Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
348/12.1PBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
NATUREZA DA INFRACÇÃO
QUEIXA
Data do Acordão: 11/12/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU - 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTIGOS 153.º E 155.º DO CP
Sumário: I - A natureza semipública de qualquer crime, não se presume. Tem que resultar expressamente da lei.

II - O silêncio da lei (ausência de disposição que preveja a necessidade de queixa) aponta indubitavelmente no sentido de que atualmente, o crime de ameaça na forma agravada tem natureza pública.

III - Não existe disposição que preveja a necessidade de queixa para os crimes de ameaça ou coação quando se verifique a agravação prevista no art. 155 do CP.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra – Secção Criminal


I.
O MºPº deduziu acusação contra arguida A..., imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a) do Código Penal.
A acusação foi recebida, nos seus precisos termos, e designada data para julgamento – cfr. despacho de fls. 138.
Veio então a ofendida apresentar declaração de desistência da queixa apresentada nos autos – fls. 139.
Ouvido o MºPº opôs-se à desistência da queixa
Notificada a arguida, nos termos e para efeitos do disposto no art. 51º, nº3 do CPP, nada disse.
Foi então proferido o seguinte despacho:
««« (…) No que concerne ao crime de ameaça agravada imputado ao arguido entendermos que o artigo 155° do Código Penal constitui em relação ao crime de ameaça contido no artigo 153° do Código Penal uma mera agravação da moldura penal do tipo base ali previsto e não um tipo qualificado. E, a ser assim, entendemos ser admissível e relevante a desistência de queixa apresentada.
Neste sentido vide o artigo escrito por Pedro Daniel dos Anjos Frias, publicado na Revista "Julgar", Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Janeiro-Abril de 2010 e também Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, pág. 556-560, na sua edição mais recente.
Nestes termos, atenta a qualidade dos intervenientes, a disponibilidade do direito e a natureza semi-pública do crime em questão (crime de ameaça agravada - artigos 153° nº1 e 155° nº 1 a) do Código Penal) e ao abrigo do disposto nos artigos 113°, 116° nº2 e 153º nº 2 do Código Penal e 48°, 49° e 51 ° todos do Código de Processo Penal, julgo válida e homologo a desistência de queixa e, consequentemente, julgo extinto o procedimento criminal em causa nos autos.»»»
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Inconformada com o aludido despacho, dele recorre a digna Magistrada do MºPº.
Na motivação do recurso formula as seguintes CONCLUSÕES:
I. À arguida A... são imputados factos integrantes da comissão, com autor material, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153º, nº 1 e 155º, nº 1 a) do Código Penal;
II. Por despacho proferido nos autos a Mm.ª Juíza julgou válida a desistência de queixa formulada, homologando-a, e consequentemente declarando extinto o procedimento criminal que nestes autos era movido à arguida;
III. Não o podia contudo fazer dado que a desistência de queixa apresentada é juridicamente irrelevante, atenta a natureza pública do crime imputado à arguida;
IV. A natureza pública do crime de ameaça agravada decorre desde logo da técnica legislativa utilizada para a qualificação dos crimes, e ainda da inexistência no artigo 155º de normativo semelhante ao artigo 153º, nº 2 do Código Penal quanto ao crime de ameaça simples;
V. Trata-se de um modelo de sistematização técnica utilizada pelo legislador em quase toda a Parte Especial do Código Penal: depois de definir o crime matricial, recorta seguidamente os elementos que determinam a qualificação, fazendo sempre quando, existindo um crime "simples" e outro "qualificado" ou "agravado", só pretende atribuir a natureza semi-pública ao "simples", sendo que, diferentemente, quando pretendeu atribuir natureza semi-pública a vários crimes do mesmo capítulo ou secção, independentemente da sua gravidade, colocou a norma no final, discriminando quais os crimes abrangidos (o que não sucedeu no caso vertente);
VI. A previsão do artigo 155º estabelece um tipo legal autónomo dos previstos nos artigos 153º e 154º e não apenas a agravação da moldura penal.
VII. Com a Lei n°59/2007, de 4 de Setembro - que alterou o Código Penal -, alterou-se, precisamente, o tipo-de-ilícito de ameaça: no artigo. 153°, n°1, permaneceu o tipo simples e, em relação a ele, foi mantida a natureza semipública, no n°2; e o tipo qualificado passou para o artigo 155°, tendo sido eliminada a ameaça qualificada do artigo 153º;
VIII. A solução legislativa de não manter a natureza semipública do tipo qualificado de ameaça é a mais harmónica com a opção de qualificar a ameaça pelas mesmas circunstâncias que qualificam a coacção.
IX. Neste sentido, depõe inequivocamente a Exposição de Motivos do Anteprojecto de Revisão do Código Penal de onde ressuma que o legislador pretendeu qualificar o crime de ameaça em circunstâncias idênticas às previstas para a coação grave, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.
X. A desistência de queixa formulada pela ofendida não é pois juridicamente válida e relevante, atenta a natureza de crime público do crime de ameaça agravado desde a revisão do Código Penal de 2007;
XI. Não ficando o tipo agravado sem campo de aplicação em face da redacção do artigo 153º, nº 1, desde logo pelos motivos decorrentes do AUJ nº 7/2013, do STJ;
XII. Decidindo da forma como decidiu, a Mm.ª Juiz “a quo” fez incorrecta interpretação da lei, violando o disposto nos art.48º do Código de Processo Penal, nos artigos 116º, 153º e 155º, nº1, a) do Código Penal.
Deve pois revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que julgando ineficaz e juridicamente irrelevante a desistência de queixa apresentada, determine o prosseguimento dos autos com a marcação e a realização da audiência de julgamento atinente a tal factualidade.
*
A arguida respondeu à motivação do recurso sustentando a decisão recorrida.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual secunda a argumentação aduzida na motivação do recurso.
Corridos vistos, não se verificando obstáculos à apreciação de mérito, cumpre apreciar.
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II.
A questão a decidir é a de saber se o crime de ameaças agravado, p e p pelo artigo 155º, n.º1, al. a) do C. Penal - na redacção do diploma saída da revisão de 2007 - admite desistência da queixa.

Postula o art. 153º n.º 1 do Código Penal, na redacção dada pela Lei n°59/2007, de 4 de Setembro:
1- Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de autodeterminação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias,
2 - O procedimento criminal depende de queixa

Por sua vez, sob a epígrafe “Agravação”, estabelece o Artigo 155º (também na redacção da Lei n°59/2007, de 4 de Setembro):
Quando os factos previstos nos artigos 153º e 154º forem realizados:
Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
Contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez;
Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas;
Por funcionário com greve abuso de autoridade;
(…)

No âmbito do descrito quadro legal, sobre a questão objecto do recurso, surgiram duas posições antagónicas:
- Aquela que é sufragada pela decisão recorrida, na senda do artigo da autoria de Pedro Anjos Frias “Por quem dobram os sinos? – A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso” publicado na Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses Janeiro/Abril de 2010; e
- Aquela que é sufragada na motivação do recurso, assumida em múltiplas decisões dos tribunais superiores – cfr., entre outros: Ac. do TRP de 01 de Julho de 2009, proc. n.º 968/07.PBVLG.P1 – 4ª Sec.; Parecer da Procuradoria-geral Distrital do Porto, publicado em 11 de Outubro de 2010, via SIMP; Ac. TRC de 01.06.2011, recurso n.º 1222/09.4TAVR.C1; Ac. TRC de 02.03.2011, recurso n.º 550/09.3GCAVR; AC.TRC de 30.03.2011, processo n.º15596/08.4PBAVR,C1; Ac. TRC de 30.03.2011, processo n.º 400/09.0PBVR.C1; AC.RL DE 13.10.2010, processo n.º 36/09.6PBSRQ.L1-3; Ac. TRP de 27.04.2011, processo n.º 53/09.6GBNF.P1; ACTRP 15.09.2010, processo n.º 354/10.0PBVLG.P1; 29.09.2010, processo N.º 162/08.9GDGDM.P1; Ac. RG de 15.11.2010, processo 343/09.8GBGMR.G1; TRE de 12.11.2009, processo n.º 214/08.9PAPTM.E1, todos acedidos em www.dgsi.pt.

Antes da reforma de 2007 a agravação do crime de ameaça era feita em termos idênticos àqueles que saíram da reforma.
No entanto a agravação estava prevista no n.º 2 do art. 153º do C.P., preceito que tinha a seguinte redacção:
2. Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido (…)”.
Existia ainda um n.º 3 com a seguinte redacção: “O procedimento criminal depende de queixa”.
O crime de coacção aparecia assim totalmente autonomizado nos artigos 154º (coacção simples) e 155º (coacção agravada).
Não existia, pois, então, qualquer margem para dúvidas quanto à natureza semi-pública do crime de ameaça quer na sua forma simples, quer na forma agravada.
Aliás já antes da revisão do CP de 1995, o crime de ameaça tinha natureza semi-pública, natureza esta que transitou para a versão introduzida pelo DL 48/95 de 15 Março, apesar de terem existido outras alterações de fundo no que toca ao crime agora em apreço.
A natureza – semi-pública - do crime manteve-se assim inalterada desde 1982 a 2007.
Relevante ainda, no a evolução legislativa do crime de coacção é o facto de na reforma de 2007 ter desaparecido o antigo art. 155º com a epígrafe de “coacção grave”, substituído pelo actual art. 155º com a epígrafe “Agravação” relativo aos “factos previstos nos artigos 153º e 154º”. O mesmo é dizer aos crimes de ameaça (153º) e de coacção (154º).
Sendo, pois, após a reforma de 2007, as múltiplas causas da agravação modificativa comuns aos crimes de ameaça e de coacção.
No regime definido em 2007 essa clareza desvaneceu-se, apenas na medida em que não existe disposição que preveja de forma expressa a necessidade da queixa para o crime agravado previsto no art. 155º citado.
Ora o silêncio da lei (ausência de disposição que preveja a necessidade de queixa) aponta indubitavelmente no sentido de que actualmente, o crime de ameaça na forma agravada tem natureza pública. Pois que não existe disposição que preveja a necessidade de queixa.
Deve o intérprete partir da presunção de que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento – cfr. art. 9.º, n.º1 do C. Civil.
Como refere Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 28) que “O princípio da legalidade impõe que o texto da lei constitua o limite absoluto a toda a tarefa de aplicação, por só desse modo poder cumprir a função de garantia que lhe cabe no Estado de Direito”.
E a letra da lei, nada dizendo sobre a necessidade de apresentação de queixa para o crime agravado aponta, claramente, no apontado sentido.

Perante a descrita evolução dos dois tipos de crime importa ainda indagar, no quadro de uma interpretação teleológica, se existe razão de fundo, fundamento material, que tivesse levado o legislador a alterar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado.
Ora, visando concretamente o crime de ameaça, refere-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei para a alteração do C. Penal (que deu origem à reforma de 2007):
“ (…) O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção”.
Conclui daqui a tese da necessidade da queixa que o legislador pretendeu apenas estender à ameaça todas as circunstâncias que já antes agravavam o crime de coacção, arrumando juntamente a circunstância que antes constituía o n.º 2 do art. 153º. E não alterar a natureza – antes semi-pública - do crime na forma agravada.
No entanto o argumento é reversível.
Desde logo, a natureza semi-pública de qualquer crime, não se presume. Tem que resultar expressamente da lei.
É o que sucede, caso a caso, em relação a todos os crimes que dependem de queixa, como decorre do princípio geral enunciado no art. 48º do C.P.P: “O MºPº tem legitimidade para promover o processo penal, salvas as restrições constantes dos artigos 49º a 52º”.
Por outro lado, se o legislador agregou a agravação dos crimes de ameaça e de coacção na mesma disposição legal, não pode deixar de daí retirar todas as consequências. Entre elas as inerentes á desnecessidade da apresentação de queixa para o crime agravado.
E a perspectiva subjacente à decisão recorrida levaria a que também o crime de “coacção agravada” - punido, tal como a ameaça agravada pelo mesmo art. 155º- fosse de natureza semi-pública, em relação a todas as múltiplas actuações ali previstas.
Não se vendo razão para o crime de ameaça agravada ser semi-público e já não o ser o de coacção agravada, previstos, repete-se, no mesmo preceito.
Assim, dependem da apresentação de queixa os crimes de coacção e de ameaça “simples” nos termos previstos no n.º2 do art. 153º e no n.º4 do art. 154º do C. Penal. Mas já não dependerão de queixa quer o crime de coacção agravado quer o crime de ameaça agravado, previstos nas múltiplas alíneas do art. 155º.
Não competindo ao intérprete encontrar distinções onde o legislador as não fez.
Se o legislador tinha, antes da reforma, um crime de coacção agravado semi-público, ao autonomizar a agravação, nela abrangendo dois crimes distintos (o do art. 153º e o do art. 154º) omitindo qualquer referência à necessidade de queixa, não pode deixar de se considerar que o fez intencionalmente.
Nesse sentido aponta a vontade do legislador quando refere, na exposição de motivos, que “O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave”.
Pelo que, incluindo a agravação de ambos na mesma previsão legal, não pode deixar de assumir as consequências daí resultantes.
Por outro lado a agravação abrange os crimes praticados “Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132º no exercício das suas funções ou por causa delas”. Aqui sendo incluídos, entre uma multiplicidade de agentes que exercem funções de natureza pública, os próprios titulares de órgãos de soberania, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio.
Daí que, ao “arrumar” todas as circunstâncias agravantes no art. 155ºquis assumir, deliberadamente, que naqueles casos, não houvesse necessidade de apresentação de queixa.
Existindo, salvo melhor opinião, uma razão material, de fundo, para tal opção, identificada pelo próprio legislador, como fundamento da agravação, atenta a natureza das suas causas que justificam a censura agravada do crime: - ameaça (…) com a prática de crime punível com pena superior a 3 anos de prisão; dirigida contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade, deficiência, doença, gravidez; contra membro de órgão de soberania ou equiparados [remissão para o art. 132º, n.º2, al. l)]; praticada por funcionário com grave abuso de autoridade.
Tudo razões suficientemente fortes para justificar a desnecessidade da queixa para o crime agravado, ao contrário do crime simples, tendo em vista os fundamentos da agravação do crime ou pela situação de especial fragilidade da vítima ou pela natureza das funções públicas que exerce. Não se justificando, pois que o legislador, em tais casos, quisesse “obrigar” o ofendido a apresentar queixa, pela natureza especialmente desvaliosa do crime (agravado) ou do seu resultado especialmente gravoso, enfim, da sua especial relevância social.
Parece assim resultar do referido enunciado de motivos não só a intenção do legislador em manter público o crime em todos os casos previstos no art. 155º bem como a existência de fundamentos materiais para o efeito: a natureza das agravantes que qualificam o crime.
Pode-se questionar a bondade da opção em determinados casos concretos, mas a lei tem essa força: aplica-se a todos os casos nela previstos por igual. Ao intérprete não cabe questionar as opções legislativas. Cabe-lhe apenas nelas conformar o caso concreto no estrito quadro dos princípios da hermenêutica e da conformidade com a Constituição da República. E, no caso, não são invocados nem se detectam conteúdos constitucionais que exijam uma tal interpretação que suprima um preceito que defina expressamente a natureza semi-pública do crime.
Tudo aponta, pois, no sentido proposto na motivação do recurso que, por isso, deve proceder.

III.
Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se julgar procedente o recurso, julgando ineficaz e juridicamente irrelevante a desistência de queixa apresentada, revogando o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos trâmites subsequentes dos autos.

Belmiro Andrade (relator)

Abílio Ramalho (adjunto)