Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
536/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
Data do Acordão: 05/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1360.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Incumbe ao pretenso titular do direito de servidão de vistas, proprietário passivo da construção, a demonstração de que o parapeito da varanda tem altura inferior a metro e meio, nos termos da previsão da norma do nº 2 do artigo 1360.º do Código Civil. Trata-se dos requisitos constitutivos da hipótese de facto (Tatbestand) pressuposta na norma.
2. Não tendo sido apurada nem alegada essa concreta conformação da obra, pelo proprietário vizinho por ela lesado, não está preenchido o condicionalismo substantivo da eficácia do direito de restrição accionado.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher B... intentaram na comarca de Ferreira do Zêzere acção declarativa com processo sumário contra C... e mulher D... pedindo a condenação dos RR. a:
a) Reconhecer os A.A. como donos e legítimos possuidores e proprietários, do prédio identificado no art. 1° da p.i..
b) Reconhecer que o limite de propriedade daquele prédio com o prédio dos R.R., se faz pelos 4 marcos referidos no art. 11º da p.i..
b) Absterem-se de praticar todo e qualquer acto que colida com o direito assim reconhecido dos AA..
c) A demolir, a suas expensas, a parte da construção dos RR. que invade o prédio dos AA. na extrema sul destes, até que seja respeitada a linha divisória definida pelos marcos referidos na alínea b) do pedido.
d) A tapar, a suas expensas, as varandas existentes, construídas a menos de l,50 m do prédio dos AA..
e) A tapar, a suas expensas, a janela e porta existentes no alçado lateral direito, e que se localizam a menos de l,50 m do prédio dos AA..
f) A cortar os tubos projectados da construção dos RR. no alçado lateral direito para o prédio dos AA..
g) A indemnizar os AA., a título de danos morais, na quantia de 750.000$00.
Para tanto alegam que, sendo donos de determinado prédio rústico, os RR. iniciaram a construção de uma casa nas extremas nascente e sul do seu prédio, de tal sorte que a ponta da frente do telhado, a parede e dois tubos do alçado lateral direito da edificação invadem o terreno desse seu prédio; e uma varanda, uma janela e uma porta pertencentes a esse alçado, sitas a menos de 1,50 m do limite do mesmo prédio, deitam directamente vistas sobre ele.
Contestaram os RR. por impugnação, dizendo ainda que a edificação foi executada de harmonia com o projecto de construção aprovado pela Câmara Municipal competente e que, tendo ocupado de boa-fé e sem oposição o terreno dos AA., estão dispostos a pagar, nos termos legais, a depreciação resultante, que não excederá o valor de Esc. 50.000$00. Terminam com a improcedência da acção e a dedução do pedido reconvencional de condenação dos AA. a verem adquirida por acessão imobiliária a parcela de terreno ocupada pela obra dos RR.
Os AA. responderam, mantendo o pedido e defendendo a improcedência da reconvenção, bem como a condenação dos RR. como litigantes de má-fé.

O processo seguiu os seus termos e a final foi declarada extinta instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de tapagem da porta, da janela e da varanda lateral da casa dos RR., construídas no alçado lateral direito daquela; julgada a acção julgada parcialmente procedente e os RR. condenados: a reconhecerem os AA. como donos do prédio rústico identificado na al.ª A dos factos provados e com os limites pelos marcos existentes e referidos na alínea C; a absterem-se da prática de qualquer acto que colida com o seu direito; a demolir a parte do telhado que invade em 20 cm o espaço aéreo do prédio dos AA.; e absolvidos do mais peticionado; e, bem assim, julgada procedente a reconvenção dos RR., declarando-se por eles adquiridos os 0,2 m2 do terreno dos AA. ocupados com a construção da casa referida em b), desde que paga aos mesmos a quantia de € 3,00 (três euros) pela aquisição, a comprovar documentalmente nos autos.
Irresignados, apelaram os AA.
Nas conclusões das respectivas alegações são formuladas as seguintes questões:
1º - A sentença é nula, quer por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, quer por não se ter pronunciado sobre questões que lhe estavam submetidas e ter conhecido de questões de não podia conhecer - art.º 668, nºs 1, al.ªs c) e d) do CPC (conclusões 1ª e 13ª).
2º - Era aos RR. que cabia alegar e provar que a varanda da frente da sua construção tinha um parapeito de altura superior a 1,5 metros e não aos AA. a existência desse parapeito com menos de 1,5 metros de altura (conclusões 2ª a 12ª).
3º - Não podia a sentença fixar aos RR. o valor a pagar pelo terreno ocupado aos AA. com base em informações estranhas à prova produzida no processo e não contraditadas (14ª a 16ª).

Os RR. responderam, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
a) Encontra-se inscrita a favor de A... a aquisição, por sucessão legitima de Deolinda da Conceição e Manuel Sebastião, do prédio rústico sito em Rio Cimeiro, composto de terreno de cultura arvense de regadio, citrinos e oliveiras, com a área de 440 m2, que confronta do norte com A..., do sul com Fernando Francisco Repolho, do nascente com herdeiros de João Cotrim e de poente com estrada, inscrito na matriz predial da freguesia de Domes sob o artigo 71 da Secção M e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 739;
b) No ano de 2000 os RR. começaram a construir uma casa nas extremas nascente e sul do prédio referido em A;
c) O prédio referido em A, na parte que confronta com os RR., encontra-se demarcado por quatro marcos;
d) Ao nível do 1° andar da casa referida em B, os RR. abriram uma janela;
e) Ao nível do sótão da casa referida em B, os RR. abriram uma porta;
f) A obra referida em B foi projectada por um engenheiro e um arquitecto e licenciada pela Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere;
g) Os AA. e seus antecessores há mais de 20 anos vêm lavrando, cavando, estrumando e adubando o prédio referido em A;
h) Nesse prédio vêm semeando e colhendo batatas e milho, podando as árvores e colhendo os respectivos frutos;
i) Fazem-no ininterruptamente, à visita de toda gente e sem oposição de terceiros;
j) Na convicção de exercerem um direito próprio e de não lesarem terceiros;
k) Os marcos referidos em C estão situados conforme desenhado no documento de fIs. 14;
l) Os RR. construíram a parede do alçado direito da casa referida em B para lá da linha divisória definida pelos marcos referidos em C, dentro do prédio referido em A.
m) Contudo tal decorreu de um erro de execução resultante da construção da parede e do respectivo reboco, com menos cuidado por parte dos pedreiros, donde resultou o ligeiro desalinhamento em relação ao alinhamento do eixo dos marcos que dividem as propriedade, que se traduz em 2 cm, no máximo 4 cm;
n) A ponta do telhado na frente, lado direito da casa referida em B foi construída no espaço aéreo, em 20 cm para lá da linha divisória definida pelos marcos referidos em C dentro do prédio referido em A, também tal decorrendo de um erro de execução;
o) No alçado lateral direito da casa referida em B e na extrema do prédio referido em A, os RR. construíram, ao nível do 1° andar, uma varanda em forma triangular, que mede de um lado cerca de 3,90 metros e do outro cerca de 6,75 metros, que deita directamente para o prédio dos AA., estando esta situação já ultrapassada por ter sido construída uma parede de cerca de 2 metros;
p) Sendo que, num dos lados, tal varanda está construída ligeiramente para lá da linha divisória definida pelos marcos referidos em C, sobre o prédio referido em A, situação, no entanto, já ultrapassada por ter sido construída uma parede de cerca de 2 metros;
q) A janela referida em D tem cerca de 1,40 metros de largura, por 1,40 metros de altura e encontrava-se, em parte, construída a menos de 1,50 metros de distância da linha divisória definida pelos marcos referidos em C e do prédio referido em A, estando, no entanto, tal situação ultrapassada por ter sido construída uma parede cerca de 2 metros;
r) A porta referida em E tem cerca de 70 cm de largura e 2,10 metros de altura e localiza-se a menos de 1,50 metros de distância da linha divisória definida pelos marcos referidos em C e do prédio referido em A, situação resolvida pela construção da referida parede de 2 metros;
s) Na parte da frente da casa referida em B, os RR. construíram uma varanda que, no lado direito, se encontra a menos de 1,50 metros de distância da linha divisória definida pelos marcos referidos em C e do prédio referido em A;
t) A varanda referida em R supra deita vistas, lateralmente, para o terreno dos AA.;
u) O A. apenas reclamou da construção após a casa estar construída;
v) A obra sempre continuou;
w) O A. ficou revoltado com a construção;
x) Os trabalhos de construção da casa iniciaram-se em 21/02/2000;
y) A casa referida em B foi construída conforme o projecto aí referido, excepto no que respeita à porta referida em R;
z) A parede referida no quesito L da casa referida em B ocupa o prédio referido em A numa parcela de terreno com o comprimento de 4 a 5 metros por 2 a 4 cm de largura;
aa) O que aconteceu sem intenção dos RR. ou da empresa que executou a obra;
bb) O muro foi construído após a construção da casa, faltando as pinturas e tendo a construção durado cerca de um ano;
cc) Sem que os AA. se opusessem e desconhecendo os RR que estavam a ocupar uma parcela do terreno daqueles;
dd) O valor do terreno ocupado com a parte da parede referida em L e a consequente depreciação do prédio referido em A, não foi concretamente apurado, contudo o valor de € 249,40 é excessivo.

1ª Questão.
A mencionada nulidade da sentença da alínea c) do nº 1 do art. 668 do CPC constitui um mero vício lógico do raciocínio em que se traduz o silogismo judiciário, por as premissas contradizerem a conclusão. Exclui assim o erro de aplicação do direito a que os apelantes se querem referir.
Por outro lado, não surge explicitada a omissão de pronúncia que poderia provocar a nulidade da al.ª d) do nº 1 do mesmo artigo.
No que toca à nulidade atribuída à sentença por ter fixado o valor de aquisição a pagar pelos RR. sem dispor de base factual para tanto – al.ª d) do nº 1 do art.º 668 do CPC – também a sua arguição carece de fundamento pela simples razão de que essa questão vinha colocada na reconvenção.
Improcedem, deste modo, as conclusões 1ª e 13ª.

2ª Questão.
Entendem os apelantes que a varanda implantada ao nível do 1º andar no alçado frontal da construção dos RR está abrangida pela restrição do nº 2 do art.º 1360 do Código Civil. E que, para que tal não sucedesse, teriam os RR.-apelados que ter alegado e provado a existência de um parapeito de altura superior a 1,50 metros, o que não cumpriram.
Vejamos.
Acha-se provado, apenas, que tal varanda, no lado direito, se encontra a menos de 1,50 metros da propriedade dos AA. deitando vistas para esta (factos provados em S e T).
No art.º 1360 do CC, com efeito, dispõe-se:
«1. O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
2. Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela».
Tratam-se de mecanismos de moderação do carácter absoluto do direito de propriedade, na vertente do jus aedificandi dentro dos limites da coisa, ditados por uma finalidade preventiva de conflitos nas relações entre donos de prédios vizinhos, tendo por objecto de uma certa conformação da construção, inibidora de excessos ligados aos impulsos de quem dela faz uso. Tal conformação edificativa pode conceber-se para o dono passivo – do prédio vizinho - como um verdadeiro um direito potestativo de impor uma restrição.
No que concerne às varandas (terraços, eirados ou obras semelhantes), é elemento estruturante do facto constitutivo de um tal direito - que assiste ao proprietário passivo (dono do prédio vizinho) – a alegação e prova da existência de parapeito com altura inferior a metro e meio, no todo ou em parte da respectiva extensão. Sendo certo que pela própria ontogénese do vocábulo se não pode conceber varanda sem um anteparo com a função de resguardo (no caso dos autos, aliás, bem visível através das fotografias juntas pelos próprios AA. a fls. 15 e 17). Na verdade, pela respectiva definição, varanda é a «estrutura saliente ao nível do pavimento, rodeada por uma grade ou balustrada com parapeito (Dicionário da Academia das Ciências, Ed. Verbo, 2001). Na norma em apreço – nº 2 do art.º 1360 - o legislador optou pela formulação im-positiva de uma certa altura mínima do anteparo, de harmonia com o interesse do prédio vizinho. Quando é evidente que podia ter escolhido uma formulação de tipo excepcional - designadamente do teor: «salvo se servidos de parapeitos de altura igual ou superior…» - essa sim, inequívocamente, a fazer recair sobre o dono da edificação o ónus da prova do facto que lhe seria então favorável.
Incumbia, por conseguinte, aos AA., como proprietários passivos da construção, a demonstração de que o parapeito da varanda tinha altura inferior a metro e meio, nos termos da previsão da norma do nº 2 do art.º 1360 do CC. Trata-se dos requisitos constitutivos da hipótese de facto (Tatbestand) pressuposta na norma. Não tendo sido apurada nem alegada essa concreta conformação da obra, pelo proprietário vizinho por ela lesado, não está preenchido o condicionalismo substantivo da eficácia do direito de restrição accionado.
Improcedem, por isso, as conclusões 2ª a 12ª inclusive.

3ª Questão.

Por fim insurgem-se os AA., ora apelantes, contra a tomada pela sentença de um valor de € 3,00 a pagar pelos RR., em função da parcela ocupada, tendo por base informações obtidas extraprocessualmente (informalmente na expressão da sentença).
Dispõe o art.º 1343, nº 1 do CC: «Quando na construção de um edifício em terreno próprio se ocupe, de boa fé, uma parcela de terreno alheio, o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido três meses a contar do inicio da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o resultante da depreciação eventual do terreno restante».
Os apelantes não põem em causa no recurso a verificação dos restantes pressupostos desta modalidade de acessão imobiliária, ou seja, a ocupação de boa-fé e o decurso dos três meses da construção sem oposição.
Como se trata de um forma de aquisição originária ope legis a prestação a satisfazer pelo incorporante ou acedente obedece ao critério do justo valor, a apurar pelo tribunal, da parcela incorporada e do eventual restante prejuízo do proprietário ou titular de outro direito real acedido. Como vem sendo entendido, trata-se de uma dívida de valor, reportada ao momento anterior ao início da incorporação. Fixada a quantia respectiva na decisão, mediante actualização até esse momento, passa a existir uma obrigação pecuniária vencida com o trânsito em julgado respectivo.
A este propósito foi dado como provado que «a parede referida em L da casa referida em B ocupa o prédio referido em A numa parcela de terreno com o comprimento de 4 a 5 metros por 2 a 4 cm de largura» (facto provado em Z). E que «se computa em valor não concretamente apurado, mas não superior a € 249,40 que os 2 a 4 cm ocupados pelo erro de construção do muro é excessivo por se tratar de área reduzida» (facto provado em DD) correspondendo à resposta ao nº 33 da base instrutória.
No nº 33 da base instrutória perguntava-se efectivamente o seguinte: «O valor do terreno ocupado com a parte da parede referida no quesito 28° e a consequente depreciação do prédio referido em A) computa-se em Esc. 50.000$00/ € 249,40?». Nada impedia que o tribunal exigisse aos peritos a apresentação dos valores em questão e que tomasse tal contributo para a resposta à pergunta formulada. Tem, por isso, de reputar-se de deficiente a resposta dada.
Surpreendentemente, na sentença, veio a ser fixado o valor da faixa ocupada em apenas € 3,00, com base em «informações obtidas a título informal».
Há que notar, desde logo, que o tribunal não se movia no âmbito de juízos de equidade que autorizassem o uso de uma certa ponderação em função do demais circunstancialismo apurado. Fora desse âmbito, o juiz tinha de fazer apelo à materialidade provada (não se achando em situação que lhe permitia lançar mão das presunções judiciais ou legais, nos termos do art.º 349 a 351 do CC).
E seria sempre imprudente socorrer-se de fontes probatórias não escrutinadas pelo prévio contraditório das partes. O valor da parcela e da eventual depreciação podiam e deviam ser precisamente quantificados por prova pericial «ad hoc», tendo por objecto a avaliação, para os efeitos legais, da estreita faixa incorporada pelos RR. e a eventual depreciação do terreno restante, o que não foi feito.
Deste modo, nos termos do art.º 712, nº 4 do CPC, importa que se anule o julgamento, para ampliação da matéria de facto, apenas com a finalidade do tribunal mandar proceder à avaliação, reportada ao momento anterior à construção, quer da parcela dos apelantes-AA. incorporada pela implantação da referida parede da casa dos RR., quer da eventual depreciação do restante prédio dos mesmos.
Procede, desta forma, a conclusão 17ª, parte final, da alegação de recurso.

Pelo exposto, nos termos do disposto no nº 4 do art.º 712 do CPC, anula-se o julgamento, a fim de que, depois de se mandar proceder à avaliação da parcela de terreno identificada no facto provado em Z e, bem assim, da eventual depreciação do restante terreno do prédio dos AA., venha a ser adequadamente respondido o nº 33 da b. instrutória, sem prejuízo da manutenção da parte da decisão não viciada, sobre os restantes pontos da matéria de facto, que não tenha necessidade de harmonização.
Custas pelos apelados.