Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
528/13.2TBFND-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
ÂMBITO
BEM IMÓVEL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 09/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTº 333º,Nº1,AL.B) DO CÓDIGO DO TRABALHO DE 2009.
Sumário: 1.- O privilégio imobiliário especial, previsto no art. 333 nº1 b) do Código do Trabalho, abrange todos os imóveis do empregador afectos à organização empresarial, não sendo de exigir especial conexão entre o trabalhador e o imóvel.

2.- Muito embora caiba (art.342 nº1 CC) ao trabalhador reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial (art.333 do Código do Trabalho de 2009), designadamente se o imóvel do empregador (apreendido em processos de insolvência) foi o local onde prestava a sua actividade laboral, pode, no entanto, na ausência de alegação, ser este facto adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou proceder à sua indagação oficiosa.

3.- Se os credores/trabalhadores não alegaram expressamente tal facto nas respectivas reclamações e na relação definitiva o Administrador de Insolvência limitou-se a anotar genericamente que os créditos dos trabalhadores tem natureza privilegiada, nos termos do art. 333 CT, incidindo sobre a totalidade dos bens móveis e bens imóveis que venham a integrar a massa, verifica-se insuficiência de facto a implicar a anulação do julgamento (art. 662 nº1 c) CPC).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO
1.1.- Na Comarca do Fundão, por sentença de 16/9/2013, transitada em julgado foi declarada a insolvência da sociedade C…, Lda, com sede no ...
Os credores da insolvência reclamaram os seus créditos e o Administrador de Insolvência apresentou a lista.
O credor M… deduziu impugnação e houve resposta.
1.2.- Por sentença de 1/4/2014 decidiu-se:
Julgar a impugnação procedente e considerar reconhecido e na qualidade de comum o crédito reclamado por M…;
Homologar a lista definitiva de credores reconhecidos, com ressalva do decidido, e julgar verificados os créditos aí constantes.
Graduar os créditos, nos seguintes termos:
“ -Bens móveis
1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem móvel (artigo 172º nº 1 e 2);
2º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação e respectivos juros, pertencentes aos trabalhadores, que beneficiem de privilégio mobiliário geral, nos termos do artigo 333º do Código do Trabalho;
3º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito por contribuições para a Segurança Social que beneficia de privilégio mobiliário geral, nos termos do artigo 10º do DL nº 103/80, nos limites previstos no referido artigo 97º nº 1 alínea a), circunscrito ao montante indicado como privilegiado na lista a que se reporta o art.º 129º do CIRE;
4º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns, devendo ter-se em conta o disposto no art.º 98º, n.º1 do CIRE relativamente ao credor requerente da insolvência;
5º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.
-Bens imóveis
Prédios descritos nas verbas 2, 3 e 5:
1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda do bem (artigo 172º nº 1 e 2);
2º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação e respectivos juros, pertencentes aos trabalhadores, nos termos do artigo 333º do Código do Trabalho;
3º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito reclamado pela C…, Crl., até ao valor garantido por hipoteca voluntária, acrescido dos juros de 3 anos contados desde o início do incumprimento por parte do mutuário, sendo que os que se venceram após essa data assumirão natureza de crédito subordinado;
4º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito por contribuições para a Segurança Social, nos termos do artigo 10º do DL nº 103/80, nos limites previstos no referido artigo 97º nº 1 alínea a), circunscrito ao montante indicado como privilegiado na lista a que se reporta o art.º 129º do CIRE;
5º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns;
6º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.
Prédios inscritos nas verbas 4, 6 e 7
1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda do bem (artigo 172º nº 1 e 2);
2º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação e respectivos juros, pertencentes aos trabalhadores, nos termos do artigo 333º do Código do Trabalho;
3º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito reclamado pelo banco S…, S.A., até ao valor garantido por hipoteca voluntária, acrescido dos juros de 3 anos contados desde o início do incumprimento por parte do mutuário, sendo que os que se venceram após essa data assumirão natureza de crédito subordinado;
4º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito por contribuições para a Segurança Social, nos termos do artigo 10º do DL nº 103/80, nos limites previstos no referido artigo 97º nº 1 alínea a), circunscrito ao montante indicado como privilegiado na lista a que se reporta o art.º 129º do CIRE;
5º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns;
6º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.
Prédio inscrito na verba 1
1º As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda do bem (artigo 172º nº 1 e 2);
2º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação e respectivos juros, pertencentes aos trabalhadores, nos termos do artigo 333º do Código do Trabalho;
3º Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito por contribuições para a Segurança Social, nos termos do artigo 10º do DL nº 103/80, nos limites previstos no referido artigo 97º nº 1 alínea a), circunscrito ao montante indicado como privilegiado na lista a que se reporta o art.º 129º do CIRE;
4º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos comuns;
5º Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos subordinados.
Custas pela massa insolvente – artigo 304º do C.I.R.E.”
1.3.- Inconformada, o Banco S…, SA recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

1.4.- A C…, CRL recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:
1) Na sentença os créditos dos trabalhadores da insolvente foram graduados à frente dos da recorrente, por se entender aplicável o art. 333 nº1 b) do CT, mas esta norma só é de aplicar a imóveis onde o trabalhador exerça a sua actividade e não indiscriminadamente a qualquer imóvel.
2) O trabalhador tem de alegar este facto ou constar do processo elementos de que se possa concluir que a actividade do trabalhador teria qualquer ligação funcional com os imóveis em apreço.
3) Consta do relatório do AI que a insolvente exercia a sua actividade em instalações arrendadas e os imóveis de que a recorrente beneficia de hipoteca estão o primeiro desocupado e os restantes arrendados e destinados à habitação.
4) A sentença violou os arts. 9, 342 e 751 CC, 333 CT, 47, 58, 128, 129 e 130 CIRE.

Não houve contra-alegações.
II - FUNDAMENTAÇÃO
2.1.- A sentença refere que os créditos laborais gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial, nos termos do art. 333 do CT, mas sem explicitação factual, ou seja, sem indicar concretamente se todos os imóveis estavam afectos à actividade dos trabalhadores (credores reclamantes).
As Apelantes objectam dizendo impender sobre os credores reclamantes (trabalhadores) o ónus de alegação e prova (art. 342 nº1 do CC) de que exerciam a actividade nos imóveis, o que não fizeram, e como não há elementos no processo, deve o crédito hipotecário ser graduado com prevalência.
A questão submetida a recurso consiste em saber se os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio imobiliário especial, com prevalência sobre os créditos hipotecários.
2.2.- É ponto assente que o regime jurídico aplicável à graduação de créditos é o vigente na data do decretamento definitivo da insolvência (cf., por todos, Ac STJ de 12/1/2012, proc. nº 91/09.9T2AVR, em www dgsi.pt), e dado que a sentença foi proferida em 16/9/2013, deve convocar-se, para o efeito, o Código de Trabalho de 2009 (aprovado pela Lei nº 7/2009 de 12/2, com entrada em vigor em 17/2/2009) cujo art.333 estatui o seguinte:
“1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios;
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747° do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.”
A propósito da interpretação do nº1 b), adere-se ao entendimento, prevalecente na jurisprudência, no sentido de que o privilégio imobiliário especial abrange todos os imóveis do empregador afectos à organização empresarial, não sendo de exigir especial conexão entre o trabalhador e o imóvel, tendo em conta o princípio da igualdade e o da não discriminação injustificada dos trabalhadores (cf., por ex., Ac STJ de 13/9/2011, proc. nº 504/08.7TBAMR, Ac RC de 26/11/2013, proc. nº 2534/09.2TBVIS, disponíveis em www dgsi.pt).
E como se ponderou no Ac RC de 12/6/2012, proc. nº 1087/10.3TJCBR, em www dgsi.pt, no caso de a insolvente ser uma empresa da construção civil, “ é manifesto que a maioria dos seus trabalhadores trabalhará em obras de terceiros, não na sede ou nos estaleiros da firma, mas não pode entender-se, por isso, que deixam de beneficiar do referido benefício em relação a estes locais, desde que estejam afectos (esses locais) à organização empresarial (para a qual os trabalhadores prestam a sua actividade, afinal…), sob pena de esvaziamento do sentido da lei”.
Compete ao trabalhador reclamante a alegação e prova ( art.342 nº1 CC ) dos factos constitutivos do privilégio creditório especial, designadamente o local onde prestou a actividade laboral, mas o tribunal deverá atender a tudo o que de relevante resultar da globalidade do processo de insolvência, podendo mesmo proceder à indagação oficiosa, para esse efeito (cf., por ex., Ac STJ de 22/10/2009, proc. nº 605/04.0TJVNF, Ac STJ de 6/7/2011, proc. nº 897/06, Ac STJ de 7/2/2013, proc. nº 148/09.6TBPST, em www dgsi.pt), e tem sido esta a orientação seguida aqui na Relação (cf., por ex., , Ac RC de 25/1/2011, proc. nº 897/06, Ac RC de 28/6/2011, proc. nº 494/09, Ac RC de 12/6/2012, proc. nº 1087/03, Ac RC de 1/10/2013, proc. nº 1938/06.7TBCTB, Ac RC de 18/12/2013, Proc. nº 2805/11.8TBVIS, disponíveis em www dgsi.pt ).
Por isso, muito embora caiba (art.342 nº1 CC) ao trabalhador reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial (art.333 do Código do Trabalho de 2009), designadamente se o imóvel do empregador (apreendido em processos de insolvência) foi o local onde prestava a sua actividade laboral, pode, no entanto, na ausência de alegação, ser este facto adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou proceder à sua indagação oficiosa, tanto por aplicação do art. 11 do CIRE (princípio da oficiosidade), como por força das normas do Código de Processo Civil, nomeadamente, as dos arts. 6, 7, 590 do nCPC, ou seja, princípio do inquisitório, princípio da aquisição processual.
Verifica-se efectivamente que os credores/trabalhadores não alegaram expressamente tal facto nas respectivas reclamações e na relação definitiva o Administrador de Insolvência limitou-se a anotar genericamente que os créditos dos trabalhadores tem natureza privilegiada, nos termos do art. 333 CT, incidindo sobre a totalidade dos bens móveis e bens imóveis que venham a integrar a massa insolvente.
Os elementos probatórios não são suficientes para se ter como processualmente adquirido o facto de que os bens imóveis estavam afectos à organização da empresa e sobre o qual incide a garantia do privilégio imobiliário especial, nos termos do art. 333 do Código do Trabalho, e cuja averiguação se seria necessária, tanto que na sentença não consta qualquer facto concreto sobre se os imóveis estavam ou não afectos à actividade empresarial da insolvente, atento o objecto social.
Comos os factos são insuficientes, impõe-se, nos termos do art. 662 nº1 c) CPC, anular a sentença impugnada, na parte em que reconhece aos créditos dos trabalhadores privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis e que os gradua com prevalência em relação aos créditos das Apelantes, devendo o tribunal a quo averiguar tais factos, após as diligências que reputar necessárias, para o efeito ( cf., em sentido similar, por ex., Ac RC de 18/12/2013, proc. nº 2805/11.8TBVIS, em www dgsi.pt).
2.3.- Síntese conclusiva:
1.- O privilégio imobiliário especial, previsto no art. 333 nº1 b) do Código do Trabalho, abrange todos os imóveis do empregador afectos à organização empresarial, não sendo de exigir especial conexão entre o trabalhador e o imóvel.
2.- Muito embora caiba (art.342 nº1 CC) ao trabalhador reclamante a alegação dos factos constitutivos do privilégio imobiliário especial (art.333 do Código do Trabalho de 2009), designadamente se o imóvel do empregador (apreendido em processos de insolvência) foi o local onde prestava a sua actividade laboral, pode, no entanto, na ausência de alegação, ser este facto adquirido processualmente, socorrendo-se o tribunal dos elementos constantes do processo ou proceder à sua indagação oficiosa.
3.- Se os credores/trabalhadores não alegaram expressamente tal facto nas respectivas reclamações e na relação definitiva o Administrador de Insolvência limitou-se a anotar genericamente que os créditos dos trabalhadores tem natureza privilegiada, nos termos do art. 333 CT, incidindo sobre a totalidade dos bens móveis e bens imóveis que venham a integrar a massa, verifica-se insuficiência de facto a implicar a anulação do julgamento (art. 662 nº1 c) CPC)
III – DECISÃO
Pelo exposto, decidem:
1)
Anular a sentença parte em que reconhece aos créditos dos trabalhadores privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis e que os gradua com prevalência em relação aos créditos das Apelantes, devendo o tribunal a quo averiguar tais factos, após as diligências que reputar necessárias, para o efeito
2)
Custas pela parte vencida a final.
Coimbra, 23 de Setembro de 2014.

( Jorge Arcanjo - Relator)
( Teles Pereira )
( Manuel Capelo )