Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/13.1GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: INQUÉRITO
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
DISPENSA DE PENA
DESPACHO DE CONCORDÂNCIA
IRRECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 01/22/2014
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU 1º J CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 280º Nº 1 E 399º CPP
Sumário: 1. - O despacho judicial de concordância com o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, é um ato não decisório do juiz de instrução que constitui uma mera formalidade essencial de controlo da legalidade da futura decisão de arquivamento do Ministério Público, a proferir nos termos do artº. 280º, nº 1 do C. Processo Penal;

2. - Não sendo um ato decisório do juiz, o despacho de concordância não é recorrível.

Decisão Texto Integral: Decisão Sumária

[Arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena]


I

1. No inquérito nº 148/13.1GCVIS, que corre teremos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca de Viseu, a Digna Magistrada do Ministério Público, por entender que, face à verificação em concreto os pressupostos da dispensa de pena previstos nos arts. 74º, nº 1 e 3 e 143º, nº 3, a), ambos do C. Penal, deveria ser decidido o arquivamento do inquérito, nos termos do art. 280º, nº 1 do C. Processo Penal, determinou que os autos fossem conclusos à Mma. Juíza de instrução, a fim de esta manifestar a sua concordância, ou não, com o arquivamento.

Em 28 de Maio de 2013 a Mma. Juíza de instrução proferiu despacho, manifestando a sua concordância quanto à posição do Ministério Público no sentido do arquivamento do inquérito.

Por despacho de 3 de Junho de 2013, a Digna Magistrada do Ministério Público ordenou o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no art. 280º, nº 1 do C. Processo Penal.   

Em 25 de Junho de 2013 o ofendido A... requereu a sua constituição como assistente, que foi deferida por despacho de 19 de Setembro de 2013.  


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            Também em 25 de Junho de 2013, inconformado com o despacho da Mma. Juíza de instrução de 28 de Maio de 2013, o ofendido A... dele interpôs recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            “ (…).

            1 – Nos serviços do Ministério Publico do Tribunal de Viseu, correu seus termos o inquérito nº 148/13.1GCVIS, no qual foi constituído arguido B....

2 – Findo o inquérito, a digna magistrada do M.P. considerou verificado o condicionalismo de aplicação de dispensa de pena nos termos do disposto no nº 3 do artigo 143º do C.P. e determinou o arquivamento dos autos, ordenando que os mesmos fossem conclusos à Mª juiz de instrução criminal, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 280º, nº 1 do C.P.P.

3 – A Mª juíza, por entender que se encontram reunidos os pressupostos necessários à dispensa da pena, deu a sua concordância a tal arquivamento.

4 – No entendimento do Recorrente, não se verifica o condicionalismo da alínea a) do artigo 143º nº 3 do C.P. pelo que a Mª juiz devia ter proferido despacho de não concordância com o arquivamento do processo nos termos do artigo 280º do C.P.P. Pois que,

5 – Dos elementos constantes dos presentes autos resulta suficientemente indiciado que o arguido Mauro, após um desentendimento com o denunciante A..., agrediu este de forma bárbara e traiçoeira, causando-lhe lesões graves.

6 – Do depoimento do ora Recorrente e das testemunhas resulta que o arguido B...no exterior do estabelecimento onde se encontravam a disputar um torneio de sueca, o agrediu violentamente com um taco de baseball.

                7 – Do relatório médico de fls. 8 a 11, inclusive, dos presentes autos, resulta que o ora recorrente sofreu lesões, nomeadamente contusão da parede torácica, trauma da coluna cervical, dorsal, braço direito e tórax.

8 – Encontra-se fortemente indiciado que as referidas lesões resultaram da agressão perpetrada pelo arguido Mauro.

9 – Não houve qualquer reciprocidade de agressões.

10 – Na interpretação que se deve fazer das declarações prestadas nos autos, sustentadas nos relatórios médicos juntos, não é plausível enquadrar os factos na ocorrência de agressões mútuas.

11 – Em termos indiciários afigura-se de todo plausível que as lesões sofridas pelo ora recorrente e documentadas nos relatórios médicos junto aos autos tenham resultado da agressão perpetrada pelo arguido com um taco de baseball.

12 – Destarte, não se verifica o condicionalismo da alínea a) do artigo 143º nº 3 do Código Penal, pelo que a Mª juiz devia ter proferido despacho de não concordância com o arquivamento do processo nos termos do artigo 280º do C.P.P.

13 – Salvo o devido respeito por opinião contrária, não se verificam os pressupostos de que o artigo 74º nº 1 do C.P. faz depender a aplicação do artigo 280º do C.P.P.

14 – Com efeito, o que resulta suficientemente indiciado nos autos é que o arguido B...seguiu o ora Recorrente para o exterior do estabelecimento onde ambos se encontravam,

15 – E de forma traiçoeira agrediu-o pelas costas, colocando o Recorrente numa situação de total impossibilidade de se defender, utilizando para o efeito um meio especialmente perigoso (taco de baseball) susceptível de causar lesões graves ao recorrente, o que veio efetivamente a suceder.

16 – Agiu o arguido com o claro propósito de molestar fisicamente e de forma grave o Recorrente,

17 – Pelo que não se pode considerar a sua culpa diminuta.

18 – Razão pela qual, não se encontra preenchida a alínea a) do artigo 74º do Código Penal.

19 – Em virtude da referida agressão o recorrente sofreu danos patrimoniais e danos não patrimoniais que não foram reparados.

20 – Resulta dos relatórios médicos (fls.) que em consequência dos factos destes autos, o recorrente sofreu contusão da parede torácica, trauma da coluna cervical, dorsal, braço direito e tórax.

21 – Em consequência das referidas lesões, o recorrente padeceu de um período de doença de 41 dias com incapacidade para o trabalho profissional cfr documento junto aos autos a fls. 44 a 50.

22 – O que implicou para o recorrente impedimento de exercer a sua actividade profissional durante um período de 7 semanas.

23 – O ora recorrente encontra-se emigrado na Suíça onde aufere um salário semanal de 1000 € (mil euros), tendo deixado de auferir em virtude da agressão de foi vítima a quantia global de 7000 € (sete mil euros).

24 – A acrescer ao referido dano, o arguido suportou ainda várias despesas médicas e medicamentosas no decurso do período que decorreu ao seu restabelecimento.

                25 – Em face dos danos patrimoniais sofridos é óbvio que não nos encontramos perante um bagatela penal.

26 – Por outro lado, as lesões, dores e outros sofrimentos que sobressaem indiciadas dos exames médicos constituem danos de natureza não patrimonial para o recorrente que merecem a tutela do direito.

27 – Assim, e porque tais danos não foram ressarcidos, não se encontra verificada a previsão da alínea b) ao artigo 74º do C.P..

28 – Ao ter prestado concordância com o arquivamento proposto pelo Ministério Público, o despacho ora em recurso violou as disposições legais constantes do artigo 280º, n.º 1 do C.P.P. e das alíneas a) e b) do n.º 1 e do n.º 3 artigo 74º do C.P..

Nestes termos

E nos demais de Direito, e sempre com o sempre Mui Douto suprimento dos Excelentíssimos Senhores Desembargadores, deve o despacho ora em recurso ser revogado e ordenada a sua substituição por outro que não dê concordância à decisão de arquivamento do inquérito no que respeita ao arguido B....

Fazendo-se assim JUSTIÇA.

            (…)”.


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            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, alegando, como questão prévia, não ser recorrível o despacho de concordância da Mma. Juíza de instrução, pois que não é um acto decisório, mas mero pressuposto processual do arquivamento, sendo este da competência do Ministério Público, e alegando, quanto ao fundo da questão, que está suficientemente indiciada a reciprocidade das agressões sem que saiba quem as iniciou e o escorregar do ofendido numas escadas, não havendo qualquer referência, para além da feita na participação, a agressão com taco de basebol, e não tendo sido observadas lesões, quer na ficha clínica, quer no relatório pericial, concluiu pela verificação dos pressupostos da dispensa de pena e consequente não provimento do recurso.


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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, inclinando-se para a irrecorribilidade do despacho sindicado, acompanhando a posição do Ministério Público quanto á verificação dos pressupostos da dispensa de pena, e concluiu pela manutenção do despacho em crise.


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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 


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II


            1. No actual quadro processual penal, o Ministério Público é o dominus do inquérito e este, como é sabido, constitui a única e verdadeira fase de investigação criminal. Com efeito, dispõe o art. 262º, nº 1 do C. Processo Penal que, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, cabendo a sua direcção ao Ministério Público (art. 263º, nº 1 do mesmo código). 

            Neste figurino, no âmbito do inquérito, ao juiz de instrução compete apenas assegurar que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos são respeitados pelas medidas investigatórias que com eles possam interferir, actuando sempre de forma circunstancial, tipificada e provocada.

            A abertura do inquérito dá-se logo que haja notícia de um crime (art. 262º, nº 2 do C. Processo Penal) isto sem prejuízo das regras relativas à queixa nos crimes semi-públicos e das regras relativas à queixa e à constituição de assistente nos crimes particulares. No seu desenvolvimento são realizados os actos e as diligências necessárias à investigação dos factos, dos seus agentes e das provas. E o seu encerramento ocorre por despacho de arquivamento, por despacho de acusação do Ministério Público, pela notificação ao assistente nos crimes particulares, ou pela suspensão provisória do processo.    

            Para a questão sub judice releva o arquivamento em caso de dispensa de pena, regulado no art. 280º do C. Processo Penal. Dispõe este artigo:

            1 – Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa.

            2 – Se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena.

            3 – A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação.    

            O transcrito artigo admite o arquivamento do processo em dois momentos processuais distintos: no inquérito e na instrução.

            No inquérito, a decisão de arquivar o processo é da competência do Ministério Público, e tem como pressupostos:

- A recolha de indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente;

- A expressa previsão legal da possibilidade da dispensa da pena para esse crime;

- A verificação dos pressupostos da dispensa da pena; e

- A concordância do juiz de instrução.

Na instrução, a decisão de arquivar o processo é da competência do juiz de instrução, e tem como pressupostos:

- A dedução de acusação;

- A expressa previsão legal da possibilidade da dispensa da pena para esse crime;

- A verificação dos pressupostos da dispensa da pena; e

- A concordância do Ministério Público e do arguido.

A decisão de arquivamento quanto ao juízo de oportunidade do arquivamento, não é, nos termos do nº 3, susceptível de impugnação, independentemente de ter sido proferida pelo Ministério Público ou pelo juiz de instrução.

Mas sê-lo-á já, com fundamento em violação de lei designadamente, quando o impugnante entenda não estarem verificados os pressupostos substantivos da dispensa da pena. Nestes casos, se o despacho de arquivamento tiver sido proferido pelo Ministério Público, a sua impugnação revestirá a forma de reclamação hierárquica, se tiver sido proferido pelo juiz de instrução, revestirá a forma de recurso ordinário.   

Posto isto.

2. Nos autos, o despacho de arquivamento foi proferido pela Digna Magistrada do Ministério Público, evidentemente, na fase do inquérito, depois de a Mma. Juíza de instrução ter manifestado a sua concordância.

O recorrente, que entretanto se constituiu assistente, com fundamento na não verificação dos pressupostos substantivos da dispensa da pena, recorreu, não do despacho de arquivamento do Ministério Público – sendo certo que não o poderia fazer pois das decisões do Ministério Público não cabe recurso – mas da prévia manifestação de concordância da Mma. Juíza de instrução.

Será recorrível esta concordância judicial, este despacho de concordância? Cremos que não.

O princípio geral encontra-se estabelecido no art. 399º do C. Processo Penal segundo o qual, é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

O art. 97º do mesmo código define sentença como o acto decisório do juiz que conhece a final do objecto do processo, despacho como o acto decisório do juiz que conhece de qualquer questão interlocutória ou põe termo ao processo sem conhecer do objecto do mesmo, e acórdão como os actos decisórios, sentenças ou despachos, proferidos por um tribunal colegial. 

Assim, só os actos decisórios do juiz são recorríveis. E só são actos judiciais decisórios os que tiverem por finalidade ou o conhecimento, a final, do objecto do processo, ou a sua finalização, ainda que sem tomar conhecimento do respectivo objecto (Acórdão nº 16/2009, DR, I, nº 248, de 24 de Dezembro de 2009).  

Na situação de que cuidamos, a decisão que põe termo à relação jurídica processual penal, mesmo não conhecendo do mérito, é a decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público, nos termos do art. 280º, nº 1 do C. Processo Penal e não, a concordância judicial. Esta assume, formalmente, a categoria de «despacho», de despacho de concordância mas, substancialmente, não é um acto decisório [nem todos os actos do juiz são actos decisórios], pois não extingue aquela relação. A concordância judicial é apenas uma formalidade essencial, de conformação ou de controlo da legalidade da projectada decisão do Ministério Público.

Em síntese conclusiva:

- O despacho judicial de concordância com o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, é um acto não decisório do juiz de instrução que constitui uma mera formalidade essencial de controlo da legalidade da futura decisão de arquivamento do Ministério Público, a proferir nos termos do art. 280º, nº 1 do C. Processo Penal;

- Não sendo um acto decisório do juiz, o despacho de concordância não é recorrível.   

3. Dispõe o art. 417º, nº 6, b) do C. Processo Penal que, após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que o recurso dever ser rejeitado.

Nos termos do art. 420º, nº 1, b) do mesmo código, o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do nº 2 do art. 414º. E dispõe este nº 2:

O recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível, quando for interposto fora de tempo, quando o recorrente não reunir as condições necessárias para recorrer, quando falte a motivação ou, faltando as conclusões, quando o recorrente não as apresente em 10 dias após ser convidado a fazê-lo.

Desta forma, o recurso do assistente foi interposto de decisão irrecorrível, mas o despacho que o admitiu, não vincula o tribunal ad quem (art. 414º, nº 3 do C. Processo Penal).

Impõe-se pois a sua rejeição, por decisão sumária, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414º, nº 2, 420º, nº 1, b) e 417º, nº 6, b), todos do C. Processo Penal. 


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III


            Nos termos e pelos fundamentos expostos, rejeito o recurso do assistente, por ser irrecorrível o despacho de concordância impugnado.

            Custas do incidente pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 420º, nº 3 e 513º, nº 3, ambos do C. Processo Penal).


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Coimbra, 22 de Janeiro de 2014

 (Heitor Vasques Osório)