Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
415/09.9GASPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: PENA DE MULTA
TAXA DIÁRIA
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (J C CRIMINAL –J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 47.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: I - Dentre os factos que o tribunal tem que apurar, por via dos princípios da investigação e verdade material, constam aqueles relativos à situação económica do condenado, essenciais à fixação da taxa da pena de multa, quando seja esta a opção do tribunal.

II - Na fixação da taxa diária da pena de multa o tribunal tem que atender à situação presente para adequar a pena de multa de modo a não fixar uma pena nem que seja de cumprimento impossível, nem que se traduza numa quase absolvição.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO


1.

O arguido A... foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de receptação, do art. 231º, nº 1, e de um crime de falsificação de documento, do art. 256º, nº 1, al. a), e nº 3, ambos do Código Penal, nas penas de 300 dias de multa por cada um dos crimes, à taxa diária de 10 €.

Feito o cúmulo jurídico foi-lhe aplicada a pena única de 400 dias de multa, à mesma taxa diária.

2.

O arguido recorreu da taxa fixada à pena de multa, nos seguintes termos:

«1 - Foram dados como provados o de crime de recetação, p. e p. pelo art. 231º, nº 1 do C. Penal e o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a) e nº 3 do C. Penal.

2 - Foi aplicada a pena de multa, nos termos do art. 70º do C. Penal.

3 - Relativamente ao quantitativo diário da multa, importa relembrar que de acordo com o nº 2 do artigo 47º do Código Penal "cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 e €500, que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos familiares".

4 - A aplicação da pena tem em vista, "que o efeito da pena se faça sentir, mas sem que coloque em causa a sobrevivência do arguido e, bem assim, que não seja de tal modo desproporcionada que o arguido não tenha possibilidades de a cumprir, mesmo que em prestações".

5 - Considera-se que não foram devidamente apuradas as condições económico-financeiras do arguido e que o valor da multa é desproporcional às suas capacidades para a cumprir mantendo a razoável estabilidade da vida familiar.

6 - Conclui-se que, nesta medida, torna-se incompreensível a fixação de um quantitativo diário superior ao mínimo.

Foram violados os artigos 40º nº 2, 47 nº 1, 70º, 71º nº 1, 77 nº 1 todos do C. Penal».

3.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Alegou que o arguido se limitou a impugnar o montante da multa, sem alegar qualquer facto concreto donde resulta a desconformidade invocada.

Referiu, também, que o tribunal a quo indagou a situação sócio-económica do arguido, resultando que ele exercia a profissão de construtor civil por conta própria com carácter de regularidade, que no presente ele e a sua mulher exploram um restaurante em (...) , que assegura a satisfação das necessidades da família, composta pelo casal e por duas filhas, uma com 17 anos de idade, estudante, e a outra que ainda frequenta uma creche, que o seu agregado familiar reside em casa própria com boas condições de habitabilidade e conforto, concluindo-se não ocorrer insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, pois apesar de não se ter apurado quanto aufere o arguido, apurou-se que ele ganha o suficiente para cumprir com os encargos bancários, satisfazer as necessidades da sua família e manter uma habitação própria com boas condições de habitabilidade e conforto.

Nesta Relação, o Sr. P.G.A. pronunciou-se no mesmo sentido.

Alegou que sobre as condições de vida do arguido o tribunal atendeu às suas declarações e à informação social.

Termina dizendo que considerando que o montante diário da taxa da pena de multa varia entre os 5 € e os 500 € e que se concluiu, e bem, que o arguido, conjuntamente com a sua mulher, explora um restaurante em (...) , o que permite satisfazer as necessidades da família, a decisão não merece qualquer censura.

Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..

4.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência cumpre decidir.


*

FACTOS PROVADOS

5.

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos, no que à situação económica e financeira do arguido respeita:

«…

34. A... é o mais velho de dois filhos de um casal de origem socioeconómica humilde que, com dificuldades foi suprindo as necessidades de todos. O ambiente familiar apresentava alguns problemas de organização porque o pai tinha hábitos alcoólicos que prejudicavam o desempenho das suas responsabilidades pessoais, sociais e profissionais. Mais tarde o pai fez um tratamento e diminuiu o consumo de bebidas alcoólicas mas nem assim o ambiente familiar se organizou substancialmente.

35. Entrou para a escola dentro da idade normal e concluiu o 6º ano de escolaridade, após o que começou a trabalhar na construção civil. Mais tarde ingressou nos fuzileiros, onde esteve cinco anos, após o que retomou a sua atividade profissional na construção civil como empresário.

36. Contudo, esta atividade atravessou momentos difíceis e nos últimos anos teve que a interromper por falta de rentabilidade. Contudo, ainda tem alguns encargos bancários que tarda em resolver mas que vai conseguindo liquidar.

37. Casou há 17 anos e tem duas filhas, a mais velha é estudante e a mais nova, de tenra idade frequenta a creche. Considera que o ambiente familiar é organizado, estável e afetivamente gratificante.

38. Residem numa habitação, propriedade do casal com boas condições de habitabilidade e conforto.

39. Atualmente o casal explora um restaurante em (...) ainda que mantenha residência em S(...) , aldeia próxima desta Vila, permitindo a economia comum satisfazer as necessidades da família.

40. A comunidade conhece bem o arguido percebendo-se alguma reserva sobre o seu comportamento no passado, numa altura em que havia rumores sobre o seu envolvimento em problemas com a justiça, as forças de segurança e se registavam dificuldades no relacionamento com alguns elementos da comunidade. Contudo, nos últimos dois ou três anos os problemas diminuíram de intensidade e frequência o que é valorizado positivamente por todos.

…».

                                                                                  *

6.

O tribunal recorrido motivou a sua decisão nos seguintes termos:

«…O tribunal formou convicção nas declarações do arguido a respeito das respetivas condições de vida (social, profissional e familiar), passada e presente, conjugadas com a respetiva informação social e certificado de registo criminal.

…».


*

DECISÃO

Atento o disposto no art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., a questão a decidir respeita ao montante diário fixado à pena de multa.


*

Recordando, sobre a taxa fixada à multa aplicada alegou o arguido que ela deve atender à situação económica e financeira do condenado, não podendo ser de tal maneira desproporcionada que coloque em causa a sua sobrevivência e a possibilidade de a cumprir, mesmo que em prestações.

Em concreto alega que o tribunal não apurou a sua situação económico-financeira do arguido, resultando que o valor da multa é desproporcional às suas capacidades para a cumprir mantendo a razoável estabilidade da vida familiar.

            O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, do art. 410º, nº 2, al. a), do C.P.P. significa que os factos provados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem, vício derivado do facto de o tribunal não ter apurado factos relevantes para a decisão, nomeadamente para a escolha ou determinação da pena.

            Dentre os factos que o tribunal tem que apurar, por via dos princípios da investigação e verdade material, e cuja omissão gera o referido vício, constam aqueles relativos à situação económica do condenado, essenciais à fixação da taxa da pena de multa, quando seja esta a opção do tribunal.

Relativamente às regras de fixação da taxa diária da pena de multa, dada a técnica usada pelo legislador num primeiro momento há que quantificar a pena de multa a aplicar ao caso, determinada segundo os critérios estabelecidos no art. 71º, e depois fixar a respectiva taxa diária.

            E quanto a isto a lei apenas diz, no nº 2 do art. 47º do Código Penal, que cada dia de multa corresponde uma quantia entre 5 e 500 €, «que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais».

            Sobre o silêncio da lei quanto à fixação de critérios sobre a fixação da taxa diária da multa diz Figueiredo Dias que ele «só pode significar … o desejo do legislador de oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição de factores relevantes. É seguro que deverá atender-se … à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte … Como é seguro, por outro lado, que àqueles rendimentos hão-de ser deduzidos os gastos com impostos, prémios de seguro … e encargos análogos. Como igualmente parece legítimo tomar em conta … rendimentos e encargos futuros, mas já previsíveis no momento da condenação …» [1].

           

            Ou seja, o tribunal tem que atender à situação presente para adequar a pena de multa de modo a não fixar uma pena nem que seja de cumprimento impossível, nem que se traduza numa quase absolvição: se o montante for desajustado porque demasiado elevado o que resulta é que o condenado não poderá, simplesmente, cumprir, mesmo que nisso faça questão; se for demasiado baixo o cumprimento da pena não gera nem sacrifício, nem desconforto, e acaba por não se fazer sentir.

            A pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada, ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é implica sacrifício, relevante à função preventiva e retributiva. E por isso que mesmo pessoas carenciadas são passíveis de condenação em pena de multa. Defender tese diferente redundaria ou na defesa da aplicação de pena detentiva, o que evidentemente não pode ser, ou numa situação de dispensa de pena, que também não é defensável [2].     

            No que à situação económica e financeira do arguido respeita o tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos, que o arguido não impugna:

- o arguido trabalhou na construção civil e depois de ter estado nos fuzileiros durante cinco anos retomou essa actividade como empresário;

- devido à falta de rentabilidade nos últimos anos interrompeu essa actividade;

- daí resultaram alguns encargos bancários, que vai conseguindo liquidar;

- tem duas filhas, a mais velha estudante e a mais nova frequenta a creche;

- o agregado familiar, constituído pelo arguido, esposa e filhas, reside em habitação própria, com boas condições de habitabilidade e conforto;

- actualmente o casal explora um restaurante em (...) , donde retira rendimentos que permitem satisfazer as necessidades da família.

O tribunal assentou a sua convicção quanto a estes factos nas declarações do arguido e nas informações sociais constantes do processo.

            Ora, quanto ao vício invocado é manifesto que não ocorre porque o tribunal indagou sobre a situação económica do arguido e das provas produzidas chegou a resultados suficientes para decidir.

            E se só aqueles factos concretos foram apurados é porque nenhuns outros foram levados ao conhecimento do tribunal, mormente por parte do arguido, cujo depoimento foi, neste particular, essencial.

            É claro que o tribunal tem o dever de investigar os factos essenciais à decisão, mas é um dever com limites.

            No caso, o tribunal indagou da situação económica do arguido e não conseguiu apurar que rendimentos concretos é que ele retirava da exploração do restaurante.

O arguido, melhor do que ninguém, sabe o montante desses rendimentos. Portanto, perante a dificuldade sentida pelo tribunal, de ir mais longe, sempre o arguido poderia ter convocado mais provas no sentido de demonstrar esses rendimentos, caso assim o tivesse entendido.

            Não obstante não ter conseguido apurar um montante concreto o tribunal apurou, conforme referiu o Ministério Público, que os rendimentos do arguido são suficientes para satisfazer os encargos familiares e os encargos bancários a que tem que fazer face.

            Considerando o que deixamos exposto, que o mínimo diário da taxa da multa se cifra em 5 € e que o arguido não trouxe qualquer facto concreto demonstrativo de que os 10 € fixados são desproporcionais à sua situação económica temos por adequada a taxa fixada.


*

DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos, na improcedência do recurso confirma-se a decisão recorrida.

Fixa-se em 3 UCs a taxa de justiça.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.

Coimbra, 8 de Março de 2017

(Olga Maurício – relatora)

(Luís Teixeira – adjunto)


[1] Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, II, pág. 129.
[2] Figueiredo Dias, obra citada, pág. 128 e segs.