Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
325/14.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: AZEVEDO MENDES
Descritores: DECISÃO DISCIPLINAR
PRAZO
PROPORCIONALIDADE DA SANÇÃO
Data do Acordão: 10/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.TRABALHO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 357º, Nº1 DO CT/2009.
Sumário: I – O prazo a que alude o nº 1 do artº 357º do CT/2009, onde está estabelecido um prazo de 30 dias para proferir a decisão de despedimento, sob pena de caducidade do direito de aplicar a sanção, não é aplicável, directamente, por analogia ou por interpretação extensiva, ao procedimento disciplinar comum referente a aplicação de sanção disciplinar conservatória.

II – É adequada e proporcional, por violação do dever de lealdade, uma sanção disciplinar de dois dias de suspensão, suspensa por dois anos, determinada pelo empregador a carteiro que anota correspondências que não conseguiu entregar com a menção de ‘falta de tempo’, quando as anotações a fazer estão previstas para as situações em que a falta de entrega é imputável ao destinatário ou ao remetente das correspondências.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. O autor instaurou contra a ré a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo que se declare a caducidade da aplicação da sanção com as legais consequências ou, caso assim não se entenda, que se declare que a sanção disciplinar que lhe foi aplicada pela ré é abusiva, condenando-se a ré a reconhecê-lo e a eliminá-la do seu registo disciplinar, bem como a pagar-lhe uma indemnização que deverá computar-se em quantia não inferior a dez vezes a importância correspondente à retribuição referente aos dois dias de suspensão com perda de retribuição com que o foi sancionado e que se computa em € 711,30, condenando-se ainda a ré a pagar-lhe juros de mora, à taxa legal, sobre a quantia indemnizatória que se mostrar devida, desde a citação e até efectivo pagamento.

Para tanto alegou, em síntese, a caducidade do procedimento disciplinar por aplicação extensiva do art. 357.º do CT, porquanto o relatório final do processo foi elaborado pelo instrutor em 18.09.2013, tendo sido proferido o despacho punitivo no dia 19.12.2013, sendo que não cometeu infracção disciplinar e a  sanção é abusiva porque aplicada em reacção às reclamações do autor em defesa dos seus direitos e garantias e à intervenção do seu sindicato (SNTCT).

A ré contestou, defendendo que não ocorre a alegada caducidade, uma vez que o art. 357.º do Código do Trabalho não é aplicável, por se tratar de um regime específico e excepcional para o despedimento, bem como alegando factos que, em seu entender, justificam a sanção disciplinar que decidiu aplicar ao autor.

Prosseguindo o processo os seus termos veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente.

 É desta decisão que, inconformado, o autor veio apelar.

Alegando, concluiu:

[…]


A ré apresentou contra-alegações ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, pronunciou-se o Exmº Procurador-Geral Adjunto, pela procedência da apelação no que toca à questão da caducidade do direito de proferir a decisão disciplinar.

*
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. De facto                 
Da decisão sobre a matéria de facto, é a seguinte a factualidade que vem dada como provada:
[…]

2. Apreciação
É pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação.
Decorre do exposto que as questões que importa dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:
- se ocorreu ou não caducidade do direito de aplicar a sanção disciplinar pelo decurso de prazo de 30 dias para proferir a decisão sancionatória;
- se a decisão relativa à matéria de facto merece alteração;
- se a sanção disciplinar decidida pela ré se revela justificada e lícita;
- se a sanção foi abusiva e, nesse caso, que consequências de devem extrair.

2.1. Quanto à questão da caducidade do direito de aplicar a sanção:
Sobre esta questão escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:
«Invoca, porém, o A. a caducidade do procedimento disciplinar por infração do disposto no art. 357.º n.º 1 do CT2009, nos termos do qual o empregador dispõe de 30 dias para proferir a decisão de despedimento, sob pena de caducidade do direito de aplicar a sanção, o que implica a invalidade do procedimento.
Como se sabe, a realização do despedimento pressupõe a prévia organização pelo empregador - normalmente, através de um instrutor nomeado para o efeito - de um processo próprio, destinado a averiguar da existência da justa causa e a permitir que o trabalhador se defenda das acusações que lhe são feitas (arts. 351.º e sgs. do CT2009). Na verdade, o processo de despedimento é requisito essencial da licitude e da validade do acto extintivo: se faltar o competente processo ou em caso de nulidade do mesmo (arts. 381.º al. c) e, 382.º n.º 2.º do CT2009), o despedimento é ilícito e pode ser declarado inválido.
É usual agrupar os atos que integram o processo de despedimento em diferentes fases, distinguindo-se basicamente três: instrução inicial e acusação; defesa e instrução; e apreciação e decisão.
A irregularidade suscitada pelo A. centrar-se-ia na fase de apreciação e decisão.
Todavia, por força do acima expendido, não é de aplicar o citado art. 357.º n.º 1 do CT2009 (específica da sanção disciplinar de despedimento sem indemnização), tendo apenas de ser observado o prazo previsto no art. 329.º n.º 3 do CT2009 (novidade do CT2009 que acrescentou um novo prazo disciplinar).
O art. 329.º n.º 3 do CT2009, introduziu um prazo para completar o procedimento: este novo prazo determina que o procedimento disciplinar prescreve decorrido 1 ano contado da data em que é iniciado quando nesse prazo, o trabalhador não seja notificado da decisão final.
Na presente ação, verifica-se que o processo prévio de inquérito foi elaborado em 07.05.2013, tendo sido a decisão final notificada ao A. em 10.01.2014 – vide, factos provados em 07) e 08) -, mostrando-se assim salvaguardado o prazo de um ano previsto no n.º 3 do art. 329.º do CT2009.
É de repudiar assim a aplicabilidade do n.º 1 do art. 357.º do CT, porque exclusivo da decisão de despedimento por facto imputável ao trabalhador, sendo que ao A. foi aplicada a sanção de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade, cujo procedimento, como vimos, é bem menos formal e rígido do que o exigido para a sanção mais gravosa, em que se traduz o despedimento individual.
Deflui do acima exposto que, em termos formais o processo disciplinar instaurado não padece de qualquer vício ou irregularidade - art. 329.º do Cód. do Trabalho.»

Devemos desde já dizer que concordamos, no essencial, com a análise efectuada na sentença quanto à questão da caducidade do direito de proferir decisão disciplinar ou de aplicar a sanção.
No sistema do Código do Trabalho de 2009, como aliás do anterior Código do Trabalho, podemos distinguir dois tipos de processo disciplinar: o primeiro que pode ser designado como de processo disciplinar comum, previsto para a aplicação de sanções disciplinares conservatórias (v. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, 2006, pag. 641 e segs.) e um outro, especial, para a sanção disciplinar de despedimento, a sanção mais grave e que conduz à ruptura do vínculo contratual.
No caso, a sanção disciplinar decidida pela ré empregadora foi uma sanção conservatória de suspensão do trabalho por dois dias, com perda de retribuição e antiguidade, suspensa na sua execução por um período de dois anos, sendo que o processo não foi orientado para uma sanção de despedimento, uma vez que para tanto essa intenção teria de ser comunicada ao trabalhador – e no caso não o foi – na nota de culpa (art. 353.º n.º 1 do Código do Trabalho).
Ora, na regulação do processo disciplinar comum o Código do Trabalho não contém qualquer prazo para proferir a decisão disciplinar, ao contrário do que sucede para o processo especial onde vem estabelecido um prazo de 30 dias para proferir a decisão de despedimento, “sob pena de caducidade do direito de aplicar a sanção” (art. 357.º n.º 1 do Código do Trabalho).
Sustenta o apelante que, na ausência de previsão de prazo para proferir a decisão de sanção conservatória, deveria aplicar-se o prazo previsto para a decisão de despedimento por aplicação extensiva ou analógica, convocando para apoio da sua tese o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21-05-2014, proferido no proc. n.º 4264/12.9TTLSB.L1-4 (disponível in www.dgsi.pt).
No mesmo Acórdão, reconhecendo-se a existência dos dois tipos de processo disciplinar no Código do Trabalho, sendo o que tem em vista o despedimento tem a “forma mais pesada, pormenorizada e garantística do procedimento disciplinar”, considerou-se não existirem razões para diferenciar o prazo para a decisão disciplinar em relação ao processo com vista a aplicar as sanções conservatórias do vínculo laboral.
Ali se escreveu, a propósito:
«Com efeito, não prevendo a lei especificamente um prazo para esta decisão, há que saber se esta norma se aplica por analogia (art.º 10º do Código Civil).
Há analogia quando para o caso omisso valem as mesmas razões justificativas da regulamentação prevista na lei.
O período de 30 dias foi considerado razoável pela lei, em casos muito graves – ou seja naqueles em que não é exigível a manutenção da situação laboral, aplicando-se, pois, a mais grave das sanções, o despedimento fundado em justa causa subjectiva, art.º 330/1/f – para o empregador reflectir e decidir.
Acentua-se que não é uma decisão ligeira, que se tome levianamente, sem pesar devidamente todos os prós e contras: mexe profundamente com a vida do trabalhador e de alguma sorte também com o empregador, ao menos no seio das pequenas organizações, sendo certo que a acção injustificada poderá levá-lo a ter de indemnizar os danos de aí resultantes.
Ora, se 30 dias chegam para tomar uma decisão que se quer reflectida e que obedece a critérios materiais e formais pesados, por maioria chega para decidir num procedimento mais ligeiro, como é o que aqui acontece. Ou seja, as razões são as mesmas aqui e ali, justificando-se exactamente o mesmo prazo de 30 dias (poderia discutir-se, sim, a eventual aplicação de um lapso de tempo inferior; mas não cremos que se possa, sem artificialidade nem arbítrio, proclamar prazo diferente, vg, 20 dias ou outro).»

Ou seja, o Acórdão citado justificou a aplicação, para o processo comum, do referido prazo próprio do processo com vista ao despedimento por analogia, depois de identificar uma lacuna legal e considerar que para o primeiro tipo do processo valem as mesmas razões justificativas do que as consideradas para o segundo.
Divergimos desse entendimento.
Na verdade, importa averiguar se é possível identificar uma verdadeira lacuna, o que pressupõe que se esteja verdadeiramente perante uma omissão não intencional da lei. E, também, averiguar se a norma que prevê o prazo em causa para o processo com vista ao despedimento é ou não uma norma excepcional, já que as normas excepcionais não comportam aplicação analógica, quando muito admitem interpretação extensiva, nos termos do disposto no artigo 11.º do Código Civil.
Nesta indagação, importa observar, como refere Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pag. 196) que as lacunas de lei (o que seria o caso) são lacunas teleológicas a determinar “em face do escopo visado pelo legislador ou seja, em face da ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo”, estando-se aí então no domínio da analogia, a qual serve ali para determinar simultaneamente a existência de uma lacuna e o preenchimento da mesma. Sendo certo que, também como refere o mesmo autor (ob. citada, pag. 95), para se ter uma norma por excepcional é “necessário verificar se se está ou não perante um verdadeiro ius singulare, isto é um regime oposto ao regime-regra e directamente determinado por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excepcional comporta”.
A hipótese de recortar, no caso em apreciação, a existência de uma lacuna, seria a de constatar uma lacuna “latente”, na expressão do autor citado (na mesma obra, pags. 196-197), ou seja aquela que se evidencia quando a lei contém uma regra aplicável a certa categoria de casos, “mas por modo tal que, olhando ao próprio sentido e finalidade da lei, se verifica que essa categoria abrange uma subcategoria cuja particularidade ou especialidade, valorativamente relevante, não foi considerada”, revelando-se a ausência de uma norma excepcional ou especial para essa subcategoria de casos.
Tal como refere o Acórdão invocado pelo apelante – e com o que concordamos - o processo disciplinar com vista o despedimento tem a “forma mais pesada, pormenorizada e garantística do procedimento disciplinar”. Assim sendo, justifica-se do ponto de vista da ratio legis, tratando-se da sanção disciplinar mais grave e que maiores consequências tem para as partes, sobretudo para o trabalhador, que os prazos estabelecidos tenham maior detalhe e rigor no plano da garantia da celeridade processual (um dos princípios norteadores do processo disciplinar - v. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. citada, pag. 644).
Logo, num processo disciplinar com uma forma menos “pesada, pormenorizada e garantística” pode considerar-se que as razões justificativas do prazo em apreciação – para a decisão da sanção – não se coloquem com a mesma força, não se detectando aí, no próprio sentido e finalidade da lei, que as mesmas razões conduzam a verificar que para o processo disciplinar comum tal prazo seja valorativamente relevante e não foi considerado.
As razões justificativas do estabelecimento de prazos são as da celeridade na condução do processo disciplinar.
Conforme se referiu no Acórdão da Relação do Porto de 27 de Abril de 2015 (proc. 903/13.2TTMTS-A.P1, in www.dgsi) o prazo de 30 dias para a decisão já vinha do regime legal anterior ao CT/2003, mas era entendimento jurisprudencial que o mesmo não consubstanciava um prazo de caducidade, mas apenas um prazo para ponderação no juízo final a emitir quanto à impossibilidade da manutenção da relação laboral e consequente existência de justa causa para o despedimento. O Código do Trabalho de 2003 veio, esse sim, qualificar esse prazo como de caducidade. Por sua vez o Código do Trabalho de 2009, reafirmando-o como prazo de caducidade, veio introduzir algumas alterações em matéria de procedimento com vista ao despedimento, designadamente clarificando que, no caso de inexistência de comissão de trabalhadores e o trabalhador não seja representante sindical, o prazo de 30 dias para proferir a decisão final se conta a partir da data da conclusão da última diligência de instrução (art. 357.º, n.º 2), introduzindo prazos no âmbito do procedimento do despedimento em caso de microempresas (art. 358.º, n.º 2).
Mas, sobretudo, no que toca à questão agora em apreciação, introduziu-se no Código do Trabalho de 2009, inovatoriamente, um prazo aplicável ao processo disciplinar comum (aplicável também ao processo com vista ao despedimento), ao estabelecer no art. 329.º, n.º 3, que "o procedimento disciplinar prescreve decorrido um ano contado da data em que é instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não seja notificado da decisão final".
Ou seja, foram introduzidas alterações em matéria de prazos do procedimento disciplinar, comum e especial, fixando um prazo de prescrição para conclusão do mesmo, de um ano, seguramente para balizar o andamento do mesmo, conferindo-lhe maiores garantias de celeridade.
No que toca à regulação do processo disciplinar comum, o Código do Trabalho de 2009 reiterou a omissão de não fixar qualquer prazo para a decisão disciplinar, o que nos pode levar a concluir que, tendo revisto o sistema de prazos, essa omissão foi intencional.
Segue-se que, a nosso ver, não é possível detectar a existência de uma verdadeira lacuna “latente”, uma hipótese que o legislador não previu ou regulou, mas que de acordo com as razões regulatórias deveria ter considerado.
A celeridade do processo disciplinar comum, menos exigente e menos garantístico, não deixa de ser assegurada com a fixação de um prazo de prescrição de um ano para a sua conclusão. Tratando-se de sanção conservatória e não estando em causa a estabilidade do contrato de trabalho, a sua manutenção, naturalmente que esse prazo pode ser considerado suficiente para acautelar os interesses (de ambas as partes) na reposição da normalidade do contrato eventualmente ferida por conduta disciplinar relevante e que tenha conduzido ao exercício do poder disciplinar. Nessa suficiência, não é possível então acrescentar uma exigência de prazos que o legislador não previu expressamente (no sentido do prazo de 30 dias em causa não ser aplicável ao processo disciplinar comum, v. ainda, Manuela Fialho e Maria José Costa Pinto, em artigos publicado em “Código do Trabalho, A Revisão de 2009”, Coimbra Editora, 2011, pags. 410 e segs.  e 429).
Assim, não se identificando uma lacuna de lei, não é possível proceder ao seu preenchimento, seja por analogia, seja por interpretação extensiva.
Segue-se que a sentença da 1.ª instância não merece censura nesta parte, assim improcedendo o recurso, também nesta parte.

2.2. Quanto à questão da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
[…]

2.3. Quanto à questão de saber se a sanção disciplinar decidida pela ré se revela justificada e lícita:
Sobre esta questão escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:

«Reportando-nos à situação aqui em apreço, a R. sancionou o A. (sanção disciplinar de dois dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade, suspensa na sua execução por um período de 2 anos), por considerar que este violou os deveres de zelo e diligência no tocante à obrigatoriedade de distribuição de todo o correio prioritário e os deveres de lealdade e fidelidade ao seu empregador, visto não ter dado ordens e instruções para ser anotado no verso da correspondência “não entregue por falta de tempo”.

Do cotejo dos factos provados acima dado por provados extrai-se com toda a naturalidade que, o A. no dia mencionado nos autos não distribuiu todo o correio prioritário e, bem assim que procedeu à anotação no verso da correspondência “não entregue por falta de tempo”.

Aliás, o próprio A. aceita este circunstancialismo fáctico não o colocando em crise.

Discorda, porém, com o juízo de censurabilidade com que a sua conduta foi sancionada pela empregadora, argumentando, em sua defesa, o excesso da carga de trabalho (impossibilitando-o dentro do horário de trabalho de proceder à distribuição de todo o correio que lhe tinha sido adstrito, inclusive o prioritário) e, de ter a obrigação de proceder à anotação das correspondências não distribuídas com a verdade.

É o que importa aquilatar:

Dos factos provados resulta que, por necessidade de serviço, foi-lhe ordenado pelo GCDP, C... , que para além da distribuição do giro habitual UC 160 teria que, em gestão de serviço, englobar uma terça parte do giro UC150 – vide, facto provado em 11).

Mais se extrai dos factos provados que, o A. alertou o seu superior hierárquico que face ao volume de correio não tinha possibilidade para proceder à sua total distribuição dentro do seu horário de trabalho, tendo-lhe sido dito para levar todo o correio e, que no dia em questão, o A. não fez o intervalo para o almoço (30 minutos), não conseguindo distribuir o correio normal e prioritário no último segmento do seu giro habitual UC160 até às 14H33 (tendo iniciado a distribuição pela terça parte do giro UC150). Consequentemente, o A. deixou por distribuir 31 correspondências prioritárias: 8 de correio azul; 2 de correio verde; 6 de correio internacional; 4 JPP – jornais e publicações periódicas e, 11 de correio valor (registadas) e, também deixou por distribuir 187 objetos de correio normal.

Provou-se ainda que, a R. instituiu a segmentação das correspondências, de modo a que possam ficar por distribuir todos os dias, uma parte do correio normal que, será distribuído apenas no dia seguinte, para que o correio prioritário seja distribuído na sua totalidade e, que os carteiros sabem que têm de cumprir o padrão do correio prioritário, o qual obriga a distribuição do mesmo no dia útil seguinte, independentemente da quantidade de correspondências de correio não prioritário rececionadas.

Mais se provou que, os carteiros têm vindo a queixar-se de sobrecarga de trabalho, por força dos sucessivos reajustamentos/redimensionamento dos giros e, a reduzida admissão de novos carteiros, sendo certo que a R. deixou de pagar aos carteiros horas extras prestadas (não as reconhecendo) e, que naquele dia estariam afetas ao A. para distribuir cerca de 999 objetos postais.

No tocante à não distribuição de todo o correio prioritário por parte do A., reconhece-se efetivamente a existência de quebra de padrão do correio prioritário (que o A. bem conhecia).

Todavia, esta atuação embora suscetível de censura, é fortemente mitigada tendo em conta a sobrecarga de trabalho dos carteiros, não reconhecendo a R. horas extra prestada pelos mesmos (não as pagando).

Já, porém, quanto à anotação feita no verso das correspondências: “Correspondência não entregue por falta de tempo para o efeito” -, não enveredamos para idêntica conclusão.

Com efeito, resulta do artigo 128.º, n.º 1. al. f) do Código do Trabalho de 2009, que, sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve «f) guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócio».

Consagra-se neste dispositivo o dever de lealdade que é um dos deveres acessórios autónomos da prestação principal e que onera o trabalhador no contexto da relação de trabalho.

Ao dever de lealdade é reconhecida pela Doutrina uma dimensão ampla e uma dimensão restrita, concretizando-se esta nos deveres de não concorrência e de sigilo que são objeto de consagração expressa naquela norma.

Em sentido amplo, o «dever de lealdade é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato», entroncando, por um lado, no dever geral de cumprimento pontual dos contratos, e, nesta perspetiva «não é mais do que a concretização laboral do princípio da boa fé, na sua aplicação ao cumprimento dos negócios jurídicos, tal como está vertido no artigo 762.º, n.º 2 do CC.»

O dever de lealdade, nesta dimensão ampla, comporta ainda um duplo sentido que se materializa no «envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo» e na «componente organizacional do contrato».

O elemento «da pessoalidade explica que a lealdade do trabalhador no contrato seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento de pessoalidade, traduzido na lealdade pessoal, que justifica por exemplo, o relevo de condutas extra-laborais do trabalhador graves para efeito de configuração de uma situação de justa causa de despedimento, bem como o relevo da perda da confiança pessoal do empregador no trabalhador para o mesmo efeito».

Por outro lado, «a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correcto do ponto de vista dos interesses da organização», dependendo, nesta segunda dimensão, o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento «do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho em concreto».

No dizer de MONTEIRO FERNANDES, «o que pode dar-se por seguro é que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjetiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)», sendo necessário «que a conduta do trabalhador não seja em si mesma, suscetível de destruir ou abalar tal confiança, isto é, capaz de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele», sendo certo que «este traço do dever de lealdade é tanto mais acentuado quanto mais extensa for a (eventual) delegação de poderes no trabalhador e quanto maior for a atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador».

Resulta ainda da alínea a) do n.º 1 do artigo 128.º do Código de Trabalho de 2009 que o trabalhador deve «respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade».

Consagra este dispositivo o dever de respeito e de urbanidade como um dos deveres que onera o trabalhador no contexto da relação de trabalho.

O dever de respeito e de urbanidade tem como objeto o empregador e os superiores hierárquicos do trabalhador, mas dirige-se também, para além dos colegas de trabalho, ainda ao conjunto de pessoas que entrem em relação com a empresa.

Esta multiplicidade de direções em que este dever do trabalhador se concretiza decorre da componente organizacional do contrato de trabalho e da inserção do trabalhador numa estrutura que está para além da mera relação que se estabelece entre o trabalhador e o empregador.

O dever de urbanidade e de respeito «aponta genericamente para a necessidade de observância das regras de conduta social adequadas, quer em matéria de tratamento, quer em matéria de apresentação pessoal e de conduta do trabalhador», carecendo este dever, por força desta dimensão social, de concretização, caso a caso, em função do contexto empresarial em que ocorre a prestação de trabalho, e das pessoas envolvidas.

Tal como refere MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, «o critério a reter na qualificação de certa conduta do trabalhador como infração ao dever de respeito (…) deverá ser o da adequação da conduta do trabalhador no contexto laboral em que está a exercer» - in, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Almedina, 2010, pp. 424 e 425.

Posto isto e, reportando-nos ao caso em apreço, um carteiro viola o dever de lealdade e, de respeito (na sua vertente ampla de componente organizacional do contrato de trabalho), quando apõe no verso das correspondências não distribuídas – “Correspondência não entregue por falta de tempo para o efeito” -, retratado nos factos provados em 19) e 20).

Até porque o correio é do remetente até ser entregue ao destinatário, a anotação feita da não entrega pelos carteiros serve para lhe dar conhecimento dos constrangimentos da não receção pelo destinatário (v.g. “mudou-se”; “endereço insuficiente”; “faleceu”) – vide, facto provado em 22).

Com efeito, trata-se de questões internas organizacionais da empresa, a que o terceiro é totalmente alheio, impendendo sobre o A. por esse facto na qualidade de carteiro o respetivo resguardo e, o dever de proteger o “bom nome/reputação” e imagem da sua empregadora defronte dos seus clientes – sem prejuízo, como é óbvio, da possibilidade de recorrer a outros mecanismos legais de defesa.

Serve isto para dizer que, o comportamento do A. é disciplinarmente relevante, a escolha da sanção disciplinar de dois dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, com que a R. entendeu sancionar a factualizada conduta, não fere o grau de proporcionalidade a ponderar entre a gravidade da infração e a culpa do infrator, pelo que, a decisão disciplinar da R. não merece censura.»

Divergindo desta apreciação, o autor/apelante sustenta em primeiro lugar que não pode considerar-se que tenha incorrido na violação dos deveres de zelo e diligência prescritos no art. 128.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho.

A sentença recorrida, porém, não valorizou de forma determinante na sua apreciação a conduta do autor relacionada com a imputação da quebra daqueles deveres. Na verdade, afirmando que, no tocante à não distribuição de todo o correio prioritário por parte do autor, reconhecia a existência de quebra de padrão do correio prioritário, também nela se afirmou que “esta actuação embora susceptível de censura, é fortemente mitigada tendo em conta a sobrecarga de trabalho dos carteiros, não reconhecendo a R. horas extra prestada pelos mesmos (não as pagando)”.
Ora, nesta parte não podemos identificar com clareza o grau de culpa que pode ser imputado ao autor na quebra do padrão de distribuição do correio prioritário, sendo certo que a culpa é sempre exigida para a consideração da infracção disciplinar. A este respeito apenas está provado que (facto 15.) o autor não conseguiu “distribuir o correio normal e prioritário no último segmento do seu giro habitual UC160 até às 14H33 (tendo iniciado a distribuição pela terça parte do giro UC150)”.
Desta forma, na ausência de explicação para o não cumprimento das tarefas distribuídas (ao contrário do que pretendia o autor no recurso, não se evidencia que tenha sido por serem excessivas as tarefas distribuídas), apenas podemos considerar uma possível negligência na sua gestão do seu tempo, mas sem que seja possível qualificá-la de grave ao ponto de merecer a sanção determinada pela ré.

Em segundo lugar, sustenta o apelante que, ao apor a inscrição “Correspondência não entregue por falta de tempo para o efeito” na correspondência, não violou os deveres de lealdade nem de respeito e urbanidade, nos termos das disposições do art. 128.º, n.º 1, alínea a) e f) do Código do Trabalho. Parte do pressuposto que seria considerado como provado, como defendeu no recurso, que «os carteiros devem inscrever na referida correspondência, com verdade, a informação referente a eventuais constrangimentos da sua não recepção pelo destinatário, de que serão exemplo as inscrições “mudou-se”, “endereço insuficiente”, “faleceu”, mas também “não entregue por falta de tempo para o efeito”, ou qualquer outra, desde que não seja imputável ao próprio trabalhador da empresa».
Ora não considerámos como provada a “correcção” dessa anotação “Correspondência não entregue por falta de tempo para o efeito”. O que se provou foi que (facto 22.) “o correio é do remetente até ser entregue ao destinatário, a anotação feita da não entrega pelos carteiros serve para lhe dar conhecimento dos constrangimentos da não recepção pelo destinatário (v.g. “mudou-se”; “endereço insuficiente”; “faleceu”)”.
Significa isto, a nosso ver, que as anotações destinam-se a dar conhecimento aos remetentes dos motivos pelos quais não foi possível a entrega aos destinatários das correspondências, por razões a estes imputáveis ou ao remetente como se retira dos exemplos “mudou-se”; “endereço insuficiente”; “faleceu”.
Assim sendo, a aposição da anotação em causa pelo autor referente a “falta de tempo” revela-se inadequada para o fim em causa, já que o constrangimento “falta de tempo” não inviabiliza, naturalmente, a entrega da correspondência ao destinatário, apenas pode, quando muito, retardar a sua entrega.

Por conseguinte, a conduta do autor ao apor a dita anotação pode ser compreendida como se referiu na sentença recorrida como violação do dever de lealdade do autor para com a ré, entendido esse dever como “dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato”. Revela deficiente compreensão dos seus deveres funcionais, deficiente “envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo” e na “componente organizacional do contrato”. Mais expõe perante terceiros, clientes e utentes do serviço do empregador, fragilidades de organização funcional da empresa, na qual o trabalhador participa através da sua actividade contratual (contratada), estranhas aos mesmos – como se refere na sentença recorrida -, tendo como consequência potencial evidente, para nós, um dano na reputação e imagem da ré perante os mesmos clientes e utentes. Situação essa que pode ser bem compreendida por qualquer trabalhador medianamente diligente e empenhado.

Consideramos assim certa a conclusão expressa na sentença e de acordo com a qual a conduta do autor é disciplinarmente relevante e a escolha da sanção disciplinar de dois dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, não fere o grau de proporcionalidade a ponderar entre a gravidade da infracção e a culpa do infractor.

Por isso, a sanção determinada pela ré não pode ser considerada ilícita.

2.4. Quanto à questão de saber se a sanção foi abusiva:

Na apelação sustenta o autor a condenação da ré em indemnização por sanção abusiva, tal como defendera na sua petição inicial, invocando ter-se verificado sanção abusiva nos termos do disposto no artigo 331.º n.º 1 als. a) e d) do CT/2009.

Dispõem aquelas invocadas normas que se considera abusiva a sanção disciplinar motivada pelo facto do trabalhador ter reclamado legitimamente contra as condições de trabalho e ter exercido, pretender exercer ou invocar os seus direitos ou garantias.

Ora, analisada a matéria de facto considerada provada, não vemos, quaisquer factos donde se possa concluir que a sanção aplicada o foi pelo facto do autor exercer reclamado das condições de trabalho, ter exercido, pretender exercer ou invocar os seus direitos ou garantias.

Por isso, a apelação não pode desde logo proceder nesta parte.
Assim sendo, a apelação tem de improceder na totalidade.


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Sumário (a que alude o artigo 663º nº 7 do C.P.C.):
- O prazo a que alude o n.º 1 do art. 357.º do CT/2009, onde está estabelecido um prazo de 30 dias para proferir a decisão de despedimento, sob pena de caducidade do direito de aplicar a sanção, não é aplicável, directamente, por analogia ou por interpretação extensiva, ao procedimento disciplinar comum referente a aplicação de sanção disciplinar conservatória;
- É adequada e proporcional, por violação do dever de lealdade, uma sanção disciplinar de dois dias de suspensão, suspensa por dois anos, determinada pelo empregador a carteiro que anota correspondências que não conseguiu entregar com a menção de “falta de tempo”, quando as anotações a fazer estão previstas para as situações em que a falta de entrega é imputável ao destinatário ou ao remetente das correspondências.
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III- DECISÃO
Termos em que se delibera julgar improcedente a apelação.
 Custas no recurso pelo apelante, tomando-se em consideração, no entanto que o autor litiga com a isenção contida no art. 4.º n.º 1, al. h) do RCP, como se disse na sentença recorrida.

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(Azevedo Mendes)

 (Felizardo Paiva)

 (Paula do Paço)