Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
44/18.6GASEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS;
PROCESSO SUMÁRIO
Data do Acordão: 09/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (J C GENÉRICA DE SEIA – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1.º, 303.º, 359.º, 381.º E 389 DO CPP
Sumário:
I – Um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.
II – O art.º 359.º rege para a alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1).
III – Nos autos, a Magistrada do Ministério Público requereu a submissão do arguido a julgamento, em processo sumário, imputando-lhe os factos constantes do auto de notícia, com o aditamento que lavrou a fls. 38 e 39.
IV - No decurso da audiência de julgamento, a Magistrada do Ministério Público, por entender que da prova produzida até àquele momento resultavam indícios de o arguido ter praticado outros factos passíveis de integrar distinto crime de desobediência, requereu a entrega de certidão das peças processuais que indicou, com a finalidade de “investigar a prática de tais factos”.
V – Em despacho proferido, considerou-se que tais factos constituíam uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e em consequência foi o arguido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 359.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. Na sequência de tal notificação, o arguido requereu a concessão de prazo para preparação da defesa, o que foi deferido.
VI - A sujeição do arguido a julgamento por esta distinta factualidade apenas poderia ocorrer em processo sumário desde que verificados os pressupostos constantes do n.º 1, do art.º 381, do CPP, isto é, acaso ele tivesse sido detido em flagrante delito, nos termos descritos nas suas als. a) ou b); tivesse sido lavrado o respectivo auto de notícia e observados os demais procedimentos previstos, designadamente a dedução de acusação pelo Ministério Público nos termos estabelecidos no subsequente art.º 389.º.
VII - Não tendo o arguido/recorrente sido detido em flagrante delito daqueles factos, mas existindo notícia da prática da factualidade invocada, caberia ter-se instaurado inquérito conducente a tal averiguação, para eventual e subsequente acusação para submissão a julgamento sob outra forma de processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. No âmbito dos autos supra epigrafados, o arguido A, entretanto já mais identificado, foi presente em juízo para julgamento, sob a aludida forma de processo sumário, porquanto alegadamente incurso na prática de factos susceptíveis de o instituírem enquanto autor material, na forma consumada, e em concurso real de infracções, de um crime de desobediência, p.p. através das disposições conjugadas dos art.ºs 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c), ambos do Código Penal Diploma de que serão doravante os precitos a citar, quando sem menção expressa da origem., e 152.º, n.º 3, do Código da Estrada, bem como de dois crimes de injúria agravada, estes p.p.p. disposições conjugadas dos art.ºs 181.º e 184.º, por referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l) [fls. 38/9].
Na subsequente tramitação processual, na sessão de julgamento realizada no dia 2018.02.15, foi pelo Ministério Público apresentado um requerimento, cujo teor é como segue [Resulta da prova produzida em audiência de julgamento a prática pelo arguido de um outro crime de desobediência, por ter conduzido o seu veículo automóvel antes de decorridas 12 horas sobre a advertência para o não fazer, impondo-se investigar a prática de tais factos.-
Nestes termos, promovo que se extraia certidão do auto de notícia e do expediente que o acompanha, da presente ata e das declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas militares da GNR., a entregar através de suporte digital a fim de ser instaurado o competente procedimento criminal.-], e sobre o qual recaiu despacho judicial, que igualmente se transcreve [No que concerne à extração da certidão nos termos promovidos tomaremos oportunamente posição.-] [fls. 46 v.º/47].
Prosseguindo os autos seus termos, na sessão seguinte, realizada a 2018.02.16, ponderando a questão assim suscitada, o Mmo. Juiz que presidia à mesma, despachou com o teor que idênticamente reproduzimos [Da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, designadamente das declarações do próprio arguido e das testemunhas militares da Guarda Nacional Republicana, a saber, …, pondera o Tribunal considerar provados, além de outros, os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, para o qual remete a acusação foi o arguido devidamente notificado pelos militares da GNR de que estava impedido de conduzir durante as 12 horas seguintes, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, do que ficou ciente;
b) Não obstante, o arguido não se absteve de conduzir o aludido veículo na via pública naquele período, ciente de que desrespeitava uma ordem que lhe foi pessoal e regularmente transmitida e que sabia ser legítima e provinda de autoridade com competência para a emitir.
c) Em todas as circunstâncias o arguido agiu de modo voluntário e consciente bem sabendo que as relatadas actuações o faziam incorrer em responsabilidade criminal.
A prova dos referidos factos constitui no nosso entendimento uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, sendo que deles decorrerá também uma alteração da qualificação jurídica, na medida em que será também imputada ao arguido a prática de um crime de desobediência p.p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal.-
Pelo exposto notifique o arguido nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º, n.º 3 e n.º 4 do Código Processo Penal.-], sucedendo que ante tal despacho o arguido declarou não prescindir do prazo para organizar a defesa, o que lhe foi efectivamente facultado [fls. 48/49].
Concluído finalmente o contraditório, veio a ser proferida sentença que, para além do mais por ora irrelevante, determinou a condenação do visado arguido pelo prática dos ilícitos seguintes:
. De um crime de desobediência p. p.p. art.º 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o montante de € 960,00 (novecentos e sessenta euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 15 (quinze) meses.
. De um crime desobediência qualificada p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, al. a) e 2 (com referência ao art.º 154.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada), na pena de 220 (duzentos e vinte dias) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz o montante total de € 1.760,00 (mil setecentos e sessenta euros);
. De dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelos art.ºs 181.º e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária € 8,00 (oito euros) euros, o que perfaz o montante de € 960,00 (novecentos e sessenta euros) por cada um dos crimes;
. Em cúmulo jurídico imediatamente realizado sobre tais penas parcelares, viu-se o arguido condenado na pena única de 340 (trezentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), ou seja, na pena de € de 2.720,00 (dois mil setecentos e vinte euros), e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de 15 (quinze) meses.
1.2. Porque discordando do veredicto emitido, interpôs recurso o arguido, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões (transcrição parcial):
« (...)
3. Para a condenação pelo primeiro dos crimes, (...) julgou o Tribunal a quo considerar provados os pontos 3, 4, 5, 6, 7, 5 (sic), 10 e 11, como constam da fundamentação (II.A. FACTOS PROVADOS).
4. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento, à luz das regras da sua apreciação, impunha que tais pontos da matéria de facto antes se tivessem dado como não provados.
5. Em especial no que concerne às declarações do arguido, onde de início não deixou de destacar “É a palavra dos senhores Agentes contra a minha palavra (…) eu estou aqui só a dizer o que se passou na realidade. Mais do que isso não posso fazer”, repetindo-o a instâncias do seu defensor “É a minha palavra contra a de dois agentes”.
6. Revelador da sua personalidade e do comprometimento com a verdade material dos factos.
7. O arguido de forma firme referiu que manteve sempre “uma condução normal para uma pessoa que não tinha ingerido bebidas alcoólicas ou consumido estupefaciente”, ao contrário da imagem feita passar no auto de notícia.
8. Não correspondendo à realidade que tivesse obstado à sua identificação ou dos dados do veículo que conduzira.
9. Na verdade, após tal ter decorrido sem qualquer aspecto ou facto anormal, o Agente …, dirigiu-se ao arguido, como este frisou ao Tribunal, com a seguinte expressão: “Salta mas é lá daí, vem mas é soprar ao balão e vais ver como isto vai contar”.
10. Tal incutiu no arguido um sentimento de forte atropelo aos seus direitos, enquanto pessoa e administrado.
11. Tal como narrado perante o Meritíssimo Juiz: “Senti a minha honra ofendida”; “Senti-me com receio”; “Abordagem delegante e agressiva”.
12. Após a ordem de detenção e encaminhamento para o Posto da Guarda, o arguido aí se disponibilizou a efectuar o teste de alcoolemia, pedindo como garantia dos seus direitos que fosse levada a efeito a despistagem, posterior, por análise sanguínea.
13. No entanto, como o arguido bem expressou os agentes retorquiram “(…) isso era o que mais faltava”.
14. Já os depoimentos dos militares da GNR revelam-se parciais, dirigidos unicamente com o propósito de “salvação” do respectivo auto de notícia, por si elaborado, sem correspondência com a verdade dos factos e como falsa cobertura da excessiva e injustificada, quiçá adrenalina e descontrole evidenciados.
15. Antes se impunha que o douto Tribunal, ponderando toda a factualidade à luz das regras da lógica e da experiência comum, concluísse perentoriamente que ordem de paragem, e actos posteriores, tomados pelos agentes infringiram o princípio da legalidade, o princípio da proibição do excesso, o princípio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o princípio da boa-fé, o princípio da oportunidade na actuação policial.
16. Dando-se assim necessariamente provado que com a expressão proferida ao arguido, rectius “Salta mas é lá daí, vem mas é soprar ao balão e vais ver como isto vai contar”, pelo agente participante, causou no arguido uma ofensa da sua honra, bem como hesitação e absoluta desconfiança quanto ao eventual resultado do teste.
17. Mais se devendo julgar provado que o arguido requereu a realização do teste de despistagem de álcool no sangue, através do método do ar expirado, com a garantia de contra-análise ao sangue, sendo tal intenção recusada pelos militares.
18. Daí a segurança que imprimiu no arguido, o facto de só com um controlo sanguíneo de despistagem, feito em estabelecimento hospitalar, garantir a sua posição em face da concreta actuação dos militares.
19. A conduta do arguido – de recusa de despistagem de álcool no sangue, através do método do ar expirado – assumiu-se como a única forma de zelar pela sua situação e interesses jurídicos.
20. Agiu no caso concreto, em legítima defesa.
21. Em consonância com o plasmado nas normas dos arts. 31.º, n.º 1, n.º 2, alínea a) e 32.º do C.P.
22. Assim se devendo excluir a ilicitude de tal facto, e com isso absolver-se o arguido da pena principal que o condenou, bem como da pena acessória de quinze meses de proibição de condução de veículos motorizados.
23. Sob pena de violação do princípio da culpa.
24. De todo o modo, mesmo se assim se não entender, sempre observe a condenação por tal crime o disposto no art.º 72.º, do C.P. Designadamente, atento tudo quanto se disse, opere aplicação a alínea b), do n.º 2 do referido artigo, “Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida”.
25. É que, mesmo a considerar provada a factualidade impugnada, sempre a determinação da medida concreta da pena excede os cânones previstos nos arts. 40.º e 71.º do C.P.
26. Em especial, no que tange à própria pena acessória aplicada, a qual se considera, logo em tese, desproporcional.
27. Para a condenação por dois crimes de injúria agravada, constante na alínea c) da primeira conclusão, julgou o Tribunal a quo considerar provados os pontos 8, 9, 12, como constam da fundamentação (II.A. FACTOS PROVADOS).
28. Igualmente, foi o Tribunal a quo levado contra as regras de apreciação da prova.
29. In casu, conforme resultou de toda a produção da prova, bem se atenta que tanto as expressões alegadamente proferidas como outras inicialmente constantes do auto de notícia são absolutamente falsas e sem contexto possível.
30. Antes devendo considerar-se que o arguido falou com os agentes de uma forma educada e civilizada, como seu apanágio e espelho do que se assistiu em Julgamento.
31. É que o próprio arguido bem destacou que tais expressões jamais poderiam ter sido por si verbalizadas atendendo ao facto de as mesmas poderem potenciar até, no limite, ofensa da sua integridade física por parte dos militares, já que houve um momento em que se sentiu com receio, destacando estar sozinho.
32. Conforme bem notaram as testemunhas, designadamente … o arguido é uma pessoa respeitadora, atenciosa e justa, sempre foi uma pessoa politicamente correcta.
33. Ainda no que tange a expressões inicialmente imputadas ao arguido, deveria o próprio Tribunal a quo ter, desde logo, concluído que as mesmas não passam de uma construção falsa.
34. Na prova documental, afere-se do auto de notícia que já nas instalações da Guarda, o arguido proferiu os seguintes termos: “Vocês vejam bem o decreto de lei, pois se falhar um pentelho os meus advogados que são XPTO vão fazer-vos a vida negra! Vocês ainda vão ter que me pagar 300 mil euros!” Bem como, igualmente, terá dito o arguido, o seguinte: “ Onde estão as chaves do meu BMW? Você roubou-me a chave do carro! (…) Vocês sabem quanto é que isto custa? Custa 130 mil euros! Você não tem dinheiro para isto, seu badamerda! Você é um teso!”.
35. Na verdade, além de falsas, comportam uma perversidade tamanha e antes deveriam ter elucidado o Tribunal a considerar todas as imputações feitas ao arguido como um verdadeiro embuste.
36. É que o vocábulo XPTO além de linguisticamente desapropriado, denuncia mera construção fantasiosa ou espaço aberto para futuro escrito que por esquecimento ficou para trás.
37. De igual forma, o veículo em causa nunca custou o valor de cento e trinta mil euros, não o tendo dito o arguido.
38. Antes tendo afirmado, em julgamento, que o mesmo (no estado de novo) custa oitenta mil euros.
39. Atenta a globalidade, outro sim deveria ter sido o entendimento do Tribunal a quo e em favor do arguido, rejeitando toda a falta de sentido que as expressões e imputações feitas ao arguido indiciam.
40. Para a condenação pelo último dos crimes, constante na alínea b) da primeira conclusão, julgou o Tribunal a quo considerar provados os pontos 13 a 15, como constam da fundamentação (II.A. FACTOS PROVADOS).
41. Neste sede teve o arguido oportunidade de contestar tal factualidade, conforme requerimento de fls. , entrado nos autos a 26.02.2018.
42. Sem que tivesse sido devidamente ponderado, não correspondendo, assim, à realidade que o arguido não tenha oferecido contestação, como se extrai da sentença.
43. Pugnando-se aqui expressamente pela verificação de uma Nulidade, nos termos e para efeitos do art.º 379.º, n.º 1, alínea a), por referência à norma do art.º 389.ºA, n.º 1, alínea a), do C.P.P.
44. O arguido não cometeu efectivamente mais este crime pelo qual foi condenado.
45. De todo o modo, analisada a douta sentença, constata-se que estamos quanto a este ponto diante o vício a que alude a alínea a), do n.º 2 do art.º 410.º, do C.P.P., maxime a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
46. Inexistindo nos autos qualquer elemento de prova cabal que assegure o que após o términus do expediente no posto da Guarda, tenha sido ele próprio a conduzir o veículo com a matrícula xx-xx-xx.
47. Perguntas basilares do quem é que? como é que? quando é que? onde é que? e porque é que se praticou o delito – o que é que? ficam ostensivamente sem resposta nem suporte probatório.
48. Nem tão pouco sequer se pode afirmar que o arguido terá sido devidamente notificado pelos militares da GNR de que estava impedido de conduzir durante as 12 horas seguintes, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada.
49. Havendo unicamente a prova, transversal às declarações do arguido e dos militares da GNR, que após o expediente foi o arguido transportado por elementos da Guarda até ao local da fiscalização.
50. Mesmo que assim se não entendesse, sempre o princípio in dúbio pro reo, decorrente da constitucional presunção de inocência, deveria ter aplicação.
51. O tipo objectivo do crime em causa, consiste no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente. Consumando-se com a prática do acto cuja omissão foi ordenada ou a omissão do acto cuja prática foi ordenada, exigindo-se quanto ao tipo subjectivo o dolo.
52. De todo o modo, mesmo que se admitisse que o arguido efectivamente assumira a condução do veículo, resulta da prova produzida e da experiência comum, que sempre lhe tivesse omitido uma regular comunicação de qualquer impedimento de conduzir nas doze horas seguintes.
53. O que sempre impediria a verificação de um dos elementos do tipo objectivo do crime em causa.
54. O que é facto é que, estranhando-se a presença de autoridades e/ou o dever de prevenção/não instigação de crimes, não ocorreu em nenhuma das suas modalidades uma aquisição da notícia desse crime com iguais medidas detentivas.
55. A Polícia tem de actuar de acordo com os princípios gerais vinculativos da administração pública, consagrados nos arts. 266.º e sgs., da Lei Fundamental, em conjugação com o disposto nos arts. 1.º, 3.º, 6.º, 9.º, do 12.º ao 23.º, do 24.º ao 79.º, ambos da C.R.P.
56. Está a Polícia, igualmente, sujeita ao princípio da boa-fé (cfr. n.º 2 do art.º 266.º, da C.R.P.).
57. Que é o espelho da lealdade no âmbito processual penal, que a Polícia deve materializar no labor da prevenção criminal.
58. Repita-se, não pode a Polícia determinar qualquer pessoa à prática de crimes, induzindo-o e instigando-o, sem o qual o crime não seria cometido.
59. In casu, mesmo que se provando o preenchimento do dito elemento objectivo do tipo incriminador, i.e., a ordem regularmente comunicada de impedimento de condução, sempre a actuação policial de levar um arguido ao local da fiscalização, local ermo e perto das 3H:00, consentindo, de qualquer forma, a condução pelo próprio, se apresentaria contrária à possibilidade de condenação por tal comportamento, por falta do elemento subjectivo de que depende.
60. Mesmo a fundamentação do Tribunal a quo não merece qualquer aceitação concreta, escapando ao múnus específico de que se reclama, maxime o conhecimento generalizado dos cidadãos portugueses sobre o ordenamento jurídico em causa em completa contradição de acção das próprias autoridades que a devem preservar.
61. Sob pena de clara afronta, designadamente, do princípio da culpa, enquanto verdadeiro pressuposto e limite da pena criminal.
62. Com o devido respeito, por isto mas por isto tudo, destaca-se que a sentença proferida pelo Tribunal a quo violou o art.º 32.º, da C.R.P., os arts. 125.º, 127.º, 389.º-A, n.º1, alínea a), do C.P.P., arts. 14.º, 31.º, n.º1 e n.º2, alínea a), 32.º, 40.º, 71.º e 72.º, do C.P.»
Terminou pedindo a revogação da sentença, declarando-a nula desde logo, nos termos e por efeito do disposto nos arts. 389.º-A, n.º 1, al. a) e 379.º, n.º 1, al. a), ambos do C.P.P., e sempre absolvendo-se o arguido da prática de todos crimes pelos quais foi condenado por falta dos pressupostos objectivos e subjectivos de que depende a punição, ou caso assim se não entenda, o que por mera hipótese se equaciona, sempre se atenue especialmente a pena parcelar aplicada ao crime de desobediência, punido com pena principal e pena acessória, ou ainda que assim se não considere se tenha tal medida concreta aplicada por desproporcional, reduzindo-a, bem como no que versa a todas as penas parcelares aplicadas, conformadoras da pena única (sic).
1.3. Proferido despacho admitindo o recurso e fixando o seu regime de subida e efeito, notificado para tanto, na 1.ª instância o Ministério Público respondeu à motivação respectiva, concluindo que o mesmo não merece provimento, fundado na seguinte síntese argumentativa (transcrição):
«1) A sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1 al. a), por referência ao art.º 389.º - A n.º 1 al. a) do C. P. Penal, já que contém os factos dados como provados e não provados, bem como a respectiva fundamentação de facto, sendo certo que o arguido, no seu requerimento de defesa, apresentado na sequência da alteração substancial dos factos que lhe foi comunicada, não enumera qualquer facto, limitando-se a argumentar quanto a questões de prova e jurídicas.
2) O Tribunal fez uma correcta valoração da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sendo certo que o arguido confessou os factos constitutivos da prática dos crimes de desobediência, pelos quais veio a ser condenado, quer quando admitiu ter-se recusado a fazer o teste de alcoolemia, quer quanto referiu que conduziu o seu veículo automóvel, apesar de saber que não o poderia fazer no prazo de 12 horas seguidas à respectiva notificação.
3) É verdade que o arguido apresentou as suas justificações para a sua actuação, mas estas não lograram convencer o Tribunal e, de todo o modo, não teriam apetência para integrar qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
4) Da análise efectuada pelo Tribunal “a quo”, na sua fundamentação de facto, verifica-se que a versão apresentada pelo arguido quanto ao modo como se desenvolveram os factos foi infirmada pelo teor das testemunhas …, militares da Guarda Nacional República que procederam à fiscalização do arguido, que depuseram de modo que se afigurou isento, espontâneo e credível, para além de terem suporte nas regras da experiência comum e não terem qualquer interesse no desfecho do processo.
5) A recusa a submeter-se ao teste de álcool no sangue não é um meio necessário para repelir qualquer acto praticado pelos militares da GNR, que de todo o modo também não configura qualquer agressão, muito menos ilícita, dos interesses juridicamente protegidos do arguido, nomeadamente na hipótese (não provada) de estes se dirigiram a si dizendo: “salta daí, bem mas é soprar ao balão e vais ver como isto vai contar”,
6) O crime de desobediência consuma-se no momento em que o arguido se recusa a submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue, quando é abordado pelos militares da GNR, sendo a postura adoptada posteriormente pelo arguido irrelevante no que concerne à prática do ilícito (não se tendo provado que este tivesse revelado vontade de se submeter ao exame de pesquisa de álcool no sangue, por qualquer via, ou em qualquer momento).
7) Os militares da GNR, ao levarem o arguido até junto do seu veículo automóvel, não o determinaram à condução do mesmo, nem era essa a sua vontade, nem a sua actuação configura qualquer acto de instigação.
8) O Tribunal “a quo” fez uma apreciação criteriosa das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, patenteando a motivação da sua decisão, de modo a dar como provados os factos elencados na matéria assente, constitutivos da prática dos crimes pelos quais o arguido foi correctamente condenado.»
1.4. Cumpridas as formalidades devidas, os autos foram remetidos para esta Relação, onde a Exma. Procuradora-geral Adjunta, com vista nos termos do art.º 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer conducente à emergência de uma questão prévia, qual seja da nulidade prevista no art.º 119.º, al. f), do Código de Processo Penal, determinante da nulidade do julgamento que se imporá por isso agora decretar.
1.5. Acatado o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do indicado diploma adjectivo penal, o arguido/recorrente não apresentou qualquer resposta.
1.6. Efectuado exame preliminar, além da assim suscitada pela Exma. PGA, não se descortinou a emergência de qualquer circunstância que obstasse ao prosseguimento do recurso e seu conhecimento de meritis; por isso, determinou-se, consequentemente, a recolha de vistos - o que sucedeu - e submissão a conferência.
Dos trabalhos desta emerge, então, a presente apreciação e decisão.
*
II – Fundamentação.
2.1. A fundamentação de facto da sentença sob recurso é como segue (transcrição):
«II.A. FACTOS PROVADOS
Da discussão e julgamento resultou provada a seguinte factualidade pertinente para a decisão final:
1 - No dia 31.01.2018, cerca das 01h30m, o arguido A conduzia o veículo ligeiro, com a matrícula XX-XX-XX, da marca BMW, na Estrada Nacional n.º …, junto à rotunda de …, em ….
2 - Pela mesma via, nas referidas circunstâncias de tempo, em serviço de patrulha e devidamente uniformizados, circulavam …, acompanhado pela testemunha …, ambos militares da GNR a exercerem funções no posto territorial de ….
3 - Porquanto o arguido se encontrava a conduzir em zig-zag os referidos militares da GNR aproximaram-se do arguido, dando-lhe ordem de paragem através de sinais luminosos, e abordaram-no.
4 - Seguidamente foi solicitado ao arguido a sua carta de condução e documento de identificação, ao que aquele só exibiu após alguma insistência.
5 - Acto contínuo foi solicitado ao arguido o certificado de matrícula do veículo, ao que aquele, dirigindo-se a um dos militares da GNR, retorquiu “vai tu procurá-lo, eu agora é que sei disso? Deve estar para aí”.
6 - Após, o militar da GNR … solicitou ao arguido que efectuasse o teste de despistagem de álcool no sangue, através do método do ar expirado, para o que lhe foi ordenado que efectuasse o devido sopro, o que o arguido recusou.
7 - Perante tal, o arguido foi advertido de que tal comportamento o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, mas manteve a recusa.
5 - Em face da conduta do arguido foi-lhe dada voz de detenção.
8 - Em seguida o ora arguido, na presença dos dois militares da GRN, dirigiu-se ao militar da GNR … proferindo, além do mais, as seguintes expressões: “Quem és tu seu badamerda para me prenderes? Sabes quem eu sou? Olha que sou Maçon! Vou destruir-te a vida toda, nunca mais vais ser ninguém na vida! Vocês são uns burros! Sabem o que estão a fazer? Vois sois uns burros.”.
9 - Já nas instalações da GNR, ao arguido apodou o militar da GNR … de “teso” e “badamerda”.
10 - Não obstante o arguido saber que estava obrigado a sujeitar-se à realização do teste de alcoolemia, pois tinha sido abordado enquanto conduzia por agentes policiais, recusou-se a efectuá-lo, mesmo depois de ter sido informado da relevância criminal da sua conduta.
11 - O arguido quis agir como agiu, não efectuando o teste de álcool no sangue, apesar de saber que a tal estava obrigado e quais as consequências criminais dessa sua conduta.
12 - Ao proferir as palavras e expressões constantes do auto de notícia, dirigindo-se aos militares da Guarda Nacional Republicana (…), o arguido agiu ainda com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração pessoal e profissional dos mesmos, bem sabendo que estava perante de agentes da autoridade, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.
Mais se provou:
13 - Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia, para o qual remete a acusação foi o arguido devidamente notificado pelos militares da GNR de que estava impedido de conduzir durante as 12 horas seguintes, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, do que ficou ciente.
14 - Não obstante, o arguido não se absteve de conduzir o aludido veículo na via pública naquele período, ciente de que desrespeitava uma ordem que lhe foi pessoal e regularmente transmitida e que sabia ser legítima e provinda de autoridade com competência para a emitir.
15 - Em todas as circunstâncias o arguido agiu de modo voluntário e consciente bem sabendo que as relatadas actuações o faziam incorrer em responsabilidade criminal.
Mais se provou que:
16 - O arguido é engenheiro agrónomo e aufere um rendimento não concretamente apurado, mas declarado de 700,00 €.
17 - É divorciado e vive sozinho.
18 - Tem um filho de 12 anos de idade cuja guarda se encontra confiada à progenitora, ao qual paga uma prestação de alimentos no montante mensal de 255,00 €.
19 - Vive em casa cedida por uma irmã.
17 - Tem como habilitações literárias a licenciatura em engenharia e agro-pecuária.
20 - O arguido já sofreu as seguintes condenações:
20.1 - Por decisão de 05/06/2012, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal de …, 2.º Juízo, 3.ª Secção, no Processo n.º 81/12.4NLSB, foi condenado na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 6,00€ e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de 4 meses pela prática, em 19.04.2009, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do C.Penal;
20.2 - Por decisão de 04/07/2012, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal Judicial de … no Processo n.º 88/12.1GTSTR, foi condenado na pena de 120 dias de multa, pela prática, em 02.06.2012 de um crime de condução perigosa, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do C.Penal, e um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do C.Penal, respectivamente, nas penas de 120 dias e 80 dias de multa à taxa diária de 10,00 € e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo prazo de 10 meses.
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II.B. FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem factos por provar.
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II.C. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
A convicção do Tribunal radicou-se nos depoimentos produzidos em audiência de julgamento e nos documentos juntos aos autos, nos termos em que passamos a consignar.
O arguido A negou que tivesse proferido as expressões que lhe são imputadas, admitindo todavia que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar constantes da acusação, recusou-se a efectuar o teste de alcoolemia tal como lhe foi ordenado (alegando que já nas instalações da GNR admitiu a possibilidade de realização do teste, mas com a condição de lhe ser facultada a possibilidade de realizar a contraprova, o que lhe foi negado).
Referiu que se recusou num primeiro momento a efectuar o teste por se sentir indignado com a actuação dos militares da GNR, que o abordaram com arrogância.
A sua versão foi contudo infirmada pelo teor das testemunhas …, militares da Guarda Nacional República que procederam à fiscalização do arguido. Depuseram de modo que se nos afigurou isento, espontâneo e credível, depoimentos assentes na segurança da verdade relatada. Os seus depoimentos têm também suporte nas regras da experiência comum.
Destes depoimentos resulta que nas circunstâncias de tempo modo e lugar, quando se encontravam de serviço patrulha, avistaram o arguido a conduzir o veículo em causa, numa condução irregular. Numa primeira abordagem à viatura em que seguia o arguido, este não parou, sendo que só após a insistência através de sinais luminosos e após colocarem o veículo caracterizado em que seguiam ao lado do automóvel do arguido é que este anuiu em imobilizar a viatura.
A partir daí, os factos evoluíram nos termos provados.
Se é um facto que o arguido confessou a recusa a efectuar o teste de alcoolemia (de realçar que este militares negaram, com firmeza, que este se tivesse prontificado a realizá-lo em qualquer momento), quanto às expressões dirigidas aos militares da GNR, também nada nos motiva a admitir que estas testemunhas tenham faltado à verdade. Nem pelas regras da experiência comum se vislumbraria qualquer interesse nisso: tal como foi admitido pelo arguido e pelas testemunhas vindas de referir, não se conheciam entre si, de onde não se percebe o motivo pelo qual teriam os senhores militares da GNR inventado tal versão como se estivessem a arquitectar um plano com vista a incriminar uma pessoa (o arguido) que nem sequer conheciam e com a qual não tinham, nem têm, qualquer conflito.
Já no que concerne à prova dos factos sob os números 13 a 15, os quais resultaram da alteração substancial, esta teve por base as próprias declarações do arguido, o qual referiu que uma vez elaborado o expediente foi conduzido para junto da sua viatura pelos militares da GNR tendo prosseguido marcha em direcção à sua residência.
Extrai-se das declarações da testemunha … que o arguido foi advertido de que ficaria impedido de conduzir pelo período de 12 horas.
Resulta também dos documentos juntos aos autos a fls. 20 que o arguido foi expressamente advertido de que estava impedido de conduzir pelo período de 12 horas, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência qualificada, sendo alertado para as disposições aplicáveis.
É de resto este o procedimento habitual e documentado nos autos, e pese embora do documento de notificação em causa não conste a assinatura do arguido, tal ficou a dever-se ao facto de se ter recusado a assinar qualquer tipo de documento relativo ao processo, como se mostra consignado no auto de notícia.
Toda a postura do arguido, de recusa em colaborar na fiscalização, bem como de assinar qualquer documento, indiciam um estado de nervosismo, sendo este quadro também propício a levar a cabo tais condutas, inclusive a utilizar expressões idóneas a afectar a honra de terceiro. Tudo para consignarmos que se não vemos motivos para os senhores militares terem inventado factos, já o contrário não se diga do arguido, uma vez que o seu estado de espírito era por si idóneo à prática dos factos que lhe são imputados.
Por fim, as restantes testemunhas ouvidas, …, não demonstraram conhecimento directo dos factos.
Quanto aos elementos subjectivos, estes extraem-se por um lado das declarações do próprio arguido, quanto aos factos relativos à recusa em submeter-se ao teste de alcoolemia, quer dos factos objectivamente provados, pois não vislumbramos como poderia o arguido, pessoa com habilitações acima da média, não perceber a advertência que lhe foi feita para não conduzir no período de doze horas e não vemos perante o acervo factual razão para não concluirmos que agiu de modo livre e deliberado.
Aliás, o arguido é condutor habilitado e decerto conhece o Código da Estrada, designadamente as disposições que punem com o crime de desobediência a recusa a submeter-se ao teste de alcoolemia e a condução no período de doze após recusar-se a submeter-se ao referido teste, a menos que o condutor comprove, antes de decorrido esse período, que não está influenciado pelo álcool, através de exame por si requerido.
E nem precisava ser um condutor habilitado, pois tal resulta do conhecimento generalizado dos cidadãos portugueses, ante a antiguidade da legislação em causa e da sua consolidação no ordenamento jurídico.
Em suma, não só foi advertido para as consequências penais da sua conduta, como delas estava ciente, fruto também da sua condição de condutor habilitado.
Tais considerações são, mutatis mutandis¸ aplicáveis aos factos que em abstracto poderão consubstanciar a prática de crimes de injúria. Quando se profere expressões como as que resultaram provadas, o agente tem necessariamente conhecimento da sua aptidão para lesar a honra de quem por elas é visado. É também do domínio público que tais condutas são penalmente puníveis e não vemos como poderia o arguido não ter agido de modo livre e deliberado, ciente da censura penal que recaía sobre o seu comportamento: ressalvadas as situações de incapacidade, acidental ou não (o que não está em causa nos autos), certamente ninguém o coagiu a proferir as expressões.
Em suma, dúvidas não subsistem que os mesmos terão ocorrido nos termos em que resultaram provados.
No que concerne às condições pessoais do arguido, estas ficaram a dever-se às suas declarações, não havendo nos autos elementos que as infirme nessa parte e que permitam duvidar do seu acerto. No entanto, quanto ao rendimento auferido pelo arguido, este ocultou os verdadeiros rendimentos, tendo optando por mencionar apenas os rendimentos declarados.
Por fim, no que respeita aos antecedentes criminais, o tribunal valorou o teor do registo criminal junto aos autos.»
2.2. Delimitação do objecto do recurso.
Como se mostra por demais consabido, de acordo com o art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ad quem tem de apreciar [cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 335, bem como a jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. de 28 de Abril de 1999, in CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência aí citada -], mas isto sem prejuízo todavia das de conhecimento oficioso.
In casu, propendemos a atentar na arguição efectuada pela Exma. PGA nesta instância e daí que, pela prejudicialidade que comporta, redunde em ser o objecto do recurso exactamente a sua apreciação.
Vejamos, pois.
2.3. Como refere José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho, em texto apresentado no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários, realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, subordinado ao tema ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS EM PROCESSO PENAL, o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar que os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal Cfr., v.g., Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98, in www.tribunalconstitucional.pt. e o âmbito do caso julgado.
Segundo Figueiredo Dias Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145. é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade Cfr. Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal – II Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra, Almedina, reimp., 1983, págs. 305 e 317. (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade Não pode “a acusação pretender uma consideração só parcial ou só de alguns dos aspectos jurídico-criminais do objecto posto pela acusação” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pág. 202). Por isso, também, “o juiz deve conhecer não de maneira fragmentária mas esgotantemente o facto que é submetido ao seu julgamento” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 359; cfr. também, págs. 314-315 e 317-318). O princípio da investigação ou da verdade material, com os propósitos de economia, celeridade e justiça material, justifica a indivisibilidade do objecto do processo. (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consumpção O princípio da consumpção implica que "posta uma questão penal ante um magistrado, deve este necessariamente resolvê-la. E resolvê-la esgotantemente até onde deva e possa. Aquilo, pois, que, devendo tê-lo sido, não se decidiu na sentença directamente, tem de considerar-se indirectamente resolvido; aquilo que se não resolveu por via expressa deve tornar-se como decidido tacitamente” (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, cit., pág. 304); “Por outras palavras, o conhecimento do objecto do processo deve ter-se sempre por totalmente consumido – a decisão sobre ele
deverá considerar-se como tendo-o definido jurídico-criminalmente em tudo o que dele podia e devia ter conhecido” (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, cit., pág. 205). do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo). Sobre o quadro constitucional justificante do princípio da vinculação temática do processo penal, vejam-se, também, os Acs. do Tribunal Constitucional n.º 173/92, 674/99 e 463/2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantias de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objecto do processo, uma vez definido este pela acusação.
Um processo penal como o nosso, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética Cfr. art.º 283.º do Código de Processo Penal., nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos Em rigor, como bem salienta Leones Dantas, os factos só são novos quando chegam ao conhecimento do processo. Pode, porém, acontecer que na instrução ou no julgamento surjam novos elementos de prova relativamente a factos que já haviam sido valorados no inquérito e que não tinham sido integrados na acusação deduzida. Neste caso, embora os factos não sejam novos os mesmos deverão ser integrados no objecto do processo através do mecanismo processual da alteração substancial – cfr. “A definição e evolução do objecto do processo em processo penal”, in Revista do Ministério Público, n.º 63, pág. 98.
Em sentido divergente, apontando para a formação do efeito consumptivo logo no termo do inquérito, veja-se José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Porto, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 157 e ss e 468 e ss e “Ne Bis in Idem e Exercício da Acção Penal”, in Mário Ferreira Monte (coord), Que Futuro para o Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2007, págs.553-581, onde o autor sustenta,
nomeadamente, que“… não pode o Tribunal conhecer de facto (ou, mais correctamente, de questões de direito e de facto) que os órgão de polícia criminal e o MP deveriam, por dever de oficio e segundo as regras de uma investigação devida e exaustiva ou (caso não se queira utilizar uma formulação tão ‘forte’) de uma investigação minimamente diligente, ter conhecido e decidido”(pág. 563) e que “…não se pode conhecer em julgamento daquilo que teve, tem ou teria tido, remédio próprio na fase da instrução(tenha ela sido requerida ou não)” (pág. 557). que traduzam alteração dos anteriormente descritos.
Como é sabido, esta matéria encontra-se regulada nos art.ºs 303.º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (CPP), que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, al. f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”
O art.º 359.º rege para a alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º 1). Tratando-se de novos factos autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia (n.º 2). Ressalva-se a possibilidade de acordo entre o Ministério Público, arguido e o assistente na continuação do julgamento se o conhecimento dos factos novos não acarretar a incompetência do tribunal (n.º 3), concedendo-se então ao arguido, sob requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário (n.º 4).
Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal que não determine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que tenham relevo para a decisão do processo. A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada A lei não indica um momento específico e preciso para o cumprimento da comunicação referida nos artigos 358.º e 359.º, ambos do CPP.
Por isso que se venha entendendo que os mecanismos previstos naqueles preceitos legais podem ser desencadeados até à publicação da sentença, pois só com esta se encerra a audiência. Neste sentido vejam-se os Acs. do STJ de 16-6-2005, proc.º n.º 05P1576, rel. Pereira Madeira, salientando que “o que importa salvaguardar é que, no decurso da audiência, seja o arguido colocado perante a possibilidade de o tribunal levar avante uma alteração, substancial ou não, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com o evidente objectivo de lhe assegurar todos os direitos de defesa também quanto à alteração anunciada”, e o Ac. da Rel. de Guimarães, de 9-3-2009, proc.º n.º 1045/08-1, rel. Filipe Melo, todos in www.dgsi.pt., o último dos quais citando, ainda, o Ac. do STJ de 26-5-2004, rel. Sousa Fonte, que concluiu que “o tribunal não comete qualquer nulidade ao dar cumprimento ao disposto naquele artigo [358.º, n.º 1] já depois de produzidas as alegações finais.”
Tratando-se de mera alteração da qualificação jurídica a comunicação pode até ter lugar logo no início da audiência e antes de qualquer produção de prova - cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 4-11-2002, proc.º n.º 9111/02-1, rel. Nazaré Saraiva, in www.dgsi.pt.
Efectuada a comunicação, “resulta claro do disposto nos artigos 358.º, n.º 1 e 359.º, n.º 3, do CPP, que o requerimento para o adequado exercício do direito de defesa em consequência da alteração do objecto processual, nomeadamente para a concessão do prazo suplementar para o efeito ou de oposição a tal alteração, tem de ser apresentado de imediato” (Ac. da Rel. de Lisboa de 14-3-2007, proc.º n.º 10748/2006-3, rel. João Sampaio, in www.dgsi.pt.), oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para preparação da defesa (art.º 358.º, n.º 1), ressalvando, porém, o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa (n.º 2). “Assim, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se, durante a audiência, surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados, ex novo e, se se vierem a provar, integrá-los
no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º, n.º 1 e 5 da Constituição” (Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98, de 7 de Maio de 1998, que se pronunciou sobre a constitucionalidade do artigo 358.º).
Para efeito dos normativos em consideração, os factos autonomizáveis devem ser “uma variação dos que constituem o objecto do processo, ou, dito de outro modo, devem ainda incluir-se no âmbito do mesmo “facto histórico unitário”. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, nota 9, a pág. 913.
A exposição vinda de fazer-se já permite tomar posição perante a questão decidenda.
Com efeito, resulta dos autos que o arguido foi interceptado por uma patrulha da GNR nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no auto de notícia de fls. 2 a 4, sendo detido e constituído arguido conforme resulta do referido auto, e, subsequentemente, restituído à liberdade nos termos referidos no auto de libertação de fls. 16 e parte final do auto de notícia.
Por despachos de fls. 21 a 22 e de fls. 38 a 39, a Magistrada do Ministério Público requereu a submissão do mesmo arguido a julgamento, em processo sumário, imputando-lhe os factos constantes do auto de notícia, com o aditamento que lavrou a fls. 38 e 39, factos esses integrantes no seu entendimento, e como começámos por afirmar, de um crime de desobediência p. p. pelo art.º 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c), e de dois crimes de injúria agravada, p. p. pelos art.ºs 181.º e 184.º, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l).
No decurso da audiência de julgamento, a Magistrada do Ministério Público, por entender que da prova produzida até àquele momento resultavam indícios de o arguido ter praticado outros factos passíveis de integrar distinto crime de desobediência, requereu a entrega de certidão das peças processuais que indicou, com a finalidade de “investigar a prática de tais factos” [acta fls. 43 a 45v.º].
Tal requerimento mereceu despacho [fls. 45] que relegou a pronúncia sobre o mesmo para momento posterior.
Designada nova data para continuação da audiência, no início da nova sessão, foi proferido despacho [acta de fls. 48 e v.º], por cujo intermédio se deu conhecimento aos demais intervenientes processuais da possibilidade de, face à prova produzida, serem considerados provados os factos descritos nas alíneas a) a c), desse mesmo despacho e a consequente imputação ao arguido de outro crime de desobediência. Foi, ainda, considerado nesse despacho que tais factos constituíam uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e em consequência foi o arguido notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 359.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Na sequência de tal notificação, o arguido requereu a concessão de prazo para preparação da defesa, o que foi deferido [acta de fls. 48 a 49].
Findo tal prazo foi reaberta a audiência, sessão de 28/02/2018, e concedida a palavra ao Ministério Público e ao Defensor do arguido para novas alegações orais, sendo de seguida proferida a sentença objecto do presente recurso.
Como decorre do relatado, de acordo com a Exma. PGA propendemos a considerar que a situação descrita não colhe enquadramento no âmbito de uma pretensa alteração substancial dos factos descritos na acusação, que pudesse, como foi, ter sido resolvida com recurso ao procedimento previsto no art.º 359.º, do CPP.
Na verdade, a factualidade que a integrou extravasa o primitivo “facto histórico unitário”, tratando-se antes do alargamento do objecto do processo a outros factos que nada têm a ver com os factos descritos na acusação, sendo esta a conformadora do objecto do processo.
Assertivamente afirma a Exma. PGA, quando refere que a factualidade aditada - a eventual condução do veículo automóvel pelo arguido após a sua libertação - constitui um novo acontecimento, um novo episódio de vida, que pode integrar um outro crime de desobediência, completamente diferente e autónomo daquele que era imputado ao arguido na acusação, em que até os elementos constitutivos são diversos, tal como, aliás, foi considerado na sentença recorrida.
Ora, porque não consubstancia uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, mas se trata de factos novos estranhos à acusação e ao episódio de vida que é o seu objecto, a condenação por tais factos não se reconduz à nulidade da sentença prevista no n.º 1, al. b), do art.º 379.º, do CPP, antes integra a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, do CPP, mais precisamente a prevista na al. f) [Emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei].
Na verdade, a sujeição do arguido a julgamento por esta distinta factualidade apenas poderia ocorrer em processo sumário desde que verificados os pressupostos constantes do n.º 1, do art.º 381, do CPP, isto é, acaso ele tivesse sido detido em flagrante delito, nos termos descritos nas suas als. a) ou b); tivesse sido lavrado o respectivo auto de notícia e observados os demais procedimentos previstos, designadamente a dedução de acusação pelo Ministério Público nos termos estabelecidos no subsequente art.º 389.º.
Ora, nada disso ocorreu, pelo que não tendo o arguido/recorrente sido detido em flagrante delito daqueles factos, mas existindo notícia da prática da factualidade invocada, caberia ter-se instaurado inquérito conducente a tal averiguação, para eventual e subsequente acusação para submissão a julgamento sob outra forma de processo.
A inobservância deste procedimento conduziria, ademais e igualmente, à nulidade do julgamento (que viesse a realizar-se sob outra forma de processo) por violação do disposto na al. d), do mesmo art.º 119.º [falta de inquérito em caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade].
Tanto basta para concluirmos que se impõe decretar, pelos fundamentos expostos, e com os efeitos constantes do art.º 122.º do CPP, a nulidade do julgamento realizado.
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III - Dispositivo.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRC pela emergência da nulidade indicada, anular, com os efeitos constantes do art.º 122.º do CPP, o julgamento a que se procedeu nos autos.
Sem tributação.
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Coimbra, 12 de Setembro de 2018
Brízida Martins (relator)
Orlando Gonçalves (adjunto)