Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
211/13.9TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CASO JULGADO
INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO
RELAÇÃO DE BENS
DECISÃO JUDICIAL
Data do Acordão: 03/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 580º, Nº 1 E 581.º DO CPC
Sumário: Tendo sido proferida decisão de mérito – no âmbito de um incidente de reclamação contra a relação de bens apresentada em processo de inventário – no que toca ao passivo que aí havia sido relacionado como sendo da responsabilidade de ambos os cônjuges e onde se determinou que tal passivo deveria ser eliminado da relação de bens por não se ter feito prova de que o mesmo era da responsabilidade de ambos os cônjuges, não poderá essa questão voltar a ser reapreciada, ocorrendo a excepção de caso julgado se, posteriormente, um dos cônjuges vier a intentar uma nova acção onde pretende ver reconhecido que aquele passivo é da responsabilidade de ambos os cônjuges e onde pede a condenação do outro a suportar metade do respectivo valor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            

I.

A... , residente na Rua (...). Fundão, intentou a presente acção, com processo ordinário, contra B... , residente na Av. (...), Aveiro, alegando, em suma, que correu termos entre Autor e Ré um processo de divórcio litigioso e um processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal e que neste inventário não foram relacionadas diversas dívidas – que enuncia e descreve na petição inicial – sendo que tais dívidas foram contraídas pelo Autor, no exercício da sua actividade comercial e para ocorrer aos encargos normais da vida familiar do casal, sendo, por isso, da responsabilidade do casal.

Com esses fundamentos – melhor concretizados na petição inicial – conclui pedindo:

- O reconhecimento de que todas essas dívidas foram contraídas no proveito comum do casal e seus filhos;

- Que a Ré seja condenada a reconhecer esse facto e a suportar metade do respectivo valor, incluindo os respectivos juros de mora, a fixar em execução de sentença.

 A Ré contestou, invocando, designadamente, a excepção de caso julgado e alegando, para o efeito, que o Autor já havia relacionado no processo de inventário as dívidas invocadas na presente acção e, na sequência de reclamação apresentada pela ora Ré, foi ali proferida decisão que determinou a eliminação daquele passivo; na sequência dessa decisão – confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação – o Autor apresentou nova relação de bens eliminando aquele passivo, vindo a ser proferida sentença homologatória da partilha que transitou em julgado em 05/11/2009; essa questão não poderá, portanto, ser novamente discutida, sob pena de violar o caso julgado formado com aquela decisão.

Sustenta também que o Autor litiga de má fé, porquanto, além de ter omitido que essa questão já havia sido apreciada no processo de inventário, deduz pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar e que viola uma decisão judicial anteriormente proferida.

Termina pedindo a improcedência da acção e a condenação do Autor, como litigante de má fé, a pagar-lhe uma indemnização de valor não inferior a 12.000,00€.

O Autor respondeu, sustentando a improcedência da excepção invocada e alegando, em suma, que não há – nem pode haver – qualquer identidade de pedido e causa de pedir entre um processo de inventário e uma acção declarativa, cujos objectos são diferentes.

Mais sustenta a improcedência do pedido de condenação por litigância de má fé.

Findos os articulados, foi realizada audiência preliminar e foi proferida decisão que, julgando procedente a excepção de caso julgado, absolveu a Ré da instância, tendo sido julgado improcedente o pedido de condenação do Autor por litigância de má fé.

Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor o presente recurso de apelação, enunciando as seguintes conclusões:

A) O recorrente, na p. i., formula pedidos que em si são distintos e autónomos dos constantes de um inventário para partilha de bens comuns advindos de um casamento.

B) Na realidade, os «pedidos» constantes do processo especial de uma partilha são sempre diferentes daquelas que constam do processo comum, sendo certo que têm processado diferente.

C) Alias, no caso vertente do inventário, há uma douta decisão, que transitou em julgado, a qual determina que sejam consideradas as dívidas comuns do casal, mormente as que obrigam o ex-cônjuge esposa.

D) Portanto, devem ser apuradas as dívidas que foram contraídas por ambos em nome dos interesses familiares, sobretudo as comerciais e as contraída para os »alimentos» dos dois filhos, aqui se incluindo as feitas com a sua instrução e educação.

A Ré veio apresentar contra-alegações e interpor recurso subordinado relativamente à decisão que julgou improcedente o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé, formulando as seguintes conclusões:

I. O autor, com este processo, deduziu pedido com um objetivo manifestamente reprovável, porque pretendia a obtenção de uma nova sentença sobre os factos já discutidos em juízo;

II. Por um lado, o autor omitiu que já tinha levantado, na ação nº 302-A/2001, as questões que agora traz ao pleito e que nela foram decididas, com trânsito em julgado;

III. Por outro lado, o autor não podia ignorar a falta de fundamento da sua pretensão, uma vez que não podia deixar de saber que as sentenças de 05.06.2006 e de 05.11.2009, ambas transitadas em julgado, já se pronunciaram sobre a relação de bens e a partilha;

IV. Por isso, ao intentar esta nova ação, o autor tinha perfeita noção de que estava a desrespeitar decisões judiciais anteriormente exaradas e que claramente decidiram as questões que o autor, aleivosamente, volta a colocar nesta ação;

V. Este venerando Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido de condenação por litigância de má fé, num caso semelhante, dizendo o seguinte: "actuando os Apelantes ostensivamente contra um caso julgado, procurando, aliás, obter a sua violação, não poderemos deixar de qualificar negativamente o seu comportamento, que só evidencia desrespeito por uma decisão de um Tribunal, e, em função desta incidência, reafirmar aqui, por inteiramente justa, a condenação dos AA. como litigantes de má fé" (cf. douto acórdão de 12.07.2011, in www.dgsi.pt, proc. 504/10.7TBGRD.C1);

VI. O autor não pode impunemente por novas ações e novos recursos, sempre com o mesmo pedido, obrigando a ré a gastar dinheiro e desenvolver esforços no sentido de contestar as pretensões e responder aos recursos que o autor bem sabe não terem fundamento;

VII. Reafirma-se que "há litigância de má fé dolosa quando são alegados factos que não correspondem à verdade e quando a acção é usada para se obter o efeito contrário a uma decisão proferida em acção anterior" (cf. Douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02.02.2010, in www.dgsi.pt, proc. 897/07.3TBFND.C1);

VIII. Deve, pois, neste aspeto específico, o douto despacho ser revogado e ser o autor condenado em multa por litigar dolosamente, e ainda numa indemnização condigna, não inferior a 12.000 € (doze mil euros), que a ré expressamente pediu na sua contestação, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 456º e no nº 1, alínea a), do artigo 457º, ambos do CPC.

NESTES TERMOS e melhores de direito, cujo douto suprimento se invoca, deve o recurso do autor improceder e proceder o da ré, tudo com as legais consequências.

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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Recorrentes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se ocorre ou não a excepção de caso julgado;

• Saber se há fundamento para condenar o Autor por litigância de má fé.

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III.

Com relevância para a decisão a proferir, temos como assentes – por força dos documentos juntos aos autos – os seguintes factos:

1. Correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial do Fundão um processo de inventário com o nº 302-A/2001, no qual foram intervenientes os aqui Autor e Ré e que tinha em vista a partilha dos bens comuns do casal.

2. Na relação de bens que, na qualidade de cabeça de casal, o Autor apresentou no aludido inventário, foram relacionadas, sob as verbas 257 a 284, as verbas do passivo (dívidas) que são alegadas no art. 58º da petição inicial.

3. Na sequência de reclamação apresentada pela ora Ré contra a relação de bens e depois de produzida prova, foi proferida decisão (no aludido inventário) em 07/09/2006, onde se decidiu que “…o passivo deve ser eliminado, excepto quanto a dívidas contraídas por ambos os interessados, com assinatura dos dois”.

4. O aqui Autor interpôs recurso dessa decisão, que, no que toca ao aludido passivo, veio a ser confirmada por Acórdão proferido em 24/04/2007 e transitado em julgado em 10/05/2007.

5. Na sequência dessa decisão, o Autor apresentou nova relação de bens eliminando todas as verbas do passivo acima mencionadas, relacionando apenas, a título de passivo (e em conformidade com a aludido Acórdão do Tribunal da Relação), dois débitos do património comum ao aqui Autor.

6. Realizada a conferência de interessados – onde se determinou que os aludidos débitos do património comum seriam descontados nas tornas que o aqui Autor teria que depositar a favor da aqui Ré – e após os demais trâmites legais, foi proferida sentença homologatória da partilha que transitou em julgado em 05/11/2009.

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IV.

Apelação do Autor

De acordo com o disposto no art. 580º, nº 1, do Código de Processo Civil[1], a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

E, dispõe o art. 581º, “repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” (nº 2 do citado art. 581ºº); “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” (nº 3 da citada norma) e “há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico” (nº 4 da mesma disposição legal).

A excepção de caso julgado assenta na força e autoridade da sentença transitada em julgado que é consagrada no art. 619º nº 1 onde se dispõe: “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580º e 581º…”.

A citada disposição legal reporta-se e delimita os contornos do caso julgado material, ou seja, o caso julgado que se forma relativamente à decisão (sentença ou saneador) que, decidindo do mérito da causa, define a relação ou situação jurídica deduzida em juízo (a relação material controvertida), determinando que tal decisão tem força obrigatória dentro e fora do processo (dentro dos limites estabelecidos nos arts. 580º e 581º) e impedindo, dessa forma, que a mesma relação material venha a ser definida em moldes diferentes pelo tribunal ou qualquer outra autoridade. Segundo Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 305, o caso julgado material “consiste em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) – quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão”.

E a excepção de caso julgado constitui uma forma de garantir o respeito pela força e autoridade do caso julgado que se formou com uma anterior decisão já transitada em julgado, visando evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir essa decisão anterior que já definiu, em determinados termos, uma determinada relação jurídica (cfr. art. 580º, nº 2).

Sendo certo, portanto, que o caso julgado material vigora dentro dos limites estabelecidos nas normas supra citadas, sendo delimitado através dos elementos que identificam a relação jurídica definida na sentença (as partes, o pedido e a causa de pedir) e sendo certo que – por isso mesmo – a excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, repetição essa que é definida através da verificação cumulativa de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, importa agora saber se, entre a presente acção e o processo de inventário que correu termos em momento anterior, existe ou não aquela tríplice identidade.

Relativamente à identidade de sujeitos parece não haver grandes dúvidas; as partes são as mesmas nos presentes autos e no aludido inventário.

Resta agora saber se ocorre identidade de pedidos e de causa de pedir, o que se reconduz a saber se é o mesmo o efeito jurídico que se pretende obter numa e noutra causa e se a pretensão deduzida procede ou não do mesmo facto jurídico.

Sustenta o Apelante – e essa é, na prática, a única questão que suscita nas suas curtas alegações – que tal identidade não existe, porquanto – diz – os pedidos que formula nos presentes autos são distintos dos pedidos formulados em processo de inventário para partilha de bens comuns do casal, sendo certo que – acrescenta – “…os «pedidos» constantes do processo especial de uma partilha são sempre diferentes daquelas que constam do processo comum, sendo certo que têm processado diferente”. 

É evidente que o pedido formulado num processo de inventário – que se reconduz, no essencial, à realização da partilha do património comum – não é idêntico ao formulado numa acção declarativa, como é o caso da presente acção.

Mas isso não significa – evidentemente – que a partilha, devidamente homologada por sentença transitada em julgado, não tenha força e autoridade de caso julgado e que, dentro dos limites acima mencionados, não se imponha aos interessados e aos tribunais, impedindo que essa partilha e as questões que nela estão englobadas venham a ser contrariadas e definidas em moldes diferentes.

De facto, a identidade de pedidos e de causa de pedir, que é pressuposto de funcionamento da excepção de caso julgado, não pode ser vista em termos literais e, exclusivamente, formais.

Importa aqui ter presente a finalidade e o objectivo do caso julgado que, segundo o disposto no art. 580º nº 2, consiste em evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. O caso julgado destina-se, em última análise, a evitar uma contradição prática de decisões, ou seja, pretende obstar a decisões que são concretamente incompatíveis, por nenhuma delas poder ser executada sem prejuízo da outra.

Assim, para efeitos de verificação caso julgado, o que importa saber é se, atendendo aos efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma das acções e aos factos jurídicos que sustentam tais pretensões, o objecto da segunda acção já está definido pela decisão proferida na primeira, de tal forma que a decisão a proferir na segunda acção seria uma mera repetição da decisão proferida na primeira ou, caso tivesse conteúdo diverso, seria concretamente incompatível com ela.

Ora, apesar de o objecto da presente acção – delimitado pelo pedido e respectiva causa de pedir – não coincidir, rigorosamente e em toda a sua amplitude, com o objecto do inventário – que correspondia à realização da partilha –, parece-nos inquestionável que o objecto da presente acção já está regulado em termos definitivos no processo de inventário e na sentença que homologou a partilha ali efectuada.

De facto, o Autor vem pedir, na presente acção, que seja reconhecido que o passivo (dívidas) que invoca na petição inicial foi contraído em proveito comum do casal e que, como tal, a Ré seja condenada a reconhecer isso mesmo e a suportar metade do respectivo valor. Ora, esse mesmo passivo foi relacionado no inventário e, perante a reclamação formulada pela aqui Ré, foi objecto de decisão ali proferida, que, apreciando a questão que também constitui a causa de pedir da presente acção (a de aquele passivo ter sido contraído em proveito comum do casal), considerou que o cônjuge marido (aqui Autor) não havia feito prova do proveito comum do casal ou que tais dívidas se relacionassem com os encargos da vida familiar e, em conformidade, decidiu que tal passivo deveria ser eliminado, excepto quanto a dívidas contraídas por ambos os interessados, com assinatura dos dois. E, de acordo com essa decisão – confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação – o aludido passivo foi eliminado da relação de bens e não foi considerado na partilha que veio a ser realizada e judicialmente homologada.

É inquestionável, portanto, que essa questão (que constitui o objecto da presente acção) foi apreciada e foi decidida no processo de inventário e, portanto, não poderá voltar a ser discutida na presente acção; se assim não fosse, a decisão a proferir na presente acção poderia vir a contrariar aquela decisão (o que não seria permitido) ou constituiria mera reprodução desta e é precisamente essa possibilidade de contradizer ou reproduzir a decisão anterior que a excepção de caso julgado pretende evitar (cfr. citado art. 580º, nº 2).

Note-se que o art. 1336º, nº 1, do C.P.C. (à data em vigor) dispunha que “consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o art. 1327º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às acções competentes”.

Como decorria do art. 1350º do mesmo diploma, sempre que a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornasse inconveniente a decisão incidental das reclamações apresentadas relativamente à decisão de bens, o juiz abstinha-se de decidir e remetia os interessados para os meios comuns, podendo ainda, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes.
Refira-se, por outro lado, que, como decorria do disposto nos arts. 1354º e segs. do C.P.C. (à data vigente), a intervenção do juiz, no que toca ao passivo, apenas ocorria após a conferência de interessados e apenas se os interessados (ou alguns deles) o não aprovassem, limitando-se o juiz a conhecer da sua existência quando a questão pudesse ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados e, portanto, quando os documentos apresentados não permitissem resolver a questão, o juiz não conhecia do passivo e, como tal, poderia o mesmo ser reclamado nos meios comuns.
Mas nada disso aconteceu no caso sub judice.
De facto, o juiz não utilizou nenhuma das faculdades previstas no art. 1350º; não remeteu os interessados para os meios comuns e não decidiu a reclamação provisoriamente e com ressalva do direito às acções competentes e também não actuou no âmbito do disposto no art. 1355º e 1356º (do qual decorria que apenas conheceria da existência do passivo se a questão pudesse ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados); ao contrário, o juiz apreciou, efectivamente e após produção de prova (incluindo testemunhal), o mérito da reclamação que havia sido apresentada e, como tal, a questão ali apreciada (a de saber se aquele passivo era ou não da responsabilidade de ambos os cônjuges) ficou definitivamente resolvida entre os interessados (sem prejuízo, naturalmente, de os credores que não tiveram ali intervenção poderem reclamar o seu crédito de ambos os cônjuges, nos meios comuns).

Atente-se, para o efeito, nas palavras de João António Lopes Cardoso[2], quando afirma o seguinte:

Na pendência do inventário agitam-se questões e o juiz deve procurar dar-lhes solução sempre que as provas a produzir se compadeçam com a índole do processo, isto é, quando não demandem larga indagação.

Da decisão do juiz resultam efeitos não só para os interessados na herança como também para os intervenientes na solução, salvo se for expressamente ressalvado o direito às acções competentes, entendendo-se que intervieram na solução de uma questão as pessoas que a suscitaram ou sobre ela se pronunciaram, e ainda as que foram ouvidas, embora não tenham dado resposta (CPC, artigo 1397º, nº 2).

Daqui resulta a subsistência de caso julgado no tocante a todas as questões assim discutidas, com os efeitos atribuídos por lei, desde que procurem suscitar-se de novo entre tais intervenientes”.

É certo, pois, perante o exposto, que ocorre a excepção de caso julgado no que toca ao aludido passivo, porquanto o objecto da presente acção (delimitado pelo pedido formulado e respectiva causa de pedir) é uma mera repetição da questão que já foi suscitada no processo de inventário (em que eram intervenientes as partes da presente acção) e cujo mérito já foi apreciado por decisão ali proferida, estando, portanto, configurada a tríplice identidade (sujeitos, pedido e causa de pedir) que constitui o pressuposto de funcionamento da excepção de caso julgado. 

Alega, porém, o Apelante – nas conclusões C) e D) que “…no caso vertente do inventário, há uma douta decisão, que transitou em julgado, a qual determina que sejam consideradas as dívidas comuns do casal, mormente as que obrigam o ex-cônjuge esposa…Portanto, devem ser apuradas as dívidas que foram contraídas por ambos em nome dos interesses familiares, sobretudo as comerciais e as contraída para os »alimentos» dos dois filhos, aqui se incluindo as feitas com a sua instrução e educação”.

O que se diz (e decidiu) na decisão proferida no processo de inventário é que “…o passivo deve ser eliminado, excepto quanto a dívidas contraídas por ambos os interessados, com assinatura dos dois”. Ora, o que resultava dessa decisão era que apenas poderiam manter-se relacionadas as dívidas que foram contraídas pelos dois cônjuges por constarem de documento por ambos assinado.

É verdade que tal decisão não concretizou as concretas dívidas que poderiam manter-se relacionadas, mas também é verdade que, na sequência dessa decisão, o cabeça de casal (aqui Autor) eliminou da relação de bens todas as dívidas que havia relacionado e que vem reclamar na presente acção, e tal terá acontecido porque essas dívidas não se encontravam nas circunstâncias descritas na decisão. O Autor terá, portanto, reconhecido que nenhuma dessas dívidas havia sido contraída por ambos os cônjuges e com a assinatura dos dois e, por isso, as eliminou da relação de bens.

Importa notar que o Autor nem sequer alega – na presente acção – que as concretas dívidas que aqui vem reclamar e que já havia reclamado no processo estejam naquelas circunstâncias.

Se alguma das dívidas que havia relacionado – e que, repete-se, são as mesmas que agora vem reclamar – se encontrava naquelas circunstâncias – contraída pelos dois e com assinatura dos dois – deveria o Autor tê-las mantido na relação de bens (em conformidade com o decidido) e se o não fez, terá sido, certamente, porque nenhuma delas poderia ser assim configurada.

Não procedem, portanto, os argumentos invocados pelo Apelante e com base nos quais sustenta a revogação da decisão recorrida; as concretas dívidas que são reclamadas na presente acção, a sua natureza e a responsabilidade da Ré pelo seu pagamento já foram objecto de decisão proferida no processo de inventário e o caso julgado formado por tal decisão impede a reapreciação da questão entre os mesmos interessados, sendo que a pretensão formulada nos presentes autos e os respectivos fundamentos são idênticos aos que já haviam sido invocados, apreciados e decididos naquele inventário.

Confirma-se, portanto, a decisão recorrida.

Recurso subordinado

A Ré veio interpor recurso subordinado no que toca à parte da decisão em que se julgou improcedente o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.

Sustenta, para o efeito, que o Autor, além de ter omitido a alegação de que as questões suscitadas nesta acção já haviam sido apreciadas em anterior processo de inventário, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, porquanto não podia deixar de saber que tal pretensão já havia sido apreciada e que, ao intentar esta acção, estava a violar essa decisão.

Dispõe o art. 542º, nº 2, do C.P.C. actualmente vigente – tal como dispunha o art. 456º nº 2 do anterior C.P.C. – que se considera litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de colaboração ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Tal como resulta da citada disposição legal, a litigância de má fé pressupõe a existência de dolo ou negligência grave, não bastando, para o efeito, a mera circunstância de a parte litigar “sem razão” e sem fundamentos legais para a pretensão que formula ou para a oposição que deduz.

A litigância de má fé não se confunde, pois, com a improcedência da pretensão ou oposição deduzida, já que aquilo que está em causa na litigância de má fé não é o facto de a parte ter ou não razão, mas sim um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa fé processual, a que as partes estão submetidas – deveres que se encontravam previstos nos arts. 266º e 266º-A do anterior C.P.C. e que no actual Código se encontram previstos (em termos idênticos) nos arts. 7º e 8º - , é censurável e reprovável por atentar contra o respeito pelos Tribunais e prejudicar a acção da justiça.

Com efeito, e conforme decorre das normas acima citadas, as partes devem colaborar entre si e com o Tribunal, usando uma conduta processual correcta, de modo a ser alcançada, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio e é a violação – dolosa ou gravemente negligente – desses deveres que é sancionada pela litigância de má fé.

Pressupondo a violação desses deveres, através de uma determina conduta que se integre na previsão do citado art. 456º (anterior Código) ou do art. 542º (actual Código), a litigância de má fé pressupõe ainda, como se referiu, que essa conduta tenha sido praticada, de forma dolosa ou com negligência grave, pressupondo esta que a parte descurou, de forma grave e grosseira, os deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, lhe eram exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normal e medianamente prudente e cuidadosa, colocada nas mesmas circunstâncias.

Na perspectiva da Recorrente, o Autor omitiu a alegação de que as questões suscitadas nesta acção já haviam sido apreciadas em anterior processo de inventário e, portanto, teria omitido factos relevantes para a decisão, litigando de má fé.

É certo que o Autor não alegou esse facto com o rigor e a precisão que se impunha, mas não é menos certo que, no art. 18º da petição, aludiu à decisão proferida no inventário e reproduziu a parte decisória, da qual se depreendia que a questão do passivo havia sido apreciada no âmbito de uma reclamação contra a relação de bens. Assim, ainda que não tenha alegado – de forma expressa e clara – que o passivo a que se reporta a presente acção já havia sido relacionado no inventário (sendo que apenas juntou aos autos a relação de bens que veio a ser apresentada após aquela decisão e já expurgada daquele passivo), parece que não terá existido a intenção de omitir e sonegar esse facto, já que, de contrário, não se perceberia a alusão expressa ao teor da decisão da qual se depreendia que havia sido apreciada e decidida uma reclamação no que toca ao passivo e com base na qual facilmente se poderia confirmar que tal passivo era exactamente o mesmo que aqui reclamava.

Não nos parece, portanto, que existam elementos suficientes para concluir que, ao omitir aquela alegação, o Autor tenha actuado com dolo ou negligência grave.

Mas terá o Autor, com dolo ou negligência grave, deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar?

Já sabemos que a pretensão deduzida não tinha fundamento (assim o considerámos) por estar já definida por anterior decisão transitada em julgado. Mas já sabemos também que isso não basta para efeitos de litigância de má fé; seria ainda necessário que o Autor tivesse plena consciência de que essa pretensão não tinha qualquer fundamento por violar caso julgado anterior ou, pelo menos, que tivesse omitido, de forma grosseira, os deveres de cuidado que, uma vez observados, lhe permitiriam tomar consciência daquele facto.

Mas, também aqui nos parece que não existem elementos suficientes para tal conclusão.

De facto, aquilo que obsta à procedência da pretensão formulada pelo Autor é o caso julgado e, portanto, é uma questão de carácter jurídico.

Ora, a interpretação e aplicação da lei não é matemática e objectiva, sendo que, com bastante frequência, nos deparamos com entendimentos e posições divergentes relativamente à solução e enquadramento jurídico de determinada questão e, portanto, torna-se difícil sustentar que a formulação uma determinada pretensão corresponda a litigância de má fé apenas porque tal pretensão se baseia em determinada argumentação jurídica e em determinada leitura e interpretação das normas jurídicas que não veio a ser acolhida no processo onde foi formulada, a não ser que tal interpretação e argumentação seja total e manifestamente despropositada.

Ora, o Autor sustentou nos autos e no presente recurso que não se configurava a excepção de caso julgado (e terá sido nesse pressuposto que intentou a presente acção); na nossa perspectiva, não tem razão, já que, pelas razões supra mencionadas, ocorre a excepção de caso julgado, mas isso não significa que o Autor não pudesse legitimamente sustentar uma posição diferente sem incorrer em litigância de má fé.

A formulação de uma pretensão em violação ou sem consideração do caso julgado já formado corresponderá a litigância de má fé quando é ostensivo que tal pretensão já foi regulada em termos definitivos e que apenas se pretende – necessariamente com dolo ou grave negligência – violar e desrespeitar a decisão judicial que anteriormente foi proferida; já assim não será – pelo menos sem outros elementos – quando a situação não é ostensiva e quando pode ser admitida a possibilidade de a parte estar convencida – ainda que erradamente – de que a decisão anterior não tinha força de caso julgado e não havia regulado a situação em termos definitivos.
Ora, o Autor argumentou nos autos e no recurso que não poderia existir caso julgado entre um processo de inventário e uma acção declarativa, dada a circunstância de serem processos de natureza diferente e a que correspondem pretensões diferentes. Embora se admita alguma negligência (porquanto não nos parece defensável que aquela circunstância obstasse, só por si, ao caso julgado), admitimos como possível que o Autor estivesse convencido (ainda que erradamente) que aquela decisão não obstasse à reclamação, nos meios comuns, do passivo que ali não havia sido reconhecido (como aconteceria se o juiz tivesse remetido os interessados para os meios comuns ou tivesse decidido provisoriamente com ressalva do direito às acções competentes), importando notar que, por regra e tal como já referimos supra, a decisão a proferir no processo de inventário no que toca ao passivo apenas tem como objectivo conhecer da existência do passivo não aprovado por todos os interessados quando a questão possa ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados, ficando ressalvado o recurso aos meios comuns quando o juiz não conheça do passivo por não dispor dos necessários elementos documentais. Ora, apesar de não ter sido esse o procedimento adoptado, porquanto a decisão proferida no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens conheceu efectivamente da existência (ou não) do passivo que havia sido relacionado como comum, apreciando e emitindo pronúncia sobre a questão de saber se ele era ou não da responsabilidade de ambos os cônjuges (e precisamente porque conheceu desse passivo – e conheceu de mérito, após produção de prova, inclusive, testemunhal – formou o caso julgado que obsta à reapreciação dessa questão), a verdade é que é possível que o Autor tenha ficado convencido que – como acontece por regra e como aconteceria se, como determina a lei, o juiz se tivesse abstido de conhecer do passivo que não era possível reconhecer por não estar devidamente documentado – aquela decisão não obstasse a que, nos meios comuns, viesse a obter o reconhecimento de que aquele passivo era da responsabilidade de ambos os cônjuges e que, como tal, a Ré deveria responder por metade do respectivo valor.

Parece-nos, pois, em face do exposto, que não existam elementos bastantes para afirmar e concluir que o Autor tenha actuado com dolo ou negligência grave ao propor a presente acção.

E, como tal, confirma-se a decisão recorrida.

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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

Tendo sido proferida decisão de mérito – no âmbito de um incidente de reclamação contra a relação de bens apresentada em processo de inventário – no que toca ao passivo que aí havia sido relacionado como sendo da responsabilidade de ambos os cônjuges e onde se determinou que tal passivo deveria ser eliminado da relação de bens por não se ter feito prova de que o mesmo era da responsabilidade de ambos os cônjuges, não poderá essa questão voltar a ser reapreciada, ocorrendo a excepção de caso julgado se, posteriormente, um dos cônjuges vier a intentar uma nova acção onde pretende ver reconhecido que aquele passivo é da responsabilidade de ambos os cônjuges e onde pede a condenação do outro a suportar metade do respectivo valor.

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V.
Pelo exposto, nega-se provimento a ambos os recursos e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas de cada um dos recursos a cargo do respectivo Recorrente.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª ed., pág. 530.