Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/13.6TARSD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: TIPICIDADE
FALTA
FACTOS
ACUSAÇÃO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA INSTÂNCIA LOCAL DE MANGUALDE - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 32.º, N.º 5, DA CRP; ARTS. 283.º, N.º 3, AL. B), E 359.º, DO CPP
Sumário: I - Se a descrição fáctica da acusação não integra ilícito penal, está inexoravelmente afastada a possibilidade de o julgador suprir a falta de factos integradores do tipo - no caso, subjectivo - de qualquer crime, com recurso às normas dos artigos 358.º e 359.º do CPP.

II - Na referida situação, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque estaríamos então perante a imputação ao arguido de um crime “ex novo” e não diverso.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório

No processo comum singular 42/13.6TARSD da Comarca de Viseu, Instância Local de (...) , Secção Criminal, J1, após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença em 15 de Julho de 2015 com o seguinte dispositivo:

Por todo o exposto, julgo a acusação pública totalmente procedente, por provada, e em consequência, decido:

Condenar o arguido A... , pela prática em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança qualificado, previsto e punido pelos artigos 14º nº 1, 26º, 30º nº 2 e 205°, n.ºs 1 e 4 al. b) do C. Penal pena de prisão de 3 (três) anos, a qual decido suspender na sua execução por igual período de 3 (três) anos, de acordo com o disposto nos artigos 50º nºs 1, 2 e 5, C. P. e subordinada ao dever de o arguido pagar ao Banco C... , S.A. pelo menos metade do valor pelo mesmo peticionado a título de indemnização civil, ou seja, € 22.000,00 (vinte e depois mil euros), o que deverá ocorrer durante o prazo da suspensão (3 anos), comprovando tal pagamento nos autos, de acordo com o disposto no artigo 51 º nº 1 alínea a) do C. Penal.

Condenar o arguido A... , no pagamento das custas do processo e individualmente no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC (artigos 513º nºs 1 a 3, 514º e 524º do Código de Processo Penal e artigo 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-lei n° 34/2008 de 26/02 por referência à tabela III).

Mais decido:

Julgar o pedido de indemnização civil totalmente procedente por provado e em consequência condenar o arguido A... a pagar ao demandante Banco C... , S.A. a quantia de 44.000,00 (quarenta e quatro mil euros), a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais perpetrados com a prática do crime referido em a), a que deve ainda acrescer o valor dos juros vencidos, calculados à taxa legal de 4%, desde a notificação ao arguido do pedido de indemnização civil (artigos 805° n° 2 alínea b) e 3 e 806° do C. Civil e Portaria n° 291/03, de 08.04) e vincendos até efectivo e integral pagamento.

Custas do pedido cível pelo arguido A... (artigos 523° do CPP e 527° nOs 1 e 2 do CPC).

Inconformado com esta decisão dela recorreu o arguido A... , rematando a correspondente motivação com as seguintes conclusões:

1 -  Enquanto  funcionário  bancário  do  “Banco  C... ,  S.A.”,  o  arguido  foi  condenado  no  crime  de  abuso  de  confiança  qualificado  alegadamente  por  ter  efetuado  três  transferências  bancárias  não  autorizadas  nem  motivadas,  entre  as  seguintes  contas  bancárias,  todas  elas  sediadas  no  identificado  “Banco  C... ,  S.A.”:

•  Transferência  no  valor  de  3.000,00€  da  conta  n.º  (...)   de  D... para  a  conta  n.º  (...)   de  E... ;

•  Transferência  no  valor  de  28.500,00€  da  conta  n.º  (...)   de  D... para  a  conta  n.º  (...)   de  H... ;

•  Transferência  no  valor  de  8.331,37€  da  conta  n.º  (...)   da  conta  de  D... para  a  conta  n."  (...)   de  " J... ,  Lda.";

2 -  Do  ponto  de  vista  da  análise  dos  pressupostos  do  crime  em  questão  resulta  evidente  que  não  resultou  provado  que  o  cliente  D... ou  o “Banco  C... ,  S.A.”  tenham  entregue  ao  arguido  qualquer  coisa  móvel,  nomeadamente  dinheiro,  por  título  não  translativo  da  propriedade,  daí  que  nesta  parte  não  se  verifica  o  pressuposto  de  que  a  lei  penal  faz  depender  a  verificação  do  crime  de  abuso  de  confiança;

Sendo  que,  e  apesar  disso,

3 -  O  Tribunal  a  quo  considerou  que  o  proprietário  do  dinheiro  transferido  (39.831,37€)  era  o  “Banco  C... ”,  o  qual  confiou  ao  arguido  por  este  ter  domínio  funcional  e  poder  de  disposição  sobre  os  fundos  correspondentes  aos  saldos  das  contas  do  cliente  D... ,  tendo  assim  o  arguido,  enquanto  funcionário  bancário,  e  mercê  das  transferências  processadas,  violado  a  relação  de  fidúcia  existente  entre  o  Banco  seu  empregador;

No  entanto,

4 -  Não  resulta  da  matéria  de  facto  provada  quais  as  concretas  funções  e  atribuições  laborais  que  estavam  adstritas  ao  arguido,  nem  sequer  que  o  “Banco  C... ,  S.A.”  lhe  confiou  os  fundos  das  contas  do  cliente  D... ,  e  muito  menos  que  lhas  entregou  nos  termos  e  para  efeitos  previstos  no  artigo  205º,  n.º  1,  do  Código  Penal;

Aliás,

5 -  Da  matéria  de  facto  considerada  provada  também  não  resulta  que  o  “Banco  C... ,  S.A.”  tenha  conferido  ao  arguido  domínio  funcional  e  poder  de  disposição  sobre  as  identificadas  contas  bancárias,  não  se  sabendo  nem  descortinando  sequer  a  que  título;

Daí  que,

6 -  Em  face  da  matéria  de  facto  considerada  provada  não  resultou  demonstrado  os  pressupostos  de  que  a  lei  penal  faz  depender  a  verificação  do  crime  de  abuso  de  confiança  correspondente  à  entrega  de  coisa  móvel  por  título  não  translativo  da  propriedade;

Além  disso,

7 -  Da  matéria  de  facto  considerada  provada  também  não  se  poderá  concluir  que  o  arguido  se  apropriou  das  quantias  em  questão,  pois  que  desde  logo  não  resultou  provado  com  que  motivação  é  que  o  arguido  terá  alegadamente  processado  as  transferências  em  causa,  nem  muito  menos  que  tenha  transferido  os  valores  em  causa  para  a  sua  disponibilidade  e  património,  inexistindo  nos  autos  qualquer  facto  provado  de  onde  se  possa  extrair  qualquer  enriquecimento  ou  benefício  ilegítimo  do  arguido;

Mas  mais  importante,

8 -  Se  a  apropriação  se  revela  através  do  ato  ou  atos  de  apropriação  dos  quais  se  verifique  uma  deslocação  da  propriedade,  o  certo  é  que  as  alegadas  e  imputadas  três  transferências  foram  todas  elas processadas  para  as  identificadas contas ( (...) , (...) e (...) )  todas  do  “Banco  C... ,  S.A.”,  enquanto  proprietário  dos  respetivos  dinheiros;

Ou  seja,

9 -  Os  dinheiros  saíram  das  contas  de  D... ,  sendo  o  Banco  o  proprietário  do  dinheiro,  e  entraram  nas  contas  de  E... ,  H...   e  " J... ,  Lda.",  continuando  o  "Banco  C... ,  S.A."  como  proprietário  dos  dinheiros  aí  existentes  e,  por  isso,  nenhuma  deslocação  de  propriedade  se  verificou;

10 -  O  que  se  deixa  exposto  reveste  manifesta  pertinência  em  face  do  depoimento  de  I... ,  legal  representante  da  empresa  “ J... ,  Lda.”,  o  qual  no  depoimento  que  prestou  em  audiência  no  dia  02  de  Junho  de  2015,  declarou  inequivocamente  que  apesar  da  identificada  transferência  ter  sido  processada,  o  "Banco  C... ,  S.A.",  enquanto  proprietário  do  dinheiro,  lhe  retirou  da  conta  a  indicada  quantia  de  8.331,37€,  com  a  argumentação  de  que  tal  transferência  fora  indevidamente  processada,  tal  como  resulta  da  seguinte  passagem  do  seu  depoimento:

•  Passagem  com  início  ao  minuto  07:06  e  termo  ao  minuto  08:03;

11 - Resulta  assim  evidente  que  o  “Banco  C... ,  S.A.”  ao  reter/retirar  a  quantia  que  foi  transferida  para  a  firma  “ J... ,  Lda.”  atuou  como  proprietário  do  dinheiro  das  contas,  inexistindo  qualquer  deslocação  da propriedade mercê das transferências alegadamente  processadas  pelo  arguido;

Desta  forma,

12 -  Não  se  poderá  também  concluir  como  se  afirma  na  sentença  recorrida,  que  o  arguido  se  apropriou  das  quantias  derivadas  das  identificadas  transferências,  integrando-as  no  seu  património,  o  que  fez  comportando-se  como  se  fosse  o  proprietário  do  dinheiro;  trata-se  de  uma  mera  conclusão  que  não  se  mostra  alicerçada  em  factos  concretos,  sendo  que  da  factualidade  provada  não  resulta  que  o  arguido  tenha  praticado  qualquer  ato  objetivamente  idóneo e  concludente,  nos  termos  gerais  -  “uti  dominus”, sendo  exatamente  nesta  realidade  objetiva  que  se  traduz  a  “inversão  do  título  de  posse  ou  detenção”  e  é  nela  que  se  traduz  e  se  consuma  a  apropriação;

13 -  Porque  assim  não  decidiu,  o  Tribunal  a  quo  violou  o  preceituado  no  artigo  205º,  n.º  1,  do  Código  Penal;

Por  outro  lado,

14 -  Apesar  do  arguido  ter  negado  a  prática  dos  factos,  na  fundamentação  da  decisão  sobre  a  matéria  de  facto,  e  mediante  o  recurso  a  prova  indireta  e  indiciária,  considerou  o  Tribunal  a  quo  que  foi  o  arguido  que  efetuou  as  identificadas  transferências  bancárias  através  da  utilização  do  seu  “user”,  ou  seja  do  código  que  lhe  permitia  o  acesso  ao  sistema  informático  interno  do  “Banco  C... ,  S.A.”;

Neste  enquadramento,

15 -  O  arguido  negou  a  prática  dos  factos,  sendo  que  tal  como  foi  reconhecido  na  motivação  processada  pelo  Tribunal  a  quo  não  foi  produzida  qualquer  prova  direta  nos  autos,  nomeadamente  testemunhal,  donde  se  pudesse  extrair  que  foi  o  arguido  que  processou  as  identificadas  transferências  mediante  a  utilização  da  sua  “user”;

16 - Por  outro  lado,  e  também  como  foi  reconhecido  na  motivação  processada  pelo  Tribunal  a  quo,  não  resulta  da  matéria  de  facto  considerada  provada,  ou  de  qualquer  outro  elemento  do  processo,  com  que  motivação  e  intenção  terá  agido  o  arguido,  sendo  certo  que  também  não  resultou  provado  que  o  arguido  tenha  integrado  no  seu  património  as  quantias  referentes  às  transferências  bancárias;

Além  disso,

17 - Também  não  resultou  sequer  provado  que  o  arguido  tenha  tido  qualquer  benefício  com  a  realização  das  transferências,  nomeadamente  e  a  título  exemplificativo,  recebendo  contrapartidas  dos  beneficiários  das  transferências;

Outrossim,

18 -  Resulta  da  fundamentação  da  decisão  sobre  a  matéria  de  facto  que  o  Tribunal  a  quo  formou  a  sua  convicção  no  sentido  de  que  foi  o  arguido  que  efetuou  as  transferências  por  as  mesmas  terem  sido  efetuadas  com  o  seu  código  pessoal,  por  o  arguido  ter  tido  de  alguma  forma  participação  ou  contacto com  os  beneficiários,  e  tendo  por  referência  e  suporte  os  depoimentos  das  testemunhas  D... ,  H...   e  I... ;

Isto  posto,

19 -  Atenta  a  falta  de  prova  da  motivação  com  que  o  arguido  terá  agido,  e  a  completa  ausência  de  prova  no  que  respeita  a  benefícios  ilegítimos  pelo  mesmo  auferidos  com  as  identificadas  transferências bancárias,  haverá  que  conceder  que  a  prova  indiciária  indicada  pelo  Tribunal  a  quo  não  é  suficientemente  firme,  segura  e  sólida  para  através  dela  se  estabelecer  a  conclusão  considerada provada  de  que  foi  efetivamente  o  arguido  que  procedeu  às  transferências  em  questão;

20 -  É  certo  que  as  transferências  foram  efetuadas  com  a  “user”  do  arguido,  traduzido  num  código  pessoal  e  intransmissível,  tal  como  por  este  foi  aceite  em  audiência  de  julgamento,  mas  daí  não  se  poderá  retirar  a  conclusão  de  que  tal  código,  mercê  da  sua  utilização  diária,  não  é  suscetível  de  ser  visionado,  decifrado  e/ou  apreendido  por  outrem;

21 - Note-se  que,  e  tal  como  se  reconheceu  na  motivação  processada,  com  o  arguido  trabalhavam  mais  três  funcionários,  em  agência  de  reduzidas  dimensões,  existindo  entre  todos  uma  relação  de  confiança,  e  sendo  certo  que  era  frequente  e  constante  a  utilização  diária  por  cada  um  deles  da  sua  “user”,  e  entre  5,  20  ou  30  vezes  por  dia,  tal  como  resultou  do depoimento  da  testemunha  B... ,  na  seguinte  passagem:

•  Passagem  com  início  ao  minuto  27:30  e  termo  ao  minuto  31:15;

22 -  Sendo,  pois,  de  conceder,  segundo  as  regras  da  experiência  comum  que  a  “user”  do  arguido  pudesse  ser  visionada  e  decifrada,  atenta  a  sua  frequente  utilização  em  conjugação  com  as  descritas  condições  de  trabalho;

Por  outro  lado,

23 -  Se  nos  debruçarmos  sobre  cada  uma  das  transferências  processadas,  em  conjugação  com  a  falta  de  prova  no  que  respeita  à  motivação  do  arguido  e  à  ausência  de  benefícios  com  a  realização  das  mesmas,  é  de  conceder  segundo  as  regras  da  experiência  comum  que  resultem  sérias  dúvidas  de  que  tenha  sido  o  arguido  o  respetivo  autor;

24 -  É  que  não  se  poderá  olvidar  que  durante  mais  de  10  (dez)  anos,  o  "Banco  C... ,  S.A."  confiou  ao  arguido  as  funções  de  diretor  comercial  do  balcão  de  (...) ,  sem  qualquer  antecedente  semelhante  conhecido;

25 -  Não  se  justificando  à  luz  das  regras  da  experiência  comum  que  o  arguido,  ocupando  há  largos  anos  um  cargo  bancário  de  responsabilidade,  tenha  efetuado  a  identificada  transferência  bancária  (3.000,00€)  a  favor  de  E...   e  mulher  F... ,  pois  que  nem  sequer  os  conhecia,  nem  nunca  com  eles  tratou  qualquer assunto  bancário,  por  os  mesmos  se  dirigirem  apenas  ao  funcionário  G... ,  sendo  que  até  foi  este  funcionário  G...   que  lhes  prometeu  a  reposição  dos  juros  relativos  ao  resgate  antecipado,  tal  como  resulta  das  seguintes  passagens  do  depoimento  de  E... :

•  Passagem  com  início  ao  minuto  06:12  e  termo  ao  minuto  08:01;

E  do  depoimento  de  F... :

•  Passagem  com  início  ao  minuto  00:57  e  termo  ao  minuto  01:37;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  05:38  e  termo  ao  minuto  06:34;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  12:22  e  termo  ao  minuto  13:04;

Outrossim,

26 - Também  não  é  de  todo  crível  segundo  as  regras  da  experiência  comum  que  o  arguido,  na  qualidade  de  diretor  de  balcão,  tenha  efetuado  a  identificada  transferência  bancária  a  favor  de  H...   no  avultado  montante  de  28.500,00€,  com  o  qual  não  tinha  qualquer  relação  de  amizade,  sem  qualquer  contrapartida  de  juros,  e  em  altura  em  que  esta  testemunha,  segundo  declarou,  já  tinha  crédito  bancário  hipotecário  aprovado  pelo  "Banco  C... ,  S.A.";

Mas  mais,

27 - É  de  todo  antagónico  com  as  regras  da  experiência  comum  que  esta  testemunha  com  problemas  de  restruturação  de  dívidas  bancárias  por  virtude  de  incumprimentos,  declare  ao  Tribunal  que  pretendia  contratar  com  o  Banco  um  empréstimo  no  montante  de  28.500,00€,  que  se  propunha  pagar  o  mesmo  em  largo  decurso  temporal  superior  a  10  (dez)  anos,  e  que  por  virtude  da  identificada  transferência,  aliás  não  solicitada  pelo  mesmo,  tenha  pago  esse  exato  valor  ao  arguido  no  prazo  de  1  (um)  ano,  sem  juros,  e  em  4  (quatro)  prestações,  e  sem  qualquer  documento  de  suporte  que  sustente  tal  contratação  ou  pagamentos  alegadamente  processados,  tal  como  resulta  das  seguintes  passagens  do  seu  depoimento:

•  Passagem  com  início  ao  minuto  00:  19  e  termo  ao  minuto  00:32;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  04:25  e  termo  ao  minuto  05:34;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  01:03  e  termo  ao  minuto  03:12;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  05:35  e  termo  ao  minuto  07:55;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  11:10  e  termo  ao  minuto  14:23;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  16:20  e  termo  ao  minuto  19:07;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  23:59  e  termo  ao  minuto  25:30;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  26:07  e  termo  ao  minuto  26:45;

De  facto,

28 -  Este  depoimento  revelou-se  manifestamente  contra  a  lógica  das  coisas,  e  do  senso  comum,  sendo  que  por  não  ter  o  mínimo  de  sustentação,  nomeadamente  documental,  são  variadas  as  ocasiões  em  que  o  Tribunal  a  quo  também  manifestou  a  estranheza  do  respetivo  relato,  pelo  que  não  poderá  ser  minimamente  valorado;

Por  fim,

29 -  Resta-nos  a  transferência  a  favor  de  “ J... ,  Lda.”  no  indicado  valor  de  8.331,37€,  suportado  no  depoimento  do  seu  legal  representante  I... ,  sendo  que,  nesta  parte,  haverá  também  que  atentar  que  o  empréstimo  a  título  pessoal  no  exato  valor  de  8.331,37€  que  o  identificado  I...   refere  ter  processado  ao  arguido  não encontra expressão em qualquer prova, nomeadamente  documental,  nem  sequer  se  apurou  a  proveniência  e  o  destino  desse  exato  montante  de  8.331,37€,  pelo  que  o  Tribunal  a  quo  apenas  e  só  deveria  ter  considerado  o  alegado  mútuo  como  inexistente,  é  o  que  resulta  do  seu  depoimento,  nas  seguintes  passagens:

•  Passagem  com  início  ao  minuto  11:32  e  termo  ao  minuto  12:29;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  13:  11  e  termo  ao  minuto  13:36;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  15:02  e  termo  ao  minuto  15:30;

•  Passagem  com  início  ao  minuto  16:16  e  termo  ao  minuto  18:  17;

Aliás,

30 -  Ao  contrário  do  referido  por  esta  testemunha  não  resulta  sequer  do  documento  a  que  faz  referência,  e  constante  de  fls.  1355  dos  autos  que  o  arguido  aí  tenha  confessado  a  existência  de  qualquer  mútuo  que  lhe  tenha  sido  processado;

Acresce  que,

31 - Para  além  de  decorrer  da  experiência  comum  que  são  os  particulares  que  solicitam  os  empréstimos  aos  Bancos,  e  não  o  contrário,  o  certo  é  que  também  não  se  poderá  desassociar  do  depoimento  desta  testemunha  a  circunstância  que  é  suscetível  de  condicionar  o  seu  depoimento  inerente  ao  facto  do  Banco  lhe  ter  retirado  o  dinheiro  da  conta  (  os  8.331,37€),  na  sequência  do  que  procedem  à instauração de processo judicial (n.º 84/13.1  TARSD),  tal  como  resulta,  nesta  parte,  da  fundamentação  da  decisão  da  matéria  de  facto;

Além  disso,

32 -  Quanto  a  esta  identificada  transferência,  haverá  que  notar  que  a  mesma  foi  primitivamente  autorizada  pelo  funcionário  B...   no  uso da  respetiva  “user”;

Sendo  que,  nesta  parte,

33 -  A  motivação  processada  pelo  Tribunal  a  quo  não  afasta  a  possibilidade  de  ter  sido  o  funcionário  B...   a  processar  a  transferência  a  favor  da  sociedade  “ J... ,  Lda.”,  ainda  que  no  uso  da  “user”  do  arguido,  pois  que  não  faz  sentido  de  acordo  com  a  gravidade  dos  factos  que  esta  testemunha  que  teve  intervenção  nesta  identificada  transferência  se  limite  a  declarar  ao  Tribunal,  assim  se  defendendo,  que  não  se  recordava  da  mesma;

34 -  E  esta  testemunha  foi  insistentemente indagada  sobre  esta  situação,  remetendo-se  a  um  singelo desconhecimento, alegando desconhecer a documentária  de  suporte,  tarefa  que  estava  a  seu  cargo  no  fecho  do  dia,  tal  como  resulta  da  seguinte  passagem  do  seu  depoimento  na  seguinte  passagem:

•  Passagem  com  início  ao  minuto  20:49  e  termo  ao  minuto  26:28;

Acresce  que,

35 -  No  que  se  reporta  ao  depoimento  de  D... ,  haverá  que  notar  que  o  mesmo  apenas  meses  depois,  teve  participação  no  sucedido  mediante  apresentação  de  reclamação  junto  do  "Banco  C... ,  S.A.",  não  sendo  de  conceder  que  do  “empate  da  situação”  por  parte  do  arguido,  e  a  não  participação  do  sucedido  aos  seus  superiores  hierárquicos  se  possa  retirar  a  conclusão segura  e  sólida  de  que  foi  o  arguido  que  de  facto  efetuou  as  transferências,  até  porque  é  inegável  e  facto  assente  que  as  mesmas foram operadas mediante utilização da sua “user” e alegadamente com o desconhecimento  deste  e  sem  possibilidade  de  demonstração  do  contrário;

Daí  que,

36 -  Através  do  recurso  a  prova  indireta  e  indiciária,  não  poderia  o  Tribunal  a  quo  ter  dado  como  assente  a  factualidade  vertida  nas  alíneas  7),  9),  10)  e  11)  da  matéria  de  facto  considerada  provada  no  sentido  de  que  foi  o  arguido  que  procedeu  à  realização  das  identificadas  transferências,  sendo  tal  conclusão  duvidosa  e  sem  suporte  probatório,  e  tal  como  processou  nos  identificados  pontos  da  matéria  de  facto,  o  que  expressamente  se  impugna  requerendo-se  a  sua  valoração  “ex  novo”;

37 - Desta  forma,  e  nesta  parte,  deveria  o  Tribunal  a  quo  ter  dado  prevalência  ao  princípio  "in  dubio  pro  reo"  que  assim  se  mostra  violado,  pois  que  os  meios  probatórios  supra  descritos  e  em  que  o  Tribunal  alicerçou  a  sua  convicção  não  suportam  a  conclusão  de  que  foi  o  arguido  que  procedeu  às  transferências bancárias;

38 -  Porque  assim  não  decidiu,  o  Tribunal  a  quo  violou  o  princípio  da  presunção  de  inocência  e  do  “in  dubio  pro  reo”  previsto  no  artigo  32º,  n.º 1,  1ª  parte  da  Constituição  da  República  Portuguesa,  e  artigos  127º,  e  355º,  n.º1,  ambos  do  Código  de  Processo  Penal;

E,  assim,

39 - No  que  se  reporta  à  parte  criminal,  o  reconhecimento  do  supra  exposto  conduzirá  inevitavelmente  à  não  verificação  dos  elementos  objetivos  e  subjetivos  típicos  do  crime  de  abuso  de  confiança,  pelo  que  se  impõe  a  absolvição  do  arguido;

E,

40 -  A  absolvição  do  arguido  da  prática  do  crime  de  abuso  de  confiança,  por  não  se  verificarem  os  elementos/pressupostos  do  tipo,  determina  também  necessariamente  a  absolvição  do  arguido  do  pedido  de  indemnização  civil  formulado;

41 - Porque  assim  não  decidiu,  o  Tribunal  a  quo  violou  o  preceituado  nos  artigos  483°,  do  Código  Civil,  129º,  do  Código  Penal,  e  artigos  71º  e  377º,  do  Código  de  Processo  Penal;

Sem  prescindir,

42 -  Ainda  que  assim  não  se  entendesse,  o  que  de  todo  não  se  concede,  sempre  a  quantia  de  8.331,37€,  e  respetivos  juros,  relativa  à  transferência  operada  a  favor  de  “ J... ,  Lda.”  deverá  ser  descontada  ao  montante  total  fixado  a  título  de  indemnização  civil  (  44.000,00€);

Pois  que,

43 -  Conforme  supra  exposto,  relativo  ao  teor  das  declarações  de  I... ,  e  ao teor do identificado processo-crime n.º 84/13.1TARSD  constante  dos  autos  e  referido  na motivação  da  decisão  da  matéria  de  facto,  o  "Banco  C... ,  S.A."  não  ficou  desapossado  dessa  quantia,  em  virtude  de  a  ter  retido/retirado  a quantia  transferida  (8.331,37€) da conta pertencente  a  “ J... ,  Lda.”;

Ainda  sem  prescindir,

44 -  O  arguido  foi  condenado  na  pena  de  prisão  de  3  (três)  anos,  suspensa  na  sua  execução  por  igual  período  de  3  (três)  anos,  subordinada  ao  dever  de  pagar  ao  “Banco  C... ,  S.A.”  pelo  menos  metade  do  valor  pelo  mesmo  peticionado  a  título  de  indemnização  civil,  ou  seja,  22.000,00€  (vinte  e  dois  mil  euros),  o  que  deverá  ocorrer  durante  o  prazo  de  suspensão  (3  anos);

45 -  Ora,  o  Tribunal  a  quo  não  fundamentou,  por  qualquer  forma  que  fosse,  a  decisão  de  impor  ao  arguido  o  pagamento  ao  Banco  da  quantia  de  22.000,00€,  no  prazo  de  3  (três)  anos,  como  condição  da  execução  da  pena,  limitando-se  pura  e  simplesmente  a  exarar  tal  condição  no  dispositivo  da  sentença  final  proferida;

46 -  O  que  implica  a  nulidade  da  sentença  por  omissão  de  pronúncia,  que  aqui  expressamente  se  invoca  nos  termos  do  preceituado  no  artigo  379º,  n.º1,  al.  e),  do  Código  de  Processo  Penal;

Ainda  sem  prescindir,

47 -  Quando  o  Tribunal  equaciona  a  hipótese  de  condicionar  a  suspensão  da  execução  da  pena  de  prisão  ao  cumprimento  de  deveres,  designadamente  ao  pagamento,  no  todo  ou  na  parte  que  considerar  possível,  da  indemnização  devida  ao  lesado,  deverá  necessariamente  averiguar  da  possibilidade  de  cumprimento  dos  deveres  impostos  pelo  condenado,  pois  o  artigo  51º,  n.º 2,  do  Código  Penal,  consagra  o  "Princípio  da  Razoabilidade",  donde  se  extrai  que  só  podem  ser  impostos  deveres  que  representem  para  o  condenado  obrigações  cujo  cumprimento  seja  razoável  exigir-lhe;

Ora,

48 -  O  arguido  e  a  esposa  auferem  um  rendimento  mensal  correspondente  a  cerca  de  1.700,00€,  ao  qual  haverá  que  descontar  o  pagamento  do  empréstimo  bancário  que  ascenderá  a  750,00€ mensais;

49 -  É  de  conceder,  por  ser  do  senso  comum,  que  do  rendimento  sobrante  (950,00€)  tenham  de  providenciar  pelo  pagamento  de  todas  as  suas  demais  despesas  correntes,  aqui  incluídas  a  do  seu  filho  adotivo  menor,  nomeadamente  com  alimentação,  vestuário,  saúde,  higiene,  comodidade,  ensino,  viatura,  entre  muitas  outras,  assim  se  estimando  que  tenham  de  consumir  na  íntegra  o  referido  rendimento  sobrante  (950,00€)  e  à  razão  média  de  pelo  menos  300,00€  mensais  por  cada  um  dos  elementos  do  agregado  familiar;

Ou  seja,

50 -  Face  aos  rendimentos  de  que  dispõe,  aqui  incluídos  o  da  sua  esposa,  o  arguido  não  tem  capacidade  financeira  para  cumprir  no  prazo  fixado  (3  anos)  a  condição  imposta  inerente  ao  pagamento  de  22.000,00€,  e  que  se  traduziria  no  encargo  mensal  superior  a  600,00€;

Aliás,

51 - Haverá  que  notar  que  o  arguido  e  a  sua  esposa  já  dispõem  de  empréstimo  para  pagamento  da  casa  onde  residem,  e  que  para  além  de  onerar  em  cerca  de  metade  dos  seus  rendimentos,  também  os  limita  na  contratação  de  novos  empréstimos,  sendo  que  como  se  referiu,  o  arguido  e  o  seu  agregado  familiar  consomem  mensalmente  a  totalidade  dos  rendimentos  de  que  dispõem,  o  que  os  impossibilita  em  absoluto  de  proceder  a  tal  contratação;

Em  face  do  exposto,

52 -  Haverá  que  conceder  e  aceitar  que  a  condição  para  suspensão  da  pena  imposta  ao  arguido,  para  além  de  não  fundamentada,  também  se  revela  arbitrária,  desproporcionada  e  não  razoável,  pelo  que  não  se  poderá  manter;

53 -  Porque  assim  não  decidiu,  o  Tribunal  a  quo  também  violou  o  preceituado  no  artigo  51°,  n.º 2,  do  Código  Penal.

E,  assim,  Vossas  Excelências  revogando  a  sentença  de  que  se  recorre,  substituindo-a  por  outra  que  declare  a  absolvição  integral  do  arguido  ou,  pelo  menos,  e  se  assim  não  entenderem,  o  que  de  todo  não  se  concede,  declarando  a  nulidade  da  sentença  final  proferida  e  a  revogação  da  condição  imposta  ao  arguido  para  suspensão  da  pena  de  prisão  que  lhe  foi  aplicada,  farão  a  costumada JUSTIÇA.

O recurso foi objecto de despacho de admissão.

Notificado, o Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo que falecem de razão os argumentos apresentados pelo recorrente, devendo em consequência ser na íntegra mantida a decisão recorrida.

Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, acompanhando a resposta do Ministério Público, conclui que o recurso não merece provimento.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


***

II. Fundamentos da Decisão Recorrida

Na sentença recorrida foi consignada a seguinte fundamentação factual:

2.1. FACTOS PROVADOS:

Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:

No período compreendido entre 08.04.2002 e 12.03.2013, o arguido A... , exerceu as funções de director comercial do balcão de (...) , do Banco C... , sito na Rua (...) , em (...) .

O Banco C... , S.A (doravante BST), é uma instituição de crédito que se dedica à atividade bancária.

Em virtude das funções exercidas pelo arguido, o mesmo era possuidor do user C (...) , ou seja, do código pessoal e intransmissível que permitia o acesso ao sistema informático interno do BST.

D... é titular da conta à ordem n.º (...) e da conta super renda mensal n.º (...) , ambas sedeadas no balcão de (...) do Banco C... .

Acontece que, a 26.07.2012, D... apresenta uma reclamação escrita junto do gabinete de Inspecção do BST, no âmbito da qual reclamava a falta de fundos nas suas contas.

N a sequência do que foi ordenada uma auditoria para averiguação dos factos constantes na reclamação.

Na sequência dessa inspeção, apurou-se que o arguido, através da utilização do seu user, efectou as seguintes transações:

a) a 26.11.2010, débito na conta à ordem n.º (...) de D... , no valor de € 3.000,00, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de E... ;

b) a 09.07.2009, débito na conta super renda mensal n.º (...) de D... , no valor de € 28.500,00, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de H... ;

c) a 15.09.2010, débito na conta super renda mensal n.º (...) de D... , no valor de € 8.331,37, com crédito lançado na conta à ordem n.º (...) de J... , Lda.;

Os supra referidos lançamentos a débito nas contas tituladas por D... ascendem ao valor total de € 39.831,37.

No entanto, tais operações bancárias realizadas pelo arguido, foram efectuadas sem prévia autorização do titular da conta, D... , ou sem qualquer motivo legítimo para o efeito, já que o titular da conta não tinha qualquer relação comercial, ou de outra índole, com os beneficiários das transações.

Em cada um dos momentos das transações, o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, aproveitando-se das funções por si exercidas no BST, O que facilitou a repetição da conduta, com o propósito, conseguido, de utilizar valores monetários das contas de D... , sem o consentimento e contra a vontade deste.

11. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

- Do Pedido de Indemnização Civil

Com a sua conduta descrita em 7, o arguido causou ao cliente D... um prejuízo no valor total de € 39.831,37, tendo aquele sido ressarcido pelo Banco C... , S.A. em tal montante a que acresceram os juros devidos pelo lapso de tempo em que o mesmo ficou privado daquela quantia, no montante global de € 44.000,00.

Até á presente data, o arguido não entregou qualquer quantia ao Banco demandante.

Mais se provou que:

O arguido é casado e nasceu em 17/12/1974.

É auxiliar de serviços gerais na Santa Casa da Misericórdia e aufere cerca de €

505,00 mensais.

A esposa é chefe administrativa e aufere € 1.200,00 mensais.

Têm um filho adoptivo com 12 anos.

Residem em casa própria a qual se encontram a pagar ao Banco, em empréstimo bancário, na quantia mensal de € 600,00 (sendo que se encontram em período de carência, após o que serão € 750,00 mensais).

Tem como habilitações literárias o 12° ano de escolaridade.

O arguido foi condenado por decisão de 30/01/2008, transitada em julgado em 29/02/2008, no âmbito do Proc. nº 26/06.0PTVIS, do 1° Juízo Criminal do Tribunal de Viseu, pela prática em 13/04/2006, de um crime de condução perigosa

de veículo rodoviário, na pena de 120 dias de multa, á taxa diária de € 10,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses.

Foi condenado por decisão de 14/07/2010, transitada em julgado em 13/08/2010, no âmbito do Proc. nº 138/l0.6GTVIS, do Tribunal de Castro Daire, pela prática em 03/06/2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 110 dias de multa, á taxa diária de € 11,00 e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses.

2.2. FACTOS NÃO PROVADOS:

Inexistem factos não provados.

2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO:

A convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento e da prova documental constante dos autos, devidamente conjugada com as regras da experiência comum.

Em audiência de julgamento o arguido prestou declarações e negou a prática dos factos. Referiu que efectivamente as transferências bancárias foram realizadas com o seu código mas que alguém o terá usado indevidamente. Referiu que o D... é um cliente do Banco que está emigrado no Canadá, o qual tinha uma maior relação com os outros colegas do Banco. Em relação á transferência para a conta do Sr. E... , referiu o arguido que se tratou de um pagamento de juros ao cliente no âmbito de um resgate antecipado de um depósito mas que não tratou de tal assunto com o mesmo, sendo que o depósito e o resgate são operações com document os de suporte assinados pelos colaboradores do Banco, L... ,à data subgerente do balcão de (...) e G... . Quanto á transferência para a conta de H... , referiu o arguido que não obstante ter tratado de todo o processo de recuperação de crédito deste cliente, não estava sequer na agência no referido dia 09/07/2009 estando de férias, sendo que quando regressou, o crédito do cliente já tinha sido saldado com a referida transferência bancária. Por ultimo, quanto á transferência para a conta de J... , Lda., o arguido referiu, nas suas declarações iniciais, não conseguir explicar esta transferência, já que apesar de se tratar de um cliente da sua carteira e o gerente da empresa ser promotor externo do Banco, o gerente, I... , não lhe justificou o montante e segundo o arguido, aquele não tinha documentos que suportassem a entrada desse dinheiro na conta da empresa.

Ora estas declarações do arguido não convenceram minimamente o Tribunal, desde logo porque se revelaram contrárias a toda a restante prova documental e testemunhal, produzida em audiência de julgamento, não fazendo qualquer sentido a tese do arguido de que alguém que não ele, usou o seu código para efectuar as transferências e desapareceu com os documentos de suporte das mesmas e bem assim a tese da "cavala" do próprio Banco que também terá forjado mapas falsos de férias (já que resulta da documentação de fls. 519 que o arguido estava efectivamente ao serviço no dia 09/07/2009) e até da "cavala" de algumas das testemunhas directamente envolvidas nas transferências ( D... e os destinatários das mesmas H... e I... ) as quais tiveram versões dos factos completamente distintas da que foi apresentada ao Tribunal pelo arguido.

Efectivamente resulta da vasta documentação bancária constante dos autos e o arguido não o nega, que as transferências foram efectuadas com a palavra passe do arguido e resultou do depoimento das testemunhas M... , colaborador no gabinete de inspeção do Banco, N... , responsável do gabinete de Inspecção, B... , actual director do balcão de (...) e á data dos factos sub-director e G... , também bancário, que a palavra passe é pessoal e intransmissível.

Quis o arguido criar no Tribunal a ideia de que sendo o balcão de (...) muito pequeno, quase que do tamanho da sala de audiências, qualquer um dos outros três colaboradores poderia ter visto o arguido a introduzir a sua palavra passe no computador e a usurpado, realizando as ditas transferências, já que aquele não tinha qualquer motivação para o fazer, na medida em que não teve qualquer ganho com as referidas operações bancárias.

Pois a razão pela qual o arguido ordenou as transferências é alheia ao Tribunal mas também a motivação não é elemento do crime, não tem de constar da acusação pública e nem tem que ser apurada pelo Tribunal. Basta que o Tribunal se convença, como efectivamente se convenceu, que foi o arguido quem ordenou as transferências e quanto a isso não se suscitou qualquer dúvida no espírito do julgador.

Na verdade, tal convicção foi criada, valorando-se desde logo a vasta prova documental constante dos autos, com especial incidência no auto de denúncia e documento juntos a fls. 2 e ss; relatório elaborado pelo Banco denunciante de fls. 9 a 56 no qual se descrevem as diligências por si efectuadas e processo disciplinar de fls. 126 a 147 instaurado ao arguido por estes factos e alegadamente outros relativos a descobertos em conta e outras operações bancárias ilegitimamente efectuadas pelo arguido com a sua palavra passe, as quais culminaram no despedimento do arguido da instituição bancária.

Considerou o Tribunal o depoimento prestado pela testemunha D... , titular das contas bancárias de onde saíram os referidos montantes o qual prestou um depoimento isento, completamente sincero e imparcial. Referiu que não ordenou as transferências em causa e não conhecia sequer os destinatários das mesmas. Salientou que a dada altura deu pela falta de dinheiro nas contas e se queixou verbalmente ao arguido o qual lhe referiu que não se preocupasse, que o dinheiro estava em "private" e que o arguido não tinha naquele momento acesso ao mesmo mas que em breve tais quantias seriam repostas na sua conta. Referiu a testemunha que esperou, voltou a falar com o arguido e contactou-o pelo menos duas vezes quando aquele se mudou para o balcão de (...) , ouvindo do mesmo sempre a referida desculpa. A data altura, referiu a testemunha que recebeu na sua conta, uma transferência de € 10.000,00 o que julgou ser o início da reposição do dinheiro mas algum tempo depois, tal quantia voltou a sair da conta sem que a testemunha nada fizesse.

O arguido em julgamento negou que tenha dado tais "desculpas" à testemunha, tendo referido que apenas "empatou a situação" para poder investigar internamente o que tinha sucedido. Ora tal comportamento do arguido é completamente inverosímil e nada consentâneo com as regras da experiência comum. Por todos os funcionários do Banco inquiridos, incluindo e especialmente pelas testemunhas M... e N... , trabalhadores no gabinete de Inspecção e pelo próprio O... , administrador do Banco, o procedimento correcto a adoptar por um director de balcão como era o arguido à data, quando recebesse uma queixa de desaparecimento de fundos de um cliente, seria de imediato fazer a comunicação respectiva ao superior hierárquico, coisa que, note-se, o arguido nunca fez, levando a testemunha D... a apresentar, bem mais tarde, uma reclamação escrita, a 26 de Julho de 2012 (cfr. fls. 23 dos autos) na qual relata toda a situação (documento cujo conteúdo é aliás totalmente coerente com o depoimento prestado pela testemunha). Naquele documento de reclamação refere ainda a testemunha que em Maio de 2012, recebeu um telefonema do arguido a dizer que parte do dinheiro já estava na sua conta, quando verificou a tal transferência de € 10.000,00 vinda de outro cliente mas pouco tempo depois o montante voltou a sair novamente para a conta do dito cliente.

E agora pergunta-se: se o arguido não fez a transferência em causa porque razão tentou concertar a situação quando até já estava no balcão de (...) e nada tinha a ver com aquilo?! E coincidência das coincidências, a transferência dos € 10.000,00 veio de um cliente do arguido do balcão de (...) e foi realizada com o código do mesmo, como resulta do relatório a fls. 16 e ss. e foi confirmado pela testemunha M... . De facto, o arguido referiu ao Tribunal que fez a dita transferência por causa de uma troca de uma aplicação financeira que o Sr. D... queria mas depois já não queria e teve então necessidade de anular a transferência e devolver o dinheiro ao cliente, P... . Do relatório de fls. 16 e pela testemunha M... foi referido que esta transferência de P... foi também irregular, até porque o cliente D... não possuía, na ocasião, no seu leque de aplicações, a referida aplicação financeira em causa, "Plano Financeiro Trimestral 2012". E de facto, a testemunha D... não falou ao Tribunal em nenhuma aplicação, tendo sido clara ao referir que foi o arguido quem lhe disse que estava a resolver parcialmente a situação anterior.

E de facto, não é consentâneo nem minimamente crível que uma pessoa que verifica que o seu código pessoal e intransmissível foi usado ilicitamente por alguém, não comunique, de imediato, tais factos ao superior hierárquico, antes procure "empatar" o cliente e arranjar desculpas enquanto investiga internamente ... Não temos dúvidas que mais não tentou o arguido que não fosse repor a regularidade da situação em que ele mesmo criara ainda que à custa de outras situações irregulares por si criadas.

Valorou também o Tribunal o depoimento da testemunha H... , no que se refere à transferência descrita em 7., b) da acusação pública. Referiu a testemunha que tratou de todo o processo de recuperação de crédito com o arguido, tendo dívidas ao Banco na ordem dos € 28.500,00 e que tentou a realização de um empréstimo junto da instituição bancária, tendo até chegado a assinar o contrato. Referiu que viu os € 28.500,00 a caírem-lhe na conta mas que o arguido lhe ligou a dizer que o empréstimo não estava aprovado e que afinal era ele quem iria emprestar-lhe o dinheiro, a título pessoal e sem juros. Referiu a testemunha que pagou entretanto tal quantia ao arguido, em dinheiro, tendo-lhe feito quatro entregas.

Efectivamente, o Tribunal não pode deixar de notar a estranheza do depoimento desta testemunha, pois que, como se sabe, os empréstimos são feitos ao Banco e não pessoalmente pelos seus gerentes e muito mesmos o são sem documentos de suporte e sem o pagamento de quaisquer juros... Contudo, o facto é que só o arguido estava directamente envolvido com este cliente e só ele tratou do processo de restruturação do crédito do Banco que era precisamente do mesmo valor da transferência bancária, tendo a transferência sido realizada com o código do arguido. Não faz sentido pensar que outro colaborador do Banco pudesse ter feito a transferência com o código do arguido, pois que nenhum envolvimento o mesmo teria com o processo em causa e com o cliente.

Valorou igualmente o Tribunal o depoimento da testemunha I... , gerente da empresa " J... , Lda." o qual prestou o seu depoimento de forma isenta e espontânea, merecendo-nos total credibilidade. A testemunha referiu ao Tribunal que, em Agosto de 2010, a pedido do arguido concedeu-lhe um empréstimo pessoal no referido valor de € 8.331,37, por o mesmo lhe ter referido que precisava urgentemente do dinheiro para um outro cliente do Banco o qual não conseguia um empréstimo bancário por ter prestações em atraso. Referiu que como confiava no arguido lhe cedeu o dinheiro, sendo que ao cabo de duas ou três semanas o dinheiro caiu na sua conta, através da transferência bancária em causa nestes autos. Salientou a testemunha que não estranhou o facto de a transferência vir de outro cliente, por julgar tratar-se do cliente a que se referia o arguido. Mais referiu que passado cerca de 2 anos foi então contactado pelo Banco que lhe disse que a transferência não era para si e foi -lhe então retirado o dinheiro da conta. Acrescentou que tem agora um processo contra o Banco e o arguido por tais factos e que nessa altura contactou o arguido que lhe assegurou que resolvia tudo, de tal forma que o mesmo assinou um documento onde assumia que a testemunha tinha direito a tal valor. E de facto resulta agora da certidão junta aos autos em 08/07/2015, que corre no DIAP desta Instância Local de (...) , o processo-crime nº 84/13.1 TARSD, tendo a referida empresa " J... , Lda." apresentado queixa-crime contra o Banco e o arguido por tais factos. Por outro lado, a testemunha juntou aos autos o referido documento que foi então assinado pelo arguido a seu pedido, em 13/12/2012, agora junto a fls. 1355. E analisando a declaração, cuja assinatura do arguido foi certificada, aquele declarou que não autorizou a transferência em causa nestes autos mas que o referido valor de € 8.331,37 era efectivamente devido à empresa " J... , Lda.ª, por um outro cliente do BST do Balcão de (...) que não o referido D... , sendo que não obstante, a dita transferência ter sido feita á sua revelia, a mencionada empresa "tinha todo o direito de receber a quantia transferida" .

Ora mais uma vez não se logra compreender o comportamento do arguido que, como já se referiu, não é típico de quem não tem nada a ver com a dita transferência. Ora se o arguido não tinha a nada a ver com aquele assunto e não tinha pedido nada à testemunha I... , porque razão se dá ao trabalho de assinar tal documento, onde atesta que o valor é devido à empresa por outro cliente do Banco e com a sua assinatura certificada?! E como sabia o arguido que o valor era, afinal, devido à empresa " J... , Lda.ª, por outro cliente, precisamente naquela quantia?!

Em audiência, confrontado com o referido documento, o arguido referiu que subscreveu e assinou o documento porque efectivamente havia uma outra empresa que devia à empresa " J... " a dita quantia, no âmbito de uma transacção comercial, uma vez que tinha conhecimento dos negócios entre clientes comuns do Banco, sendo que a empresa do Sr. I... prestou um serviço à dita empresa, no valor de aproximadamente € 8.000,00 e ficou de lhe pagar por transferência bancária, sendo certo que também assegurou que o valor não lhe era devido pelo Sr. D... porque o mesmo não constava da carteira de clientes da empresa " J... ". Mais referiu ao Tribunal que apenas assinou o documento a pedido do Sr. I... mas que o espírito do mesmo era apenas atestar a dita transacção comercial entre as duas empresas.

Tais declarações do arguido revelam-se inverosímeis e incongruentes com as declarações inicialmente prestadas em audiência pelo arguido. É que no início da audiência, antes da junção aos autos do referido documento e do depoimento da testemunha I... , o arguido não referiu tais factos, antes pelo contrário, em relação à referida transferência, disse que não a conseguia explicar, já que apesar de se tratar de um cliente da sua carteira e o gerente da empresa ser promotor externo do Banco, o gerente, I... não lhe justificou o montante e segundo o arguido, aquele não tinha documentos que suportassem a entrada desse dinheiro na conta da empresa. Mas afinal o arguido estava bem por dentro dos negócios da dita empresa com os outros clientes do Banco e até sabia que o referido dinheiro era devido à empresa J... ... E porque razão assinou o arguido a declaração?! Tal só faz sentido se pensarmos mais uma vez numa forma de o arguido tentar remediar, de alguma forma, o "mal cometido" junto da testemunha I... que o estava a pressionar para assumir as consequências do seu acto. Mas faz algum sentido que se os factos fossem como o arguido referiu, a testemunha se desse ao trabalho de instaurar um processo crime contra o arguido e o Banco?! Bastava-lhe afinal exigir o pagamento da empresa a quem prestou o serviço, como foi referido pelo arguido.

Aliás, não vemos qual o interesse das testemunhas D... , H... e I... em imputar responsabilidades ao arguido e inventar todas estas histórias contra o mesmo, já que não se demonstrou qualquer inimizade entre eles e o arguido e nem o arguido aventou qualquer razão para as testemunhas terem inventado o seu envolvimento nos factos.

Por último, quanto à transferência para a conta bancária de E... , convém referir que, pese embora o arguido não tenha tido qualquer intervenção na constituição do depósito e no resgate antecipado do mesmo (tendo ali intervindo as testemunhas B... e G... ), o facto é que no que respeita ao reembolso dos juros e/ou despesas (e a transferência, ao que se apurou foi para isso mesmo), o arguido teve intervenção, pois que como o mesmo referiu, por ele foi efectuado ao Banco o pedido de estorno e só ele poderia ter efectuado tal pedido, por tal não estar nas funções da testemunha G... , tendo este último, além do mais, referido que não tendo perfil para tratar desse assunto, reencaminhou o mesmo para o arguido. Isto sem esquecer que, mais uma vez, a transferência foi realizada com o código do arguido.

De modo que, como se disse e reforça uma vez mais, não temos dúvidas que foi o arguido quem procedeu às referidas transferências bancárias, independentemente do objectivo que o mesmo tinha ao efectuá-las, sendo certo que o arguido negou a prática dos factos e nem tinha o Tribunal de apurar a motivação do arguido para a prática do ilícito.

E o facto de aparecer a palavra passe do subgerente do Banco, a testemunha B... nos registos bancários relativos à transferência para a conta do cliente " J... , Lda.ª (cfr. fls. 1158 dos autos), não criou no Tribunal qualquer dúvida sobre a responsabilidade do arguido naquela transferência. Ali aparece a transferência executada e depois anulada com o código do arguido (C (...) ) e com a autorização da testemunha (T508434), ao passo que logo a seguir é o arguido quem efectua novamente a transferência sem qualquer autorização. É que note-se, quem faz a transferência nas duas vezes é o arguido, com o seu código. Numa primeira fase, é verdade, a testemunha autoriza mas depois há uma anulação, também autorizada. Inquirida em julgamento, a testemunha B... refere que não se recorda daquela transferência em concreto e que não consegue explicar a sua autorização, sendo certo que usa a sua palavra passe entre 5 a 20 vezes por dia, e havendo um grande fluxo de cientes, pode estar a fazer várias coisas em simultâneo. É pois perfeitamente natural que a testemunha não consiga explicar porque razão concedeu a referida autorização para a transferência e para a posterior anulação. Não cremos de forma nenhuma que tenha sido a testemunha a fazer a transferência com o código do arguido, desde logo porque o próprio I... explicou ao Tribunal como tudo se passou e o envolvimento do arguido na situação, tendo além do mais referido que, nesse particular, nunca contactou com a testemunha B... que nenhuma intervenção teve na situação em causa. Terá o arguido solicitado a autorização da testemunha que a concedeu sem saber concretamente para que efeito. Não faz sentido que fosse a testemunha a efectuar depois a transferência, até porque a mesma é feita apenas com o código do arguido sem qualquer autorização.

Não temos dúvidas que o arguido, enquanto funcionário bancário efectuou as ditas transferências, tendo o Tribunal chegado a tal concussão com recurso a prova indirecta, uma vez que a prova directa não é possível no caso dos presentes autos.

Ora como se sabe, o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador. Assim, relevantes no domínio probatório, para além dos meios de prova directa, são os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções. É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.° do Código de Processo Penal).

Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004, disponível na base de dados do ITIJ em www.dgsi.pt (proc. n.º 03P3213)., «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. (…). A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável».

Em suma, a apreciação da prova engloba não apenas os factos probandos apreensíveis por prova directa, mas também os factos indiciários, factos interlocutórios ou habilitantes, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles e tendo por base as referidas regras da experiência, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos que constituem o tema de prova.

Ora considerando o depoimento das testemunhas que imputam os factos ao arguido e a prova documental constante dos autos, designadamente tendo as transferências sido efectuadas com o código pessoal do arguido, à luz das regras comuns de vida, podemos concluir que tais elementos de prova são fortemente persuasivos, superando qualquer dúvida razoável, da autoria do arguido no crime em causa nos presentes autos.

E, não obstante nos factos terem sido avaliados pelo Tribunal de trabalho no proc. nº 116/13.3TTLMG, para efeitos de despedimento do arguido, apenas na perspectiva de infracção disciplinar, de forma a apreciar se os mesmos constituem justa causa de despedimento, o facto é que, ainda que com critérios de prova diferentes e menos exigentes, tais factos, também aqui em causa nestes autos, foram considerados provados por aquele Tribunal (cfr. factos descritos em 118 a 189), que também ali considerou ter sido o arguido o autor das transferências bancárias aqui, como também ali, em causa (cfr. certidão entrada em juízo em 08/07/2015).

No que se refere ao elemento subjectivo descrito em 10 e 11, convém referir que, pertencendo as intenções à esfera íntima de cada pessoa, o Tribunal só as pode apreender de forma indirecta, através da submissão de actos de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas. Assim, do comportamento do arguido, inclusivamente após a prática dos factos, conjugada com a demais prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, é possível, com o auxílio das regras de experiência comum, inferir a intencionalidade que lhes esteve subjacente, tendo o arguido efectivamente pretendido dar destino diverso ao dinheiro depositado nas contas do cliente D... ao pretendido por este, actuando sobre aquele dinheiro ao arrepio e contra a vontade do respectivo legítimo proprietário, de que se abstraiu, dando-lhe o destino que bem entendeu, como se este fosse sua propriedade, transferindo-o para as contas de terceiros.

Para prova dos factos descritos em 12 e 13, considerou o Tribunal as declarações prestadas pelas testemunhas D... , o qual confirmou ter sido integralmente ressarcido pelo Banco de tal quantia e bem assim das testemunhas M... e N... , funcionários do banco no Gabinete de Inspecção, que confirmaram o pagamento ao cliente D... da referida quantia de € 44.000,00 e a não entrega de qualquer quantia ao Banco, pelo arguido.

No que se refere às condições económicas e à situação familiar e social do arguido, teve-se em atenção as declarações do mesmo, produzidas em sede de audiência de julgamento, que apenas nessa parte, nos mereceram credibilidade, sendo certo que nenhuma prova em contrário foi produzida.

No que se refere à idade do arguido e antecedentes criminais, o Tribunal considerou os certificados de registo criminal do arguido de fls. 1332 e ss.

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III. Apreciação do Recurso

A documentação dos actos da audiência determina que este Tribunal possa conhecer de facto e de direito como resulta do disposto nos artigos 363º e 427º do Código de Processo Penal. Mas, o objecto do recurso delimita-se através das conclusões extraídas pelo recorrente e formuladas na motivação (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal) sempre sem embargo dos poderes de conhecimento oficioso. 

Ora, vistas as conclusões do recurso interposto, as questões a apreciar serão as seguintes:

- Se os factos provados não integram a prática do imputado crime de abuso de confiança por inverificação do elemento objectivo “coisa móvel entregue ao agente por título não translativo da propriedade”;

- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto, devendo esta ser alterada no sentido indicado pelo recorrente com a sua consequente absolvição;

- Se a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação do condicionamento da suspensão da pena ao pagamento de indemnização;

- Se o condicionamento da suspensão ao pagamento de indemnização viola o disposto no artigo 51º, nº 2 do Código Penal.

Preliminarmente importa abordar questão que contende com o conhecimento das questões que o recurso suscita.

Com efeito, a análise da matéria de facto da decisão recorrida evidencia carência de elementos de facto que comprometem a possibilidade de imputação do crime de abuso de confiança por que o arguido foi condenado e previamente acusado.

Confrontando a acusação pública com a descrição fáctica da decisão recorrida, verificamos que esta reproduz a primeira no que respeita aos factos imputados ao arguido. E no que concerne ao elemento subjectivo do tipo de crime em causa apenas consta das duas referidas peças processuais que “Em cada um dos momentos das transações, o arguido actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, aproveitando-se das funções por si exercidas no BST, o que facilitou a repetição da conduta, com o propósito, conseguido, de utilizar valores monetários das contas de D... , sem o consentimento e contra a vontade deste.

Comete o crime de abuso de confiança (artigo 205º do Código Penal) quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Fazendo parte do tipo objectivo de ilícito a apropriação, o dolo necessário ao preenchimento do tipo subjectivo supõe uma acção voluntária dirigida a fazer sua a coisa móvel e não apenas o propósito de a utilizar, palavra que não tem um significado específico de apropriação e consente a realidade do mero uso sem intenção de apropriação. Significativos da diferença, ao nível da semântica legal, entre as palavras utilizar e apropriar são os tipos de crime de furto “rei” e furto de uso, praticando o primeiro quem actuar com intenção de apropriação e o segundo quem actuar utilizando o bem sem autorização de quem de direito.

Esta formulação do elemento subjectivo que consta da decisão recorrida não traduz, portanto, o dolo necessário e indispensável ao cometimento do crime de abuso de confiança, ou de outro ilícito penal  o que significa que os factos descritos primitivamente na acusação e transcritos para a decisão recorrida não são susceptíveis de integrar o crime imputado, como não integram qualquer outro ilícito penal (caso em que se poderia equacionar comunicação da alteração da qualificação jurídica nos termos do artigo 358º, nº 3 do CPP) .

De acordo com o disposto no artigo 283º, nº 3, alínea b) do Código de Processo Penal é elemento essencial da acusação a indicação dos factos que fundamentam a aplicação da sanção, ou seja, os elementos constitutivos do crime.

Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do Código de Processo Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” de entre eles avultando o elemento subjectivo do tipo de crime.

Se os factos da acusação não constituem crime devia a mesma ter sido rejeitada nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal. A propósito deste preceito Germano Marques da Silva em Processo Penal, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.

Na senda de tal doutrina já defendemos que da conjugação do disposto nos artigos 283º, nº 3 e 311º, nº 3 do Código de Processo Penal resulta que a nulidade da acusação por falta de descrição de factos que constituam crime não é suprível e pode ser conhecida a todo o tempo até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. o Acórdão desta Relação de 22.5.2013 publicado em www.dgsi.pt) viciando todos os actos que sejam praticados posteriormente (artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal).

Dada a estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal (artigo 379º, nº 1, alínea b) do mesmo Código).

Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles, cabendo equacionar se no caso poderia suprir-se por essa via a insuficiente descrição factual da acusação.

Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (artigo 358º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal).

Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no artigo 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (artigo 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório.

Ora, o artigo 1º, alínea f) do Código de Processo Penal define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Se, porém, os factos constantes da acusação não integram sequer um crime, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.

Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se impossível a imputação de crime diverso, porque então estaríamos perante a realidade da imputação de um crime “ex novo” e não diverso. 

Aliás, o STJ, no Acórdão 1/2015, DR Iª Série de 27.1.2015, fixou jurisprudência no sentido de que a falta de descrição do elemento subjectivo não pode ser suprido em audiência por recurso ao artigo 358º do Código de Processo Penal, por maioria de razão não o poderá ser por recurso ao artigo 359º ainda que obtido o acordo a que se refere o seu nº 3.

O fundamento da não aplicabilidade de tais preceitos radica na mesma causa; a inexistência de imputação de factos que constituem crime que é pressuposto de qualquer tipo de alteração.

Perfilhamos, para além do mais que nele se expressa, a síntese conclusiva do Acórdão desta Relação de 13 de Janeiro de 2016, relatado pelo Exmº Desembargador Alberto Mira, publicado em www.dgsi.pt, sobre caso paralelo, do seguinte teor:

- A imputação genérica de uma conduta, ou seja, sem a descrição fáctica integradora de um ilícito penal, é insusceptível de conduzir à aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança;

- Consequentemente, a falta de narração, na acusação, quer do tipo objectivo, quer do tipo subjectivo de crime, traduz uma pura inexistência de tipicidade, não sendo, neste contexto, admissível, em julgamento, a alteração posterior dos factos, neste ou noutro procedimento, por forma a que daquela passem a constar factos integrantes de um comportamento típico do agente;

- Nesse caso, tal alteração consubstanciaria a convolação de uma conduta atípica em conduta típica, em patente violação do princípio constitucional do acusatório.

Por todo o exposto, impõe-se, sem mais, declaração de absolvição do arguido (…).

No caso a patologia consiste na falta de descrição do elemento subjectivo do crime imputado, sendo de retirar as mesmas conclusões.

Acresce que não constituindo a factualidade descrita crime, falece o pressuposto da dedução de pedido cível em processo penal constante do artigo 71º do CPP, importando também nessa parte absolver o arguido/demandado.

Por consequência fica prejudicada a apreciação das questões colocadas pelo recorrente.                                                                                                                                                                    


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IV. Decisão

Nestes termos e embora com diferente fundamento do alegado, acordam em conceder provimento recurso interposto e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido da imputada comissão de um crime de abuso de confiança p. e p. pelos artigos 14º nº 1, 26°, 30° n° 2 e 205°, n.ºs 1 e 4 alínea b) do Código Penal e do pedido cível de indemnização contra ele formulado, ficando as custas cíveis a cargo do demandante.

Não há lugar a tributação em razão do recurso.


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Coimbra, 27 de Abril de 2016

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora).

(Maria Pilar de Oliveira - relatora)

(José Eduardo Martins - adjunto)