Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
98/17.2T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 12/13/2022
Votação: S
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 615.º, N.º 1, ALS. B) E C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Sendo imperativa a exigência de fundamentação das decisões judiciais, só a absoluta falta de fundamentação da sentença (ou seja, a não indicação dos factos provados e não provados) é suscetível de gerar a sua nulidade, pelo que a falta de motivação não gera a nulidade da sentença, desde que na mesma tenham sido discriminados os factos que o tribunal considera provados/não provados.

II – Ainda que se admita que também a motivação da decisão da matéria de facto possa ser considerada para efeitos do art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, para que a sentença possa ser considerada nula, sempre se exigiria a falta absoluta de motivação, não bastando que a mesma seja deficiente, incompleta, ou não convincente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 98/17.2T8SRT.C1

Juízo de Competência Genérica da Sertã

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, com o NIF ..., e esposa BB, com o NIF ..., residentes na Rua ..., ..., ... ...

intentaram contra

CC e esposa DD, residentes na Rua ..., ...,

e
   EE e esposa FF, residentes na Rua ..., ..., ...,

a presente ação declarativa, de condenação, pedindo:

A-

“a) Declarar o A. marido, com exclusão de outrem, único e exclusivo possuidor e proprietário dos imóveis rústicos inscritos na matriz predial sob os arts. ...26..., ...6, ...31..., ...71º da freguesia e concelho ....

b) Condenar os R.R. a reconhecer tal direito de propriedade, a favor do A. marido, actual e anterior a 7 de Outubro de 2016.

c) Ser ao A. marido, reconhecido o direito legal de preferência dos imóveis confinantes melhor identificado supra, no art. 14º da presente P.I., substituindo este A. marido os 2º RR,na sua aquisição, com as demais consequências legais, designadamente em termos registrais e matriciais.

B-

d) Deve ser declarado falso e simulado o valor declarado na escritura aludida supra no art. 17º da presente P.I., no que toca aos prédios aludidos no art. 14º da presente P.I., devendo o mesmo ser rectificado de acordo com o preço médio por metro quadrado, pago pelo 2º R., ao 1º R., pelos restantes prédios rústicos, adquiridos pelo 2º R. ao 1º R., por via dessa escritura.

e) Ou, caso assim não se considere o pedido em d), deverá ser rectificado o preço de compra e venda dos prédios aludidos no art. 14º da P.I., de acordo com o valor a fixar em peritagem a realizar para apuramento dos respectivos valores.

f) Devendo, caso, haja procedência dos pedidos formulados em d) e e), ser rectificada em conformidade a escritura aludida no art. 17º da P.I., e ser restituído aos AA., o montante que depositaram em excesso, nos termos do art. 76º da presente P.I.”

Alegaram para o efeito, em síntese:

- ser o autor marido proprietário de diversos prédios, adquiridos por partilha verbal da herança dos seus pais;

- os autores tomaram conhecimento da publicação de uma escritura de justificação, por via da qual o primeiro réu marido se arrogou proprietário de vários prédios rústicos confinantes com os do autor, com área inferior à da unidade de cultura, e também que tais terrenos foram vendidos aos 2.ºs réus, sem que de tal negócio tenha sido dado conhecimento aos autores;

e

- o preço declarado na escritura de compra e venda mostra-se inflacionado face a outros que também foram simultaneamente vendidos, tratando-se de preço simulado.

                                                                      *

Os RR. CC e DD não apresentaram contestação.

                                                                  *

Contestaram os RR. EE e FF alegando, em súmula, 

- os terrenos por si comprados não são prédios rústicos, nem têm potencial de cultivo, sendo meros logradouros de prédios urbanos;

- existe diferença quanto à composição e áreas dos prédios, o que justifica a discrepância de preços face aos terrenos rústicos vendidos, na medida em que a zona em causa se trata de área urbana e não rústica

e

- os autores tiveram conhecimento do negócio e compareceram no Cartório Notarial no dia em que a escritura foi assinada, acompanhados por advogado, renunciando ali ao seu direito de preferência.

Nesse articulado deduziram reconvenção, pedindo a retificação da escritura pública de compra e venda, para que dele conste que os 2.ºs réus pretenderam adquirir um prédio urbano e logradouro e não um prédio rústico, e que, em caso de procedência da ação, devem os autores também adquirir o referido prédio urbano.

                                                                  *

Os AA. replicaram defendendo que os prédios são rústicos e independentes, e não logradouros de prédios urbanos, e que os RR. EE e FF litigam de má fé.

                                                                  *

Realizado o julgamento foi, a 30.06.2022, proferida sentença, julgando improcedentes a ação e a reconvenção (esta, na parte que foi apreciada – retificação da escritura pública de compra e venda).

                                                                  *

Irresignados, os AA. interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
1. Resulta da sentença que os prédios rústicos que os AA visam preferir, confrontam, com prédios rústicos dos AA.; bem como, que os prédios em causa têm uma área inferior à da unidade de cultura; e de que os RR adquirentes não eram proprietários de qualquer terreno confinante com os prédios objecto preferência.
2. No entanto a presente acção foi julgada improcedente, unicamente, porque o tribunal a quo, erradamente, considerou que “os réus lograram provar que não pretendem utilizar os terrenos adquiridos para a prática agrícola, mas sim para recuperação e ampliação do prédio urbano descrito sob o artigo ...49º, utilizando para o efeito todos os terrenos referidos em 14).”
3. Em conformidade, e em erro manifesto, deu como provado os seguintes factos, que devem ser dados como não provados:
25) Os réus compradores pretendem utilizar os terrenos adquiridos para recuperação e ampliação da casa de habitação localizada no prédio descrito na matriz predial urbana, sob o artigo ...49.º.
26) O projeto já apresentado e aprovado dos réus compradores ficará inviabilizado, caso não lhes seja possível utilizar os terrenos referidos em 14).
4. Para dar tais factos como provados, o tribunal a quo considerou unicamente, dois processos de licenciamento, existentes na Câmara Municipal ... e conjecturas.
5. Aliás, como consta na Motivação da Matéria de Facto:
“Em relação aos factos provados 25) e 26), denota-se que, com efeito, os réus apresentaram na Câmara Municipal ... um projeto para recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, o qual foi aprovado, já no final do ano de 2017.
Sendo certo que as obras não foram ainda iniciadas (o que desde logo se verificou por via da inspeção ao local) o projeto, remetido aos autos pela Câmara Municipal, mostra já investimento e esforço da parte dos réus compradores, os quais foram remetendo os elementos pedidos até pelo menos ao ano de 2019, contrataram e elaboraram projetos de arquitetura, obtiveram documentos.
É certo que desde aquele ano que nada mais foi feito, mas o Tribunal não pode daqui concluir que os réus tenham perdido interesse no projeto, sendo de assumir que poderão estar a aguardar pelo resultado dos presentes autos antes de iniciar as obras.
Por outro lado, a construção é claramente viável, na medida em que o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal, e a zona onde se situam todos os prédios se situa em área destinada a reabilitação e construção urbana – tendo os peritos, de forma praticamente universal, acordado também que a remoção dos restantes artigos que rodeiam o artigo urbano ...49º implicaria a perda de valor e viabilidade do projeto construtivo.
Em suma, não pode o Tribunal concluir, face aos elementos já presentes em relação ao projeto de construção, que a intenção dos réus não seja outra que não a de construir ali uma habitação, usando para o efeito todos os prédios referidos em 14) (conforme se extrai do projeto, inclui o projeto a recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, ocupando também os prédios com os artigos ...27 e ...30, bem como a construção de uma garagem ocupando o prédio com o artigo ...70), já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido.”
6. O Tribunal suporta tal motivação, não em factos, mas em conjecturas:
Tribunal não pode daqui concluir que os réus tenham perdido interesse no projeto, sendo de assumir que poderão estar a aguardar pelo resultado dos presentes autos antes de iniciar as obras.”
“Em suma, não pode o Tribunal concluir, face aos elementos já presentes em relação ao projeto de construção, que a intenção dos réus não seja outra que não a de construir ali uma habitação.”
7. A ser confirmada a sentença proferida, o exercício do direito de preferência, em caso de alienação de prédios rústicos, confinantes com prédios rústicos dos preferentes, acabou no ordenamento jurídico português, de uma forma fácil, barata e eficaz.
8. Basta os adquirentes apresentarem posteriormente projectos de construção de teor falso e … nada construírem!
9. Ora, os 2º RR., adquiriram os prédios rústicos sobre os quais os AA. pretendem exercer o seu direito de preferência, por escritura outorgada a 07/10/2016.
10. Os prédios rústicos em causa, têm inscrição matricial e descrição registral autónoma entre si, sendo vendidos por preços diferentes em relação ao m2 de cada um.
11. Na escritura, não existe qualquer menção de que os prédios rústicos sobre os quais os AA. visam exercer o seu direito de preferência tenham como fim a construção.
12. Os AA. a 23/03/2017, deram entrada à presente acção de preferência, quase volvidos que foram 6 meses após a outorga de tal escritura.
13. Os RR. foram citados para a presente acção a 29/03/2017.
14. Os 2º RR., só a 05/12/2017, na pendência da presente acção, deram entrada a pedido de autorização de construção de arrecadação agrícola, com destino a arrumos, a que foi atribuído o processo de Licenciamento ...0.
15. Tal Processo foi aprovado a 18/12/2017.
16. Sucede que, o processo de Licenciamento ...0, não diz respeito a qualquer prédio sobre o qual os AA. visam exercer a preferência, art. 26270 – rústico, mas ao prédio rustico, inscrito sob o art. ...82.
17. Em todo o caso, até à presente data (passados cerca de 6 anos), e pelo menos até 18/02/2022, os 2ª RR., não levaram a cabo quaisquer obras.
18. Enfermando o processo de Licenciamento ...0, de falsidade.
19. O que é do conhecimento do tribunal, pois, tal licenciamento identifica o prédio rustico inscrito na matriz sob o art. ...82, como se localizando no prédio que se visa preferir, este último inscrito sob o art. ...70.
20. Em todo o caso, a licença emitida para tal construção, datada de 18/12/2017, já há muito que caducou, nos termos do nº 1 art. 23º do Decreto-Lei nº 250/94 de 15-10-1994.
21. Pelo que, não tem há muito qualquer validade.
22. Por outro lado, os 2ª RR., só a 05/12/2017, na pendencia da presente acção, deram entrada a pedido de autorização de licenciamento de alteração e ampliação de moradia, a que foi atribuído o processo de licenciamento ...7.
23. Tal Processo foi aprovado a 06/02/2019.
24. Sucede que, o processo de licenciamento ...7, enferma de falsidade. Pois, a construção proposta engloba o prédio inscrito sob o art. ...30, sobre o qual os AA. visam exercer a preferência. Omitindo, a sua existência em tal projecto. Incluido, falsamente, o mesmo na área do prédio urbano inscrito sob o art. ...49º.
25. Tais falsidades, necessariamente do conhecimento do tribunal a quo (pois, resulta de prova documental junta aos autos, a qual o tribunal a quo necessariamente analisou; resulta da prova testemunha constante da Motivação de Facto e das declarações da R. FF, constantes da Motivação de Facto), levaram à aprovação de processos de licenciamento, que nada têm a ver com a realidade dos prédios em causa.
26. Em todo o caso, até à presente data (passados cerca de 6 anos), e pelo menos até 18/02/2022, os 2ª RR., não levaram a cabo quaisquer obras.
27. Sendo que, as licenças emitidas, tinham uma validade de 1 ano, sob pena de caducarem.(nº 1 art. 23º do DL nº 250/94.
28. Tal como resulta da Lei, e é do conhecimento oficioso do tribunal.
29. Por outro lado, no que toca ao facto provado em 26) - que deverá ser dado como não provado-, como resulta da Motivação da Sentença, os senhores peritos (e não por unanimidade) declararam que que a remoção dos restantes artigos que rodeiam o artigo urbano ...49º implicaria a perda de valor e viabilidade do projeto construtivo. Não declaram, que implicava a inviabilidade do projecto aprovado, mas sim e tão só a viabilidade.
30. Pois, como é público e notório, ao retirar a área do prédio rustico inscrito sob o art. ...30º, que falsamente e ardilosamente, foi omitido do levantamento junto a tal processo de licenciamento, incluído a mesma (falsamente), no prédio urbano inscrito sob o art ...49º. Omitindo-se em tal levantamento, o art. rustico 26230º. Como é publico e notório, tal obrigará a apresentar um novo projecto de licenciamento, de acordo com a verdade e a realidade, sendo reavaliada a respectiva viabilidade de construção, já se vê!
31. Porém, repita-se, mais uma vez tal é uma falsa questão, pois apesar do projectos de licenciamento padecerem de falsidade, há vários anos que não há qualquer licenciamento de construção válido, pois os existentes há muito que caducara.
32. Assim, atendendo ao alegado na motivação do recurso, à prova documental junta aos autos, à apreciação critica da Motivação da Sentença, bem como ao normal acontecer, deverão ser dados como não provados os factos constantes nos arts. 25) e 26) dos Factos Provados.
33. Pois, face ao supra exposto, não basta existir dois projectos de licenciamento, ainda por cima de teor falso, para os prédios rústicos a preferir, para daí se provar a real intenção dos 2º RR., em construir em tais prédios rústicos, como considerou o tribunal a quo.
34. Ainda por cima, atendendo que decorreu quase 6 anos da aquisição dos prédios rústicos e nada começou a ser construído! Aliás, nem pode. Pois, as licenças (apesar de terem sido emitidas com base em falsas declarações e documentos falsos), já caducaram há cerca de 2 anos!
35. Sendo que, a apresentação dos projectos de construção, como demonstrado está, foi unicamente uma forma de obstar à procedência da presente acção.
36. Pois, alguém que tem real interesse em construir, não está cerca de 6 anos sem construir! E nem se diga que não o fez – como conjectura o tribunal a quo -, aguardando o desfecho da presente acção.
37. Pois, caso começa-se a construir na pendência da acção, podia fazê-lo com total segurança, pois, daí resultaria a improcedência da mesma.
38. Assim, deve a aliás mui douta sentença ser revogada e ser julgada procedente a presente acção.
39. Caso, tal não se verifique, está encontrado um meio para que improceda toda e qualquer acção de preferência. Basta o adquirente, após ser citado para tal acção, passado mais de 6 meses, passados mais 6 meses, dar entrada a um processo de obras (mesmo de teor falso), nada fazer durante cerca de 6 anos, deixar caducar as licenças de construção, e sempre obterá ganho de causa!!!...
40. A decisão recorrida viola, entre outros, o art. 1380º nº 1 do Cód. Civil, assim, deve, assim, ser revogada, e julgar-se procedente a presente acção.
41. Caso, assim, se não entenda, a douta sentença padecerá sempre de nulidade, e em conformidade deverá ser declarada nula e revogada.
42. Pois, na Motivação da Matéria de Facto referente aos factos provados em 25) e 26), conta: “já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido.”.
43. Ora, tal fundamento é completamente ininteligível.
44. Porquanto se desconhece a que outros elementos probatórios em concreto o tribunal a quo considerou apontarem nesse sentido. Foi alguma prova documental? Em caso afirmativo qual? Foram as declarações de parte? Em caso afirmativo de quem? Foi prova testemunha? Em caso afirmativo qual?
45. Ficamos sem saber. Daí, não podermos conhecer o raciocínio logico/dedutivo que presidiu a tal Motivação e em consequência os seus reais e concretos fundamentos.
46. O que consubstancia uma nulidade, nos termos do art. 615º nº 1, b), c) do Cód. Proc. Civil.
47. Porquanto, não especifica de forma cabal os fundamentos de facto da decisão, ocorrendo nesta parte uma ambiguidade ou obscuridade, que torna a decisão ininteligível.
48. Nulidade, essa, que desde já se argui, para todos os devidos e legais efeitos.
49. Devendo, assim, ser decidido que a sentença padece de nulidade e revogar-se a decisão recorrida.

Concluíram pugnando no sentido da revogação da sentença recorrida com a condenação dos RR. no pedido, ou,  caso assim se não entenda, ser declara nula a sentença recorrida, nos termos do art. 615º nº 1, b) c) do Cód. Proc. Penal.

                   *                                

Os recorridos responderam defendendo a improcedência do recurso, formulando em tal peça processual as seguintes conclusões:

(…).

       *

Por despacho de 20.10.2022 o Sr. Juiz, no tocante à nulidade da sentença invocada, pronunciou-se nos seguintes termos:

Nos presentes autos, invocam os recorrentes a nulidade da sentença previstas no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c) do Código de Processo Civil.

Prevê o primeiro dos normativos citados que é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

O segundo prevê por sua vez que é nula a sentença segundo a qual os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Conforme é já entendimento pacífico nos tribunais superiores, a nulidade de falta de fundamentação apenas ocorre “quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.” – v. por todos o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017, no proc. 42/14.9TBMDB.G1, disponível em www.dgsi.pt.

Já a segunda nulidade apontada pelo recorrente, “remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respectivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-2019, no proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1, no proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1, disponível em www.dgsi.pti.

Os recorrentes entendem que a expressão utilizada pelo Tribunal “já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido”, para fundamentar a prova dos factos 25) e 26), leva a que ou se considere insuficiente a fundamentação de facto, ou que a mesma afinal se considere suficiente, mas ambígua ou ininteligível.

Salvo o devido respeito, os recorrentes transcrevem apenas uma parte descontextualizada do texto da sentença, ignorando os parágrafos anteriores, nos quais o Tribunal aponta para os concretos elementos de prova documental que serviram de fundamento para a prova dos factos 25) e 26), suportados ainda pelas regras da experiência, pelos relatórios periciais e respetivos esclarecimentos prestados pelos Srs. Peritos em audiência, explicando devidamente o raciocínio lógico que conduziu à decisão quanto à prova daqueles factos.

Ou seja, a expressão “já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido” surge no fim de uma sequência de parágrafos e frases dedicados a demonstrar a convicção do Tribunal sobre os factos em causa, e onde se apontam os elementos probatórios necessários para formar tal convicção, de forma que se tem por suficiente e clara, e surge apenas como resumo do que se escreve nos parágrafos anteriores.

Face ao exposto, não existe falta de fundamentação, ou fundamentação gravemente insuficiente, nem qualquer ambiguidade ou obscuridade que conduza à verificação das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c) do Código de Processo Civil”.

*

Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

*

II-Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
a) [2]Saber se a sentença é nula por
- na motivação da decisão da matéria de facto não terem sido especificados os fundamentos que justificam a decisão
e
- por essa mesma motivação ser ininteligível em virtude da sua ambiguidade ou obscuridade
b) Saber se os factos provados listados na sentença sob os números 25 e 26 devem ser considerados como não provados e, em consequência, dever a ação ser julgada procedente.

                                                                  *

III-Fundamentação

Com vista à incursão nas questões objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada e não provada e respetiva fundamentação.

Assim, na decisão recorrida consta a este propósito o seguinte:

“     1. FACTOS PROVADOS
Com base no acordo das partes, na documentação junta aos autos e na prova produzida em sede de audiência, resultaram demonstrados os seguintes factos (excluídos factos irrelevantes, conclusivos e alegações de teor jurídico):
1) O autor marido é casado no regime de comunhão de adquiridos com a autora mulher.

2) Por acordo verbal celebrado entre o autor e os seus irmãos em 1984, decidiram estes, enquanto herdeiros de GG e HH, partilhar os imóveis a estes pertencentes, inscritos na matriz predial da freguesia ... sob os artigos ...26..., ...31... e ...71º.
3) O imóvel inscrito sob o artigo ...26º consta descrito na matriz predial rústica como prédio rústico propriedade do autor, composto por olival, vinha e 2 citrinos, com a área descrita de 1.240 m2, sito em ..., freguesia e concelho ..., e com as confrontações descritas como sendo a norte com Rua ..., sul com II, nascente com JJ, poente com KK – herdeiros.
4) Este prédio tem uma área real de 1512m2.

5) O imóvel inscrito sob o artigo ...31º consta descrito na matriz predial rústica como prédio rústico propriedade do autor, composto por olival e vinha, com área descrita de 950 m2, com as confrontações descritas sendo a norte com urbano do próprio, sul com LL, nascente com MM – herd., poente com NN.
6) Conjuntamente com o prédio urbano pertencente ao autor, descrito sob o artigo ...48º na matriz predial urbana, este prédio tem uma área real coberta de 223m2, e descoberta de 865m2, num total de 1088m2.

7) O imóvel inscrito sob o artigo ...71º consta descrito na matriz predial como prédio rústico propriedade do autor, e consta como composto por terra de pastagem, 2 oliveiras e 1 casa de arrumos agrícolas, tendo a área descrita de 290 m2, e as confrontações descritas sendo a norte com EE, sul com Rua ..., nascente KK – herd. e outros, poente OO.
8) Este prédio tem uma área real coberta de 118m2 e descoberta de 189m2, num total de 307m2.
9) Por acordo verbal celebrado entre o autor marido e os seus irmãos, na qualidade de filhos e herdeiros de GG e HH, foi acordada a atribuição destes imóveis ao autor, após falecimento dos referidos, respetivamente em 1974 e 1984.

10) Desde de pelo menos 1984, o autor marido, há mais de 20, 30 e mais anos, que, por si e pelos seus antepossuidores, nomeadamente pelos seus pais, de forma pacífica, pública, com exclusão de outrem, de forma ininterrupta e à vista de toda a gente, na firme convicção que possui coisa sua, como na realidade possui, vem fruindo os imóveis referidos de 2) a 8).

11) Designadamente, retirando dos imóveis, todas as utilidades próprias de prédios com as características supra referidas.

12) Tendo, ao longo dos últimos anos, 20, 30 e mais anos, diretamente e através de terceiros, nesses prédios, cortado árvores, limpando-os, lavrando-os, cavando-os, cultivando neles os mais diversos produtos agrícolas, tais como batatas, cebolas, couves, tomate, favas, ervilhas, tomates, alfaces, colhendo os respetivos frutos, limpando e podando árvores, colhendo azeitona, maçãs, uvas.
13) E já antes do autor marido que os antepossuidores, nomeadamente os seus pais, sem oposição de quem quer que seja, fruíram os imóveis nos termos referidos para o ora A., há mais de 20, 30 e mais anos.
14) Por documento elaborado no Cartório Notarial ..., perante notária, em 07-10-2016, designado “Justificação e venda”, exarada no livro de notas para escrituras diversas número 62 – E, desse Cartório, a fls. 114 a fls. 118 verso, junto como doc. ... da petição inicial e cujo teor integralmente se reproduz, o réu CC declarou ser proprietário e legítimo possuidor, entre outros, de imóveis que descreveu da seguinte forma:
a) Prédio misto, sito em Rua ..., ..., ..., a confrontar do norte com a Rua ..., a sul com PP, nascente com AA, e poente com Herdeiros de MM, constituído por parte urbana com casa destinada a habitação, dependências e logradouro, com a superfície coberta descrita de 84m2 e descoberta de 300m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...49º, e por parte rústica composta de terra de cultura arvense de regadio, com a área declarada de 1.480 m2, inscrita na matriz rústica sob o artigo ...27º;

b) Prédio rústico, sito em ..., composto de terra de pastagem, oliveiras e palheiro, a confrontar do norte com a Rua ..., sul com OO e outro, nascente com Herdeiros de KK, do poente com o autor marido, com a área de 260m2, inscrita na matriz sob o artigo ...30º;

c) Prédio rústico, sito em ..., composto de terra de pastagem, a confrontar do norte com EE, sul e nascente com Rua ... e do poente com o autor marido, com a área de 100m2, inscrita na matriz sob o artigo ...70º.
15) No mesmo documento, o réu CC declarou vender ao réu EE, e este declarou comprar, os referidos imóveis.
16) Os prédios descritos em 14) têm uma área real total de 890m2, sendo coberta 90m2 e descoberta 800m2.
17) O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...26º da freguesia e concelho ..., confronta a poente com prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27º da freguesia e concelho ....

18) O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...31º da freguesia e concelho ..., confronta a nascente com prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27º da freguesia e concelho ....
19) O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...71º da freguesia e concelho ..., confronta a nascente com prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...70º da freguesia e concelho ....

20) O prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...31º da freguesia e concelho ..., confronta a poente com prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...30º da freguesia e concelho ....
21) Os prédios referidos em 14) não têm água própria.

22) Os réus vendedores sabiam, previamente à realização da escritura referida em 14), que o autor tinha interesse na aquisição dos prédios ali descritos.

23) O autor marido tomou conhecimento por terceiros da celebração da escritura e esteve presente no Cartório Notarial no dia em que a mesma foi celebrada, acompanhado por advogado.
24) O local onde se situam todos os prédios supra descritos tem, desde 12-05-2015, estatuto especial de área de reabilitação urbana.
25) Os réus compradores pretendem utilizar os terrenos adquiridos para recuperação e ampliação da casa de habitação localizada no prédio descrito na matriz predial urbana, sob o artigo ...49.º.
26) O projeto já apresentado e aprovado dos réus compradores ficará inviabilizado, caso não lhes seja possível utilizar os terrenos referidos em 14).

*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

a) Os autores apenas tiveram conhecimento do negócio referido em 14) através da publicação da escritura no jornal “A Comarca ...”, em 14 de Outubro de 2016.
b) Os autores tiveram conhecimento da escritura e das condições do negócio vários meses antes da sua celebração.
c) Quando estiveram presentes no ato da escritura, os autores declararam que não pretendiam exercer o direito de preferência.
d) Os autores leram a escritura antes de a mesma ser assinada.

e) Os prédios referidos em 14) não se destinavam a cultura ou atividade agrícola.

f) Os valores pelos quais foi realizada a venda dos prédios referidos em 14) foram propositadamente inflacionados, em prejuízo dos interesses dos autores.
*

3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Dispõe o artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil que, na fundamentação da sentença, o juiz deve julgar quais são os factos provados e não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações retiradas dos factos instrumentais e especificando os elementos decisivos para a sua convicção; por outro lado, deverá o juiz tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
O facto 1), relativamente ao casamento entre os autores, apesar de impugnado pelos réus, mostra-se plenamente provado por força da certidão de casamento junta como doc. ... da petição inicial.

Em relação aos factos 2) a 13), o Tribunal valeu-se em primeiro lugar das cadernetas prediais rústicas dos prédios em questão para as descrições dos mesmos.

Resultou de forma esmagadora das declarações do próprio autor e de toda a prova testemunhal produzida que existiu uma partilha verbal, após falecimento da mãe do autor marido em 1984, e que desde então sempre foi este quem exerceu sobre os imóveis ali descritos todos os atos referidos, por si ou por terceiros – note-se, a própria ré FF admitiu tais circunstâncias, não o colocando em dúvida nas suas declarações de parte (referindo-se àqueles imóveis como sendo “os do AA”).
Em relação aos factos 14) e 15), os réus não impugnam a celebração da escritura, cuja certidão, de resto, se mostra junta como doc. ... da petição inicial, com valor de documento autêntico.

A primeira questão levantada pelos réus prende-se sobretudo com as áreas dos imóveis e com a sua natureza enquanto prédios rústicos, quer dos imóveis descritos de 2) a 13), quer dos imóveis descritos em 14) – discordando os réus das áreas apostas nas certidões matriciais, e alegando que os prédios referidos em 14) não mais são do que componentes ou logradouros do prédio urbano também adquirido através do referido negócio, descrito sob o artigo ...49º.
Foram assim efetuados levantamentos topográficos, juntos aos autos, e foram apresentados dois relatórios periciais, tendo todos os peritos envolvidos (incluindo o topógrafo) prestado esclarecimentos em audiência, concordando todos estes elementos pelo menos no seguinte: as áreas dos prédios não correspondem ao que se mostra indicado nas descrições matriciais, e existiram dificuldades na delimitação/individualização dos vários artigos, face à dificuldade demonstrada in loco pelas partes na definição dos limites dos múltiplos terrenos.

Atenta assim a impossibilidade de discernir uma área correta para cada artigo individualizado, o Tribunal entendeu recorrer aos elementos patentes na referida prova pericial (mormente, o levantamento topográfico de ref.ª ...26, utilizado depois como base para a elaboração dos relatórios periciais) – assim se dando provadas as áreas constantes de 4), 6), 8) e 16).
Porém, da circunstância de o Tribunal ter utilizado tais elementos para definição das áreas dos imóveis, não se extrairá automaticamente a sua caracterização como verdadeiros prédios rústicos, ou meros logradouros do imóvel descrito na matriz predial urbana sob o artigo ...49.º; isto porque se deve notar que os Srs. Peritos se depararam com dificuldades na concretização dos limites dos imóveis, dificuldades porém que foram mitigadas em audiência, com a produção de prova.
Por tal razão, o Tribunal optou, no que concerne às confrontações dos prédios, descritas de 17) a 20), por manter as descrições constantes das matrizes rústicas, e as confrontações dali patentes.
Conjugaram-se assim as perceções obtidas em sede de inspeção ao local, com o que foi descrito pelos autores nas suas declarações de parte, pelas testemunhas QQ e RR (respetivamente, filha e genro dos autores, os quais, mau grado a natural relação de proximidade familiar, lograram depor de forma escorreita e tida por credível, com suficiente conhecimento dos faactos), e ainda com o que consta da própria escritura de justificação junta como doc. ....
É que deste documento se denota que os réus vendedores, claramente, destacaram os prédios referidos em 14) como prédios rústicos (ainda que integrando o artigo 26227º como “prédio misto” em conjunto com o artigo urbano ...49º), pertencentes à herança de duas pessoas diversas.
A explicação da configuração do local operada pelas testemunhas supra identificadas e ainda por JJ (cujo testemunho foi tido por particularmente relevante face à forma isenta e natural com que prestou o seu depoimento) levou assim a compreender que o artigo urbano ...49º e o imóvel descrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27º provinham da herança de KK, tio do réu vendedor CC, e se mostravam separados e individualizados (por via de “combros”, ou conjuntos de pedras correspondentes a muros primitivos) do terreno descrito na matriz predial rústica sob o artigo ...30º, provindo da herança de SS, irmã de KK e também tia do referido réu; a referida testemunha JJ explicou claramente que lavrava apenas este terreno, pertencente a SS – indicando que existia uma distinção clara entre o que era de cada um dos referidos titulares.
Sendo que nem a própria ré FF colocou em causa esta divisão, resultou assim como notório da prova testemunhal que existia uma clara demarcação de propriedades, entre o prédio descrito sob o artigo ...49º urbano e ...27º rústico, pertencentes a KK, e o prédio descrito sob o artigo ...30º, pertencente a SS.

E o Tribunal não vislumbrou qualquer meio de prova que permita concluir que o prédio descrito sob o artigo ...30º, afinal, também se estenderia para lá da Rua ..., ocupando parte do que é o prédio descrito sob o artigo ...70º; de todo o modo, sempre pertenceria à herança de SS, e não à herança de KK.
Face ao exposto, no que concerne às confrontações, configuração e localização do terreno, mostram-se corretos os elementos matriciais, à exceção das áreas descritas, das quais a prova pericial faz cabal prova face à medição in loco operada pelo Sr. Topógrafo – sendo claro, a título de exemplo, que o artigo 26227º nunca poderia ter a área de 1480m2, quando a área global deste em conjunto com os artigos 849º e 26230º é bastante inferior.

A natureza rústica ou urbana dos prédios, por ser essencialmente uma questão jurídica e não de facto, será debatida infra em local próprio.

O facto provado 21) resulta das conclusões dos Srs. Peritos e da inspeção ao local.

Em relação ao facto provado 22), resultou claro das declarações do réu CC e da testemunha TT, também ela herdeira de KK e SS e que ficou encarregada de proceder à venda dos imóveis, que os vendedores tinham perfeito conhecimento de que o autor marido pretendia adquirir os prédios identificados em 14).

A testemunha admitiu que o autor chegou a fazer-lhe pelo menos uma proposta de aquisição, que esta recusou porque queria vender todos os prédios pertencentes à herança de uma só vez; aliás, o próprio réu CC admitiu nas suas declarações que contactou com um juiz seu conhecido para questionar da possibilidade de vir a ter problemas com os direitos de preferência dos confinantes.
Aliás, do depoimento de TT resultou até claro para o Tribunal que tudo foi feito com o objetivo de impedir o autor de exercer tal direito, mormente colocando-se uma placa para venda, de onde nem sequer constava o preço, que terá lá estado poucas semanas – e que, segundo a testemunha UU da VV admitiu que lhe foi dito pela testemunha TT, esta apenas a colocou quase “por obrigação”, para obviar a questões relacionadas com a preferência.
De todo o modo, dos depoimentos da filha do autor, da notária WW e XX resultou claro que o autor, após conhecimento de que seria realizada uma venda relativa aos terrenos pelo que foi dito na vizinhança, se deslocou, no dia da escritura, ao cartório notarial, com o objetivo de tentar impedir a celebração da mesma ou pelo menos informar-se dos seus direitos (a última testemunha sendo precisamente, à data, o advogado que acompanhou o autor) – tendo-se provado o constante de 23).
O facto provado 24) resulta da documentação camarária junta com a contestação, e foi também determinado pelos Srs. Peritos (por ambos os colégios), aquando das diligências que efetuaram no sentido da realização da perícia, concluindo que a zona onde os imóveis se situam é zona de reabilitação urbana, com aptidão construtiva.
Em relação aos factos provados 25) e 26), denota-se que, com efeito, os réus apresentaram na Câmara Municipal ... um projeto para recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, o qual foi aprovado, já no final do ano de 2017.
Sendo certo que as obras não foram ainda iniciadas (o que desde logo se verificou por via da inspeção ao local) o projeto, remetido aos autos pela Câmara Municipal, mostra já investimento e esforço da parte dos réus compradores, os quais foram remetendo os elementos pedidos até pelo menos ao ano de 2019, contrataram e elaboraram projetos de arquitetura, obtiveram documentos.
É certo que desde aquele ano que nada mais foi feito, mas o Tribunal não pode daqui concluir que os réus tenham perdido interesse no projeto, sendo de assumir que poderão estar a aguardar pelo resultado dos presentes autos antes de iniciar as obras.

Por outro lado, a construção é claramente viável, na medida em que o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal, e a zona onde se situam todos os prédios se situa em área destinada a reabilitação e construção urbana – tendo os peritos, de forma praticamente universal, acordado também que a remoção dos restantes artigos que rodeiam o artigo urbano ...49º implicaria a perda de valor e viabilidade do projeto construtivo.
Em suma, não pode o Tribunal concluir, face aos elementos já presentes em relação ao projeto de construção, que a intenção dos réus não seja outra que não a de construir ali uma habitação, usando para o efeito todos os prédios referidos em 14) (conforme se extrai do projeto, inclui o projeto a recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, ocupando também os prédios com os artigos ...27 e ...30, bem como a construção de uma garagem ocupando o prédio com o artigo ...70), já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido.
Em relação à matéria de facto dada como não provada, o facto a) resulta naturalmente da prova do facto 23) – se o autor esteve presente no dia da escritura, celebrada a 07 de Outubro de 2016, certamente não teve conhecimento da mesma apenas no dia 14 de Outubro; e, aliás, a filha do autor esclareceu que tiveram conhecimento da venda por conversas com a vizinhança.

O que não se pode de todo afirmar é que o autor teve conhecimento da escritura e dos elementos do negócio “meses” antes da sua celebração (facto não provado b)), inexistindo elementos de prova nesse sentido; não será certamente por ter estado presente no dia da sua celebração que se poderá concluir tal lapso temporal.

Nem se pode dizer que foram comunicadas ao autor as condições essenciais do negócio, na medida em que nenhuma prova foi efetuada no sentido de que o autor sabia sequer quem era o potencial comprador ou o preço acordado; segundo a testemunha TT, o que sucedeu foi unicamente uma oferta da parte do autor (por iniciativa deste e não porque alguém lhe tenha oferecido o que quer que fosse), que a testemunha recusou, afirmando que “encontrava quem desse mais” e que não queria vender só um dos imóveis, mas sim a globalidade da herança, a qual incorporava prédios sitos em local diverso. Daqui dificilmente se pode concluir que existiu uma comunicação clara e prévia dos elementos da escritura que veio a ser celebrada entre os réus.
Quanto ao não provado em c) e d), também nada resultou no sentido de que o autor tenha, expressa ou tacitamente, declarado renunciar ao direito de preferência.
Verificou-se nestes pontos uma ligeira contradição entre o depoimento de XX (que secundou as declarações de parte do autor) e da notária WW; o primeiro afirmou que se deslocou com o autor ao Cartório precisamente para verificar se já existiria escritura, e em que termos a mesma estaria a ser celebrada, tendo sido coincidência depararem-se com a assinatura naquele dia; já a notária afirmou que o autor se terá deslocado já com conhecimento da escritura, com vista a impedir a sua celebração.
Neste ponto, ao Tribunal afigura-se que o depoimento da notária assentou na sua perceção pessoal, ou em suposições, atendendo a que o autor terá primeiro falado com um funcionário do cartório – ou seja, sendo de presumir que, quando foi dirigido ao gabinete da notária, aí sim já teria conhecimento da escritura, mas ficando em dúvida quando é que precisamente teve tal conhecimento; se foi antes, dias antes, meses antes, no próprio dia.
E a dúvida aqui é a resolver contra os réus, a quem aproveita o facto.
De todo o modo, nenhuma prova existe no sentido de que o autor, em tal data, expressa ou tacitamente renunciou ao direito de preferência, tal não se podendo concluir unicamente pela circunstância de ter estado no cartório no dia da celebração da escritura.
Em relação ao facto provado e), resultou claro que os prédios referidos em 14), à exceção naturalmente da parte urbana do prédio indicado na al. a) daquele facto, eram destinados a atividade agrícola. Tal denotou-se da inspeção ao local, e dos depoimentos testemunhais já supra referidos, no sentido de que ali eram no mínimo plantadas oliveiras e colhidos os respetivos frutos, sem prejuízo de outras culturas – circunstância diferente é o destino que os réus compradores pretendiam dar aos imóveis, o que não invalida que, pelo menos no tempo dos anteriores proprietários, e mesmo depois, eles não fossem destinados a cultura.
Em relação ao facto não provado f), é notória a disparidade de preços entre os prédios indicados em 14) e os restantes prédios vendidos pelos primeiros réus aos segundos; porém, a prova pericial foi, quase universalmente (à exceção de um dos peritos que participou na segunda perícia), no sentido de que tal disparidade era justificada perante a inserção dos prédios referidos em 14) em área de reabilitação e construção urbana, tendo eles próprios potencial construtivo, em contraste com os restantes prédios – posição que os peritos mantiveram e explicaram mesmo em sede de audiência.
Inexistem assim elementos probatórios que permitam ao Tribunal concluir por eventual conluio entre os réus para inflacionar artificialmente o preço acordado para aqueles imóveis, sendo de presumir que terá sido tomada em conta a finalidade desejada pelos réus e o potencial para construção dos imóveis.

                                                                    *

A – Saber se a sentença é nula por falta de falta de fundamentação e ininteligibilidade
É, desde há muito, entendimento pacífico[3], que as nulidades típicas da sentença se reconduzem a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal.
Tratam-se, na essência, de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário da sentença e que obstaculizam o pronunciamento de mérito.
Assim, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), conduz a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou normativa (traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei), o error in procedendo consiste num desvio à realidade factual ou jurídica (por ignorância ou falsa representação da mesma).
Revisitando o ensinamento de José Alberto Reis (Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125), o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico)[4].
Em suma, como se refere no Ac. do STJ. de 03.03.2021 (processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1), as causas de nulidade da decisão elencadas no artigo 615.º do Código de Processo Civil visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o erro de julgamento, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo.
Ao caso dos autos, atentos os fundamentos enunciados nas conclusões do recurso, interessam apenas as causas tipificadas as alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
Assim, segundo refere o recorrente (conclusões 48 a 55),:
- na motivação da matéria de facto referente aos factos provados em 25) e 26), consta: “já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido”,
- esse fundamento é completamente ininteligível, porquanto se desconhece a que outros elementos probatórios em concreto o tribunal a quo considerou apontarem nesse sentido. Foi alguma prova documental? Em caso afirmativo qual? Foram as declarações de parte? Em caso afirmativo de quem? Foi prova testemunha? Em caso afirmativo qual?
- não é possível conhecer o raciocínio logico/dedutivo que presidiu a tal motivação e em consequência os seus reais e concretos fundamentos
Ou seja, invocações que se reconduzem:
i) à falta de fundamentação da decisão
ii) à ininteligibilidade da decisão.

A primeira nota que importa realçar é que a apontada nulidade se reporta à motivação da decisão da matéria de facto.
Ora, apesar de no presente a sentença contemplar também a decisão da matéria de facto, tal como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, esta circunstância “não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art. 615.º à parte da sentença relativa à decisão da matéria de facto – desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato”(cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662) –, obriga, pelo menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação[5], [6].
Acrescentam os mesmos autores (obra citada, pág. 736) “Face ao atual código, que integra na sentença tanto a decisão da matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art. 607.º, n.ºs 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.º 1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente aplicável o regime do art. 662, n.ºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt, proc.1644/11, e ac. do TRP de 29.6.2015, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt, proc 839/13)”.
É esse o entendimento que vimos seguindo[7], o que exclui, à partida, que a sentença possa ser considerada nula por deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto[8].
Sendo indiscutível a necessidade de fundamentação das decisões judiciais – já que a fundamentação das decisões constitui a sua verdadeira e válida fonte de legitimação constitucionalmente impressa (art. 205.º, n.º 1 da CRP, ao prescrever que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei) –, só a absoluta falta de fundamentação da sentença (ou seja, a não indicação dos factos provados e não provados) é suscetível de gerar a sua nulidade[9], pelo que a falta, deficiente ou ininteligível motivação não gera a nulidade da sentença, desde que na mesma tenham sido discriminados os factos que o tribunal considera provados/não provados[10].
Ora, no caso, bem ou mal, é questão que ainda não interessa apreciar, o tribunal elencou os factos provados e não provados pelo que não ocorre a invocada nulidade.
Todavia, ainda que se entenda que também a motivação da decisão matéria de facto possa ser considerada para efeitos do art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC[11], sempre se exigiria a sua falta absoluta, não bastando que a mesma seja deficiente, incompleta, ou não convincente[12].  
Sucede que na sentença recorrida se justificou a decisão da matéria de facto, incluindo as respostas dadas aos factos provados sob os n.ºs 25 e 26, e de forma coerente e inteligível.
Não ocorre, enquanto tal, o apontado vício de nulidade da sentença.

B- Saber se os factos provados sob os n.ºs 25 e 26 devem ser considerados como não provados e, como consequência, deve ser revogada a sentença recorrida.

Como já acima referido os factos elencados como provados na sentença recorrida são os seguintes:
25) Os réus compradores pretendem utilizar os terrenos adquiridos para recuperação e ampliação da casa de habitação localizada no prédio descrito na matriz predial urbana, sob o artigo ...49.º.
26) O projeto já apresentado e aprovado dos réus compradores ficará inviabilizado, caso não lhes seja possível utilizar os terrenos referidos em 14).

No entender dos recorrentes esses factos devem ser considerados como não provados pelos seguintes motivos (conclusões 1 a 40):

- a motivação decorrer exclusivamente dos processos de licenciamento e de conjeturas, o que se mostra insuficiente;

- na escritura pública  de aquisição não existe qualquer menção de que os prédios rústicos sobre os quais os AA. visam exercer o seu direito de preferência tenham como fim a construção.

- Os 2º RR. só a 05/12/2017, na pendência da presente ação, deram entrada a pedido de autorização de construção de arrecadação agrícola, com destino a arrumos, a que foi atribuído o processo de Licenciamento ...0, aprovado a 18/12/2017, o qual não diz respeito a qualquer prédio sobre o qual os AA. visam exercer a preferência (art. 26270 – rústico), mas ao prédio rustico, inscrito sob o art. ...82.

- Até ao presente data (passados cerca de 6 anos), e pelo menos até 18/02/2022, os 2.ºs RR., não levaram a cabo quaisquer obras.

- O processo de Licenciamento ...0, é falso, uma vez que tal licenciamento identifica o prédio rustico inscrito na matriz sob o art. ...82, como se localizando no prédio que se visa preferir, este último inscrito sob o art. ...70.

- A licença emitida para tal construção, já há muito que caducou, nos termos do nº 1 art. 23.º do Decreto-Lei n.º 250/94 de 15-10-1994.

- os 2.ºs RR. só a 05/12/2017, na pendencia da presente ação, deram entrada a pedido de autorização de licenciamento de alteração e ampliação de moradia, a que foi atribuído o processo de licenciamento ...7, processo aprovado a 06/02/2019.

- O processo de licenciamento ...7 enferma de falsidade, por a construção proposta englobar o prédio inscrito sob o art. ...30, sobre o qual os AA. visam exercer a preferência, omitindo, a sua existência em tal projeto, incluindo, falsamente, o mesmo na área do prédio urbano inscrito sob o art. ...49º.

- Essas falsidades, para além do conhecimento do tribunal resultam da prova testemunhal constante da motivação de facto e das declarações da R. FF, as quais levaram à aprovação de processos de licenciamento, que nada têm a ver com a realidade dos prédios em causa.

- Até à presente data (passados cerca de 6 anos), e pelo menos até 18/02/2022, os 2.ºs RR. não levaram a cabo quaisquer obras.

- As licenças emitidas, tinham uma validade de 1 ano, sob pena de caducarem.

- Quanto ao facto provado n.º 26 os senhores peritos (e não por unanimidade) declararam que que a remoção dos restantes artigos que rodeiam o artigo urbano ...49º implicaria a perda de valor e viabilidade do projeto construtivo. Não declaram, que implicava a inviabilidade do projeto aprovado, mas sim e tão só a viabilidade.

- Ao retirar a área do prédio rustico inscrito sob o art. ...30º, que falsamente e ardilosamente, foi omitido do levantamento junto a tal processo de licenciamento, incluído a mesma (falsamente), no prédio urbano inscrito sob o art ...49º, omitindo-se em tal levantamento, o art. rustico 26230º, tal obrigará a apresentar um novo projeto de licenciamento, de acordo com a verdade e a realidade, sendo reavaliada a respetiva viabilidade de construção

- A apresentação dos projetos de construção foi unicamente uma forma de obstar à procedência da presente ação, pois, alguém que tem real interesse em construir, não está cerca de 6 anos sem construir, sendo que se começassem a construir na pendência da ação podiam fazê-lo com total segurança, pois, daí resultaria a improcedência da mesma.

Por seu lado, a motivação constante da sentença relativa aos factos 25 e 26 é a que se passa a transcrever:
“Em relação aos factos provados 25) e 26), denota-se que, com efeito, os réus apresentaram na Câmara Municipal ... um projeto para recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, o qual foi aprovado, já no final do ano de 2017.
Sendo certo que as obras não foram ainda iniciadas (o que desde logo se verificou por via da inspeção ao local) o projeto, remetido aos autos pela Câmara Municipal, mostra já investimento e esforço da parte dos réus compradores, os quais foram remetendo os elementos pedidos até pelo menos ao ano de 2019, contrataram e elaboraram projetos de arquitetura, obtiveram documentos.
É certo que desde aquele ano que nada mais foi feito, mas o Tribunal não pode daqui concluir que os réus tenham perdido interesse no projeto, sendo de assumir que poderão estar a aguardar pelo resultado dos presentes autos antes de iniciar as obras.
Por outro lado, a construção é claramente viável, na medida em que o projeto foi aprovado pela Câmara Municipal, e a zona onde se situam todos os prédios se situa em área destinada a reabilitação e construção urbana – tendo os peritos, de forma praticamente universal, acordado também que a remoção dos restantes artigos que rodeiam o artigo urbano ...49º implicaria a perda de valor e viabilidade do projeto construtivo.
Em suma, não pode o Tribunal concluir, face aos elementos já presentes em relação ao projeto de construção, que a intenção dos réus não seja outra que não a de construir ali uma habitação, usando para o efeito todos os prédios referidos em 14) (conforme se extrai do projeto, inclui o projeto a recuperação e ampliação da casa sita no artigo urbano ...49º, ocupando também os prédios com os artigos ...27 e ...30, bem como a construção de uma garagem ocupando o prédio com o artigo ...70), já que os restantes elementos probatórios parecem apontar em tal sentido”.

Em suma, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto aos factos sob apreciação nos projetos de licenciamento apresentados pelos recorridos (26 - intenção de utilização dos prédios para recuperação e ampliação da casa localizada no prédio inscrito na matriz predial sob o art. ...49) e na perícia realizada nos autos (inviabilização dos projetos se essa utilização não ocorrer).

Os recorrentes começam por acentuar que na escritura pública de aquisição não existir qualquer menção de que os prédios rústicos tenham como fim a construção.

Ora, não apenas estamos em presença de uma “meia verdade”, na justa medida em que na escritura pública, relativamente ao prédio ...27 se considerou que o mesmo era parte integrante de um prédio “misto” com parte urbana (849), como também essa falta de menção não coloca em crise a intenção dos recorridos em procederem a essa construção recuperação e utilização da casa).

Valorizam, depois, os RR. a circunstância de os pedidos de licenciamento apenas terem dado entrada a 05.12.2017.

Efetivamente a entrada dos processos de licenciamento ocorreu nessa data (cfr. ref. ...87 e ...88), cerca de 1 ano e 2 meses após a aquisição dos imóveis e numa altura em que os recorridos já haviam sido citados, o que, por si só, não coloca em causa a intencionalidade efetiva dos recorridos na realização das obras aí constantes, sendo certo que qualquer processo de licenciamento implica uma preparação prévia e a intervenção de técnico, e que que a propositura da ação não os inibia de diligenciar pela autorização de construção pretendida.

Quanto à regularidade administrativa dos aludidos processos de licenciamento (que motivou os recorrentes a apelidá-los de falsos), não se trata de matéria cujo conhecimento se imponha a este tribunal, sendo que os pedidos de licenciamento existem, foram aprovados e incidem materialmente sobre os prédios inscritos na matriz sob os artigos ...27, ...30 e ...70, ou seja sobre os prédios cujo direito de preferência se pretende exercer.

A circunstância de as licenças emitidas terem caducado e não terem os recorrentes iniciado as obras também não coloca em causa a intencionalidade de construção dos recorridos, acompanhando-se o tribunal recorrido na conclusão que é de assumir que (os recorrentes) poderão estar a aguardar pelo resultado dos presentes autos antes de iniciar as obras, até porque, caso a ação lhe viesse a ser desfavorável, iriam ficar na situação de terem procedido a construções em terrenos que passariam a ser pertença dos recorrentes.

Finalmente, e especificamente no que respeita ao facto 26, a invocação efetuada pelos recorrentes em sede de recurso, não constitui mais do que um jogo de palavras, porquanto o que emerge das respostas dadas pelos Srs. peritos (por maioria) é que, retirados os prédios objeto da causa, a viabilidade do projeto já aprovado ficava comprometida/inviabilizada, exatamente porque o mesmo projeto abrange obras a executar também nesses prédios.

 Ou seja, toda a argumentação invocada pelos recorrentes de forma a colocar em crise a decisão da matéria de facto no tocante aos factos 25 e 26 apresenta-se como insuficiente para abalar a motivação do tribunal recorrido, no sentido que, ao avançarem com os projetos de construção, os réus recorrentes pretendem utilizar os terrenos para recuperação e ampliação da casa de habitação localizada no prédio descrito sob o art. ...49.º, e que, face aos resultados obtidos pericialmente, o projeto já aprovado (ou a sua renovação administrativa, claro está) ficará inviabilizado se tais terrenos não puderem ser utilizados para a sua concretização.

Não se trata de aceitar que, através desta via, os recorridos terão encontrado um “expediente” para contornar o exercício do direito de preferência, tão só o do convencimento pelo tribunal de que os recorridos, através dos projetos efetivamente pretenderam (e pretendem) utilizar os terrenos para recuperação e ampliação da casa de habitação, finalidade, de resto, inserida em local que que tem desde 2015 o estatuto especial de reabilitação urbana (facto provado 24).

Convencimento que, ante a localização (área de reabilitação urbana), dimensões dos prédios (a não permitir uma exploração agrícola rentável) e diligências efetuadas pelos recorridos no sentido de obtenção dos licenciamentos para construção urbana, se apresenta como inteiramente justificado e, como tal, a dever ser mantido por esta instância.

Improcede, assim, a pretendida modificação da decisão da matéria de facto, o que conduz inapelavelmente à improcedência do recurso, uma vez que o seu objeto se esgota nessa modificação, não tendo sido colocado em causa o acerto da decisão de mérito com qualquer outro fundamento.

                                                                    *

Sumário[13]:

(…).

                                                                  *                                                       

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                             *

Custas pelos apelantes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 13 de dezembro de 2022


(Paulo Correia)

(Helena Melo)

(José Avelino)






[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Melo e José Avelino
[2] - Mau grado os recorrentes terem suscitado a questão da nulidade da sentença para conhecimento apenas a título subsidiário, a apreciação em primeiro lugar dessa matéria impõe-se, quer face à natureza e consequências do vício, quer em termos de precedência lógica, não fazendo sentido discutir o mérito da decisão, sem que antes seja eliminada a enfermidade de que a mesma padeça.
[3] - Por todos o acórdão STJ, de 9.4.2019, Processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1., disponível, em www.dgsi.pt.
[4] - Neste sentido o acórdão STJ de 17.10.2017, Proc. n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S1.
[5] - Código de Processo Civil Anotado, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Almedina, 3.ª edição, pág. 734.
[6] - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, Almedina, 2.ª edição, pág. 606 e 607), que também os casos de excesso de pronúncia ou de omissão de pronúncia sobre um facto essencial constituem “error in procedendo”, suscetíveis de gerar a nulidade da sentença.
[7] - No mesmo sentido, Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141) defendendo que mesmo nos casos em que o exame crítico das provas, isto é, a motivação da convicção do juiz deva ter lugar na sentença, esta não é nula se este exame for omitido, “contando que nela se indiquem os factos que o juiz teve como provados e sobre os quais assentou a sua decisão”. 
[8] - Conforme se sumariou no Ac. do TRP de 7.11.2022 (proferido no processo 847/20.1T8MAI.P1), “A nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (CPC) verifica-se quando haja falta absoluta de fundamentos, quer no respeitante aos factos, quer no tocante ao direito e não já quando esteja apenas em causa uma motivação deficiente, medíocre ou até errada, enquanto que a nulidade prevista na alínea c) acontece quando se patenteia que a sentença enferma de vício lógico que a compromete”.
[9] - Cfr. Ac. do STJ de 17.10.1990, disponível em www.dgsi.pt.
[10] - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, obra citada, pág. 603
[11] - Como se afigura defendido nos acórdãos do STJ de 9.10.2019 (Proc. n.º 2123/17.8LRA.C1.S1), de 15.5.2019 (Proc. n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1) e 2.6.2016 (Proc. n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] - “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta” (A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1985, p. 687).
[13] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).