre a prova dos factos não se acolheu exclusivamente ao referido depoimento e bem assim ao depoimento da testemunha L..., também esta inspector tributário. Dela resulta que o tribunal analisou e valorou, conjugadamente, a ampla documentação constante dos autos.

Temos, pois, como evidente que a fundamentação contida no acórdão é bastante para atingir os objectivos da lei, supra referidos, carecendo de suporte legal, ainda neste particular, a nulidade da sentença suscitada pelo recorrente.

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Passamos agora à pretendida alterabilidade da matéria de facto.

A base impugnatória do recorrente, neste domínio, está sustentada na pretensão de serem eliminados da factualidade dada como provada, na sentença recorrida, os concretos segmentos indicados na 1.ª conclusão, ou seja, de entre a totalidade dos factos contidos nas alíneas C), D), H) e M), deve ser dado como não provado «que o arguido tivesse feito as importâncias em discussão nos autos coisa sua, que despendeu na sua actividade industrial, e que tivesse optado por utilizar tais meios líquidos gerados em seu proveito próprio, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas», factos estes que, ainda segundo a posição vertida no recurso, não decorrem do depoimento da testemunha R....

Simultaneamente, invoca o recorrente que, por resultar desse depoimento que «a acção inspectiva decorreu no ano de 2007 e envolveu os exercícios anteriores de 2004/2005/2006” e que “Outubro de 2007 é a data da conclusão da acção inspectiva», tais factos devem ser aditados à matéria de facto provada.

Face ao já acima exposto, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apresáveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem tema de prova. Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com  consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível.

A análise complexiva de toda a prova produzida, com especial destaque para o depoimento da testemunha R… e os diversos documentos que o processo comporta, referidos na motivação da decisão de facto, com apelo a uma cuidada valoração crítica e objectiva, conduz a um juízo de convencimento, para além de toda e qualquer dúvida razoável, de que:

- O arguido, durante os anos de 2004, 2005 e 2006, no exercício da sua actividade industrial, por sua conta e no seu interesse, liquidou diversos montantes de IVA recebidos na sua actividade industrial, concretizados na alínea D) do acervo factológico provado, não os tendo entregue ao Estado (em consonância com o que acima consta, somente as prestações relativas a este imposto, de valor superior  a € 7.500,00, são juridicamente relevantes, e não também as prestações devidas a título de IRS, porque inferiores àquele montante) – cfr. alínea C);

- O arguido apresentou as declarações periódicas de IVA, onde descriminou o IVA devido ao Estado, mas não as fez acompanhar do respectivo meio de pagamento [cfr. alínea I)];

Recorrendo às regras da experiência, o juízo de inferência que o tribunal a quo retirou desses factos conhecidos, não impugnados por via de recurso, para dar como provados os factos que o arguido ora contesta está impressivamente contido no procedimento lógico de uma presunção natural. Segundo padrões de normalidade e senso comum, se o arguido não entregou as prestações de IVA liquidadas e retidas, pertencentes ao Estado, foi porque delas se apropriou e utilizou em proveito próprio, tendo obtido, deste modo, benefícios patrimoniais a que não tinha direito.

Quanto ao mais, no contexto do thema decidendum versado nestes autos, a matéria que o recorrente pretende aditada à factualidade provada não assume qualquer relevância no plano jurídico.

Em função do exposto não existe fundamento para qualquer alteração da matéria de facto quer provada quer não provada.


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Em jeito de epílogo, referindo o n.º 2 do artigo 205.º da CRP, que «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas», não se alcança o raciocínio do recorrente quando entende como violado tal normativo constitucional.

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Não obstante a total improcedência do recurso, não podemos deixar em claro o patente erro de aplicação do direito, que passaremos a demonstrar.

Dispõe o artigo 14.º do RGIT:

«1 – A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

2 – Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:

a) Exigir garantias de cumprimento;

b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;

c) Revogar a suspensão da pena de prisão».

À semelhança do que já sucedia no âmbito do RJIFNA, a suspensão da execução da pena é admissível nos termos do Código Penal [cfr. artigo 3.º, al. a) do RGIT], com a particularidade constante do n.º 1 da citada norma, ou seja subordinada à condição de pagamento, até ao limite de cinco anos, da prestação tributária.

Na data da prática dos factos, impunha o n.º 5 do artigo 50.º do CP a fixação do período de suspensão entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.

Hodiernamente, com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, «o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão» (art. 50.º, n.º 5).

O limite máximo que o n.º 1 do art. 14.º do RGIT consagra para o cumprimento da condição a impor (até ao limite de cinco anos) está em plena harmonia com a estrutura normativa conferida ao instituto da suspensão previsto na lei geral penal, pois que esta, tanto na versão antiga como na versão hoje vigente, não pode ser fixada em prazo superior ao de 5 anos (no âmbito da lei nova, esta conclusão decorre do teor, conjugado, dos n.ºs 1 e 5 do artigo 50.º).

Embora a lei não o refira expressamente, esteve no espírito do legislador a ideia de modelar o prazo de cumprimento da obrigação tributária por referência ao prazo da suspensão, não permitindo, em nenhum caso, a superação pelo primeiro do limite do segundo.

De outro modo, tanto no quadro específico dos crimes fiscais como no domínio dos crimes em geral, a pena de subsitituição ficaria vazia de sentido, ineficaz na sua finalidade de protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, pela simples e notória razão de esta pena se poder eventualmente extinguir antes de cumprida a condição a que ficara subordinada.

Mesmo a entender-se que na situação dos autos estamos perante um caso de sucessão no tempo de leis penais, o que não é indiscutível[12], o tribunal de 1.ª instância, ao suspender a execução da pena de 1 ano e 6 meses de prisão imposta ao arguido P... por igual período de tempo, condicionada ao pagamento, no prazo de cinco anos, das prestações tributárias relativas a IVA, descritas na alínea D) da matéria de facto provada [ano de 2004, ano de 2005 (Abril a Setembro), e Junho de 2006], e seus acréscimos legais, incorreu, a nosso ver, em patente erro de aplicação do direito.

Todavia, uma vez que só o arguido interpôs recurso da decisão final, por força do princípio da proibição de reformatio in pejus previsto no artigo 409.º do CPP, este Tribunal da Relação não pode modificar, na parte assinalada, a pena de suspensão.


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Sendo o recurso improcedente, o arguido é responsável pelo pagamento de custas, nos termos dos disposto nos arts. 513.º e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sendo a taxa de justiça fixada de acordo com o disposto nos arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, estes do Código das Custas Judiciais.
Tendo em conta a complexidade do processo e a situação económica do recorrente, fixa-se em 5 UC a taxa de justiça.

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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, como 5 UC de taxa de justiça.
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(Elaborado e integralmente revisto pelo relator, o 1.º signatário)
Coimbra, 28 de Abril de 2010
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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)

  


[1] Cfr, v.g., acórdãos do STJ de 17-11-99 (proc. n.º 607/98), publicado no Boletim Interno elaborado pelos Srs. Juízes Assessores; da Relação do Porto de 21-10-99, CJ, tomo IV, pág. 158, e da Relação de Lisboa de 29-03-2007 (proc. n.º 1537/07-9) e 06-11-2007 (proc. n.º 6231/2007-5). Na doutrina, neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, anotação ao artigo 119.º, pág. 310.
[2] In Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. II, Coimbra Editora, 1999, pág. 474.
[3] Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 105/2004, de 11-02-2004, proferido no processo n.º 805/02, que não julgou inconstitucionais os artigos 43.º e 44.º do RJIFNA. Em sentido equivalente, vejam-se ainda os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10-03-2004 (proc. n.º 0341172) e 07-12-2005 (proc. n.º 0540719), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 303/2005 de 08-06-2005, processo n.º 242/2005, publicado no DR, II Série, de 05-08-2005.
[5] Cfr, v. g., Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ, n.º 112, pág. 190.
[6] Cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. I, pág. 333 e ss.
[7] In http://ww.dgsi.pt/jstj (proc. n.º 03P3213).
[8] Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211.
[9] Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.
[10] Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302.
[11] Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. 
[12] Veja-se, a propósito, o Ac. do STJ de 18-12-2008 (proc. n.º 07P020), in www.dgsi.pt.