Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
145/14.0TAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: SUBTRACÇÃO DE MENOR
QUEIXA
FORMALISMO
Data do Acordão: 06/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (J L DA MARINHA GRANDE – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 48.º E 49.º DO CPP; ART. 249.º, N.º 1, AL. A) DO CP
Sumário: I - O exercício da acção penal pelo Ministério Público não é incondicionado, antes sofre “limitações” decorrentes da natureza dos crimes que integram, em cada caso, o seu objecto.

II - Pela queixa, o ofendido dá conhecimento do facto à autoridade competente para que seja promovido o processo, sendo, portanto, um pressuposto positivo da punição ou uma condição de procedimento, nos casos em que é obrigatória.

III - A queixa não está sujeita a qualquer forma ou “dizeres” especiais, e muito menos tem o queixoso que nela revelar conhecimentos jurídico-penais designadamente, através de uma correcta qualificação do facto por si denunciado.

IV- A lei apenas exige, para este efeito, que através de um acto formal consistente em dar conhecimento do facto ao Ministério Público, se revele a vontade inequívoca do queixoso em que o facto, o «pedaço de vida» denunciado seja objecto de procedimento.

V- Tendo a recorrente, que tem a qualidade de ofendida, face ao crime imputado na acusação, dado notícia ou seja, transmitido um facto criminalmente relevante, à Polícia de Segurança Pública, que é um Órgão de Polícia Criminal, de que, brevitatis causa, tinha ocorrido a subtracção do seu filho menor pelo avô materno, tanto basta, em nosso entender, para que se deva considerar que, através de tal conduta, manifestou o desejo de que fosse movido procedimento criminal contra o seu pai.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 I. RELATÓRIO

            No processo nº 145/14.0TAMGR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Marinha Grande – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de subtracção de menor, p. e p. pelo art. 249º, nº 1, a) do C. Penal.

            A ofendida B.... requereu a sua constituição como assistente, aderiu á acusação pública e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 20.348,67 a título de indemnização pelos danos patrimoniais [€ 348,67] e não patrimoniais [€ 20.000] sofridos, acrescida de juros de mora, desde a “citação” e até integral e efectivo pagamento.


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            Remetidos os autos a juízo para distribuição, em 29 de Fevereiro de 2016 a Mma. Juíza proferiu o seguinte despacho:

            “ (…).

                I. Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra A... , imputando-lhe a prática de um crime de subtracção de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea a), do CP.

O procedimento criminal relativamente a tal crime depende de queixa, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.

Compulsados os autos, verifico que não foi apresentada queixa, nomeadamente pela progenitora do menor, ao abrigo do disposto no artigo 116.º n.º 4, do CP, sendo que se mostra já ultrapassado o prazo de seis meses previsto no artigo 115,º, n.º 1, do CP, pelo que o direito de queixa encontra-se extinto.

Nesta conformidade, para que o Ministério Público tenha legitimidade para promover o procedimento criminal pelo crime em apreço é necessário que o ofendido se queixe (artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o que no presente caso não sucedeu.

Assim, importa absolver o arguido da instância, por ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução da acção penal.

Face ao exposto, absolvo o arguido da instância, por ilegitimidade do Ministério Público para a prossecução da acção penal, e determino o oportuno arquivamento dos autos.

Notifique.


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II. A fls. 186 veio B... requerer a respectiva constituição como assistente.

Nos termos do artigo 68.º, n.º 1, alíneas b) e d), podem constituir-se assistentes as pessoas de cuja queixa depender o procedimento ou, no caso de o ofendido ser menor de dezasseis anos, o representante legal.

Contudo, nos presentes autos não foi tempestivamente apresentada qualquer queixa, encontrando-se já extinto tal direito, conforme já se referiu.

Como tal, não admito B... a intervir nos presentes autos como assistente, por inadmissibilidade legal.

Notifique.


*

III. Face às decisões acabadas de proferir, fica prejudicado o conhecimento do pedido de indemnização civil deduzido por B... a fls. 186.

Notifique.

(…).


*

            Inconformada com o decidido, recorreu a ofendida B... , formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            1.º A recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal «a quo» que, salvo o devido respeito, deveria ter recebido a acusação do Ministério Público e também a constituição como assistente da ora recorrente, assim a sua respectiva adesão à acusação do Ministério Público e ainda o seu pedido de indemnização civil.

2.º Atenta a participação, a junção aos autos de fotografias, a indicação de testemunhas e os vários aditamentos à participação, cremos estar perfeita e inequivocamente demonstrada a vontade da recorrente em que fosse exercida a acção penal.

3.º A participação por crimes semi-públicos (como é o caso dos presentes autos) não está sujeita a formalidades especiais, bastando que exista uma manifestação inequívoca de vontade de que seja exercida a acção penal. O que é necessário e essencial é que dos termos da queixa ou dos que se lhe seguirem se conclua, de modo inequívoco, a manifestação de vontade de perseguir criminalmente o autor de um facto ilícito, o que in casu, sucedeu.

4.º Não exigindo a validade da queixa uma fórmula especial ou a expressa declaração com utilização do termo «queixa», bastando-se com qualquer manifestação inequívoca do titular do direito de queixa, no sentido de pretender desencadear o procedimento criminal, temos, conforme já referido, a participação junto a fls. 2 e ainda as fotos juntas a fls. 3 e 4, os vários aditamentos à participação, onde facilmente se conclui que a recorrente, embora não tenha ipsis verbis manifestado o seu desejo de procedimento criminal contra o arguido, pretendia, sem margem para quaisquer dúvidas, que avançasse o respectivo procedimento criminal.

5.º Assim sendo, concluímos que foi apresentada queixa contra o arguido, pela ofendida/recorrente, pelo que, o Ministério Publico tem legitimidade para exercer a acção penal.

6.º Consequentemente, o tribunal «a quo» deveria ter recebido a acusação do Ministério Público, deveria ter admitido a constituição como assistente da ora recorrente, assim a sua respectiva adesão à acusação do Ministério Público e ainda o seu pedido de indemnização civil.

7.º O despacho ora recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 68,º, 77,º, 246,º e 284,º do Cód. Proc, Penal e ainda o disposto nos artigos 48.º, 49.º, 113.º, 115,º, 116.º do Cód. Penal.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho ora recorrido, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1º Nos presentes autos, foi decidido absolver o arguido da instância, determinar o oportuno arquivamento dos autos, não admitir a intervenção da ofendida como assistente e não conhecer do pedido de indemnização civil formulado

2º O direito de queixa da recorrente extinguiu-se no dia 26/03/2015.

3º A ofendida, em momento algum do prazo legal, referiu expressamente pretender procedimento criminal contra o arguido.

4º O facto de ter sido elaborada uma participação indicia que a ofendida não pretendia procedimento criminal.

5º As fotografias do menor juntas com a participação seriam essenciais para identificar a pessoa desaparecida a procurar.

6º O conteúdo dos aditamentos juntos aos autos contribui para localizar o menor desaparecido e para orientar as autoridades competentes na abordagem do arguido para reaver o menor.

7º O facto da ofendida ter indicado testemunhas não permite inferir que a mesma pretende procedimento criminal, uma vez que impende sobre todos os cidadãos o dever de colaborar com a justiça.

8º A ofendida referiu expressamente pretender reaver o filho e não fez qualquer referência a pretender procedimento criminal.

9º Nenhuma das intervenções da ofendida nos presentes autos permite inferir que a mesma pretende procedimento criminal contra o arguido, pelo que não existiu a necessária queixa.

10º Pelo exposto, entendemos que o despacho recorrido não violou nenhuma norma legal (art.ºs 48º, 49º, 68º, 77º, 246º e 284ç, todos CPP, e art.ºs 48º, 49º, 113º, 115º e 116º, todos CP), pelo que deve o recurso apresentado pela ofendida B... ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, deve o despacho recorrido ser confirmado e mantido nos seus precisos termos, nomeadamente quanto a absolver o arguido da instância, a não admitir a intervenção da ofendida como assistente e a não conhecer o pedido de indemnização civil formulado.

V. Ex.ªs, porém, Decidirão, como sempre, Como for de Justiça!


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            O arguido veio aos autos informar que prescindia de prazo para alegar.

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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, subscrevendo a resposta do Ministério Público, realçando que a ofendida, ouvida em declarações, afirmou que pretendia reaver o filho, não podendo inferir-se que pretendia procedimento criminal contra o arguido, e concluiu pela improcedência do recurso.

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Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se existe ou não, queixa nos autos, e suas consequências, atenta a natureza semi-pública do crime de subtracção de menor, p. e p. pelo art. 249º, nº 1, a) do C. Penal, imputado na acusação pública ao arguido.


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            Com relevo para a questão a decidir, colhem-se nos autos os seguintes elementos:

            i) Pelas 15h44 do dia 20 de Fevereiro de 2014, na Esquadra da PSP da Marinha Grande, B... Ferreira comunicou os factos que seguem, e que constam da «Participação» de fls. 2 e verso;

            - No passado dia 3 de Setembro de 2013 a participante autorizou o seu pai, ora arguido, a levar o seu filho de três anos e meio, C... , durante algum tempo, ficando acordado que lho entregaria de volta, logo que conseguisse estabilizar a sua [da participante] vida profissional;

                - Durante o mês de Janeiro de 2014 a participante contactou várias vezes o seu pai, avô do menor, informando-o de que o queria ter consigo e já reunia as condições necessárias, não revelando aquele vontade em entregar o neto;

                - No dia 10 de Fevereiro de 2014 contactou novamente o avô do menor, tendo-a este informado que na semana seguinte viria a Portugal entregá-lo, o que não fez, e não conseguiu voltar a contactá-lo;

                - A participante desconhece o paradeiro do seu pai e do seu filho, mas sabe que o primeiro foi visto Caxarias, Ourém. 

            ii) A «Participação» de fls. 2 e verso está assinada pela participante e pelo agente autuante, dela consta que a ocorrência foi tipificada como «Desaparecimento de menor», bem como a identificação do ora arguido e a sua residência em França.

            No acto, a participante juntou duas fotografias, supostamente, do menor.

            iii) No dia 21 de Fevereiro de 2014 a participante dirigiu-se à Esquadra da PSP da Marinha Grande, onde informou, tendo sido feito o respectivo Aditamento [fls. 5], que pelas 9h25 havia recebido um telefonema do seu pai, dizendo-lhe que não lhe ia entregar o filho, e para o não procurar mais, o que fez em termos tais que a faziam temer que possa reagir de forma violenta sobre quem pretenda reaver o menor.

            iv) A participante foi ouvida, na qualidade de ofendida, no dia 12 de Março de 2014, nos Serviços do Ministério Público da Marinha Grande – Unidade de Apoio, onde, depois de advertida nos termos do art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, disse, em síntese:

            - Que o seu pai conheceu o neto quando ele fez um ano, convenceu a ofendida e o marido a irem trabalhar para França, o que fizeram, e aí, aquele e a mulher, apegaram-se ao menor;

                - Que trabalhou em França durante um ano e meio mas, tendo-se separado do marido, regressou a Portugal com o filho;

                - No Verão de 2013 o pai visitou-a de surpresa e durante esse período permitiu que ele levasse o neto para Caxarias, o pai convenceu-a a deixá-lo levar o neto para França até ao fim do ano, para que ela poder trabalhar aos fins-de-semana, e dizendo-lhe que o traria logo que ela quisesse; o pai pagou-lhe a viagem a França para ir ver o filho em Outubro, o que fez, e regressou a Portugal com o acordo de que ele traria o neto no fim de Novembro; em Novembro o menor não veio, dizendo o pai que ele tinha que estar com ele, em finais de Dezembro o pai começou a reduzir as chamadas telefónicas e depois, deixou de atender; tencionando ir buscar o menor a França a 29 de Janeiro, uns dias antes o pai e disse-lhe o não fazer que trazia o neto no início de Fevereiro; a 10 de Fevereiro falou com o pai tendo este garantido que trazia o neto a 14 do mesmo mês; no dia 14 de Fevereiro o pai falou consigo dizendo que por ser já tarde, trazia o menor no dia seguinte, Sábado; no Sábado telefonou, dizendo que o trazia no Domingo, no Domingo telefonou, dizendo que o trazia na Segunda, na Segunda telefonou às 17h a dizer que ia chegar atrasado, e nada mais disse nem atendeu o telefone; no dia 21 Fevereiro telefonou a dizer que o menor estava muito bem; no dia 23 de Fevereiro, pelas 21h30 telefonou a dizer que estava em França, que não a quis proibir de ver o neto mas ele é que ia ficar responsável por ele e que ela tinha que aceitar, tendo-lhe a ofendida respondido que ia fazer tudo para recuperar o filho e que já tinha apresentado queixa na polícia.

            v) No dia 13 de Agosto de 2014 a participante dirigiu-se à Esquadra da PSP da Marinha Grande, onde foi inquirida como testemunha, tendo prestado declarações sobre os contactos telefónicos que consegue manter com o filho, sobre o carácter possessivo do seu pai e a vontade deste sem e ‘apoderar’ do neto.

            vi) A participante foi ouvida, na qualidade de denunciante, entre 28 de Setembro e 1 de Outubro de 2014 [a data de 24 de Setembro de 2014, que consta de fls. 36 é lapso manifesto, atento o teor do depoimento] nos Serviços do Ministério Público da Marinha Grande – Unidade de Apoio, onde, depois de advertida nos termos do art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, disse, em síntese:

                - Que na Sexta-feira, dia 26 de Setembro foi para França com uma amiga; no dia seguinte aguardou que o seu filho chegasse à escola, o que aconteceu, levado pela sua madrasta, tendo a depoente entrado com eles; a depoente falou com a directora da escola a quem explicou a situação;

                - Que minutos depois chegou o seu pai e a entrada foi-lhe proibida pela directora que chamou a polícia; a polícia determinou que a depoente e o pai fossem para a esquadra e depois levaram-na à escola, onde o seu filho lhe foi entregue;

- Que regressou, com o filho, ontem, e já soube que o pai avisou que vinha a Portugal para obter a guarda do neto, que vai começar a escola na Praia da Vieira;

- Que o pai do seu filho continua preso em França e vai tratar de regular o poder paternal.

vii) A participante foi ouvida, na qualidade de denunciante, no dia 5 de Junho de 2015, nos Serviços do Ministério Público da Marinha Grande – Unidade de Apoio, onde, depois de advertida nos termos do art. 134º, nº 2 do C. Processo Penal, disse, em síntese:

- Que mantinha as anteriores declarações; que depois do acordo alcançado na regulação das responsabilidades parentais o seu pai tem visitado o neto nos termos acordados;

- Que continua a desejar procedimento criminal.


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            Da inexistência [ou não] de queixa e suas consequências

            1. O art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa atribui ao Ministério Público, além de outras funções, a de exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade.

            Para tanto, como se dispõe no nº 1 do art. 53º do C. Processo Penal, o Ministério Público deve colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, devendo pautar a sua conduta processual por critérios de estrita objectividade justiça, competindo-lhe, em especial, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, receber denúncias, queixas e participações e apreciar o seu seguimento, dirigir o inquérito, deduzir e sustentar a acusação, interpor recursos e promover a execução das penas e medidas de segurança.   

Apesar de o legislador ter optado pelo princípio da oficialidade – que consiste na investigação oficiosa dos crimes de que há notícia – a verdade é que o exercício da acção penal pelo Ministério Público não é incondicionado, antes sofre ‘limitações’ decorrentes da natureza dos crimes que integram, em cada caso, o seu objecto.

Assim, nos crimes públicos, a acção penal é exercida pelo Ministério Público sem quaisquer restrições, tendo plena legitimidade para o efeito (cfr. art. 48º do C. Processo Penal). Nos crimes semi-públicos portanto, nos crimes em que o procedimento criminal depende de queixa, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal só fica assegurada se o ofendido lhe der conhecimento do facto, para que promova o processo (cfr. art. 49º, nº 1 do C. Processo Penal). E nos crimes particulares portanto, nos crimes em que o procedimento criminal depende de acusação particular do ofendido, a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal só fica assegurada se o ofendido apresentar queixa, se constituir assistente e deduzir acusação particular (cfr. art. 50º, nº 1 do C. Processo Penal).

2. In casu, o Ministério Público deduziu a acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática de um crime de subtracção de menor, p. e p. pelo art. 249º, nº 1, a) do C. Penal.

Dispõe o nº 3 deste artigo que o procedimento criminal depende de queixa, o que significa que estamos perante um crime semi-público. Deste modo, o Ministério Público só terá legitimidade para promover o processo, se o ofendido tiver exercido o direito de queixa, pela respectiva apresentação.  

Nos termos do disposto no art. 113º, nº 1 do C. Penal, nos crimes semi-públicos tem legitimidade para apresentar queixa o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação

Ainda que não exista unanimidade quanto ao bem jurídico protegido pelo crime de subtracção de menor – para uns, trata-se do poder paternal [com maior actualidade, das responsabilidades parentais] ou análogo (cfr. Damião da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, pág. 614 e André Lamas Leite, O Crime de Subtracção de Menor – Uma Leitura do Reformado Art. 249º do Código Penal, Julgar, nº 7, Janeiro/Abril de 2009, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pág. 120), para outros, trata-se do interesse da criança (cfr. André Teixeira dos Santos, Do crime de subtracção de menor nas “novas” realidades familiares, Julgar, nº 12, Especial, Setembro/Dezembro de 2010, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, pág. 233) – dúvidas não subsistem quanto a ser titular do direito de queixa a pessoa que sobre o menor tem o poder paternal ou responsabilidades parentais (cfr. Damião da Cunha, ob. cit., pág. 620).

Deste modo, sendo a recorrente B... mãe do menor C...., nascido a 10 de Agosto de 2010 (cfr. certidão do assento de nascimento de fls. 10 a 11 verso) que é, nos termos da acusação pública deduzida, o menor subtraído pelo arguido, seu avô materno (cfr. cópia da certidão do assento de nascimento de fls. 126 a 128), porque tinha, na data dos factos, o poder paternal ou responsabilidades parentais sobre o menor (cfr. arts. 1901º e ss. do C. Civil), tem a qualidade de ofendida para efeitos do exercício do direito de queixa.

3. A queixa, ensina Figueiredo Dias, é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 665). A, aparente, simplicidade desta definição, oculta algumas dificuldades práticas, às quais não é alheio o despacho recorrido. Explicando.

 

Pela queixa, o ofendido dá conhecimento do facto à autoridade competente para que seja promovido o processo, sendo, portanto, um pressuposto positivo da punição ou uma condição de procedimento, nos casos em que é obrigatória.

A queixa constitui uma declaração de vontade, ela não é a simples transmissão do facto criminalmente relevante – como acontece com a denúncia – pois, para além da declaração de ciência em que se traduz aquela transmissão, dela tem também que resultar que a declaração é feita com o propósito de que o facto seja criminalmente perseguido.

A queixa não está sujeita a qualquer forma ou ‘dizeres’ especiais, e muito menos tem o queixoso que nela revelar conhecimentos jurídico-penais designadamente, através de uma correcta qualificação do facto por si denunciado. A lei apenas exige, para este efeito, que através de um acto formal consistente em dar conhecimento do facto ao Ministério Público, se revele a vontade inequívoca do queixoso em que o facto, o «pedaço de vida» denunciado seja objecto de procedimento.

Na contramotivação, em defesa do decidido, alega a Digna Magistrada do Ministério Público que a recorrente não referiu expressamente, dentro do prazo legal, pretender procedimento criminal contra o arguido, que o facto de o OPC ter elaborado uma participação demonstra que este não considerou que a recorrente pretendesse procedimento criminal, pois se assim fosse teria elaborado uma denúncia, e que, resultando dos termos da participação que o OPC tomou os factos relatados pela recorrente como «desaparecimento de menor» e não como «subtracção de menor», fica demonstrado que a recorrente, ao dirigir-se à esquadra, apenas pretendia a localizar e reaver o filho e não, perseguir criminalmente o arguido. Com ressalva do respeito devido, não cremos que qualquer dos argumentos possa proceder.

O acto formal em que se traduz a queixa não tem que ser expresso quanto à de promoção do processo, dela não tem que constar a fórmula habitual «Declara que deseja procedimento criminal» ou qualquer outra semelhante. Por isso, sendo verdade que esta fórmula não consta da «participação» de fls. 2 e verso [mas apenas do auto de 5 de Junho de 2015, com o prazo do art. 115º, nº 1 do C. Penal já esgotado], ela sempre seria dispensável. No que respeita à forma «participação» versus «denúncia», para além de se tratar de argumento meramente formal, cumpre dizer que o mesmo tem por base, não a vontade, hipotética, da recorrente, mas apenas a suposta – pois que não confirmada – compreensão pelo agente autuante da «participação» de fls. 2 e verso, do que aquela lhe estava a relatar e do seu real propósito [mas se assim fosse, não deixaria o agente autuante de perscrutar a vontade da recorrente e de fazer constar do auto se esta desejava ou não procedimento criminal?]. Finalmente, a qualificação «desaparecimento de menor» versus «subtracção de menor» enferma do mesmo ‘mal’, sendo da exclusiva responsabilidade do agente autuante, na medida em que o que de factual consta da dita participação não é um desaparecimento de menor, mas a recusa de o avô de um menor em o entregar à mãe. E tanto assim é que o Magistrado do Ministério Público a quem foi apresentado, no dia seguinte à participação, o expediente a ela respeitante, determinou a sua autuação e registo como inquérito – subtracção de menor (cfr. fls. 1).

Posto isto.

4. Nos termos constantes da participação de fls. 2 e verso, a recorrente denuncia à Polícia de Segurança Pública que, sendo mãe de um menor, então com três anos de idade, permitiu que o seu [da recorrente] pai, residente em França, em 3 de Setembro de 2013, levasse consigo o neto, durante algum tempo, devido à sua instabilidade profissional, ficando acordado que lhe entregaria o filho, quando estabilizasse a sua vida, que em Janeiro de 2014 contactou várias vezes o seu pai, dizendo-lhe que queria o filho de volta, revelando este vontade de não o fazer, que em 10 de Fevereiro de 2014 voltou a contactar com o pai que lhe disse que traria o neto nessa semana para lho entregar, o que não fez, e desde então não atende o telefone, desconhecendo onde o mesmo se encontra bem como o menor.

Assim, tendo a recorrente, que tem a qualidade de ofendida, face ao crime imputado na acusação, dado notícia ou seja, transmitido um facto criminalmente relevante, à Polícia de Segurança Pública, que é um Órgão de Polícia Criminal, de que, brevitatis causa, tinha ocorrido a subtracção do seu filho menor pelo avô materno, tanto basta, em nosso entender, para que se deva considerar que, através de tal conduta, manifestou o desejo de que fosse movido procedimento criminal contra o seu pai. Na verdade, sem prejuízo de outros – como a óbvia recuperação do menor – seguramente que também este foi um propósito da recorrente.

Na verdade, o que os autos retratam é uma situação em que a cidadã que faz a denúncia do facto típico ao OPC é a própria titular do direito de queixa, o que permite considerar que, pela referida via, foi o direito automaticamente exercido (cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 929).

Em conclusão, entende-se que a «participação» de fls. 2 e verso, ao consubstanciar o acto formal de dar conhecimento do facto ao Ministério Público, revelador da vontade da ofendida em que seja promovido o processo, formaliza o exercício do direito de queixa pelo que, atenta a natureza semi-pública do crime de subtracção de menor imputado ao arguido, tem o Ministério Público legitimidade, nos termos do art. 49º, nº 1 do C. Processo Penal, para o procedimento por tal crime.

Não pode, pois, subsistir o despacho recorrido, quer quanto à absolvição da instância do arguido, por ilegitimidade do Ministério Público, quer quanto às duas outras questões nele decididas, que têm como pressuposto, a referida ilegitimidade.


                       

            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso.

Em consequência, revogam o despacho recorrido e determinam a sua substituição por outro que, considere que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo, seguindo-se os demais termos designadamente, a apreciação da requerida constituição de assistente pela recorrente, e eventuais questões a apreciar no âmbito do disposto no art. 311º do C. Processo Penal.

Recurso sem tributação.


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Coimbra, 7 de Junho de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)