Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
115/09.0GASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 32º, DO C. PENAL
Sumário: 1. A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro - o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.

2. A exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º, do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a actualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objectivos se referem à situação em que o agente actua e os dois últimos à acção de defesa.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
           

1. No processo comum singular n.º 115/09.0GASEI do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Seia, por sentença datada de 27 de Setembro de 2010,  
a)- foi o arguido AM... condenado,
- como autor material de um crime de ameaça p. e p. pelos artigos 153º/1 e 155º/1 a) do CP, na pena de 150 dias de multa
- como autor material de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º/1 do CP, na pena de 70 dias de multa,
- em cúmulo jurídico das duas penas, na pena única de 185 dias de multa, à razão diária de € 22, o que perfaz a quantia de € 4070.
  a)- foi o arguido AB... condenado,
- como autor material de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º/1 do CP, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de € 20, o que perfaz a quantia de € 2000.

            2. Inconformados, os arguidos recorreram, em conjunto, da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. No confronto entre assistente e arguidos, em que ambos reivindicam em acção judicial a propriedade de uma mata, terá o Tribunal que ter especial cuidado na apreciação de prova se a assistente, munida de moto-serra e terceiros ordenou corte de mata, em provocação aos arguidos, que não aceitam tal corte.
2. O que a assistente fez de madrugada, dando ordem ao seu companheiro para vigiar a entrada dos arguidos na propriedade.
3. Por isso, valorizar o depoimento dela e deste companheiro totalmente contrários à restante quase totalidade das testemunhas, incluindo dos GNR’s presentes no local, não se afigura ser um julgamento isento e imparcial, no sentido de que deve o Tribunal eximir-se de impressionismos e ponderar modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
4. Ademais, aplicar uma pena de multa como aquela que foi aplicada ao arguido AM..., mesmo só em face das suas condições económicas, sem tomar em consideração que houve intuitos provocatórios da assistente, (que aliás em acção informou que os arguidos se prontificavam a cortar os pinheiros, mas em que foi ela que o fez !) constitui erro de direito quanto à medida da pena.
5. Mesmo que se não considerasse de per si a atenuante citada, sempre a conduta dos arguidos era passível de ser enquadrada em excesso de legítima defesa (de direito e propriedade), devendo essa mesma atenuante resultar então por aplicação do artigo 33 do CP.
6. Foram pois violadas as normas dos artigos 14, 26, bem como os tipos legais incriminadores dos arguidos (artigos 153°, n° 1 e 155°, nº 1, al. a) e 181, do Código Penal), assim como o artigo 33 e 71.
Termos em que
Admitindo-se este recurso, deve alterar-se os factos constantes de 1 a 11 da douta sentença, e a final absolverem-se os arguidos, incluindo do pedido cível».

            3. A assistente MC... RESPONDEU aos recursos, «entendendo que nenhuma censura pode ser acusada à douta sentença recorrida, que deverá manter-se».

            4. O Exmº Magistrado do Ministério Público de 1ª instância também RESPONDEU, concluindo que:
            «Abstraindo, por uma questão de cautela, das conclusões apresentadas pelos Recorrentes
-já que as mesmas, como se referiu, não enunciam correctamente as razões da discordância dos Recorrentes, e tomando por base a motivação apresentada -, verifica-se que a insatisfação daqueles radica, antes e tão-só, na forma como o Tribunal a
quo apreciou e valorou as provas produzidas em audiência e deu como provados os factos, para tal servem-se aqueles apenas de determinados excertos da prova produzida, que truncam de maneira oportuna.
                Olvidam os Recorrentes os relatos efectuados pela assistente, pelo seu companheiro, bem assim como os depoimentos prestados pelas testemunhas NS... — que no dia dos factos estaria a prestar serviço para a assistente mas que os Recorrentes abordaram em momento anterior ao da realização do julgamento e a quem questionaram sobre a sua indicação como testemunha nestes autos, o que revela uma posição naturalmente comprometida — e AX... , que confirmaram a existência de palavras de ira por parte dos Recorrentes para com a assistente, garantido que parte das expressões imputadas oram por aqueles dirigidas a esta, corroborando, assim, a versão trazido por esta em detrimento da apresentada pelos arguidos.
Saliente-se, ainda, que ao local foram chamadas, pelo menos, duas patrulhas da GNR, o que indicia claramente que o ambiente não estava calmo, sendo que os elementos desta força policial nem sempre ali estiveram a tempo inteiro, pelo que, obviamente, não assistiram a todos os acontecimentos, além de que também é natural que não se recordem de todos os pormenores em causa, até porque, entretanto, o diferendo passou a ser acompanhado por Senhores Advogados.
Acresce que, e conforme foi salientado pela douta sentença, o depoimento dos militares d GNR inquiridos (que não foram os únicos militares a deslocarem-se ao local) não foi produzido com tamanha segurança sobre a totalidade dos factos aqui em questão, não só pelo decurso do tempo, similitude de outras questões ocorridas, mas também pelo facto de aqueles terem tratado/assumido aquele conflito como sendo algo do foro cível e em que os litigantes até se predispuseram a resolver o diferendo com a presença dos respectivos Advogados, o que não inviabiliza a ocorrência dos factos e a conflitualidade existente.
Além de que, tomando por base as partes dos depoimentos escolhidos pelos Recorrentes vê-se como neles os militares falam em que o ambiente depois foi acalmando (cf. fls. 4) - o que significa que antes estava inflamado, pese embora os Recorrentes depois atribuam isso a quem aqui não foi sujeito processual (cfr. fls. 4 e 5 da motivação do recurso) e que uma das partes fazia isso num tom mais empolgado, mais alto do que era normal (cfr. fls. 5).
Além disso os Recorrentes repetem a fls. 6 uma transcrição que já haviam inserido a fls.
5.

Divagam, ainda, os Recorrentes com aquilo a que chamaram de impressionismo da assistente, tentando com isso, certamente, impressionar outrem, e chegam ao ponto de a fls. 10 dizerem que «diz a regra da experiência que se a mulher da testemunha tivesse ouvido as expressões teria explodido”, o que para nós é um enigma, pois não se percebe a que é que os Recorrentes se reportam, nem em que regras da experiência se baseiam, salvo se pretenderem
referir que no contexto de discussão eles, por experiência própria, sabem que explodem, o que terá sucedido no caso dos autos, o que vai de encontro à versão da assistente e à sentença colocada em crise.

Sintomático da pouca convicção dos Recorrentes é o facto de no final da sua motivação, aqueles começarem por apenas pôr em causa a pena pecuniária aplicada ao Recorrente AM..., o que indicia alguma conformação com a pena aplicada ao Recorrente AB…, sendo certo que relativamente a este apenas mais à frente tecem considerando sobre aquilo a que chamaram uma coima elevada, mas apenas no que concerne ao quantitativo diário e nunca quanto aos dias de (pena de) multa fixados.
Revelador e esclarecedor!!!!!
Por último os Recorrentes:
- esgrimem atenuantes que não se verificam, não fazem sentido e que sustentam em documento que não juntaram e relativamente ao qual já nos pronunciamos no inicio e
- terminam com a invocação de tributação de excesso de legítima defesa, que, mais uma vez, não explicam, provavelmente por falta de fundamento, como certamente será o caso, pois que não se vê motivo — dai que se compreenda a falta de invocação para que o Tribunal tivesse sequer de ponderar tal possibilidade.
Assim, ponderada toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, cremos que a valoração efectuada pelo Tribunal «ad quo» foi a correcta.
Na verdade, a valoração do depoimento das testemunhas e dos documentos revela-se acertada, uma vez que os mesmos não podem deixar de ser considerados em conjunto e relacionados com as regras da experiência, atestando assim matéria factual dada como provada e não provada na sentença proferida pelo Tribunal «ad quo», tendo a Mmª Juiz exposto de forma clara e coerente o motivo porque formou a sua convicção (que não nos merece qualquer reparo), e socorrendo-se ainda das regras da experiência e da conjugação de toda a prova, vista na sua globalidade e não de uma forma individualizada e/ou truncada como pretendem as Recorrentes.
Cremos, assim, que os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida espelham o que resultou da prova produzida em sede de audiência de julgamento e não como pretendem as Recorrentes em sede do presente recurso, tendo a Mmª Juiz “ad quo”, ponderado e valorado correctamente toda a prova produzida, fazendo-o com o respeito pelos critérios legais consagrados no nosso ordenamento jurídico, não violando de forma alguma as disposições legais invocadas no recurso, nem quaisquer outras.
Nesta conformidade, não deverá merecer qualquer reparo a matéria factual dada como provada e não provada na sentença recorrida.
Deste modo, analisada a sentença proferida pelo Tribunal “ad quo”, verifica-se que a mesma não viola qualquer preceito legal e que na mesma são expostas de modo claro, as razões pelo qual foi alcançada a convicção da Mmª Julgadora, a qual se nos afigura coerente e consentânea com a matéria de facto que foi dada como provada, aí sendo relatada a forma como oram dados como provados os factos que determinaram a condenação, não se vislumbrando que pudesse ter existido outra posição por parte do tribunal, que assim valorou e ponderou adequadamente a prova produzida, fazendo-o com o respeito pelos critérios legais consagrados no nosso ordenamento jurídico, aplicando penas que se revelam justas e adequadas atendendo à gravidade dos factos; ao circunstancialismo em que os mesmos ocorreram; respectivas consequências e condições pessoais dos arguidos.
Pelo exposto, entendemos que falecem de razão os argumentos invocados pelas recorrentes, não merecendo censura a decisão proferida pelo tribunal “a quo”, a qual deverá ser mantida e assim improceder o recurso».

5. Admitido o recurso – conjunto - e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 357-361, no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a argumentação do Colega de 1ª instância.

            6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
             Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso[1], as questões a decidir consistem em saber se
· houve erro de julgamento, devendo antes ser absolvidos os arguidos dos crimes pelos quais vêm acusados;
· houve excesso de legítima defesa por parte dos arguidos;
· é exagerada a pena aplicada ao arguido AM… .

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA
            2.1. É o seguinte o elenco dos factos dados como provados na sentença recorrida:
1. No dia 27 de Fevereiro de 2009, no período da manhã, MC... deslocou-se a uma propriedade agrícola denominada “ …”, sita em P…, a fim de ali cortar e carregar pinheiros para lenha.
2. Entretanto, surgiu no local AM... que, em voz alta, e em tom sério, e diante de outras pessoas que ali se encontravam, aproximou-se de MC... e disse-lhe, entre outros impropérios, “hei-de te matar; hei-de te enterrar aqui sua ladra”.
3. Com tal conduta, e dadas as circunstâncias; o modo e o teor das expressões proferidas, causou o arguido na pessoa da visada medo e inquietação de que ele viesse a realizar o mal que lhe estava a anunciar — tirar-lhe a vida.
4. Agiu o arguido AM... livre, deliberada e conscientemente, anunciando a MC... a prática de mal tipificado na lei como crime — contra a vida — punido com pena de prisão superior a três anos, actuando de forma adequada a provocar naquela medo e inquietação de que ele viesse efectivamente a realizar o mal anunciado e prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação, como efectivamente fez. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5. No dia referido em 1., a assistente colaborava no corte e transporte de pinheiros para a lenha.
6. Aí apareceu o arguido AB… que, em voz alta, dirigindo-se à assistente, começou a chamar-lhe “ladra”; “lombeirona”; “nunca trabalhaste”; “fugiste para Lisboa e agora vens roubar a terra, tu aqui não tens nada”.
7. Passado algum tempo, surgiu no local o arguido AM…, irmão do AB…, o qual dirigindo-se à assistente, e para além do provado em 2., lhe disse “és uma ladra, aqui tu não tens nada, o tractor não sai daqui”.
8. Agiram os arguidos de forma voluntária e consciente, sabendo bem o carácter proibido da sua conduta e que as expressões utilizadas, além de porem em causa o sossego e liberdade da queixosa, atingiram a sua honorabilidade e reputação pessoal.
9. As palavras e expressões proferidas pelo arguido AB… ofenderam a assistente.
10. A assistente ficou amedrontada e intranquila com a atitude do arguido AM….
11. O arguido AM... é reformado, auferindo cerca de €
2.000.00 mensais de pensão processada no estrangeiro, Luxemburgo, país onde esteve emigrado.

12. Para além do vencimento referido em 11., o arguido aufere uma média de € 20.000,00 a € 30.000,00 de rendas de apartamentos e garagens de que é proprietário na cidade de Seja, tendo no ano transacto recebido € 28.000,00.
13. O arguido é proprietário de duas vivendas, três apartamentos, doze garagens, três lojas comerciais e três prédios rústicos.
14. O arguido mora com a esposa em casa própria, a qual se encontra, também reformada, auferindo cerca de € 1.800,00 mensais de pensão.
15. O arguido contraiu um empréstimo no Luxemburgo pelo qual paga € 900,00 mensais e outro em Portugal, pelo qual paga € 500,00 mensais.
16. O arguido é proprietário de três viaturas automóveis.
17. O arguido completou o 4º ano de escolaridade.
18. O arguido não tem registo de antecedentes criminais.
19. O arguido AB... é reformado, auferindo uma média de €
1.100.00 mensais de pensão processada no estrangeiro, Alemanha, país onde esteve emigrado e em Portugal.

20. Para além do vencimento referido em 19., o arguido aufere cerca de € 1.200,00 mensais de rendas de apartamentos de que é proprietário na cidade de Seia.
21. O arguido é proprietário de uma vivenda e de quatro apartamentos.
22. O arguido mora com a esposa em casa própria, a qual se encontra, também reformada, auferindo cerca de € 1.130,00 mensais de pensão.
23. O arguido é proprietário de duas viaturas automóveis.
25. O arguido completou o 4° ano de escolaridade.
26. O arguido não tem registo de antecedentes criminais».
 
2.2. Já não resultou provado que:
«a) O provado em 1. tenha ocorrido às 09.00 horas.
b) O prédio referido em 1. seja propriedade da assistente.
c) O provado em 6. tenha ocorrido a uma distância de 30 metros entre arguido e assistente.
d) O arguido AM...tenha surgido no local cerca de 15 minutos após o arguido AB...».

2.3. Motivou-se assim tal decisão probatória:
«Nos termos e para os efeitos dos artigos 97° e 374° n° 2, ambos do Código de Processo Penal, para formar a sua convicção o Tribunal procedeu ao exame conjunto da prova
testemunhal produzida em audiência de julgamento em conjugação com as declarações prestadas pelos arguidos e pela assistente, na parte em que o Tribunal lhes atribuiu credibilidade.

            Na produção testemunhal e exame das declarações dos arguidos e assistente[2] sobrelevaram-se o conhecimento pessoal e directo dos factos perguntados, a postura denotada, bem como a convicção, transparência e espontaneidade dos depoimentos/declarações, tudo conjugado com as regras da experiência comum e do normal acontecer.
Quanto aos arguidos importa começar por referir que ambos prestaram declarações de forma comprometida, forçada e contraditória com a demais prova produzida, não tendo, por esse motivo, logrado obter o convencimento do Tribunal.
Negaram, desde logo, a prática de todos os factos de que vêm acusados, admitindo encontrarem-se nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, explicando de forma coincidente o modo como chegaram ao local, o pedido de intervenção da GNR. e o motivo pelo qual aí se deslocaram, que teve na sua base o conflito acerca da propriedade do prédio onde a assistente andava a cortar os pinheiros, reivindicando o esta para si e aqueles para uma sua outra irmã.
Explicaram, ainda, que uma vez que corre termos no Tribunal acção cível acerca dessa questão, acabou o primeiro arguido por ir chamar o seu advogado, tendo a assistente chamado, também, o dela.
Contrariamente ao referido por todas as demais testemunhas, os arguidos tentaram transmitir ao Tribunal que, à excepção da intervenção conflituosa encetada pelo advogado da assistente, o sucedido não assumiu contornos de maior, negando que tenham existido troca de palavras ameaçadoras ou injuriosas entre os presentes, não tendo avançado qualquer explicação plausível para a intervenção de mais do que uma patrulha da G.N.R. no local.
Apesar de negar ter dirigido à assistente as palavras constantes da acusação particular, o arguido AB… acabou por admitir, sem qualquer espírito crítico, que lhe possa ter dito isso em outra altura que não no dia em causa nos autos.
Em contradição com o referido pelo seu irmão, este arguido referiu que aquele disse à assistente, nesse dia, que ela já havia registado cinco prédios da propriedade deles.
Em total oposição com o relatado por estes arguidos, a assistente transmitiu ao Tribunal uma versão diametralmente diferente dos factos.
Apesar de envolvida de grande emotividade e algum nervosismo, que por vezes não permitiram um discurso tão fluido como seria desejável, a assistente prestou declarações de forma
espontânea, sentida, aparentando urna grande sinceridade, motivo pelo qual logrou obter o convencimento do Tribunal.

A assistente manteve durante todo o julgamento, nomeadamente na última sessão, na qual lhe foram solicitados alguns esclarecimentos, urna postura firme, frontal, não tendo, nunca, hesitado no que referiu, sobretudo quando transmitiu o que lhe fora dito pelos arguidos.
Assim, depois de ter explicado a abordagem dos arguidos no referido dia e no citado terreno objecto da discórdia, a assistente fez um relato peremptório, mas não ensaiado, o que foi evidenciado pelo facto de a mesma se ir lembrando de forma crescente e natural das palavras proferidas pelos arguidos, as quais à medida que ia referindo lhe iam criando um maior nervosismo e emotividade.
Não escondendo que a altercação ocorrida tinha sido, já, por si equacionada quando decidiu mandar cortar a lenha, a assistente explicou, então, que tinha contactado previamente a G.N.R. para ficar de prevenção, pois sabia que os arguidos não iam aceitar essa situação de bom grado, ao que acresce o facto de algum tempo antes (que situou, de imediato, no dia de Carnaval) ter sido por eles ameaçada, tendo ficado com bastante receio.
A assistente explicou toda a dinâmica dos factos de forma verosímil e sustentada, tendo encontrado eco na demais prova produzida, nos exactos termos que passaremos a analisar.
Também não ficou o Tribunal com qualquer dúvida acerca do actual receio que a assistente tem dos arguidos, o qual para além de transmitido por palavras, se encontrava reflectido no seu rosto.
Em completa consonância com o relatado pela assistente, também a testemunha AP..., seu companheiro, explicou ao Tribunal, de forma firme, sustentada e sem hesitações o ocorrido no dia 27 de Fevereiro de 2009, desde a chegada dos arguidos, dos militares da G.N.R., dos advogados de ambas as partes, às concretas palavras dirigidas à sua companheira.
Apesar da especial relação que liga esta testemunha à assistente e da inegável relação de conflito com os arguidos, a testemunha conseguiu demonstrar bastante imparcialidade em determinados momentos do seu depoimento.
Assim, depois de confirmar, de forma circunstanciada, coerente, séria e verosímil toda a factualidade constante da acusação pública e particular e que supra resultou provada, a testemunha referiu que o arguido AB… acabou por tentar acalmar o seu irmão AM… que estava completamente descontrolado com a situação.
Confirmou, ainda, o medo e a perturbação provocada por esta situação na assistente e nele próprio.
Apesar da emotividade transmitida, esta testemunha, pelos motivos supra apontados, logrou obter o convencimento do Tribunal.
Quanto à testemunha NS..., silvicultor e condutor do tractor que no dia em causa fazia o transporte dos pinheiros, importa começar por referir que a mesma não logrou obter o convencimento do Tribunal, atenta a forma comprometida e hesitante conforme prestou declarações.
Assim, apesar de ter confirmado que o incidente assumiu proporções de algum vulto e que ouviu alguém dizer que lhe tinham roubado terrenos, a testemunha, confrontada com as expressões constantes das acusações deduzidas nos autos, não negou tê-las ouvido mas também não confirmou as mesmas.
Considerando a sua postura altamente comprometida, e na sequência de algumas questões que a final lhe foram efectuadas, a testemunha acabou por relatar ter sido contactada pelos arguidos após o sucedido, e de forma muito nervosa e hesitante, acabou por assumir terem falado acerca dos factos objecto do processo, referindo que a abordagem daqueles teve na sua origem a solicitação de uns trabalhos que, disse, depois não ter levado a cabo, não avançando qualquer explicação para tal.
Assim, ficou o Tribunal convencido que a testemunha não relatou tudo o que viu e ouviu no dia em questão por estar comprometido com os arguidos.
Já a testemunha AX... , madeireiro que comprou os pinheiros à assistente, presente no local no dia em causa nos autos, referiu que existiu uma discussão, em tom bastante alto, entre os arguidos e a assistente.
Apesar de não se recordar de tudo quanto foi dito, disse não ter qualquer dúvida de ter ouvido o arguido AM... a chamar a assistente de ladra, sendo este o arguido que estava mais nervoso, tendo, ainda, confirmado a presença das demais pessoas que aí se deslocaram.
Por fim, foram inquiridos os dois militares da G.N.R que acompanharam os arguidos ao local dos factos, CJ... e AA… .
Depois de explicarem a forma como foram abordados por um dos arguidos e de como chegaram ao local, ambas as testemunhas referiram que existia um clima de tensão no local, que
se prendia com uma divergência acerca da propriedade do terreno onde decorria o corte dos pinheiros.

Apesar de não terem relatado uma situação de grande conflito, confirmaram a presença de outra patrulha também no local.
Disseram não se recordarem de ter ouvido nenhuma das expressões constantes dos libelos acusatórios por parte de nenhum dos arguidos.
Apesar de terem confirmado a presença conjunta no prédio em causa, a primeira testemunha disse não ter visto os advogados no local, tendo a segunda referido que os mesmos se encontravam, também, presentes.
O depoimento destas testemunhas foi produzido com uma grande falta de convicção que o Tribunal não interpretou como intenção de faltar à verdade, mas antes como ausência de memória dos factos, aos quais não foi atribuído grande importância por nenhum deles, situação a que não terá sido alheio o facto de ter na sua base uma questão do foro cível.
Por este motivo, a referido por estas testemunhas não foi suficiente para o Tribunal abalar a credibilidade atribuída à assistente e testemunhas supra melhor identificadas.
Relativamente aos factos constantes das alíneas a) a d), os mesmos resultaram não provados atenta a ausência de prova bastante acerca da sua positividade.
Para prova dos factos nºs 4. e 8. (elemento subjectivo) há que sublinhar o recurso às regras de presunção natural, uma vez que os factos objectivos dados como provados permitem concluir pela sua efectiva verificação.
Para prova dos factos 11. a 17. e 19, a 25. valorou o Tribunal as próprias declarações dos arguidos que, nesta parte, nos mereceram credibilidade.
Relativamente aos antecedentes criminais foi considerado o C.R.C dos arguidos de fls 130 e 131.
No que concerne à restante matéria constante da acusação particular e articulado do pedido de indemnização cível, por se tratar de meros juízos conclusivos, de valor e factualidade repetida não pôde sobre a mesma qualquer juízo probatório».


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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO (conjunto)

3.1. Antes de mais, urge verificar se estão correctas as conclusões apresentadas.
Incidindo estes recursos sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe aos recorrentes o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Contudo, no caso vertente, os recorrentes indicam no corpo da motivação as partes dos depoimentos gravados que crêem ter sido mal valorados pelo tribunal.
Como tal, e mesmo considerando que algumas das peças das alegações de recurso não primam pela perfeição processual, entendemos que o recurso conjunto satisfaz as condições mínimas para poder passar pelo crivo inicial.
Ou seja, e em conclusão:
Os recorrentes impugnam a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada quanto ao RECURSO.
E tal faremos até ancorados em recente e sábia decisão do STJ, datada de 1/7/2010 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S1).
Nesse aresto, assim se escreveu:
«O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, corno tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do nº 4 do art. 412º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n. s 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da provei, esta tiver sido impugnada, nos termos  do artigo 412º, n.º 3,  não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7)- Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º  3 do art. 412º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)”.
E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas ais. a), b) e e) tem corno efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412.°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17- 2-05, proc. n.° 47 16/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-1 1-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora cm que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar “as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa”, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412.°, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente “escolher” a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379.°, n.° 1, al. e) e 425.°, n.° 4, do CPP».

3.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
· e dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Ora, analisando a decisão recorrida, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2 do CPP.

3.4. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[3].
            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.5. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.6. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.
Invocam os recorrentes que foi erroneamente dada como provada a factualidade 1 a 10 (embora se diga 1 a 11, pensamos que se trata de equívoco, pois em nada parecem eles contrariar a factualidade 11).
Entendem eles que foi sobrevalorizado o depoimento dos dois guardas da GNR que ali acorreram e que nada terão ouvido de ameaçador e injurioso das bocas dos 2 arguidos.
Ouvida a prova, só nos resta validar, sem necessidade de grande e prolixas considerações, o veredicto factual da sentença recorrida, alicerçado numa criteriosa, subjectiva e motivada argumentação, tendo a julgadora motivado de forma suficiente e compreensível a sua convicção.
O raciocínio do tribunal recorrido foi este:
Desvalorizou a versão dos arguidos, já que entendeu que «ambos prestaram declarações de forma comprometida, forçada e contraditória com a demais prova produzida, não tendo, por esse motivo, logrado obter o convencimento do Tribunal».
Quanto a eles, conclui-se que:
- «contrariamente ao referido por todas as demais testemunhas, os arguidos tentaram transmitir ao Tribunal que, à excepção da intervenção conflituosa encetada pelo advogado da assistente, o sucedido não assumiu contornos de maior, negando que tenham existido troca de palavras ameaçadoras ou injuriosas entre os presentes, não tendo avançado qualquer explicação plausível para a intervenção de mais do que uma patrulha da G.N.R. no local»,
- que entraram em contradições:
· Apesar de negar ter dirigido à assistente as palavras constantes da acusação particular, o arguido AB... acabou por admitir, sem qualquer espírito crítico, que lhe possa ter dito isso em outra altura que não no dia em causa nos autos;
· Em contradição com o referido pelo seu irmão, este arguido referiu que aquele disse à assistente, nesse dia, que ela já havia registado cinco prédios da propriedade deles.
Desvalorizou também o depoimento da testemunha NS..., «silvicultor e condutor do tractor que no dia em causa fazia o transporte dos pinheiros, importa começar por referir que a mesma não logrou obter o convencimento do Tribunal, atenta a forma comprometida e hesitante conforme prestou declarações.
Assim, apesar de ter confirmado que o incidente assumiu proporções de algum vulto e que ouviu alguém dizer que lhe tinham roubado terrenos, a testemunha, confrontada com as expressões constantes das acusações deduzidas nos autos, não negou tê-las ouvido mas também não confirmou as mesmas.
Considerando a sua postura altamente comprometida, e na sequência de algumas questões que a final lhe foram efectuadas, a testemunha acabou por relatar ter sido contactada pelos arguidos após o sucedido, e de forma muito nervosa e hesitante, acabou por assumir terem falado acerca dos factos objecto do processo, referindo que a abordagem daqueles teve na sua origem a solicitação de uns trabalhos que, disse, depois não ter levado a cabo, não avançando qualquer explicação para tal.
Assim, ficou o Tribunal convencido que a testemunha não relatou tudo o que viu e ouviu no dia em questão por estar comprometido com os arguidos»
Por seu lado, valorizou o depoimento da assistente (que apresentou «uma versão diametralmente diferente dos factos»), fazendo-o do seguinte modo:
«Apesar de envolvida de grande emotividade e algum nervosismo, que por vezes não permitiram um discurso tão fluido como seria desejável, a assistente prestou declarações de forma espontânea, sentida, aparentando urna grande sinceridade, motivo pelo qual logrou obter o convencimento do Tribunal.
A assistente manteve durante todo o julgamento, nomeadamente na última sessão, na qual lhe foram solicitados alguns esclarecimentos, urna postura firme, frontal, não tendo, nunca, hesitado no que referiu, sobretudo quando transmitiu o que lhe fora dito pelos arguidos.
Assim, depois de ter explicado a abordagem dos arguidos no referido dia e no citado terreno objecto da discórdia, a assistente fez um relato peremptório, mas não ensaiado, o que foi evidenciado pelo facto de a mesma se ir lembrando de forma crescente e natural das palavras proferidas pelos arguidos, as quais à medida que ia referindo lhe iam criando um maior nervosismo e emotividade.
Não escondendo que a altercação ocorrida tinha sido, já, por si equacionada quando decidiu mandar cortar a lenha, a assistente explicou, então, que tinha contactado previamente a G.N.R. para ficar de prevenção, pois sabia que os arguidos não iam aceitar essa situação de bom grado, ao que acresce o facto de algum tempo antes (que situou, de imediato, no dia de Carnaval) ter sido por eles ameaçada, tendo ficado com bastante receio.
A assistente explicou toda a dinâmica dos factos de forma verosímil e sustentada (…)».
Viu ainda o tribunal – o que não nos é ainda possível vislumbrar, apesar dos avanços tecnológicos registados a nível da captação da prova para efeitos de recurso - o receio no rosto da assistente, o que ainda mais convenceu a julgadora do crime cometido pelos arguidos.
Apoiou-se ainda o tribunal nos depoimentos das seguintes testemunhas:
1º- Baseou-se ainda o tribunal no depoimento de AP..., companheiro da assistente, que explicou ao Tribunal, «de forma firme, sustentada e sem hesitações o ocorrido no dia 27 de Fevereiro de 2009, desde a chegada dos arguidos, dos militares da G.N.R., dos advogados de ambas as partes, às concretas palavras dirigidas à sua companheira».
Assim caracterizou o tribunal recorrido este depoimento - «Apesar da especial relação que liga esta testemunha à assistente e da inegável relação de conflito com os arguidos, a testemunha conseguiu demonstrar bastante imparcialidade em determinados momentos do seu depoimento».
Foi até a julgadora ao ponto de considerar que não terão sido em todos os momentos do depoimento desta testemunha que ela demonstrou imparcialidade, o que nos parece que só solidifica a sua credibilidade, na medida em que se torna irrealista pensar que um companheiro de uma das partes seja capaz de ser totalmente objectivo em todos os aspectos de um depoimento em tribunal!
Perpassou por ele, com toda a certeza, a emotividade própria de quem quis defender um dos pontos de vista em conflito entre si, não deixando de ser credível no que tange aos aspectos essenciais da factualidade discutida.
Refere o tribunal que esta testemunha depôs, «de forma circunstanciada, coerente, séria e verosímil toda a factualidade constante da acusação pública e particular e que supra resultou provada».
2º- Foi ainda relevante o testemunho de AX... , madeireiro que comprou os pinheiros à assistente, presente no local no dia em causa nos autos, que «referiu que existiu uma discussão, em tom bastante alto, entre os arguidos e a assistente. Apesar de não se recordar de tudo quanto foi dito, disse não ter qualquer dúvida de ter ouvido o arguido AM... a chamar a assistente de ladra, sendo este o arguido que estava mais nervoso, tendo, ainda, confirmado a presença das demais pessoas que aí se deslocaram».
Situemo-nos um pouco mais na apreciação dos testemunhos dos dois militares da G.N.R que acompanharam os arguidos ao local dos factos, CJ... e AA… .
Sobre eles, «falou» assim a sentença recorrida:
«Depois de explicarem a forma como foram abordados por um dos arguidos e de como chegaram ao local, ambas as testemunhas referiram que existia um clima de tensão no local, que
se prendia com uma divergência acerca da propriedade do terreno onde decorria o corte dos pinheiros.

Apesar de não terem relatado uma situação de grande conflito, confirmaram a presença de outra patrulha também no local.
Disseram não se recordarem de ter ouvido nenhuma das expressões constantes dos libelos acusatórios por parte de nenhum dos arguidos.
Apesar de terem confirmado a presença conjunta no prédio em causa, a primeira testemunha disse não ter visto os advogados no local, tendo a segunda referido que os mesmos se encontravam, também, presentes.
O depoimento destas testemunhas foi produzido com uma grande falta de convicção que o Tribunal não interpretou como intenção de faltar à verdade, mas antes como ausência de memória dos factos, aos quais não foi atribuído grande importância por nenhum deles, situação a que não terá sido alheio o facto de ter na sua base uma questão do foro cível.
Por este motivo, a referido por estas testemunhas não foi suficiente para o Tribunal abalar a credibilidade atribuída à assistente e testemunhas supra melhor identificadas».
Entendem os recorrentes que deveria ter sido dada como não provada a factualidade 1 a 10 pelo facto de estes guardas nada terem ouvido de injurioso e ameaçador da boca dos arguidos.
Parece-nos que sem razão.
De facto, foram chamadas ao local, pelo menos, duas patrulhas da GNR, podendo ter acontecido o narrado na acusação pública e particular em momento que nenhum policial estivesse no local da contenda (os dois guardas que depuseram foram claros em afirmar que abandonaram o local, lá tendo voltado outra vez «duas horas depois» - cfr. depoimento de CJ…).
Além disso, não foram ouvidos em julgamento todos os policiais que estiveram presentes no local da discussão que, não se ignora, teve momentos acesos e outros mais calmos (sendo verosímil que os mais acesos tenham ocorrido em altura em que a força policial não estava presente) – na realidade, estes não foram, os únicos militares a deslocarem-se ao local…
Como tal, este argumento não faz naufragar a tese do tribunal recorrido, de sufrágio da versão acusatória.
A lógica dos recorrentes é falível – para eles, se os guardas da GNR nada ouviram, é porque não se passaram quaisquer factos ilícitos…
Ora, o tribunal recorrido combate este argumento na sua motivação, de forma a que se pode concluir que não ficou com dúvidas que façam funcionar o princípio constitucional do «in dubio por reo».
A circunstância de existirem duas versões dos factos e de o tribunal recorrido ter optado por uma não autoriza a conclusão de que existe violação do princípio in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo[4], com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997 -, sendo certo que a «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170.
A diversidade das versões expostas não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.
Circunstância que não ocorre in casu, já que consideramos que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos – e provas bastantes - que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Não teve dúvidas, e nós também não, da culpabilidade dos 2 arguidos.
Não nos parece, assim, que tenha havido aqui impressionismos mas antes constatações do realmente acontecido no dia 27/2/2009, sem que possamos dizer que foi apenas lançado mão das regras da experiência comum.
Por outro lado, não nos esqueçamos que, tendo-se baseado a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende tais regras da experiência comum.
O QUE NÃO É O CASO…
Tal basta para infirmar as conclusões 1 a 3 do recurso, o que significa que fica intocável a factualidade dada como provada e não provada, improcedendo, nesta parte factual, o recurso que ora se analisa.

3.7. Com esta factualidade, estão perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de ameaça e de injúria, pelos quais foram condenados os arguidos.
Mas, pergunta-se: houve, face a esta matéria factual, uma situação de «excesso de legítima defesa» ou de qualquer outra que faça funcionar a atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72º do CP?
Na realidade, não ficou provado em julgamento – nem agora tal poderá ser dado como provado – que tenha havido a tal «provocação injusta» por parte da vítima, ou seja, da assistente.
Aqui chegados, há que afirmar quem não se pode aceitar a junção tão tardia do documento de fls 336-338, após o encerramento da audiência (artigo 165º do CPP), o que significa que o seu teor, apesar de contraditado, não pode ser levado em conta por este foro de recurso.
Como tal, a sua junção é extemporânea, o que se declara, não se mandando desentranhar o mesmo já que o tribunal de 1ª instância acabou por o aceitar mandando fazer o contraditório a fls 334.
Apenas se declara que o seu teor não será por nós levado em linha de conta.

3.8. Quanto à causa de exclusão da ilicitude, há que dizer o seguinte:
Normatiza o art. 32.º do Código Penal: «Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».
Adianta depois o artigo 33.º do mesmo diploma:
«1. Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.
2. O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis»[5].
A legítima defesa[6] – causa de exclusão da ilicitude tipicamente prevista na letra dos artigos 31º e 32º [Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro], do CP - tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal, a ocorrência de uma agressão (sendo ela toda a lesão ou perigo de lesão de um interesse próprio ou de outra pessoa protegido pelo ordenamento jurídico – H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 303) levada a cabo por um comportamento humano voluntário e consciente, devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão[7]), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado - 8ª edição/1995, p. 277, entre outros), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutralizá-la, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor.
A legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (cf. Jescheck, ibidem, 308).
Desta forma, «meios adequados» para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido[8].
Igualmente, devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor.
Por isso, tem-se decidido que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes (Cfr. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa (1995), 318 e H. Jescheck, ibidem, 308).
No fundo, trata-se de um juízo objectivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes, sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, a significar que o defendente não está obrigado a recorrer a meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa é duvidosa ou incerta.
A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro - o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.
No que concerne ao elemento subjectivo, não obstante grande parte da nossa jurisprudência[9] e certo sector da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio (acs. do S.T.J., de 91.07.03, 92.06.25 e 93.01.21, proferidos nos processos n.ºs 41982, 42682 e 42837 e desta Relação de 84.10.10, sumariado no BMJ, 340, 448), a verdade é que se tem vindo ultimamente a entender, na esteira da doutrina mais recente (Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), 189/191 e Santiago Mir Puig, ibidem, 436.), que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão actual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa[10].
Decidiu, deste modo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 17/9/2003 (Pº 2021/03, visitável em www.dgsi.pt e já referido em antecedente nota de rodapé:
«A exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão actual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) –, pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio (neste preciso sentido Quintero Olivares, Derecho Penal Parte General (1992), 461).
Por isso, o texto do art.32º, do Código Penal, ao aludir «… ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por Leal Henriques/Simas Santos que ali detectam a exigência do animus defendendi, não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa».
Seremos forçados, neste particular, a defender uma tese algo mista, concordante com a doutrina de Fernanda Palma, exarada no artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal» (Coordenação de F. Palma/José AM... Vilalonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2000, p. 167-168:
«A legítima defesa exige uma efectiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma protecção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma acção conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir».
Ora, a ausência dessa consciência impede a justificação por legítima defesa.
Diga-se ainda que legítima defesa e retorsão[11] são realidades jurídicas incompatíveis - enquanto na primeira, há defesa relativamente a uma agressão iminente ou em execução, na retorsão, o agente procura fazer represália, obter vindicta, tirar desforço, replicar.
Assim, e em suma, poderemos dizer que a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a actualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objectivos se referem à situação em que o agente actua e os dois últimos à acção de defesa.
Já haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.
Ora, em face da matéria de facto provada, de imediato se intui que os requisitos enunciados supra não se mostram preenchidos, já que tão pouco está demonstrada a existência de uma “agressão actual ou iminente” por parte da assistente relativamente a património que seja dos arguidos (a titularidade dos pinheiros está por demonstrar em sede criminal, como é bem de ver).
Diga-se ainda que injuriar alguém e ameaçá-la de morte não constituiu qualquer legítima resposta a uma eventual ofensa ao seu património…
É que para nós, como para qualquer homem civilizado, comparar pessoas e patrimónios é ainda comparar grandezas diversas!
           
3.9. Resta-nos encontrar a pena concreta, assente que partiremos das respectivas molduras penais abstractas dos crimes em jogo e que, do acervo factológico provado, não sobressaem elementos que, pelo seu carácter excepcional, minorem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa dos arguidos ou a necessidade da pena, em termos tais que se revele inadequada a pena concreta dentro da moldura normal dos crimes de injúria e de ameaça.
Para a fixação da pena o tribunal recorrido considerou, além do mais, as elevadas exigências de prevenção geral positiva, o médio grau da ilicitude do facto, o dolo directo e, em sede de prevenção especial, a ausência de condenações criminais de ambos os arguidos.
Temos por adquirido que a aplicação de uma pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal. Também estatui o art. 70° do Código Penal que "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".
Nos termos do preceituado no art. 40°, n.º 2, do Código Penal, uma das finalidades da punição é a reintegração do agente na sociedade prevenindo-se a prática de futuros crimes.
O princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas [da tutela penal] ou da máxima restrição das penas afirma que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados, não sendo só os princípios dogmáticos do direito constitucional-penal que nos obrigam a uma reflexão mais profunda sobre a eficácia das penas privativas de liberdade.
São também os dados da reincidência a revelar que o espaço prisional mais do que reabilitativo é igualmente estigmatizante, e por consequência, alavanca maiêutica de mais criminalidade.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações.
Na parte que agora nos importa, o julgador, perante um tipo legal que prevê, em alternativa, como penas principais, as penas de prisão ou multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente da sociedade (prevenção especial).
Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
Assim, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.
Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
O artigo 70.º opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal, nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
Porém, a escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa não significa que desde logo se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois entretanto haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição que apenas são aplicáveis depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71.º, o seu quantum.
No nosso caso, a moldura abstracta da pena dos crimes em apreço prevê prisão OU multa.
O tribunal a quo escolheu a MULTA em detrimento da prisão e fixou aquela em 150 dias, 70 dias e 100 dias, respectivamente, para o crime de ameaça do arguido AM..., para o crime de injúria do arguido AM... e para o crime de injúria do arguido AB… .
No caso em causa, a sentença recorrida não CONFUNDE os dois momentos atrás delineados.
Foi assim feito o procedimento de determinação da pena[12]:
· determinação da medida abstracta da pena (prisão OU multa);
· escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70.º do Código Penal (MULTA, no caso);
· fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respectiva, com base nos critérios do artigo 71.º do Código Penal (150, 70 e 100 dias de multa[13]).
Os recorrentes não colocam em crise a opção pela pena pecuniária, discordando apenas do seu «quantum».
Aqui chegados, não nos parecem exageradas as penas encontradas, em termos de dias de multa, sendo tais adequadas ao circunstancialismo fáctico descrito nos autos (note-se que nas conclusões, o recurso apenas coloca em causa a condenação em multa do arguido AM… e já não do AB… – cfr. Conclusão 4ª).

3.10. Mas serão exageradas as taxas diárias da multa encontrada?
Assim o reclamam os arguidos no texto da sua motivação.
Contudo, não o fazem nas suas conclusões, o que impede que este tribunal conheça desta questão.
Recordemos o que atrás se escreveu: são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar [cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»][14].

3.11. Como tal, naufraga o recurso.

            III – DISPOSITIVO
           
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos AM... e AB..., confirmando-se a sentença recorrida.

            Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça fixada em 5 UCs (artigos 515º, n.º 1, alínea b) do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ).


Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena



[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).
[2] Sublinhados nossos.
[3] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.
[4] Aludamos aqui ao teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.2008 (proc. 07P4198, em www.dgsi.pt, o qual cita profusamente Cristina Líbano Monteiro:
«De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador)».

[5] Como curiosidade histórica, deixam-se aqui expressas as asserções avançadas no Acórdão desta Relação de 17/3/2003, mais à frente novamente citado:
«O direito de legítima defesa está escrito em grandes caracteres nas doze tábuas e no Digesto, ou seja, na certidão de nascimento e na de óbito do espírito animador do direito romano. Lex duodecim tabularum furem noctu deprehensum perimittit occidere; interdin antem deprehensum, si telo se defedat (1. 4, § I. D. ad leg. Aquil.).
Trata-se de direito que, segundo a doutrina dos jurisconsultos romanos, se consubstancia
numa acção praticada contra a proibição de quem tem o direito de se lhe opor. – Vi facit tam is, qui quominus prohibeatur consecutus est, periculum puta adversário denuntiando, aut janua puta praeclusa. Prohibitus autem intelligitur quolibet actu, id est vel dicentis se prohibere, vel manum oponentis, lapillumve jactantis prohibendi gratia.
Definida assim a condição principal do exercício da legítima defesa, a injustiça da agressão, a 1. 2. Cod. ad leg. Corn. acrescenta a outra da iminência do perigo: o agredido deve ficar colocado na dubio vitae discrimine. E mesmo assim a dificuldade (não a impossibilidade) de evitar o perigo de outro modo a não ser com a morte ou o ferimento do agressor, é imposta como outra condição pela 1. 9. ff. ad leg.Corn.: Furem nocturnum si quis occiderit ita demun impune feret, si parewce ei sine periculo suo non potuit.
São estas as condições de facto atribuíveis ao agressor no direito romano; quanto ao agredido, duas regras determinam a natureza da sua reacção. Uma é a de uma certa proporção desta com a agressão sofrida. A outra diz respeito à subitaneidade da reacção defensiva.

Quanto ao fundamento filosófico da doutrina romana, Cícero e as constituições imperiais reconhecem que a legítima defesa não é senão uma forma especial de repressão do delito, uma espécie de «substitutivo penal» (Vide Júlio Fioretti, Sobre a Legítima Defesa (3ª edição – 1918), 28/30, que até aqui seguimos de perto.). Fundamento que se encontra de algum modo em Hegel ao sustentar que aquele que exerce a legítima defesa afirma o direito, porque anula a negação de direito que o outro tentava realizar com a agressão (Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 127.), e que actualmente, a par da ideia de proporcionalidade e de razoabilidade, domina, ainda, o instituto da legítima defesa ( - Ao instituto da legítima defesa, tal como a todos os outros que constituem causa excludente da ilicitude e/ou da culpa, institutos aos quais servem de referência e justificação situações de conflito, encontra-se, subjacente o princípio da ponderação de interesses, princípio que, ao fim e ao cabo, constitui o fundamento último da justificação do facto, o qual se traduz, em sede legal, na indicação do valor ou do interesse prevalente, isto é, na eleição do valor ou do interesse cuja tutela o legislador quer ver salvaguardada, valor que, obviamente, é – objectivamente – o mais valioso – Cf. Giuseppe Bettiol, Instituições de Direito e Processo Penal (tradução de Costa Andrade – 1974), 137/141 e M. von Buri, «Stato di necessitá e legitima difesa», na Revista Penale, vol. XIII, 433/464)».
[6]Tal conceito deve assentar num fundamento de continuidade que interliga, por um lado, a protecção dos bens jurídicos beliscados pela agressão e, de outro, por derivação directa e imediata, a necessidade de defesa da ordem jurídica, «através da qual se justificará que se justifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão”, reprovando-se a ideia de que a legítima defesa esteja cerceada por um critério de proporcionalidade entre os bens jurídicos sacrificados pela defesa e aquela que merecem ameaça por parte da inerente agressão.
[7] Uma defesa será, à partida, legítima até ao momento em que a mesma se revele imperiosa ou fundamental para travar definitivamente a respectiva agressão.
[8] Qualquer meio que transponha a barreira da estrita necessidade – necessidade do meio mas também necessidade da própria defesa - entrará num excesso de legítima defesa.
[9] Veja-se o que se deixa escrito no muito recente Acórdão da Relação de Évora de 18/3/2010 (Pº 341/08.9GCSLV.E1): «Já quanto à tese da legítima defesa, a questão que se coloca, de índole factual e de direito, passa por lembrar que a jurisprudência portuguesa continua, praticamente sem divergências, a exigir que o agente actue com animus defendi (rectius, defendendi) e que a sua actuação seja adequada a evitar a lesão iminente, para que possa ter-se por verificada aquela causa de exclusão da ilicitude» - contudo, não nos parece que a tese seja assim tão unânime como aqui se dá a perceber, a começar desde logo por esta Relação de Coimbra!
Já no STJ tem sido quase constante a exigência dessa intenção de defesa – para tal tese, o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual, correspondendo a intenção de defesa a um estádio de espírito, inapreensível sensorialmente, necessariamente resultante de factos objectivos que a indiciem, tal como a intenção de matar, integrando, pois, matéria de facto. Desta forma, o agente há-de ter consciência da legítima defesa, enquanto elemento subjectivo da acção, de afirmação de um seu direito, de realização, no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso, pese embora com aquela vontade ou intenção de defesa legítima possam concorrer outros motivos como o ódio, vingança ou indignação.
[10] Figueiredo Dias, e nós com ele, opina que «o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a exigência subjectiva mínima indispensável á exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer acusa justificativa» (Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 371).
[11] Para se poder falar em retorsão é preciso que o agente se limite a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física. A atenuação da ilicitude da conduta do agente encontra fundamento na desculpação em virtude da especial situação emocional desencadeada pela provocação que a primeira ofensa corporal traduz (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 221).
[12] A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.
[13] Impossível se tornou aplicar a pena de substituição do artigo 48º já que nada nesse sentido foi requerido pelos arguidos, não sendo ainda caso tão pouco grave que reclamasse a aplicação de uma mera admoestação (artigo 60º do CP).
[14]Note-se que nem era caso de convite para correcção das conclusões, já que não tal cabe na letra do artigo 417º/3 do CPP.