Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
135/12.7TACNF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
TIPO DE CRIME
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Data do Acordão: 03/20/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 227.º DO CP; ART. 3.º, N.º 1, DO CIRE
Sumário: I – O tipo de crime de insolvência dolosa, hoje previsto no artigo 227.º do CP, deixou de exigir que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação posterior de declaração de insolvência, bastando apenas a ocorrência de uma das actuações descritas no n.º 1 do referido preceito legal, realizada com a intenção de prejudicar os credores.

II – A situação de insolvência, com o respectivo reconhecimento judicial, constitui agora uma condição objectiva de punibilidade.

III – A punibilidade das condutas descritas no n.º 1 do artigo 227.º do CP depende da existência de uma situação de insolvência, com verificação judicial, e não de um caso de falência meramente técnica.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. A sentença datada de 22 de Março de 2018 proferido no âmbito destes autos decidiu:

- Absolver a arguida A. da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo art. 227.°, n.º 1, al.s, a), b) e c) e n." 3, do Código Penal;

- Absolver o arguido B. da prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo art. 227.°, n.º 1, al.s a), b) e c) e n.º 2, do Código Penal;

- Julgar extinto o procedimento criminal contra os arguidos C. e D. por efeito da prescrição (artigos 118°, n° 1, al. c) e artigo 121°, n.° 1, al. a) do Código Penal).

- Condenar o arguido E. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime insolvência dolosa, previsto e punido pelo art. 227.°, n." 1, al.s, a), b) e c) e n.º 3, do Código Penal, na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de 1.750 (mil, setecentos e cinquenta) euros;

- Condenar o arguido E. a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, nos termos dos art.s 513.°, e 514.°, n." 1, do Código de Processo Penal, e art. 8.°, n." 9, do Regulamento das Custas Processuais.


*

2. Inconformado com a condenação, dela recorre, o arguido, E., formulando as conclusões seguintes:

1 - Foi o arguido condenado a pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime insolvência dolosa, previsto e punido pele; art.227º, n.º 1, als. a), b), e c) e n.º 3, do Código Penal, na pena de 350 dias de multa à taxa diária de 5,00€, num total de 1 750€.

2 - Com base em factos, suscetíveis de preencher as condutas descritas o referido tipo legal.

3 - Contudo, tal como resulta da matéria dada como provada as condutas apreciadas nos presente autos foram todas posteriores à situação de insolvência da (…).

4 - Ou seja, claramente não foram as, condutas descritas na sentença que originaram a situação de insolvência.

5 - Aliás, facto que o tribunal ad quo reconhece:

6 - “ Tudo ponderado, torna-se claro que perante uma situação de insolvência que era já irreversível (...)”..

7 - Conforme refere a douta decisão que ora se impugna, a par da quase unânime doutrina e jurisprudência, a declaração de insolvência não é elemento do facto típico, mas antes uma condição objetiva de punibilidade.

8 - Pelo não carece se se verificar um nexo de adequação entre as condutas descritas no tipo e a declaração judicial de insolvência:

9 - Contudo, terá de haver, sim, entre as condutas e a situação de insolvência.

10 - Deverá distinguir-se 3 conceitos: as condutas típicas; a situação de insolvência e a declaração judicial de insolvência.

11 - A conduta e a situação de insolvência são elementos dó facto típico e, portanto, carecem de ser imputados objetiva e subjectivamente ao agente,

12 - O que não se verifica no caso concreto, pois desde logo, as condutas são posteriores à situação de insolvência.

13 - A declaração judicial de insolvência, sendo uma condição objetiva de punibilidade não carece de ser dominada pelo agente, quer ao nível tipicidade objetiva e subjectiva.

14 - A interpretação histórica, do artigo 227º é mais contundente com a necessidade de causalidade entre os factos e a situação de insolvência.

15 - Se a causalidade entre as condutas e a situação de insolvência resultava da lei, como situação agravante, que deixou de existir e a moldura penal antigamente agravante, passou a ser a moldura penal do crime na forma simples, actualmente só pode significar que a causalidade é-lhe inerente.

16 - Pedro Caeiro refere que ao existirem duas condições de punibilidade se incriminam, simples intenções e põe em causa a livre disposição dos próprios bens, sem haver um perigo para o património dos credores. Por outro lado, refere que as condutas podem causar simultaneamente um dano e um perigo para o bem jurídico. Acresce que o perigo para os credores reside “justamente na situação de insolvabilidade do devedor” e não na mera prática daquelas condutas que reflectem a “violação do dever de administração prudente do próprio património";

17 -  Por fim, invoca três argumentos formais: uma consistiria no facto de ser supérfluo dar o mesmo estatuto à situação de insolvência e à sua declaração, pois “a declaração de insolvência supõe necessariamente a verificação do estado que a declara”; em segundo, o legislador não pode ter querido que o julgador penal averigue uma situação de insolvência já analisada pelo julgador civil; por último, considera curioso que o facto que dá nome aos crimes - insolvência - não se inclua no “juízo de ilicitude, nem tenha de ser abrangido pelo dolo”.

18 - Mesmo que assim não se considere é certo, e unanime em termos doutrinais e jurisprudenciais, que a situação de insolvência resulte após as condutas incriminatórias.

19 - É uma questão puramente naturalista quando se fala em infração penal.

20 - O crime tem por fim evitar a “morte patrimonial, da empresa”;

21 - O legislador incrimina condutas que periguem a, verificação de tal acontecimento;

22 - Logo, entre as condutas e a situação de insolvência tem de existir uma relação cronológica. Aquelas têm de ser anteriores a esta”.

23 - Todas as condutas descritas na acusação são anteriores à situação de insolvência;

24 - É certo que a redação anterior era mais clara, mas não significante da desnecessidade de correlação entre as condutas típicas e a situação de insolvência.

25 - De contrário estaríamos a punir condutas sem dignidade penal, violando assim o princípio da Intervenção mínima.

26 - A sociedade já estava em irreversível situação de insolvência quando os atas que mereceram a censura pelo tribunal aconteceram.

27 - Não é a intenção do nosso legislador ordinário, e constitucional, especialmente quando estamos em sede de lei penal.

28 - É assim inconstitucional, por violador dos artigos 18º e 29º n.º da CRP, a interpretação do artigo 227º do CP, no sentido que as condutas posteriores à situação de insolvência, e assim destas não causais, continuam a ser punidos como elementos do facto típico. Pois a situação de insolvência é um elemento posterior às condutas descritas no artigo 227º, do CP, ao contrário da declaração de insolvência que é uma mera condição objectiva da punibilidade. 

29 – Pelo que deverá o arguido ser absolvido pelo crime de insolvência dolosa, pois as condutas dadas como provadas aconteceram já após a situação de insolvência.

3. O Ministério Público, em primeira instância, respondeu à motivação dos Recorrentes, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.

4. Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, nos termos de fls. 1107 a 1109.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, nada obstando ao conhecimento de mérito do Recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A primeira instância julgou provados os seguintes factos:

1) A sociedade (…), é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 06/04/1995, com sede em (...) , com objecto social de construção civil e obras públicas.

 2) A sociedade Construções (…) era representada pelos sócios-gerentes E. e A., ora arguidos.

3) A sociedade (…) foi constituída em 01/01/2009, com sede (…) e conta com único administrador o arguido C.

4) A sociedade (…), foi constituída em 23/12/2008 pelo arguido C. e tem sede em (…).

5) Em 02/12/2011 o arguido C. renunciou à gerência da sociedade (…), sendo a mesma atribuída ao arguido D., em 05/12/2011.

6) Por sua vez, em 24/11/2014 o arguido C. renunciou à gerência tendo sido novamente designado o arguido I. gerente da sociedade (…), em 06/12/2014.

7) A sociedade (…) foi criada em 17/03/2004, com sede no (…) e era representada, nessa data, pelos arguidos E. e A.; não obstante as posteriores alterações societárias, A. sempre se manteve como gerente.

8) Por sua vez, a sociedade (…) foi criada em 23/12/2008, com sede (…), sendo representada pelo arguido D.

9) Os arguidos E e A. são casados entre si.

10) Por sua vez, os arguidos E., C. e B. são irmãos.

11) O arguido D. prestou serviço à sociedade (…) através de contrato de trabalho.

12) No ano 2006, os arguidos E. e A. realizaram um aumento de capital na sociedade Construções (…), sucede que nunca chegaram a realizar esse aumento, ficando em dívida à sociedade o valor global de €75.024,04 (correspondendo a cada um o montante de €37.512,02).

13) No ano de 2008, a sociedade (…) apresentou um capital negativo de 235.414,96€, estando numa situação de falência técnica por apresentar um passivo superior ao ativo líquido.

14) O arguido D. requereu a insolvência da sociedade (…) por dívidas provenientes de créditos salariais, num total de €42.175,96 euros.

15) Por decisão de 15/10/2009, proferida no âmbito do processo n.º 331/09.4TCNF, que correu termos no Tribunal Judicial de Cinfães, foi a sociedade (…) declarada insolvente.

16) A insolvência da sociedade (…) foi considerada culposa por decisão transitada em julgado.

17) Em data não concretamente apurada, mas antes de 28 de Dezembro de 2008, os arguidos C., E. e D. delinearam um plano para dissipar património da sociedade (…), transferindo a propriedade dos bens da esfera jurídica desta para a esfera jurídica dos arguidos C., E. e D. e das sociedades por estes representadas, para que os credores da sociedade não satisfizessem os créditos que sobre esta detinham.

18) Assim, em 28 de Outubro de 2008, os arguidos E. e A., em nome da sociedade (…), venderam a (…) uma parcela de terreno pelo valor de €25.000.

19) Na sequência do negócio, (…) procedeu à entrega do valor de €25.000,00, por intermédio de cheque.

20) A 14/3/2009, (…) (e sua esposa) prometeram vender à (…), representada pelo arguido C., com eficácia real, a mesma parcela, pelo preço de 30.000€, tendo a escritura de compra e venda sido celebrada no dia 7/4/2010, por esse preço.

21) Para execução do plano constante de 17, o arguido C. em 23/12/2008 procedeu à constituição da sociedade (…).

22) No dia 24/01/2009, por escritura pública o arguido E. na qualidade de legal representante da sociedade (…) procedeu à venda de quatro fracções autónomas com as letras A, B, C e D do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) , sob o n.º (...) da freguesia de (...) , concelho de (...) à sociedade (…) pelo preço de €160.000,00 (cento e sessenta mil euros), a qual era representada pelo arguido C.

23) O citado valor seria pago a trinta dias a contar da data da escritura pública.

 24) A sociedade Construções (…) recebeu pela venda das citadas frações a quantia de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), ficando em dívida a quantia de €S5.000,00 (oitenta e cinco mil euros), valor que nunca foi pago à sociedade.

25) A venda das fracções foi realizada com ónus e encargos, nomeadamente, a favor do Banco (…), no valor global de €139.S00,00.

26) As citadas fracções foram posteriormente vendidas à sociedade (…) em 03/02/2010, também representada pelo arguido C., na qualidade de único administrador da mesma sociedade.

27) No período compreendido entre o ano 200S e 2009, o arguido E. em representação da sociedade (…) vendeu à sociedade (…), também por si representada:

- o veículo automóvel, da marca Mitsubishi, de matrícula (…), pelo valor de €2000,00 (a 30/1/2009);

- o veículo automóvel, da marca Opel Vivaro, de matrícula (…), pelo valor de €12.500,00 (30/1/2009);

- uma grua tecno, modelo 15x17x3P, pelo valor de €5000,00 (5/12/200S);

- um HP, um monitor Samsung, uma Nespresso Krups, um dispensador de água e dois ares condicionados, tudo pelo valor de €1.150,00 (9/4/2009).

28) Sendo que em Setembro de 2009, em termos contabilísticos a sociedade (…) apresentava um saldo credor de €19.149,12.

29) O veículo de matrícula (…) em 06/02/2009 foi registado em nome da sociedade (…) e em 22/10/2009 foi registado em nome da sociedade (…).

30) Por sua vez, o veículo de matrícula (…), em 05/01/2009 foi registado em nome da (…) e em 15/12/2009 da sociedade (…).

31) Em 8/09/2009, o arguido E. em representação da sociedade Construções (…) vendeu à sociedade (…):

- um fax Samsung, um computador, uma impressora HP, uma máquina de calcular casio, uma destruidora de papel, um computador Intel Core, mobiliário de escritório, uma fotocopiadora Ricoh, um contentor, um desumificador e uma instalação de central telefónica, tudo pelo valor global de €7515,00.

 - duas misturadora, uma rebarbadora, dois martelos demolidores, um inverter, uma máquina de lavar, um gancho e um vibrador enar, tudo pelo valor global de €1015,02.

32) Ora, na sequência das vendas à sociedade (…) os valores de €7515,00 e de €1015,02 foram contabilizados na conta de outros devedores [2681009 – ] tendo os recebimentos sito registados em Setembro de 2009, ficando a conta saldada, no entanto, o recebimento do valor de €1015,02 foi registado na conta (..)..

33) Em 30/01/2009, o arguido E em representação da sociedade (…) vendeu ao arguido B. o veículo automóvel, marca Renault, de matrícula (…), pelo valor de €2.500,00.

34) A venda foi contabilizada na contabilidade da sociedade Construções (…) em Janeiro de 2009 na conta outros devedores (…), pelo valor de 7.500€. Sendo que a contrapartida foi registada na conta (…), pelo mesmo valor.

35) Em 30/01/2009, o arguido E. em representação da sociedade Construções (...) , Lda. (…) ao arguido D. o veículo automóvel, marca Audi, de matrícula (…), pelo valor de €20.000,00.

36) Tal valor foi contabilizado na contabilidade da sociedade (…) em Fevereiro de 2009 na conta outros devedores (…). Sendo que o valor de €20.000,00 foi registado na conta (…), não obstante o valor de €5000,00 ter sido pago através de cheque.

37) Com os citados negócios a sociedade (…) ficou desprovida de bens e esquipamentos necessários à prossecução da actividade, ficando paralisada e como tal impossibilitada de realizar o seu fim e de satisfazer os créditos, o que os arguidos qu1seram.

38) Causaram assim à sociedade (…) um prejuízo de pelo menos 106.015,02€;

39) Os arguidos C. e D. sabiam da situação de insolvência da sociedade (…) e que a mesma estava iminente e que os actos praticados constituíam prejuízo para a sociedade.

 40) Atenta a conduta dos arguidos, os credores da sociedade ficaram impedidos de obter a cobrança coerciva dos seus créditos à custa do património daquele, pois que o arguido E., em comunhão de esforços com os arguidos C. e D. esvaziaram a esfera patrimonial da sociedade (…), deixando na mesma apenas o passivo.

41) Os arguidos E., C. e D. agiram de forma livre, deliberada e consciente em conjugação de esforços e na execução de plano previamente gizado entre todos, fazendo constar da contabilidade sociedade (…), como liquidadas as vendas de bens da sociedade, quando tal não correspondia à verdade, bem como fizeram desaparecer património, nomeadamente, transferindo-o para os arguidos C., B. e D. por forma a obterem um benefício para eles, com vista a que os credores da sociedade (…) não vissem os seus créditos satisfeitos.

42) Os arguidos sabiam que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.

Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos:

(…).

Quanto às suas condições sócio-económicas:

(…).

2.2. - Factos não provados

A) Os arguidos B. e A. participaram no plano referido em 17).

B) O arguido B. sabia da situação de insolvência da sociedade (…) e que a mesma estava iminente e que os actos praticados constituíam prejuízo para a sociedade.

C) Os arguidos B. e A., em comunhão de esforços com os arguidos E., C., e D., esvaziaram a esfera patrimonial da sociedade (…), deixando na mesma apenas o passivo.

D) Os arguidos B. e A. agiram de forma livre, deliberada e consciente em conjugação de esforços e na execução de plano previamente gizado com os demais arguidos, fazendo constar da contabilidade sociedade (…), como liquidadas as vendas de bens da sociedade, quando tal não correspondia à verdade, bem como fizeram desaparecer património, por forma a obterem um benefício para eles, com vista a que os credores da sociedade (…) não vissem os seus créditos satisfeitos.

E) A venda referida em 18) e 19) foi pelo valor de 40.000€, tendo a diferença de 15,000€ para os 25.000€ pagos ficado por conta de um empréstimo pessoal concedido ao arguido E.

F) Nenhum valor foi pago pelos bens referidos em 27).

III. OBJECTO DO RECURSO

Insurge-se o Recorrente contra a decisão condenatória, suscitando a questão de saber se a incriminação da insolvência perfectibilizada no artigo 227º, n.º 1, do Código Penal (crime pelo qual foi condenado), integra, na tipicidade objectiva, a verificação da «situação da insolvência» ou, se esta constitui uma condição objectiva de punibilidade.

Sabido que a situação de insolvência não se confunde com reconhecimento judicial da mesma, a questão da causalidade adequada entre a conduta e a insolvência coloca-se há muito na doutrina e jurisprudência.

Em causa está, assim, a interpretação do artigo 227º, n.º 1, do Código Penal, na redacção vigente à prática dos factos, onde se lê:

«O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando coisas, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros, ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias».

A redacção deste preceito não corresponde à versão inicial do Código Penal de 1982, onde se previa no artigo 325º, n.º 1:

«1 - O devedor comerciante que com a intenção de prejudicar os seus credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu activo, dissimulando objectos, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, particularmente por meio de contabilidade inexacta ou de falso balanço;

c) Para retardar a falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

será punido, se vier a ser declarado em estado de falência, com prisão até 5 anos».

Não bastava, assim, a prática das condutas referidas nas diversas alíneas do nº 1 para preenchimento do crime de falência dolosa, exigindo-se, também, como condição, a circunstância de o devedor comerciante vir a ser declarado em estado de falência.

A incriminação da falência não afastou a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a questão de saber se a conduta típica imputada ao agente devia ser causalmente adequada do estado de falência.

Lopes do Rego, em anotação ao artigo 325º, faz notar que, no caso previsto da alínea a), do nº 1, a conduta típica mostra-se causalmente adequada a desencadear a situação de impotência económica do devedor do comerciante, enquanto nas hipóteses previstas nas alíneas b) e c) do nº 1, é indispensável que a aludida situação de impotência económica já exista aquando das condutas descritas.» Crimes contra o Património em Geral, Notas ao Código Penal 313º a 333º, Rei dos Livros, 1983, pág. 115 e 116.

Já o Supremo Tribunal de Justiça, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Setembro de 1993, in CJ, ACSTJ, 1993, III, pág. 213, seguindo a orientação de Simas Santos, defende que o crime não exige a verificação de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e a ocorrência da falência, já que se trata de um crime de perigo. A exigência da declaração do estado de insolvência constitui uma condição objectiva de punibilidade.

Recorde-se, que as condições objectivas de punibilidade são elementos situados fora da acção típica e ilícita, cuja presença constitui um pressuposto para que a aquela mesma acção tenha consequências penais. São circunstâncias que directamente relacionadas com o facto típico, mas não pertencem nem ao tipo objectivo nem subjectivo. A punibilidade não é característica geral do crime, como elemento do crime, mas a sua consequência, embora não haja crime que não seja um facto punível. As condições objectivas de punibilidade constituem pressupostos materiais de punibilidade (Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral II – Teoria do Crime, p.39).

A condição objectiva de punibilidade constitui-se numa circunstância extrínseca ao delito, para a qual é estranha a culpa do agente.

Com entrada em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-lei nº 132/93, de 23 de Abril - diploma que pretendeu completar «uma viragem histórica, especialmente significativa sob vários aspectos, na área do processo civil executivo, com sérias e benéficas repercussões na vida económica do País» (Preâmbulo) - operou-se a primeira modificação da incriminação da falência contida no Código Penal de 1982, onde se insere o citado artigo 325º, que passou, no que interessa, a ter a seguinte redacção:

«1 - O devedor que, com intenção de prejudicar os credores:

a) (…)

b) (…)

c) (…)

d) (…)

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2 - Se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias».

A menção da ocorrência de uma situação insolvência que vier a ser reconhecida judicialmente e a introdução de um novo preceito, o nº 2 - se a falência vier a ser declarada judicialmente em consequência da prática de alguns actos previstos no nº anterior, é punida (…) - constituíram fundamento para que se defendesse, de um lado, que o estado de insolvência constitui um elemento do tipo ilícito, e, de outro, a exigência do nexo causal entre a prática dos factos e a verificação da falência, sendo o reconhecimento judicial do estado de insolvência, um mera condição objectiva de punibilidade.

Dois anos mais tarde, a Revisão do Código Penal de 1995 procede a novas alterações das incriminações falimentares, introduzindo o artigo 227º. Este preceito mantém, de um lado no nº1, a ocorrência da situação de insolvência e o reconhecimento judicial e, de outro, a incriminação mais grave do nº 2, do anterior 325º, do Código Penal de 1982, para os casos em que a insolvência fosse declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior.

As alterações legislativas restruturam os elementos típicos do crime a partir das inovações do regime da falência e do processo de recuperação de empresas.

«A tutela penal passou a referir-se a um estado – a insolvência – cuja existência é suficientemente substancialmente (…) para ser ponto de referência de um verdadeiro resultado típico. Assim, em primeiro lugar, o crime de insolvência dolosa que substitui a falência dolosa, inclui a ocorrência da situação de insolvência como elemento do tipo, o que não se verificava na vigência do artigo 325º, na versão originária do Código de 1982, relativamente ao estado de falência. Na verdade, este preceito exigia, apenas, independentemente de conexões causais, a declaração de falência que era entendida pela doutrina como condição objectiva de punibilidade. E, em segundo lugar e, em segundo lugar, o nº 2, do artigo 227º exige agora, inovatoriamente, que a própria declaração de falência seja consequência da prática dos actos previstos nas diversas alíneas do n. 1.

As condutas típicas dolosas parecem ter sido restruturadas em termos de uma certa conexão causal entre as acções proibidas e a ocorrência de um evento objectivo – a situação de insolvência – que é simultaneamente, o fundamento da efectiva lesão da ordem jurídica. No nº 2 do artigo 227º, é clara a referência a uma conexão entre a acção e a própria declaração de falência. E, no nº 1, parte final, a ocorrência da situação de insolvência deixa em aberto a dúvida sobre se estamos perante uma condição objectiva de punibilidade em sentido próprio, meramente limitativa da punibilidade de acções em si mesmas perigosas, ou se o legislador continuou a pretender a estruturação típica tradicional. Neste último caso, terá continuado a associar a uma grande amplitude de acções proibidas – que não necessitariam de ser concretamente adequadas à criação da situação de insolvência – uma condição de punibilidade igualmente ampliadora, atributiva em si mesma, de dignidade penal a acções eventualmente não perigosas no caso concreto.

A chave da interpretação do artigo 227º, n. 1, parece ser o próprio artigo 227º, nº 2. A relação expressamente prevista no nº 2 não é, na verdade, uma efectiva relação de causalidade (expressa conditio sine qua non) entre a prática dos factos e a declaração de falência, pois esta declaração só pode surgir em consequência de decisão judicial e nunca é o desfecho necessário ao preenchimento dos factos indiciadores da situação de insolvência do devedor (…).

A referida conexão apenas pode significar que os factos descritos no nº 1 do artigo 227º, do Código Penal produziram inviabilidade económica e financeira) da empresa insolvente (independentemente do reconhecimento judicial da insolvência), nos termos do nº 1 e 2, do Código de Processo de Recuperação de Empresa e Falência, sendo a declaração judicial da falência condição objectiva de punibilidade própria (limitativa da punibilidade), extrínseca ao poder causal do agente.» Aspectos Penais da Falência e da Insolvência, Reformulação dos Tipos incriminadores e Reforma Penal, RFDUL, V. XXXVI nº 2, 401 a 416.

Em 2004, o Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março elimina a previsão do n.º 2, do artigo 227º, mantendo, passando o artigo 227º, nº 1, a ter a seguinte redacção:

«1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores:

a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;

b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida;

c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou

d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente;

é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias».

As sucessivas alterações legislativas (em especial esta última que, com a eliminação do nº 2 do citado artigo 227º) vieram reforçar a ideia de que a incriminação da insolvência dolosa deixou de exigir na tipicidade que a actuação do devedor seja causa directa e necessária da situação e posterior declaração de insolvência, bastando apenas que se mostre preenchido o tipo de ilícito que se verifique uma das actuações descritas no nº 1 do preceito em análise, realizadas com intenção de prejudicar os credores.

A este propósito, escreve Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, pág.s 343/344:

«No âmbito da redacção anterior, exigia-se que a falência que viesse a ser declarada em consequência da prática dos referidos factos, o que implicava a exigência de uma relação de causalidade entre os referidos comportamentos e a declaração da falência. Actualmente, no entanto, deixou de se exigir essa relação, exigindo-se apenas que ocorra a situação de insolvência e esta venha a ser judicialmente reconhecida (…). Estamos assim perante meras condições objectivas de punibilidade do agente, o que implica que hoje, os crimes insolvenciais tenham que ser qualificados como crimes de perigo abstrato, cuja ilicitude corresponderia aos comportamentos previstos no tipo respectivo e cuja punibilidade seria limitada de duas condições objectivas: a ocorrência da insolvência e o respectivo reconhecimento judicial. Estas condições de punibilidade teriam como função a confirmação da perigosidade típica dos comportamentos incriminados nas várias alíneas, e daí a exigência para que o agente possa ser sancionado».  

Nesta senda, são elementos do tipo: o elemento material concretizado na acção típica descrita nas várias alíneas do nº, 1, do preceito em análise – reconduzidas por Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense, parte especial, tomo II, pág. 412 e 413), a cinco grupos: a) as condutas que provocam diminuição real do património; b) condutas que provocam uma diminuição fictícia do património liquido; c) condutas que visam ocultar uma situação de crise conhecida do devedor; d) a não justificação da aplicação regular dos valores pelo devedor concordatário; e e) a prática de uma das condutas referidas por parte de um terceiro, como o conhecimento do devedor ou em seu beneficio – e o elemento subjectivo mediatizado na intenção, por parte do sujeito activo, de prejudicar os credores.

E condição objectiva de punibilidade, a situação de insolvência com o respectivo reconhecimento judicial.

«A punibilidade das condutas previstas no nº 1 está subordinada ao reconhecimento judicial da situação da insolvência, acto que não se confundindo com a ocorrência dessa situação, constitui uma condição objectiva de punibilidade (…). Na verdade, é o reconhecimento judicial da insolvência que evidencia a insatisfação dos credores e, portanto, o perigo penalmente perseguido: se o devedor causa ilícita e culposamente a sua própria impotência económica mas consegue satisfazer os interesses dos credores (porque possui ainda património superavitário, porque negoceia com êxito uma redução das suas dívidas, etc) e a insolvência não é, por esse facto, objecto de reconhecimento judicial, o facto carece de dignidade penal (…). Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 425.

«A declaração judicial da insolvência é uma condição objectiva de punibilidade (…) mas a declaração de insolvência deve ter uma conexão histórica com os actos típicos, já que a declaração de insolvência resultante de causas fortuitas, ainda que anteriores, contemporâneas ou posteriores ao referidos actos típicos, não é condição de punibilidade (…).

Compete então proceder a um juízo sobre a importância relativa destes factores com vista a apurar qual ou quais foram determinantes da situação da insolvência. Concluindo-se que foram determinantes os actos típicos, estabelece-se uma conexão histórica entre estes actos e a declaração de insolvência, devendo considerar-se verificada a condição objectiva de punibilidade». Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pág. 878.

Posto isto, voltemos ao caso concreto, pois qual quer que seja a posição que se tome sobre esta questão, nenhuma dúvida subsiste que a conduta dos arguidos visou a diminuição efectiva do património da sociedade (…), com vista a determinar um estado de insolvência que a impossibilitasse de cumprir as obrigações que tinha assumido para com os credores, sendo, no caso irrelevante, que, em 2008, aquela se encontrasse em falência técnica.

É que, a punibilidade das condutas descritas no nº 1, do citado artigo 227º, depende da existência da situação de insolvência da empresa (com verificação judicial) e não da falência técnica, conceitos de natureza e amplitude diferentes.

A falência técnica da pessoa singular ou colectiva dá-se quando o passivo é superior ao activo, enquanto a situação de insolvência se verifica quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações.

O que verdadeiramente importa para a punição do crime de insolvência dolosa, é que se verifique e apure, em concreto, se, para além da falência técnica, uma determinada empresa ou outra pessoa colectiva está ou não em situação de insolvência.

Não indicando a legislação criminal, o que se deve entender por situação de insolvência, a densificação do conceito, há-de buscar-se no regime que regula a insolvência e a recuperação de empresas, designadamente, no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, diploma que procedeu à alteração do regime da insolvência e implicou uma alteração dos tipos criminais incluídos no Código Penal, eliminando todas as referências a falência, substituindo-as por insolvência (nº 50, do Preâmbulo).

A declaração de insolvência é antecedida de um processo judicial de insolvência - «tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores» (artigo 1º, nº 1, do CIRE) – que pressupõe uma situação de insolvência.

O artigo 3º, nº 1, CIRE, define como insolvente, «o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas», enquanto o nº 2, do mesmo preceito e diploma, reportando-se às pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, considera-as insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis».

«Ser insolvente significa ser incapaz de cumprir as suas obrigações, mas essa incapacidade tem de ser certificada em determinado momento através da declaração de insolvência (…) incapacidade de cumprimento que pressupõe uma avaliação complexa podendo ser realizada através de dois critérios: o critério de fluxo de caixa – cash flow; o critério do balanço ou do activo patrimonial – balance sheet ou asset» - Luís Menezes Leitão, obra citada.

Para que se verifique uma situação de insolvência não basta que o passivo seja superior ao activo. É necessário que o passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliado segundo regras contabilísticas aplicáveis.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a aceitar pacificamente que o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do cumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações, ou até de uma única, indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante» Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, I. Vol., 2005, págs. 70 e 71 e Acórdão da Relação do Porto de 26 de Outubro de 2006 (www.dgsi.pt).

«O simples défice patrimonial (…) não ofende o bem jurídico protegido, pois a possibilidade de recurso sistemático ao crédito, permitindo o adimplemento pontual das obrigações, não constitui um perigo relevante para o património dos credores. Por outro lado, a superioridade do activo em relação ao passivo não é suficiente para afastar esse perigo quando o devedor impossibilitado de pagar pontualmente tem por principais credores aqueles agentes económicos cuja actividade depende estruturalmente do crédito. Aqui, cria-se um perigo de prejuízos difusos que transcendem os montantes pecuniários dos créditos insatisfeitos, perigo esse que justifica uma intervenção penal. Quer isto dizer que a causação da própria crise económica por parte de um devedor (…) só é penalmente relevante quando esse devedor tenha violado o dever de manter a capacidade de pagar pontualmente» Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense, parte especial, tomo II, pág. 421).

Acresce que:

«O devedor comerciante, uma vez impossibilitado de cumprir as suas obrigações, fica obrigado a não praticar as condutas descritas porquanto estas mostram uma especial aptidão para causar o défice patrimonial (ou caso ela já exista para agravá-lo). A conjugação da situação de insolvabilidade existente no momento da prática do facto com a especial perigosidade das condutas proibidas oferece uma base suficiente para a construção de um crime de perigo abstracto, que é simultaneamente um crime formal (não se exige a prova da efectiva causação ou agravamento do défice patrimonial para a consumação do crime). Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense, parte especial, tomo II, pág. 418.    

Posto isto, analisada a matéria de facto fixada pela primeira instância e não impugnada pelo Recorrente, nenhuma dúvida subsiste que a conduta dos arguidos é anterior à denominada falência técnica e à situação de insolvência da sociedade (…).

Concretizando:

A «falência técnica» da sociedade referida no facto provado sob o nº 13 diz respeito ao ano de 2008 e compreende todos os actos contabilizados até 31 de Dezembro do mesmo ano. 

Antes dessa data, os arguidos C, E. e D. delinearam um plano para dissipar o património da (…), transferindo para a esfera jurídica dos arguidos C, E. e D. e sociedades por estas representadas, para que os credores da sociedade não satisfizessem os créditos que sobre esta detinham.

Para este efeito,

No ano de 2006, o Recorrente e (…) realizaram um aumento de capital na sociedade (…), mas nunca chegaram a realizar esse aumento, ficando em divida à sociedade o valor global de 75 024,04€.

Em 28 de Outubro de 2008, os arguidos D. e A., em nome da Sociedade (…), venderam a (…) uma parcela de terreno pelo valor de 25 000,00€, quantia que este entregou por meio de cheque.

Mais tarde, em 14 de Março de 2009, (…) (e sua esposa) prometeram vender à (…), representada pelo arguido C., com eficácia real, a mesma parcela de terreno, pelo preço de 30 000,00€, tendo a escritura de compra e venda sido celebrada no dia 7 de Abril de 2010.

Em 23 de Dezembro de 2008, o arguido C. constituiu a Sociedade (…), tendo renunciado à gerência, em 2 de Fevereiro de 2011, sendo a mesma atribuída a D., em 5 de Fevereiro de 2011.

Já em 24 de Novembro de 2014, o arguido C. renunciou à gerência da (…), sendo, de novo designado como gerente, o arguido C..

No mesmo dia 23 de Dezembro de 2008, foi criada a Sociedade (…), representada por D., arguido que prestava serviço à Sociedade (…) através de contrato de trabalho, e que requereu a insolvência desta empresa, por dividas provenientes de créditos salariais, num total de 42.175,96€.

Em 1 de Janeiro de 2009, foi constituída a Sociedade (…) contando como único administrador, o arguido C..

No dia 24 de Janeiro de 2009, por escritura pública, o arguido E., na qualidade de representante das (…), vendeu quatro fracções autónomas à Sociedade (…), pelo preço de 160 000,00€, aqui representada pelo arguido C., cujo preço seria pago no prazo de 30 dias.

Constituídas as sociedades acima referidas para executar o plano dos arguidos em delapidar o património da insolvente, impedindo que os credores vissem satisfeitos os seus créditos, os arguidos por si ou em representação das empresas, praticaram os actos elencados nos factos provados sob os números 24 a 36.

Com estes negócios, a sociedade (…) ficou desprovida de bens e equipamentos necessários à prossecução da sua actividade, ficando paralisada e como tal impossibilitada de realizar o seu fim e satisfazer os créditos que os arguidos quiseram, causando à sociedade um prejuízo de 106.015,00€.

Com a conduta dos arguidos, os credores da sociedade ficaram impedidos de obter a cobrança coerciva dos seus créditos à custa do património daquela, pois que o arguido E., em comunhão de esforços com os arguidos C. e D. esvaziaram a esfera patrimonial da sociedade (…), deixando na mesma apenas o passivo.

Agiram de forma livre, deliberada e consciente em conjugação de esforços e na execução do plano previamente gizado entre todos, fazendo constar da contabilidade da sociedade (…), como liquidadas as vendas de bens da sociedade, quando tal não correspondia à verdade, bem como fizeram desaparecer património, nomeadamente transferindo-o para os arguidos C. e D. por forma a obterem um beneficio para eles, com vista a que os credores da insolvente não vissem os seus créditos satisfeitos.

O comportamento dos arguidos contribuiu directamente para a situação e declaração judicial da insolvência da (…), sendo aliás, requerida, pelo arguido D..

É, por demais consabido que, em princípio, pelas dívidas da responsabilidade de uma pessoa ou entidade societária responde a totalidade do seu património, podendo os credores executar os bens que compõem esse património para obterem satisfação do seu crédito.

Ao terem retirado da titularidade da sociedade devedora bens que integravam o respectivo património, os arguidos provocaram a impossibilidade de os credores da sociedade (que veio a ser declarada insolvente) poderem obter satisfação do crédito social através da execução coerciva desses bens, pelo que esse comportamento é causa directa e adequada do facto subsequente de os credores ficarem sem obter a satisfação dos seus créditos na medida em que o valor desses bens o permitiria, caso eles se mantivessem, como deveria ter acontecido, na esfera jurídica da sociedade proprietária dos mesmos.

Do que precede facilmente se constata que não assiste razão ao Recorrente, improcedendo, pois, o Recurso.

Esta interpretação não viola nenhum preceito legal, em especial, os princípios constitucionais insertos nos artigos 18º e 29º, da Constituição da República.

V. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, acordam em julgar não provido o Recurso interposto por E., mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Sem tributação.

Notifique.

Coimbra, 20 de Março de 2019

Alcina da Costa Ribeiro (relatora)

Elisa Sales (adjunta)