Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
423/09.0TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
FILIAÇÃO
REGISTO CIVIL
MEIOS DE PROVA
Data do Acordão: 07/20/2010
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.25, 1802 CC, 508 Nº6 CPC, 2º, 4, 211 DO CRC
Sumário: 1.O despacho que convida qualquer das partes a oferecer prova documental não é passível de recurso.

2.Sendo a parte cidadão estrangeiro, a demonstração da sua filiação, em processo judicial, não se faz segundo um dos meios de prova previstos no Código de Registo Civil.

3. A restrição probatória constante do artigo 4º do Código do Registo Civil, conjugada com o artigo 211º do mesmo diploma legal, apenas é aplicável aos factos sujeitos a registo, isto é os factos cujo registo é obrigatório, sendo que relativamente a estrangeiros, apenas são obrigatoriamente registados os factos ocorridos em território português (artigo 1º, nº 2, do Código do Registo Civil).

Decisão Texto Integral: Ao abrigo do disposto nos artigos 524º, nºs 1 e 2, 693º-B e 700º, nº 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil, admite-se o documento oferecido pelo recorrente, já que a necessidade da sua junção derivou do conteúdo da decisão sob censura. 

***

O efeito e o modo de subida do recurso são os próprios, as conclusões das alegações não carecem de ser corrigidas, não se verifica qualquer circunstância que obste ao conhecimento do recurso, como melhor se tentará demonstrar seguidamente e, em nosso entender, a questão a decidir é simples, pelo que estão reunidos os requisitos legais para julgamento sumário do recurso (artigo 705º, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), o que se passa a fazer de seguida.

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            1. Relatório

            A 07 de Setembro de 2009, J(…), que também assina J (…), instaurou acção declarativa sob forma ordinária, por si e em representação das Heranças abertas ilíquidas e indivisas de (…) e (…)contra  J M (...), J P (..) e esposa E (…)e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…), CRL pedindo:

            - que os réus sejam condenados a reconhecerem que a casa de habitação com superfície coberta de 140 metros quadrados, e quintal com 3000 metros quadrados, a confrontar do norte com Estrada Nacional nº 231, do nascente com (…) e outros, e do poente com (…), e sul com (…) e outros, respectivamente com a matriz rústica nº ... e urbana nº ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Seia, freguesia de Paranhos da Beira é propriedade da herança aberta e ilíquida e indivisa aberta por óbito dos pais do representante autor, por haverem adquirido o terreno e nele edificado o prédio urbano, de que gozam do registo a seu favor e por terem posse conducente à usucapião, forma de aquisição invocada a título subsidiário;

            - que os réus sejam condenados a reconhecerem que é falsa a escritura de habilitação de herdeiro lavrada no Cartório de Nelas, que fundou o registo de aquisição a favor do primeiro réu e, em consequência que se declare a nulidade do referido registo;

            - que os réus sejam condenados a reconhecerem que por virtude dos factos anteriores é nula e de nenhum efeito a escritura de compra e venda entre o primeiro réu e os segundos réus, sendo nulos os actos de constituição de hipoteca a favor da última ré, ou pelo menos sendo ineficazes tais actos em relação aos autores, devendo ordenar-se os cancelamentos registrais atinentes a todos os actos;

            - que os réus sejam condenados a reconhecerem que o dito testamento a favor do nomeado outorgado pela mãe do autor é nulo e de nenhum efeito;

            - que o primeiro réu seja condenado a pagar ao autor indemnização a fixar em liquidação de sentença por prejuízos causados, devendo fixar-se sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso até ao restabelecimento da legalidade.

Alega, para o efeito, e em síntese, que:

- é filho de (…) e de (…).;

- nasceu e tem vivido a vida toda nos EUA, onde é natural de Delaware;

- o primeiro dos réus citados é filho de (…) e (…);

- com a morte (…), ocorrida em 1.07.2002, o réu (…) habilitou-se por escritura pública do Cartório Notarial de Nelas à herança dos pais do autor;

- assim, pedindo a pessoas que residem no mesmo bloco habitacional e a um terceiro, levou a que estes declarassem perante notário público, o que consta expresso em tal escritura;

- sendo pois as segundas autora heranças conjuntas ilíquidas e indivisas por morte dos seus titulares, antecessoras do primeiro autor, foi declarado perante notário que o pai do autor se finou com testamento a favor da mãe do autor e que, com o falecimento desta, por força de testamento a favor do pai do réu, por direito de representação, era ele único e universal herdeiro dos bens da referida Eduarda;

- porquanto esta morrera no estado de viúva, sem descendentes nem ascendentes e consequentemente herdando ele todos os bens;

- para o efeito fez juntar à dita escritura pública os ditos testamentos;

- o último dos quais, lavrado no cartório Notarial de Oliveira do Hospital, no ano 2000, em 27 de Julho, em que se instituía herdeiro o pai do primeiro réu, de todos os bens de que ela testadora mãe do autor “pudesse dispor à sua morte”, feito por ajudante, fora de horas;

- ora, efectivamente existe este autor como único descendente, e disso bem sabia o réu (…), porquanto este, invocando ser advogado, foi ao longo dos anos escrevendo cartas ao filho ora autor, começou por apresentar-lhe sentidas condolências, informando-o de que “sua mãe Sra(…), morreu em 29 de Setembro de 2004”;

- mais tarde pediu ao autor sucessivas procurações, incluindo poderes para realizar negócio consigo próprio, certamente por forma a conseguir obter para si o benefício que decorria da referida herança, quer benefício de saldo bancário quer de imóveis, sobretudo o prédio urbano e o rústico que integram hoje a descrição predial nº 289/19880421;

- consta registado na Conservatória do Registo Predial de Seia, o prédio 289, da freguesia de Paranhos da Beira, composto de uma casa de habitação com superfície coberta de 140 metros quadrados, e quintal com 3000 metros quadrados, a confrontar do norte com Estrada Nacional nº 231, do nascente com (…)e outros, e do poente com (…), e sul com (…) e outros, inscrito na matriz rústica sob o artigo nº ... e na matriz urbana sob o artigo nº ..., prédio misto este que estava registado a favor dos pais do autor, que o haviam adquirido a (…) e mulher (…);

- desde pelo menos 1988 que tal imóvel figurava na descrição e era propriedade dos pais do autor já antes desse tempo, e por eles era habitado, dado de arrendamento ou comodatado, em que nele faziam benfeitorias e reparações, pagando contribuição ou desta estando isento, e cultivando ou colhendo frutos na parte rústica;

- e se mesmo título não tivesse ou fosse ele inválido, sempre eram aqueles antecessores donos dos mesmos imóveis, registados sob única descrição predial, donos daquele(s), isto porque começaram mesmo por adquirir o terreno e depois construíram a casa, tudo há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na ignorância de lesão dos direitos de outrem, ininterruptamente pelo referido tempo;

- posse esta que se transmitiu mesmo ao autor, por força da morte do seus progenitores, acedendo o autor na posse dos seus antecessores, pelo que mesmo que título não tivesse é hoje legítima dona e possuidora de tal imóvel a herança indivisa dos pais do autor, por força, se mais não fosse, de aquisição por usucapião, que se invoca subsidiariamente;

- e antes destas heranças o eram já os seus antecessores, por força da mesma usucapião;

- mesmo bem sabendo disto, tanto mais que até pedia procuração ao autor, o dito réu tratou de lavrar escritura falsa e com base nela registar a seu favor o dito prédio, levando menção de inscrição a seu favor com a AP. 4910 de 2009/08/03;

- invocou para o efeito sucessão testamentária, usando consequentemente a escritura de habilitação em que fez intervir três testemunhas que perante notário declararam não haver descendentes nem ascendentes vivos dos pais do autor;

- o primeiro réu requereu em Condeixa-a-Nova registo a seu favor;

- por esse motivo, não podia o primeiro réu ter lavrado a seu favor o dito registo, mas porque tal não bastasse, tratou o dito Réu de vender imediatamente a favor dos segundos réus o citado imóvel, tudo nos precisos termos constantes da escritura pública que se junta;

- os segundos réus, no acto de compra, contrataram com a última ré dois mútuos, um no valor de 90 000€ e outro no valor de 40 000€;

- a ré Caixa de Crédito tem hoje a seu favor registo de hipotecas sobre o citado imóvel;

- na verdade, o bem pertence às heranças dos pais do Autor;

- logo no acto de compra e venda foi constituída hipoteca a favor da última ré, de 90 000€ e mais tarde ou em simultâneo uma outra de 40 000€, hoje ambas registadas na Conservatória como ónus sobre o imóvel supra referenciado;

- ademais, é nulo o dito testamento, já que foi feito sem que a testadora exprimisse claramente a sua vontade, porquanto a cláusula de que deixa os bens que pudesse dispor à hora da sua morte significaria, no limite, uma disposição contrária à lei, na medida em que por não ter feito partilha por óbito do marido, sempre não podia dispor de qualquer bem nessa data, além de que foi feito com a ideia de que o nomeado iria olhar pela pessoa em causa até à morte, o que não só não veio a suceder, como ainda foram movimentadas contas da falecida;

- de tudo foi feita participação criminal;

- o facto de os autores estarem a ser objecto de litígio que impossibilita partilha do imóvel, impede-os de fruir ou tirar proveito, sendo conduta que causa prejuízo.

            Efectuadas as citações de todos os réus, todos eles contestaram a acção, impugnando a qualidade de sucessor invocada pelo autor, com base no documento estrangeiro que ofereceu com a petição inicial.

            O autor replicou e aí peticionou, de forma expressa, o reconhecimento judicial da sua qualidade de herdeiro de (…)e de (…).

            Após convite ao autor para junção aos autos de documento idóneo para prova da relação de filiação invocada na petição inicial, sob pena de decisão da causa na fase do saneador, fixou-se o valor da causa em € 130.000,00, proferiu-se despacho saneador tabelar e, sem fixação da matéria já assente, conheceu-se directamente do fundo da causa, absolvendo-se os réus dos pedidos, em virtude do autor não ter comprovado a relação de filiação com base num dos meios previstos no Código do Registo Civil.

            Inconformado com tal decisão, J (…) interpôs recurso de apelação contra a mesma, oferecendo as seguintes conclusões:

            “1. O autor, sendo americano, tem a sua relação de filiação sujeita à norma de conflitos do artigo 25 do CC.

            2. Não carece pois de transcrever nascimento, para poder invocar ser filho das pessoas relativamente às quais viu o seu património ser espoliado.

            3. Intentou até acção criminal pelo facto de se efectuar uma escritura habilitação de herdeiro sem que dela conste como herdeiro

4. Além disso, até para efectuar uma escritura como essa em PORTUGAL qualquer notário sabe que basta certidão de nascimento passada de acordo com a lei do Estado que a passa.

5. Se é verdade que o Tribunal convidou o Autor ao aperfeiçoamento, juntando o dito documento, não o é menos verdade que a decisão constitui autêntica decisão surpresa, depois de o Autor ter esclarecido o Tribunal de que a autenticidade do documento estrangeiro não carecia de ingresso no registo civil para ter força probatória plena idêntica aos factos a este levados.

6. Na verdade, quando muito seria de aplicar a norma do artigo 540 do Código de Processo Civil.

7. E para isso bastaria tão só que fosse posta apostilha, de acordo com a Convenção Internacional de Haia.

8. Porém, esta Convenção, mesmo no caso em apreço, está afastada, por força da norma do artigo nº 17 da CIEC (Decreto nº 135/82, de 20 de Dezembro: Convenção Relativa à Dispensa de Legalização para Certas Certidões de Registo Civil e Documentos) assinada em Atenas em 15 de Setembro de 1977.

9. Que refere que no caso das certidões de registo civil não terem sido transmitidas por via diplomática ou qualquer outra via oficial, a Autoridade à qual sejam apresentadas pode, em caso de dúvida grave sobre a veracidade da assinatura, a autenticidade do selo ou carimbo ou ainda sobre a qualidade do signatário, pedir a sua verificação à autoridade que emitiu o documento estrangeiro.

10. Mas não se vê como pode existir dúvida grave no caso dos autos.

11. Pode ainda a douta decisão ser Reformada, mandando-se prosseguir os autos em conformidade legal, deste modo e por economia de procedimentos, procedendo-se a douto saneador que especifique que o Autor é filho dos seus progenitores, nos termos peticionados, atendendo a que assume manifesta errada aplicação da norma (artigo 669º nº 3 do CPC)

12. Foram pois violadas as normas dos artigos 10 do Código do Registo Civil, a do artigo 25 do CC, as da Convenção de Haia e o artigo 17 da Convenção Relativa à Dispensa de Legalização para Certas Certidões de Registo Civil e Documentos - Decreto nº 135/82, de 20 de Dezembro.

A Caixa de Crédito Agrícola (…)[1] ofereceu contra-alegações em que pugna pela irrecorribilidade da decisão sob censura, por ter transitado em julgado o despacho que convidou o autor a oferecer prova idónea da sua filiação, sendo o recurso interposto extemporâneo, alegando ainda que pretendendo o autor ver reconhecida a sua qualidade sucessória segundo as leis Portuguesas, deve oferecer prova nos termos do Registo Civil Português, concluindo pela total improcedência do recurso.

            J M (…) contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso em virtude do recorrente não ter acatado o despacho a convidá-lo a oferecer documento idóneo da relação de filiação que alegou na petição inicial.

            Cumpre agora decidir singularmente, atenta a simplicidade da questão a conhecer.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigo 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da existência de caso julgado determinante da irrecorribilidade da decisão e da intempestividade do recurso;

2.2 Da necessidade de um cidadão estrangeiro demonstrar a filiação que invoca em processo judicial mediante um dos meios de prova previstos no Código do Registo Civil.

3. Fundamentos de facto resultantes da prova documental junta de folhas 18 a 21 e 209 e tendo em conta o objecto do recurso


3.1

            A 29 de Março de 2010, o Sr. Vice Cônsul Geral dos Estados Unidos da América, em Lisboa, certificou que dos registos do consulado consta que J (…) nasceu a 27 de Maio de 1941, em Delaware, Penssylvânia, Estados Unidos da América, é solteiro, é filho de (…) natural e nacional de Portugal e de (…), natural e nacional de Portugal e é cidadão americano por nascimento.

3.2

            A 23 de Outubro de 2001, pelos Registos Vitais, Departamento de Saúde, Estado da Pensilvânia, Estados Unidos da América, foi emitida uma certidão de nascimento referente a (…), nascido a 27 de Maio de 1941, filho de (…), certidão que foi objecto de tradução, não tendo sido objecto de legalização, nem tendo aposta apostila.

            4. Fundamentos de direito

            4.1 Da existência de caso julgado determinante da irrecorribilidade da decisão sob censura e da intempestividade do recurso

            Nas suas contra-alegações, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…) suscita a irrecorribilidade e intempestividade do recurso interposto por J (…). Para tanto alega que não tendo sido interposto recurso do despacho que convidou o recorrente a juntar aos autos documento idóneo para comprovação da sua filiação, sob pena de improcedência da acção, sobre tal questão esgotou-se o poder jurisdicional do tribunal, sendo a decisão recorrida mera “conclusão sequencial” daquele despacho, o que também conduz à intempestividade do recurso.

            Apreciemos.

            O despacho que convida qualquer das partes a juntar aos autos documentos, como resulta da sua denominação, é um mero convite, isto é, não tem carácter obrigatório no sentido do seu cumprimento ser devido pela parte a quem se dirige. Nesse despacho nada se conhece no sentido de tomada de posição final sobre a forma ou o mérito da causa, nada se decide, apenas se dando conta de deficiências de alegação ou de instrução e da necessidade e possibilidade de suprimento de tais deficiências, mas sem envolver qualquer posição definitiva sobre as questões que dele são objecto. Dado esse figurino, o despacho que convida qualquer das partes a oferecer prova documental não é passível de recurso (artigo 508º, nº 6, do Código de Processo Civil), não se podendo sequer afirmar que da sua prolação se possa deduzir qualquer vinculação subsequente do tribunal aos fundamentos subjacentes à sua prolação.

            Por identidade de razão com o despacho que designa a audiência preliminar, a eventual indicação de que o não acatamento do convite implicará o conhecimento imediato do mérito da causa não constitui caso julgado relativamente ao objecto dessa indicação, não ficando o tribunal vinculado a conhecer do mérito nos termos precedentemente anunciados (artigo 508º-A, nº 3, do Código de Processo Civil).

            É assim patente que falecem de todo os pressupostos de que partiu a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…) para sustentar a existência de caso julgado obstativo da recorribilidade da decisão sob censura, bem como da intempestividade do recurso interposto, pelas mesmas razões.

            O despacho convite não é passível de ser atacado por recurso (artigo 508º, nº 6, do Código de Processo Civil), sendo de observância facultativa e o anúncio de que a não observância do convite implicará o conhecimento imediato do pedido e a improcedência da acção não constituem caso julgado por identidade de razão com o regime previsto no artigo 508º-A, nº 3, do Código de Processo Civil.

            Pelo exposto, conclui-se pela inexistência de caso julgado obstativo da recorribilidade da decisão sob censura e pela tempestividade do recurso interposto, não existindo quaisquer obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso.

            4.2 Da necessidade de um cidadão estrangeiro demonstrar a filiação que invoca em processo judicial mediante um dos meios de prova previstos no Código do Registo Civil

            Na decisão sob censura entendeu-se que o autor, ora recorrente, teria que demonstrar a filiação que invoca e que é pressuposto essencial de todos os pedidos formulados na acção por uma das formas previstas no Código do Registo Civil, abonando-se para tanto no disposto no artigo 1802º do Código Civil.

            O recorrente, por seu turno, pugna pela revogação da decisão apelando à aplicação ao caso da sua lei pessoal, ex vi artigo 25º do Código Civil, que quando muito seria caso de aplicação do artigo 540º do Código de Processo Civil, exigindo-se a aposição de “apostilha”, de acordo com a Convenção de Haia, sendo que em rigor, mesmo essa exigência está afastada por força do artigo 17º da Convenção Relativa à Dispensa de Legalização para Certas Certidões de Registo Civil e Documentos, aprovada pelo decreto-lei nº 135/82, de 20 de Dezembro.

            Apreciemos.

            É facto assente que o recorrente é de nacionalidade americana. Nestes termos, face ao disposto no artigo 25º do Código Civil, o seu estado civil, a sua capacidade, as relações de família e as sucessões por morte são reguladas pela sua lei pessoal, sendo que esta lei é a da nacionalidade do indivíduo (artigo 31º, nº 1, do Código Civil).

            Assim sendo, não lhe é aplicável o disposto no artigo 1802º do Código Civil, norma cujo campo de aplicação pessoal está limitado aos sujeitos de direito a que por força das regras de direito internacional privado seja aplicável o direito Português.

            Ainda que assim não fosse, sempre se deveria entender que a restrição probatória constante do artigo 4º do Código do Registo Civil, conjugada com o artigo 211º do mesmo diploma legal, apenas é aplicável aos factos sujeitos a registo, isto é os factos cujo registo é obrigatório, sendo que relativamente a estrangeiros, apenas são obrigatoriamente registados os factos ocorridos em território português (artigo 1º, nº 2, do Código do Registo Civil)[2]. De facto, como resulta de forma clara do disposto no artigo 2º do Código do Registo Civil, “salvo disposição legal em contrário, os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados”, pelo que, a contrario sensu, essa restrição, na falta de disposição legal em contrário, não será aplicável aos factos cujo registo é facultativo, como sucede relativamente a factos respeitantes a estrangeiros, ocorridos fora do território nacional.

            A interpretação seguida na decisão sob censura posterga as regras de direito internacional privado aplicáveis e, argumentando ad absurdum, levaria a que qualquer cidadão estrangeiro em território nacional carecesse de proceder à transcrição dos registos pertinentes para poder demonstrar a sua idade, o seu estado civil, a sua naturalidade, enfim quaisquer dos factos sujeitos a registo civil quando respeitantes a cidadão português e ocorridos em território nacional.

            Salvo melhor opinião, o caso em análise resolve-se tendo em atenção as regras relativas aos documentos passados em país estrangeiro.

Assim, de acordo com o disposto no artigo 365º, nº 1, do Código Civil, “os documentos autênticos ou particulares passados em pais estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal.”

            “Se o documento não estiver legalizado, nos termos da lei processual, e houver fundadas dúvidas acerca da sua autenticidade ou da autenticidade do reconhecimento, pode ser exigida a sua legalização” (artigo 365º, nº 2, do Código Civil).

            De acordo com o disposto no artigo 540º, nº 1, do Código de Processo Civil, “os documentos autênticos passados em país estrangeiro, na conformidade da lei desse país, consideram-se legalizados desde que a assinatura do funcionário público esteja reconhecida por agente diplomático ou consular português no Estado respectivo e a assinatura deste agente esteja autenticada com o selo branco consular respectivo.”

            Ao invés do que sustenta o recorrente, não é aplicável no caso dos autos a Convenção nº 17 da CIEC, Convenção Relativa à Dispensa de Legalização para Certas Certidões de Registo Civil e Documentos, assinada em Atenas em 15 de Setembro de 1977, aprovada para ratificação pelo Decreto nº 135/82, de 20 de Dezembro, tendo o instrumento de aprovação sido depositado a 20 de Novembro de 1984, entrando a convenção em vigor para Portugal a 01 de Fevereiro de 1985[3], já que os Estados Unidos da América não ratificaram nem aderiram a tal convenção, não fazendo sequer parte da Comissão Internacional do Estado Civil (CIEC).

            No entanto, no caso em apreço, é aplicável a Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros, concluída na Haia a 05 de Outubro de 1961, convenção a que aderiram os Estados Unidos da América e Portugal e que se acha em vigor desde 24 de Janeiro de 1965, tendo entrado em vigor relativamente a Portugal a 04 de Fevereiro de 1969[4].

            Nos termos do artigo 3º da Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros, concluída na Haia a 05 de Outubro de 1961, “a única formalidade que pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do acto consiste na aposição da apostila definida no artigo 4º, passada pela autoridade competente do Estado donde o documento é originário.”

            No caso em apreço, atento o teor da certidão de nascimento oferecida pelo recorrente e a certificação do Sr. Vice Cônsul Geral dos Estados Unidos da América, em Lisboa, em termos inteiramente coincidentes com o que resulta daquela certidão de nascimento, nenhumas dúvidas existem acerca da autenticidade da certidão de nascimento, pelo que não se justifica a legalização do referido documento.

            Pelo exposto, deve a decisão sob censura ser revogada, prosseguindo os autos com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, salvo se outro obstáculo a tal prosseguimento for identificado e que exorbite do objecto desta decisão[5].

5. Dispositivo

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso de apelação interposto por J (…) e em que são recorridos (…), (…) e esposa (…) e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da (…) e, em consequência, revoga-se a decisão proferida com data de 21 de Março de 2010, devendo os autos prosseguir com a condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, salvo se outro obstáculo a tal prosseguimento for identificado e que exorbite do objecto desta decisão. Custas do recurso a cargo dos recorridos que contra-alegaram.

Carlos Gil (Relator)


[1] O processo em papel não contém qualquer explicação para a designação desta recorrida, não se percebendo por que razão deixou de se denominar Caixa de Crédito Agrícola Mútuo (…)
[2] Esta conclusão era mais inequívoca na redacção do artigo 5º do Código do Registo Civil, aprovado pelo decreto-lei nº 51/78, de 30 de Março. Daí que, no Volume V do Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, 1995, de data certamente anterior à do actual Código do Registo Civil, na página 34, anotação 3, se relacione sempre o artigo 1802º do Código Civil com os factos sujeitos a registo civil obrigatório. No entanto, mesmo na formulação actual do artigo 4º do Código do Registo, aprovado pelo decreto-lei nº 131/95, de 06 de Junho, em rigor, só se podem considerar sujeitos a registo os factos cujo registo é obrigatório. A referência a sujeição a registo não parece compatível com qualquer facultatividade na efectivação do registo civil referente a estrangeiros e por factos ocorridos fora do território nacional.
[3] Veja-se o Aviso publicado no Diário da República nº 299, I série, 2º suplemento de 28 de Dezembro de 1984.
[4] Veja-se o diário do Governo nº 50, I série, de 28 de Fevereiro de 1969.
[5] Podem suscitar-se fundadas dúvidas quanto à personalidade judiciária das heranças autoras em virtude de, eventualmente, não se poderem dizer já jacentes. Sendo a personalidade judiciária matéria de conhecimento oficioso, certo é que os autos não nos permitem uma resposta suficientemente inequívoca à questão da aceitação das heranças dos progenitores do autor e daí que nenhuma decisão se tome relativamente a tal matéria, nesta decisão.