Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58/13.2PEVIS-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
NATUREZA
MOMENTO DA CONSUMAÇÃO
CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 09/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 25.º, AL. A) DO DECRETO-LEI N.º 15/93, DE 22/01; 77.º E 78.º, ESTES AMBOS DO CP.
Sumário: I. Analisando o crime de tráfico de estupefacientes sob várias perspectivas, pode afirmar-se que estamos perante um crime de empreendimento, já que os actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime, como por exemplo o cultivo ou detenção de estupefacientes.

II. Mas também é um crime exaurido, uma vez que, após a realização da conduta típica que já integra a consumação, também pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo. Isto é, depois do cultivo ou detenção do estupefaciente, condutas típicas que conduzem à consumação do crime, ainda pode haver lugar à venda do estupefaciente.

III. Ao apelidar o crime de tráfico de estupefacientes como um crime de trato sucessivo visa-se realçar a vertente de pluralidade de actos típicos, sucessivos (podendo também na prática do crime existir uma pluralidade de actos simultâneos), levados a cabo sob a mesma unidade resolutiva.

IV. Unidade resolutiva e não uma única resolução criminosa. Isso é, o agente terá decidido dedicar-se à actividade de tráfico de estupefacientes durante um determinado período de tempo, durante o qual praticou vários factos ilícitos, com preenchimento dos elementos típicos, quer objectivos quer subjectivos.

V. Em síntese conclusiva, pois, a consumação do crime de tráfico de estupefacientes dá-se com o primeiro acto que preenche os elementos típicos do crime e não com o último.

VI. In casu, o primeiro facto data de Janeiro de 2013. No processo nº 318 (…), a arguida foi condenada por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014. Isto é, antes do trânsito em julgado desta decisão já se encontrava consumado o crime dos presentes autos, embora se fosse aperfeiçoando com os factos que foram cometidos até 9 de Maio de 2014. Está, pois, em concurso com a pena aplicada no Processo nº 318 (…), verificando-se todos os pressupostos para a realização do cúmulo jurídico requerido pela arguida.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

A – Relatório

1. Pela Comarca de Viseu (Juízo Central Criminal de Viseu – Juiz 2), foi proferido despacho, datado de 3.12.2019, a indeferir a realização de cúmulo jurídico das penas de prisão que foram aplicadas à arguida JCS, nos presentes autos e no processo nº 318 (...).

2. Inconformada com tal despacho, veio a arguida interpor recurso do mesmo, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

- Tendo a arguida requerido a realização de cúmulo jurídico, da pena aplicada nos presentes autos, com a pena aplicada nos autos de Processo nº 318 (...), foi o mesmo indeferido.

- O que o tribunal a quo concretiza a pretexto do crime de tráfico de estupefacientes, alegadamente, constituir um crime de trato sucessivo, que se consuma com a prática do seu último ato de execução.

- Decorrendo, consequentemente, que o último facto praticado pela arguida, nos presentes autos, haveria ocorrido em 09/05/2019, data posterior ao transito em julgado da decisão proferida nos autos de processo nº 3.18/11.7GCVIS.

- Porém, em nosso entendimento, o crime de tráfico de estupefacientes constitui um crime exaurido.

- Sucedendo que os crimes exauridos de consumação se esgotam nos primeiros atos de execução completa e em que a repetição dos atos é imputada a uma realização única.

- Devendo assim ser deferido à requerida a realização de cúmulo jurídico, porquanto a prática do primeiro ato verificado nos presentes autos ocorre em data anterior à data de transito em julgado da decisão proferida nos autos de processo nº 318 (...).

- Nestes termos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência, ser determinada a realização de cúmulo jurídico da pena aplicada nos presentes autos com a pena aplicada nos autos de Processo nº 318 (...).

3. O Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pela arguida, pugnando pelo não provimento do mesmo e pela confirmação do despacho recorrido, alegando, em síntese, que:

- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência nº 9/16, de 28/04/16, publicado no DR.111, SÉRIE I, de 09/06/2016, veio clarificar que “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.”

- Ora, compulsados os autos e o certificado de registo criminal da arguida JC de fls. 8456 a 8457-v, verifica-se que esta arguida, até ao presente, apenas sofreu duas condenações: a dos presentes autos e aqueloutra no processo nº 318 (...).

- Sucede que neste processo a arguida JC foi condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, numa pena de dois anos e seis meses de prisão efectiva, por factos cometidos entre Janeiro de 2013 e 9 de Maio de 2014 – cfr., concretamente, pontos 261 a 269 e 286 a 289 da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido.

- Já no processo nº 318 (...), foi esta arguida condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, numa pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014 – cfr. fls. 8456-v.

- Deste modo, sendo o crime de tráfico de estupefacientes um crime que se consuma (formalmente) por actos sucessivos ou reiterados – trata-se de crime de trato sucessivo – a sua consumação material apenas ocorre no momento da prática do seu último acto de execução, pois só nessa altura ocorre “a realização completa do conteúdo de ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação”, ou seja, no caso concreto, em 9 de Maio de 2014, sendo esta consumação material aquela que é relevante para efeito de concurso jurídico de crimes de conhecimento superveniente.

- Destarte, forçoso se torna concluir que o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pelo qual a arguida JC foi condenada nestes autos, se consumou materialmente em data posterior ao do trânsito em julgado da condenação pela prática do crime de idêntica natureza no processo nº 318 (...), pelo que estes dois crimes e respectivas penas não se encontram numa relação de concurso jurídico para efeito do consignado nos arts. 77º e 78º do Código Penal.

(…)


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B - Fundamentação

 

(…)

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pela arguida e ao mencionado supra, as questões a decidir são as seguintes:

- natureza jurídica do crime de tráfico de estupefacientes e momento da sua consumação;

- se deve ser realizado o cúmulo jurídico da pena aplicada à recorrente nos presentes autos com a pena aplicada no processo nº 318 (...).

3. Para decidir das questões supra enunciadas, vejamos o despacho recorrido que tem o seguinte teor:

“Fls. 8450 e verso: a arguida J requereu que se efetuasse o cúmulo jurídico das penas de prisão que lhe foram aplicadas nos presentes autos e no processo nº 318 (...), por considerar que se encontram numa relação de concurso entre si, nos termos dos arts. 77º e 78º, ambos do Código Penal.

Do certificado de registo criminal da arguida JC de fls. 8456 a 8457-v, verifica-se que esta arguida, até ao presente, apenas sofreu aquelas duas condenações, a saber:

- nestes autos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, numa pena de dois anos e seis meses de prisão efectiva, por factos cometidos entre Janeiro de 2013 e 9 de Maio de 2014 – cfr., concretamente, pontos 261 a 269 e 286 a 289 da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido;

- no processo nº 318 (...) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, numa pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014 – cfr. fls. 8456-v.

Contudo, sendo o crime de tráfico de estupefacientes um crime de trato sucessivo que se consuma com a prática do seu último ato de execução, constata-se que o crime de tráfico pelo qual a arguida JC foi condenada nestes autos se consumou em data posterior ao do trânsito em julgado da condenação sofrida no processo nº 318 (...), não havendo entre si uma relação de concurso para efeito do consignado no art. 78º do Código Penal.

Pelo exposto, indefiro o requerido pela arguida JC a fls. 8450 e verso. Notifique”.


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 4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A primeira questão que cumpre apreciar prende-se com a natureza jurídica do crime de tráfico de estupefacientes e o momento da sua consumação.

Para uma melhor compreensão, vejamos algumas categorias de crimes, de criação jurisprudencial.

O crime de trato sucessivo, segundo a jurisprudência, engloba “aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva” (pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções) e uma conexão temporal entre os atos realizados” – cfr. Helena Moniz, Crime de trato sucessivo, in Julgar Online de Abril de 2018, pág.3

Nos crimes de trato sucessivo, o dolo do agente engloba uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe desde logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização; a repetição do crime revela uma persistência da resolução criminosa, traduz uma culpa agravada.

Assim, configura a prática de um crime de trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal.

Categoria esta que foi atribuída ao crime de tráfico de estupefacientes, logo na década de 80.

Os crimes de empreendimento, classificação usada no sistema alemão, são caracterizados pelo facto de os “actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime. Ou seja, são crimes onde ocorre uma antecipação da tutela penal, antes mesmo da lesão do bem jurídico, constituindo condutas criadoras de um perigo para o bem jurídico, condutas que integram atos dirigidos de forma imediata à realização do tipo e idóneas à criação daquele perigo. Tratando-se de casos onde ocorre uma equiparação entre a tentativa e a consumação, verifica-se não só uma antecipação da tutela penal, mas também uma punição mais grave do que aquela que ocorreria se aqueles mesmos actos fossem punidos segundo as regras da tentativa. … Aquilo que caracteriza os crimes de empreendimento é a equiparação da tentativa à consumação, antecipando-se a tutela penal para um momento anterior à lesão do bem jurídico. Mas é igualmente característico deste tipo de crimes a existência de uma “distonia entre a consumação formal e material” — esta característica ocorre nos crimes de empreendimento ou de atentado, mas também nos crimes de perigo ou nos crimes de intenção ou de resultado cortado. Trata-se de casos em que a consumação formal ou típica ocorre com o preenchimento integral dos elementos do tipo, ocorrendo a consumação material ou terminação “com a realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação (...), por outras palavras, com a verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de protecção da norma” – cfr. artigo sura citado, págs. 5 e 6.

Continua afirmando Helena Moniz que “se são punidos comportamentos que em outras situações apenas constituiriam uma tentativa e como tal eram punidos, podemos dizer que nestes casos houve uma consumação formal do crime mas, para além desta, haverá igualmente uma punição quando ocorra a consumação material — por exemplo, tanto é punido o ato de cultivo de plantas (equiparando a tentativa à consumação e designando-se esta consumação por consumação formal), como a venda de estupefacientes, isto é, a consumação material, terminação do crime, ou crime exaurido. Nos crimes de empreendimento ocorre a consumação antes da terminação, tratando-se de crimes de consumação antecipada (tal como nos crimes de perigo, ou nos crimes de intenção); e uma vez terminado o crime podemos dizer que estamos perante um crime exaurido. Esta distinção entre a consumação e a terminação ocorre em todos aqueles crimes de vários atos, tipos integrados por diversos atos individuais, como acontece nos crimes de tráfico como o crime de tráfico de estupefacientes. Antes mesmo do acto de traficar, ou vender o estupefaciente, já ocorre uma consumação do crime, antes mesmo da verificação do resultado que se pretende evitar, antes da terminação” – cfr. artigo supra citado, págs. 6 e 7.

Relativamente à categoria de crime exaurido, trata-se de uma designação que corresponde àqueles crimes em que, após a realização da conduta que já integra a consumação formal ou típica, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo” – cfr. artigo supra citado, pág. 8.

Ora, também esta categoria foi transposta para o crime de tráfico de estupefacientes.

Na verdade, também no crime de tráfico de estupefacientes, antes mesmo do tráfico, são diversos os actos já punidos, havendo igualmente uma equiparação de uma tentativa à consumação: tanto é punido da mesma forma a venda de estupefacientes como o cultivo, por exemplo. E é esta ideia — a ideia de que o tipo pune múltiplos atos — que acabou por ser salientada pela jurisprudência relativa ao crime de tráfico de estupefacientes.

Ora, se, na verdade, o crime de tráfico de estupefacientes constitui um crime de múltiplos atos, também é verdade que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação, e, portanto, estamos perante um crime de empreendimento, pelo que há não só uma antecipação da tutela penal (punindo comportamentos em que ainda estão numa fase prévia do iter criminis), como uma punição antes da terminação ou do exaurimento do crime, pese embora já ocorra a consumação formal – cfr. artigo supra citado, pág. 10.

No mesmo sentido veja-se alguma jurisprudência com a qual se concorda.

No acórdão da RE de 26.6.2012, in jusnet.pt, pode ler-se que “o crime de tráfico é um crime exaurido, excutido ou de empreendimento, consumando-se logo no primeiro acto de execução, ou seja, “com a realização inicial do iter criminis” (assim Vaz Patto, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Org. Pinto de Albuquerque, José Branco, II, p. 487). Os subsequentes actos de tráfico serão execução ou continuação de um mesmo crime já iniciado logo no início da actividade. Assim, “é característica dos crimes exauridos a aplicação unitária e unificadora da sua previsão aos diferentes actos múltiplos da mesma natureza, uma vez que essa previsão diz respeito a um conceito genérico e abstracto (...). Diversos actos que constituiriam infracções independentes e potencialmente autónomas são, assim, tratados como um único crime, uma única realidade criminal que absorve esses actos. A prática destes crimes decorre normalmente durante lapsos de tempo prolongados e só raramente configura um acto esporádico" (Vaz Patto, loc. cit., ainda com indicação extensa de jurisprudência sobre o crime excutido).

Segundo o Ac. da RC de 7.6.2016, in www.dgsi.pt, “o crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é o que vem sendo denominado de crime exaurido, ou seja, um crime que se consuma através da comissão de um primeiro ato de execução, que não corresponde a uma execução completa mas que se irá aperfeiçoando com a prática de novos factos, cada um integrando um hipotético novo crime do mesmo tipo matricial mas que é imputado à ação inicial”.

Nos termos do Ac. da RE de 6.1.2011, in www.jusnet.pt “resulta doutrinaria e jurisprudencialmente pacífico que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido, configurando-se o mesmo como um crime em que ocorre equiparação típica de tentativa e consumação, ou seja, por outras palavras, um crime em que o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do "iter criminis", tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo. Esta natureza advém da circunstância de se tratar de um crime de perigo abstracto, em que se considera que a prática de quaisquer actos previstos na norma incriminadora já coloca em perigo o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja, a saúde pública, nas suas complexas vertentes”.

Também a RG já afirmou, no seu Ac.  de 18.6.2012 que “este crime tem vindo a ser qualificado como “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido" que se caracteriza como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo”.

Continua o mesmo aresto afirmando que “o crime exaurido é "uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa", ou seja, "aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta do agente"(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/4/1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ACSTJ, Ano IV, tomo II, pág. 170; cf. ainda os Acórdãos do mesmo Tribunal de 18/6/98 e de 7/3/2001, obra citada, Anos VI, tomo III, pág. 169 e IX, tomo I, pág. 237.). Isto quer dizer que o "primeiro passo" dado pelo agente na senda do "iter criminis" já constitui o preenchimento do tipo, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de determinação da medida concreta da pena a aplicar pela prática do crime.

Deste modo, a condenação do agente pela prática do crime de estupefacientes durante determinado período de tempo corresponde a uma apreciação global da sua actividade delituosa durante esse período, independentemente da falta de consideração de algum ou alguns factos parcelares praticados nessa época. O crime há-de, assim, considerar-se exaurido, esgotado, apenas quanto aos factos ocorridos dentro do período de tempo a que se reporta a condenação”.

Segundo o Ac. do STJ de 26.1.2005, consultável em www.pgdl.pt “Os crimes exauridos, também chamados de 'empreendimento' ou 'excutidos', caracterizam-se por ficarem perfeitos com a comissão de um só acto gerador do resultado típico, mas admitem a aplicação unitária e unificadora da sua previsão aos diferentes actos múltiplos integrados num conceito genérico e abstracto, como o tráfico de droga, a falsificação de documentos, géneros alimentícios, etc.. Relativamente a tais crimes, os diversos actos constitutivos de independentes e potencialmente autónomas infracções podem, em certas circunstâncias, ser tratadas como um só delito, por forma que tais actos individuais fiquem consumidos e absorvidos numa só realidade criminal. O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução completa e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é imputada a uma realização única”.

Também o Ac. do STJ de 12.7.2006, in www.dgsi.pt refere que “o crime de tráfico de estupefacientes, concebido como crime de trato sucessivo, de execução permanente, comummente denominado de crime exaurido, fica perfeito com a comissão de um só acto, preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico. O conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência. O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única”.

Por último, uma referência a Ac. do STJ de 16.4.2009, consultável em www.pgdl.pt, nos termos do qual “A infracção do artigo 21.º do DL 15/93, de 22-01, constitui o que a doutrina tem apelidado de crime “exaurido”, “excutido” ou “de empreendimento”, em que o resultado típico se alcança logo com aquilo que surge, por regra, como realização inicial do iter criminis, tendo em conta um processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo”.

No acórdão do STJ de 06.4.2016, proferido no processo nº 19/15.7JAPDL.S1 - 3.ª Secção, a temática do crime de trato sucessivo é apreciada nos seguintes termos:

“O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma "unidade resolutiva", realidade que se não deve confundir com “uma única resolução”, pois que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação" (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no "Código Penal anotado" de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante”.

Assim, em jeito de conclusão e analisando o crime de tráfico de estupefacientes sob várias perspectivas, pode afirmar-se que estamos perante um crime de empreendimento, já que os actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime, como por exemplo o cultivo ou detenção de estupefacientes. Mas também é um crime exaurido, uma vez que, após a realização da conduta típica que já integra a consumação, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo. Isto é, depois do cultivo ou detenção do estupefaciente, condutas típicas que conduzem à consumação do crime, ainda pode haver lugar à venda do estupefaciente.

Ao apelidar o crime de tráfico de estupefacientes como um crime de trato sucessivo visa-se realçar a vertente de pluralidade de actos típicos, sucessivos (podendo também na prática do crime existir uma pluralidade de actos simultâneos), levados a cabo sob a mesma unidade resolutiva.

             Unidade resolutiva e não uma única resolução criminosa. Isso é, o agente terá decidido dedicar-se à actividade de tráfico de estupefacientes durante um determinado período de tempo, durante o qual praticou vários factos ilícitos, com preenchimento dos elementos típicos, quer objectivos quer subjectivos.

Assim, uma coisa é certa, a consumação do crime de tráfico de estupefacientes dá-se com o primeiro acto que preenche os elementos típicos do crime e não com o último.

É, pois, sob esta perspectiva que se vai analisar a questão de saber se deve ser realizado o cúmulo jurídico da pena aplicada à recorrente nos presentes autos com a pena aplicada no processo nº 318 (...).

Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

O nº 2 da mesma norma dispõe que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

Assim, é necessária a verificação de dois requisitos para a elaboração do cúmulo jurídico: a prática de vários crimes pelo arguido e que estes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles.

“Na concretização da regra estabelecida no nº 1, in fine, do artigo 77º do Código Penal, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial «na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares» - [cf. Ac. STJ de 05.07.2012, Proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1], o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa” – cfr. Ac. da RC de 13.12.2017, in www.dgsi.pt.

Também segundo o Ac. do STJ de 27-06-2012 Proc. n.º 95/08.9EACBR.C1.S1 – in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/criminal2012.pdf:

“Com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto a lei mandar considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Na determinação concreta da pena conjunta importa averiguar se ocorre ou não conexão entre os factos em concurso, se existe ou não qualquer relação entre uns e outros, indagar da natureza ou do tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente, com vista à obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos. Isto de modo a aferir se o ilícito global é ou não produto de uma tendência criminosa do agente e a fixar a medida concreta da pena dentro da moldura do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre ele”.

Por sua vez, sob a epígrafe Conhecimento superveniente do concurso, estipula o artigo 78º, nº 1, do Código Penal que “se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes”.

O nº 2 da mesma norma dispõe que “o disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.

“Assim, as regras da punição do concurso de crimes também se aplicam quando o conhecimento do concurso real de crimes é superveniente; isto é, quando é descoberto um novo facto que se encontraria em concurso com os crimes objecto de uma condenação já transitada em julgado, por o facto novo ter sido praticado antes da dita condenação” -  cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. actualizada, 380.

Sempre que houver que reformular o cúmulo jurídico por terem sido aplicadas novas penas parcelares, o tribunal procede às respetivas operações como se o anterior cúmulo não existisse, sem atender às penas que foram então fixadas, o que significa que, quando houver que fazer novo cálculo, a nova pena não pode ser obtida pela acumulação com a pena única anterior, nem a medida da pena única anterior condiciona os limites da moldura a considerar para a (nova) fixação da pena única.

“O caso julgado relativo à formulação do cúmulo jurídico entre as penas de um processo vale rebus sic stantibus, ou seja, nas circunstâncias que estiveram na base da sua formulação. Se as circunstâncias se alterarem por, afinal, do concurso fazer parte outro crime e outra pena, há uma modificação que altera a substância do concurso e a respetiva moldura penal, com a subsequente alteração da pena conjunta. Daí que, não subsistindo as mesmas circunstâncias, tem de ficar sem efeito o caso julgado em que se traduziu a primitiva pena única, adquirindo as penas parcelares toda a sua autonomia para a determinação da nova moldura penal do concurso” – cfr. aresto da RC de 13.12.2017, in www.dgsi.pt.

Por último, faz-se uma referência ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência nº 9/16, de 28.04.16, que fixou que “o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.

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Revertendo ao caso concreto, a arguida JCS requereu que se efetuasse o cúmulo jurídico das penas de prisão que lhe foram aplicadas nos presentes autos e no processo nº 318 (...), por considerar que se encontram numa relação de concurso entre si, nos termos dos artigos 77º e 78º, ambos do Código Penal.

Como se disse no despacho recorrido, do certificado de registo criminal da arguida JC de fls. 8456 a 8457-v, verifica-se que esta arguida, até ao presente, apenas sofreu aquelas duas condenações, a saber:

- nestes autos pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, numa pena de dois anos e seis meses de prisão efectiva, por factos cometidos entre Janeiro de 2013 e 9 de Maio de 2014;

- no processo nº 318 (...) pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, numa pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução, por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014.

O tribunal a quo indeferiu a requerida realização do cúmulo jurídico por considerar que “sendo o crime de tráfico de estupefacientes um crime de trato sucessivo que se consuma com a prática do seu último ato de execução, constata-se que o crime de tráfico pelo qual a arguida JC foi condenada nestes autos se consumou em data posterior ao do trânsito em julgado da condenação sofrida no processo nº 318 (...), não havendo entre si uma relação de concurso para efeito do consignado no artigo 78º do Código Penal”.

Ora, por todas as considerações já supra tecidas a propósito da natureza e momento da consumação do crime de tráfico de estupefacientes, facilmente se conclui que mal andou o tribunal a quo, já que o crime de tráfico de estupefacientes consuma-se com o primeiro facto ilícito típico.

Nos presentes autos, o primeiro facto data de Janeiro de 2013. No processo nº 318 (...), a arguida foi condenada por decisão transitada em julgado no dia 29 de Abril de 2014. Isto é, antes do trânsito em julgado desta decisão já se encontrava consumado o crime dos presentes autos, embora se fosse aperfeiçoando com os factos que foram cometidos até 9 de Maio de 2014. Está, pois, em concurso com a pena aplicada no Processo nº 318 (...), verificando-se todos os pressupostos para a realização do cúmulo jurídico requerido pela arguida.


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Tudo ponderado, procedendo as questões suscitadas pela recorrente, deve ser julgado totalmente procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e, em sua substituição, deve ser proferido outro que em que seja designada data para a realização de audiência de cúmulo jurídico, nos termos do artigo 472º do Código de Processo Penal.

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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pela arguida e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, devendo este ser substituído por outro que designe data para a realização de audiência de cúmulo jurídico, nos termos do artigo 472º do Código de Processo Penal, em que serão considerados os crimes e penas respeitantes aos presentes autos e ao Processo nº 318 (...).


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Sem custas – artigo 513º, nº 1, a contrario, do Código de Processo Penal.

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Notifique.

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Coimbra, 23 de Setembro de 2020.

(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto – Relatora

Orlando Gonçalves – Adjunto