Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/14.0T8CDN-H.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
DOCUMENTO
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - CONDEIXA-A-NOVA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.771 C) DO CPC
Sumário: 1. A definição dos casos extremos e excepcionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no artigo 771.º do CPC, que estatui sobre os fundamentos do recurso de revisão.

2. Da alínea c) deste preceito legal decorre cristalinamente que a sentença transitada em julgado só pode ser revista quando se verifique cumulativamente que a parte apresenta um documento de que não tinha conhecimento ou do qual não pôde fazer uso; e que esse documento, por si só, ou seja, sem necessidade de conjugação com outras provas, tem força probatória bastante para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

3. A singela alegação de que o documento «apareceu» não basta para se poder considerar que não foi imputável à parte vencida e ora Recorrente a omissão da oportuna junção do documento.

IV - A simples reprodução de um alegado documento que consubstanciaria uma declaração de dívida, não bastando, por si só, para determinar diferente decisão da causa em sentido favorável ao requerente, não é apta a fundamentar o recurso de revisão com fundamento na alínea c) do artigo 771.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I – RELATÓRIO

1. A (…), interpôs em 12-10-2004 o presente recurso extraordinário para revisão de sentença contra F (…) pedindo que o mesmo fosse admitido com fundamento no disposto nas alíneas a) e c) do artigo 771.º do Código de Processo Civil[2], na redacção então em vigor.

2. Por sentença proferida em 7-7-2005, o Mm.º Juiz decidiu julgar improcedente o recurso de revisão de sentença interposto por A (…).

3. Inconformado com esta decisão, o Requerente interpôs Recurso de Apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1) O recorrente alegou quando apareceu a declaração de dívida.

2) O recorrente alegou como nasceu e quando a declaração de dívida,

3) O recorrente apesar de expressamente não ter referido que a declaração de dívida lhe foi entregue por F (…), tal resulta indiretamente do que alegou, reproduzido no art.º 2° da presente, e das correspondentes presunções da experiência.

4) A declaração de dívida ao tempo do Julgamento não estava junta aos autos, logo vale como elemento de prova quando conjugada com a prova produzida "maxime" a dada como provada no que respeita ao destino do cheque entregue pelo falecido F (…) ao recorrente A (…), já que as testemunhas não puderam ser confrontadas com tal declaração de dívida

5) A declaração é idónea só por si, atendendo ao conteúdo e à assinatura da declaração por forma a que a decisão transitada seja: modificada de forma favorável ao recorrente, nos termos do artigo 771.º alínea c) do CPC na versão vigente à data, atual 696º alínea c) do CPC.

6) Deve ser revogada a douta decisão do Tribunal a quo que considerou julgar improcedente o recurso de revisão de sentença.»

4. Pelo recorrido foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela total improcedência do recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.

5. Dispensados os vistos, cumpre decidir.


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II. O objecto do recurso.

Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, 609.º, 5.º, 635.º, n.º 3, 639.º, n.º 1, e 663.º, n.º 2, todos do CPC, é pacífico que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Considerando a delimitação do objecto do recurso pelas conclusões formuladas pelo autor, cumpre lembrar que o mesmo havia interposto o presente recurso de revisão com base no disposto nas alíneas a) e c) do artigo 771.º do Código de Processo Civil, pelo que a sentença proferida transitou em julgado relativamente a dois dos seus segmentos decididos nos seguintes termos:

«O recorrente A A (...) fundamenta o seu pedido de revisão no disposto no art. 771° a) e c) do Código de Processo Civil.

Comecemos por referir que "a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão nos seguintes casos:

a) quando se mostre, por sentença criminal passada em julgado, que foi proferida por prevaricação, concussão, peita, suborno ou corrupção do juiz ou de algum dos juízes que na decisão intervieram;

Não tendo sido junto aos autos qualquer certidão de decisão judicial proferida em processo crime com trânsito em julgado que tenha condenado algum dos juízes com intervenção neste processo, tal invocação cai por terra por não se verificar o pressuposto legalmente exigível de aplicação deste preceito legal.

Da Matéria já transitada em julgado

Quanto aos fundamentos invocados pelo recorrente em 2°, 3° e 4°, foram os mesmos objecto de decisão com trânsito em julgado no recurso de revisão que é o apenso D, razão porque não apreciamos tal questão em homenagem ao caso julgado aí superiormente apreciado, chegando tal matéria à apreciação do nosso mais alto Tribunal».

Assim, o presente recurso de apelação apenas integra a questão relativa aos factos invocados em 5.º, 6.º e 7.º do requerimento inicial, e que é a de saber se a fotocópia junta pelo autor e que o Recorrente alega ser uma declaração de dívida assumida pelo Recorrido, conjugada com as regras da experiência comum que o mesmo invoca, é ou não bastante para ter a suficiente relevância a que a alínea c) do artigo 771.º do CPC, correspondente à actual alínea c) do artigo 696.º, alude.


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III – Fundamentos

III.1. – De facto:

Com relevância para a decisão a proferir, deve considerar-se a seguinte factualidade:

1) No artigo 5.º do requerimento inicial o Recorrente alegou que «em meados de Agosto de 2004, mais propriamente entre os dias 15 e 20 apareceu a declaração de dívida assinada pelo F (…) quando recebeu da mão de A (…) a quantia de 4 000 000$00, isto em Setembro de 1995 cuja dívida ficou saldada com o cheque n.º 5031507915 da Caixa Geral de Depósitos passado a favor do A A (...) em 28/12/1998 sendo este a liquidação de uma dívida como alegado em contestação à PI do processo aqui em causa».

2) O documento n.º 3 é uma reprodução mecânica (fotocópia), com o título “Declaração” seguida dos seguintes dizeres: «Eu F (…) viúvo residente em (...) freguesia de (...) conselho de Penela declaro que devo 4.000.000$00 quatro milhões de escudos ao sr. A (…) e por ser verdade acino F (…)»


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III.2. – O mérito do recurso

O Apelante, por esta via de recurso, pretende a revogação da sentença recorrida, entendendo que alegou quando apareceu, como e quando nasceu a declaração de dívida, que a mesma não estava junta aos autos ao tempo do julgamento pelo que as testemunhas não puderam ser confrontadas com a referida declaração, a qual considera ser, só por si, idónea, atendendo ao conteúdo e à assinatura da declaração por forma a que a decisão transitada seja modificada de forma favorável ao recorrente.

O Mm.º Juiz fundamentou a improcedência do pedido formulado pelo Recorrente nos seguintes termos:

«Afirma o recorrente que em meados de Agosto de Agosto de 2004 apareceu a declaração de dívida ...

O recorrente não alega nem demonstra como, quando e onde apareceu o dito documento de fls. 6 (do qual se limita a juntar uma fotocópia de má qualidade), quem lho deu, referindo apenas que apareceu ...

Também não explica a razão de não o ter apresentado nos autos principais.

Afirma que o "documento" foi subscrito em Setembro ou Outubro de 1995, data em que alegadamente emprestou aquela quantia de 4 000 000$00, sem que no mesmo exista a indicação de qualquer data.

Pois bem, um dos requisitos legalmente exigíveis para se poder lançar mão do art. 771 º/ c) do Código de Processo Civil é o da necessidade de tal documento ter suficiente relevância, sem necessidade da conjugação com outros elementos de prova produzidos em juízo, por forma a que a decisão transitada em julgado seja modificada de forma favorável à parte que o apresenta.

Neste particular, o documento apresentado é manifestamente inidóneo para produzir tal efeito.

Não tendo o documento data nem a assinatura reconhecida notarialmente, o mesmo só poderia valer como elemento de prova quando conjugado com a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, maxime prova testemunhal.

A não ser assim, o processo de revisão abriria a porta a que os valores da segurança e da certeza jurídica estivessem recorrentemente postos em causa.

Fragilizar-se-ia, de forma insuportável, todo um trabalho de recolha e apreciação da prova, estando por esta via, aberto o caminho, para se reabrir a todo o tempo, a discussão sobre os factos objecto do julgamento em quaisquer processos findos, com total subversão do princípio da liberdade de julgamento e da imediação, concentração e oralidade.»

     Não podemos deixar de começar por afirmar que nos revemos na conclusão a que chegou a primeira instância.

Efectivamente, o recurso extraordinário de revisão de sentença está intimamente ligado ao instituto do caso julgado que exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa. Exerce a função positiva quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; e exerce a função negativa quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal, em decorrência da necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas[3].

Por isso, a propósito do alcance do caso julgado, nos dizia o artigo 673.º do CPC (na redacção aplicável aquando da interposição do recurso extraordinário) que a sentença constitui caso julgado nos limites e termos em que julga, e que, uma vez transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro e fora do processo - artigo 671.º do CPC – se alguma das partes o requerer – artigo 96.º, n.º 2, a contrario, do CPC.

Daí que para salvaguardar esta força obrigatória, a lei preveja a excepção de caso julgado que pressupõe, por via do disposto no artigo 497.º nºs 1 e 2 do CPC, a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, ou seja, assenta “na alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito, que não admite recurso ordinário”[4].

 Porém, a autoridade do caso julgado pode ser sacrificada, quando tal sacrifício seja apto a evitar os superiores dano e perturbação que adviriam de uma sentença intoleravelmente injusta, devendo ceder, nas situações em que tal se verifique, o princípio da segurança perante o princípio da justiça[5]. Para o efeito existe precisamente o recurso extraordinário de revisão de sentença.

     Ora, «o fundamento dos recursos extraordinários reside na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos, sacrificar a intangibilidade do caso julgado, permitindo a sua rescisão, por imperativos de justiça, de forma a que se possa reparar uma injustiça e proferir nova decisão»[6].

     A definição desses casos extremos e excepcionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no artigo 771.º do CPC, que estatui sobre os fundamentos do recurso de revisão.

Para o caso dos autos importa determo-nos na respectiva alínea c), de acordo com a qual, a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Deste preceito legal decorre cristalinamente que a sentença transitada em julgado só pode ser revista quando se verifique cumulativamente que:

a) a parte apresenta um documento de que não tinha conhecimento ou do qual não pôde fazer uso;

b) documento esse que, por si só, ou seja, sem necessidade de conjugação com outras provas, tem força probatória bastante para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

«Em face do disposto na al. c), conclui:se: que os documentos aí referidos já devem existir quando correu a acção em que foi proferida a sentença revidenda, e, por outro lado, que a revisão não pode constituir meio de o litigante que interpõe esse recurso suprir as omissões por ele cometidas quando litigou no anterior processo, ou seja, é essencial que não seja imputável à parte vencida a não produção do documento no processo anterior»[7].

De facto, «o recurso de revisão de sentença, com fundamento na al. c) do art. 771.º do CPC só é admissível quando não possa imputar-se à parte vencida a falta de produção do documento no processo em que sucumbiu – falta essa que tanto pode ser imputada à outra parte ou a terceiro, como a motivo de força maior»[8].

Ora, no caso dos autos, é evidente que a parte tinha conhecimento do documento porquanto o conteúdo constante da cópia do documento que o Recorrente invoca dever fundar o presente recurso de revisão, configura uma declaração de dívida que alegadamente o Recorrido teria para consigo e que fundamentou a entrega da «declaração». Assim sendo, das regras da experiência comum decorre com meridiana clareza que o original de tal documento deveria encontrar-se com o destinatário da declaração de dívida e ora recorrente. Daí que não se compreenda como pode o mesmo considerar que a simples junção de uma fotocópia que o mesmo diz ter «aparecido» pela altura indicada, baste para justificar a razão por que o documento não «apareceu» na altura certa, ou seja, por ocasião da instrução do processo em que foi proferida a decisão que ora pretende ver revista. Conclui-se, pois, que tal singela alegação não basta para podermos considerar que não foi imputável à parte vencida e ora Recorrente, a omissão da oportuna junção do documento.

Acresce ainda que, «o documento a que se refere a alínea c) do art. 771.º do CPC tem de corporizar uma declaração de verdade ou ciência (…). Há-de ainda ser um documento decisivo, dotado, em si mesmo, de tal força que possa conduzir o juiz à persuasão de que só através dele a causa poderá ter solução diversa daquela que teve»[9].

Visto o documento junto, repete-se, uma mera fotocópia, é evidente que o mesmo, não sendo documento autêntico ou autenticado, por si só - como a lei impõe -, não é apto a provar qualquer facto inconciliável com a decisão revidenda, sendo entendimento pacífico aquele que considera não bastar para ser admitido o recurso de revisão, que tal documento, conjugado com as provas que foram oportunamente produzidas em juízo, pudesse eventualmente determinar outra decisão mais favorável ao requerente[10].

Nestes termos, conclui-se que a simples reprodução de um alegado documento que consubstanciaria uma declaração de dívida, não bastando, por si só, para determinar diferente decisão da causa em sentido favorável ao requerente, não é apta a fundamentar o recurso de revisão com fundamento na alínea c) do artigo 771.º do CPC.


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III.3. - Síntese conclusiva:

I - A definição dos casos extremos e excepcionais em que a intangibilidade do caso julgado, que sustenta a necessidade de certeza e segurança na definição das relações jurídicas, cede perante o princípio da justiça, mostra-se positivada no elenco taxativo de situações previstas no artigo 771.º do CPC, que estatui sobre os fundamentos do recurso de revisão.

II -  Da alínea c) deste preceito legal decorre cristalinamente que a sentença transitada em julgado só pode ser revista quando se verifique cumulativamente que a parte apresenta um documento de que não tinha conhecimento ou do qual não pôde fazer uso; e que esse documento, por si só, ou seja, sem necessidade de conjugação com outras provas, tem força probatória bastante para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

III - A singela alegação de que o documento «apareceu» não basta para se poder considerar que não foi imputável à parte vencida e ora Recorrente a omissão da oportuna junção do documento.

IV - A simples reprodução de um alegado documento que consubstanciaria uma declaração de dívida, não bastando, por si só, para determinar diferente decisão da causa em sentido favorável ao requerente, não é apta a fundamentar o recurso de revisão com fundamento na alínea c) do artigo 771.º do CPC.


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IV - Decisão

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo Recorrente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.


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Coimbra, 17 de Dezembro de 2014

Albertina Pedroso  ( Relatora )[11]

Carvalho Martins

Carlos Moreira

[1] Relatora: Albertina Pedroso;

1.º Adjunto: Carvalho Martins;

 2.º Adjunto: Carlos Moreira.
[2] Doravante abreviadamente designado CPC.
[3] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol III, págs. 93 e 94.
[4] Cfr. Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 307.
[5] Cfr. Ac. STJ de 9.1.1987, in BMJ 363.º, pág. 422.
[6] Cfr. Ac. STJ de 9.6.1987, in BMJ 368.º, pág. 485.
[7] Cfr. Alberto dos Reis, RLJ 85.º, pág. 300.
[8] Cfr. Ac. RE de 5.7.79, BMJ 292.º, pág. 449.
[9] Ac. STJ de 15.3.74, BMJ 235.º, pág. 219.
[10] Cfr. Ac. RC de 15.12.1992, Col. Jur. 1992, tomo 5.º, pág. 72.
[11] Texto elaborado e revisto pela Relatora.