Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
407/18.7JALRAC1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEIO INSIDIOSO
ARREPENDIMENTO
Data do Acordão: 12/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J 2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 132.º, N.º 2, AL. I), E 71.º, DO CP
Sumário: I – Engendrando o arguido um esquema, totalmente executado, que lhe permitiu aparecer na residência comum, dele e da sua companheira, sem ninguém dar por isso, surpreendendo aquela, quando a mesma estava de costas, a almoçar, degolando-a, para, de seguida, também sem conhecimento de outrem, abandonar o local, após deixar rastos de que teria ocorrido um assalto, sem esquecer que, mais tarde, ao regressar do dia de trabalho, manifestou surpresa e desespero pela morte da vítima, este quando fáctico, traduzindo meio insidioso, enquanto modo dissimulado da acção, preenche a circunstância qualificativa do homicídio prevista na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.

II – O “arrependimento” só tem valor atenuativo se traduzido em actos que o revelem, vale dizer, que demonstrem a interiorização do desvalor da conduta pelo arguido, não bastando, sem mais, a sua verbalização.

III – Em casos, como o presente, de crime de homicídio, o “arrependimento” não pode limitar-se a meros pedidos de desculpas, orais ou escritas, aos familiares das vítimas, e a meras intenções de pagamento, quando possível, de uma indemnização.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                          

I. Relatório:

1. No âmbito do processo comum (tribunal colectivo) n.º 407/18.7JALRA que corre termos no Tribunal da Comarca de Leiria – Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 2, em 3/7/2019, foi proferido Acórdão, cujo Dispositivo é o seguinte:  

III - Decisão:

Nos termos expostos, Acordam os Juízes que constituem este Tribunal Colectivo em:

i) Julgar a acusação procedente e provada e, consequentemente, condenam o arguido A. pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 131º e 132º nºs 1 e 2 als. b), i) e j) do Cod. Penal, na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão.

(…).


***

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 30/7/2019, o arguido, extraindo da motivação as seguintes conclusões:  

1º O recorrente discorda da decisão proferida sobre a matéria de facto, igualmente não se conformando com a qualificação jurídica operada, nem com a concreta medida da pena aplicada.

1) DA MATÉRIA DE FACTO

2º Com o devido respeito, o recorrente discorda das alíneas a.2) dos factos provados e alínea i) dos factos não provados.

3º Considera que, em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento, deveria ter sido dado como assente que o arguido, em data não concretamente apurada, formulou o propósito de matar (…), motivado pelo facto de só recentemente ter tido conhecimento de que a mesma era portadora do vírus HIV.

4º Ao longo de todas as suas declarações foi, de forma coerente, este o motivo apresentado pelo arguido para a prática dos factos.

5º Tendo referido perturbação e desorientação, devido à circunstância de ter tomado conhecimento de que a sua companheira, com quem mantinha uma relação amorosa há cerca de três anos, ser portadora do vírus HIV e não o ter informado desse facto no início do relacionamento, receando, por isso, ter sido contaminado com o referido vírus.

6º O Tribunal a quo ignorou por completo as declarações prestadas pelo arguido, quanto ao motivo, esquecendo que tal estado de perturbação e desorientação relatadas pelo mesmo são perfeitamente compatíveis com a sua capacidade intelectual, que se apresenta muito inferior, conforme resulta do Relatório de exame psicológico de fls 1210.)

7º Ao invés, o Tribunal Recorrido decidiu, alicerçar a sua decisão nos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…), cujas declarações são contraditórias, impregnadas de juízos subjetivos e desconformes com a realidade.

8º Quanto à testemunha (…), não é minimamente credível que, se efetivamente a falecida (…) tivesse contado ao arguido que se encontrava infetada com o vírus HIV, sendo a testemunha amiga de ambos, convivendo com o casal, durante cerca de dois anos, nunca tenha assistido ou protagonizado qualquer conversa relacionada este assunto.

9º Pelo contrário, de acordo com as regras da experiência comum, havendo uma relação de amizade entre esta testemunha, a falecida (…) e o arguido, não é minimamente credível, que este assunto, se efetivamente fosse do conhecimento dos três, nunca tivesse sido tema de conversa entre os mesmos.

10º Por sua vez, a testemunha e demandante cível, (…), também apresentou um depoimento que não é minimamente credível, nem tão pouco suscetível de abalar as declarações do arguido.

11º Com efeito, num primeiro momento, a depoente declara que conheceu o arguido, antes do mesmo iniciar uma relação de namoro com a falecida (…),

12º Referindo que na altura em que o conheceu, o arguido seria apenas amigo e colega da falecida (dançava com ela).

13º Depois, quando questionada acerca do facto do arguido conhecer ou não a doença da falecida, em clara contradição com as declarações prestadas anteriormente, a depoente afirma que o arguido terá tido conhecimento dessa doença logo no primeiro dia em que se conheceram, quando se apresentou como namorado da vítima.

14º Para além disso relata um conjunto de perceções pessoais acerca da personalidade da vítima, que, obviamente não podem ser valoradas pelo Tribunal a quo, para afirmar que a sua sobrinha seria incapaz de manter um relacionamento amoroso sem revelar a sua doença.

15º Finalmente, também não é minimamente credível que, tal como referiu a testemunha, sendo a doença da sobrinha “um segredo de família”, que a mesma, logo no primeiro encontro com o arguido, lançasse mão deste assunto… quando, no dia em que conheceu o arguido, segundo declarações da própria o mesmo era apenas amigo e colega da falecida (…), pelo que, não faria qualquer sentido abordar esta temática que era considerada sigilosa, com um colega…

16º Finalmente, em relação às declarações prestadas pela testemunha (…), também o seu depoimento não é suficiente para infirmar o depoimento prestado pelo arguido, na medida em que, também as suas declarações não são credíveis à luz das regras da experiência comum, para além de estar repleto de convicções pessoais que não podem ser valoradas.

17º Com efeito, não se afigura nada verosímil que, sabendo o depoente que o arguido era namorado da falecida (…), se efetivamente o assunto da doença do vírus HIV tivesse sido abordado, certamente que a testemunha nunca poderia demonstrar um ar surpreendido em face de tal conhecimento, porque efetivamente o mais acertado era que realmente o arguido tivesse conhecimento…

18º Assim, o facto da testemunha afirmar que ficou espantada só evidencia que, tal como o depoimento prestado pela demandante cível, os familiares da vítima pretenderam, a todo o custo e com evidentes contradições descredibilizar as declarações prestadas pelo arguido e a sua versão factual apresentada logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido e mais tarde, em julgamento.

19º Com efeito, da análise cuidada destes depoimentos, denota-se uma grande preocupação dos depoentes em transmitir uma imagem imaculada da vítima em detrimento do arguido.

20º Todavia, na ânsia de fazer crer ao Tribunal que efetivamente o arguido detinha conhecimento da doença da vítima, estas testemunhas acabam por impregnar os seus depoimentos de meras convicções pessoais, e contradições, que claramente lhes retira toda a credibilidade, e, portanto, não poderiam ter sido valorados aquando da prolação da decisão.

21º Por tudo isto, as declarações prestadas pelo arguido, no primeiro interrogatório judicial de arguido detido e no decurso do julgamento, no sentido de só recentemente ter tomado conhecimento de que a vítima era portadora do vírus HIV deveram ser consideradas verdadeiras e provada tal factualidade.

22º E, o arguido refere que após ter tomado conhecimento desta doença, ficou perturbado e desorientado. O que se coaduna com a sua personalidade, tal como se acha descrita no relatório de exame psicológico de fls 1210, pois o arguido tem “pouca flexibilidade mental e velocidade de processamento” (cfr. Relatório de Exame Psicológico, última frase da pág. 4), “capacidade intelectual muito inferior”, não tendo capacidade, como já se referiu anteriormente, “de extrair significado de uma situação confusa, de desenvolver novas compreensões, de ir além do que é dado para perceber o que não é imediatamente obvio e de estabelecer constructos” (pág. 5, primeiro parágrafo), apresentando ainda ansiedade, vulnerabilidade ao stress e perturbação emocional.

23º É pessoa que sofre de Perturbação de Personalidade Mista, com sintomas ansiosos e depressivos, predominando os traços paranoides, ansiosos e antissociais.

24º Pelo que, foi esta pessoa, com esta personalidade que pouco tempo antes do dia 18/04/2018 tomou conhecimento que a sua companheira, com quem mantinha um relacionamento amoroso há mais de três anos, era portadora do vírus HIV, não tendo o arguido conseguido gerir e lidar convenientemente com esta informação, o que o precipitou a praticar os factos descritos no Acórdão.

25º Por conseguinte, deveria ter sido julgado como demonstrado o motivo apresentado pelo arguido, bem como o seu estado de perturbação e desorientação naquela altura.

26º O recorrente considera que também devia ter sido dado como provado e devidamente valorado aquando da determinação concreta da pena, o seu sincero arrependimento em relação aos factos que lhe são imputados.

27º Conforme resulta do Relatório de Perícia Psiquiátrica Medico-Legal elaborado e junto aos autos 03/06/2019 (fls. 1202 e ss), quando «Questionado acerca de que tipo de reflexão efetua na atualidade relativamente ao sucedido, referiu arrependimento e receio pelas consequências legais dos seus actos, acrescentando que “devia-a ter deixado e seguido com a minha vida, e não teria nada disto acontecido” sic» (cfr. 3º parágrafo da pág. 7)

28º Assim como, também se refere no Relatório de Exame Psicológico, elaborado em 30/4/2019 e junto aos autos em 03/06/2019, que aquando da realização do exame psicológico o arguido foi questionado relativamente aos factos que motivaram a sua detenção e referiu “estou arrependido do que fiz, se fosse hoje teria feito de outra forma, há outras formas” (sic.)» (4ª parágrafo da página 4).

29º Mais, durante a audiência de julgamento e no primeiro interrogatório judicial de arguido detido o arguido refere, por diversas vezes, estar arrependido.

30º É certo que, de acordo com a Jurisprudência atual e maioritária, as declarações prestadas pelo arguido, per si, são insuficientes para considerar existir arrependimento sincero, uma vez que a demonstração do arrependimento tem de ser ativa e apreensível.

31º Sucede que, nos presentes autos, o arguido, apesar da impossibilidade de poder reparar o mal provocado, apresentou um pedido de desculpas à familiar mais próxima da vítima, a sua tia (…), conforme resulta das declarações prestadas pela mesma.

32º Na verdade, o arguido, em contexto prisional, dirigiu-lhe uma missiva através da qual apresentou um pedido de desculpas pelos atos praticados, o que evidencia o seu sincero arrependimento.

33º Para além disso, a própria cooperação do arguido com as entidades policiais durante a investigação, indicando o modus operandi, os locais que percorreu, o modo como praticou os factos dentro da residência, a forma e o local para onde arremessou as roupas, enfim participando ativamente na investigação criminal, bem como o facto de ter confessando de imediato a prática dos factos perante o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, indica, segundo as regras da experiência comum, que o arguido está sinceramente arrependido relativamente aos factos que praticou.

34º Tal arrependimento é ainda mais visível e reforçado, se tivermos em consideração que os resultados da avaliação psicométrica da personalidade e do QI do arguido que se encontram resumidos no relatório de fls. 1202 e seguintes e dos quais destacamos:

a) Neuroticismo que “remete para problemas ao nível da estabilidade emocional, revelando sintomas e predisposições à depressão, ansiedade e vulnerabilidade (medo de críticas, insegurança, dificuldade em tomar decisões)

b) Extroversão: “os baixos valores apresentados indicam ser uma pessoa que se encontra pouco atenta ao mundo exterior, normalmente é reservada, que não gosta de excitação, podendo ter tendência ao isolamento.”

c) Introversão/Extroversão: existência de timidez, introversão, ansiedade social, sentimentos de inferioridade, falta de confiança e sem rede de comunicação social de apoio.

35º Com efeito, o arguido é uma pessoa com “uma personalidade com alguma zanga e sentimentos de injustiça, com a existência de preocupação relativa à avaliação das suas atitudes pessoais, ansiedade, tendência ao isolamento e a ter dificuldades nas relações sociais.”, e ainda assim, demonstrou arrependimento, apresentando um pedido de desculpa aos familiares da vítima.

36º Na realidade, foi esta pessoa, com estas características pessoais, com tendência ao isolamento e dificuldade nas relações pessoais, que referiu, por diversas vezes, ao longo do processo e desde o seu início, que estava profundamente arrependido em relação aos atos que praticou e na devida oportunidade apresentou um pedido de desculpa à tia da vítima e ao Tribunal, logo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

2) DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA

37º Quanto à qualificação jurídica, cumpre trazer à colação o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/07/2001, relatado pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Pires Salpico (in www.dgsi.pt) “I - Age determinado por motivo fútil o arguido que, na sequência do envolvimento físico entre a mulher e a sua irmã e perante a interposição, com o intuito de pôr termo à contenda, do companheiro da segunda, dominado por sentimentos de esforço, desfere naquele, de imediato, nas zonas vitais do corpo, com um canivete que trazia oculto, diversos golpes que lhe causaram ferimentos determinantes da sua morte. II - “Meios insidiosos” são os que se empregam de forma enganosa ou fraudulenta e cujo poder mortífero se encontra oculto, surpreendendo a vítima, tornando-se extremamente difícil ou impossível a defesa. III – Um canivete, como o que foi utilizado pelo arguido, é um objeto de uso corrente e, como arma branca que também é, pode servir, frequentemente, como arma letal de agressão; mas, a todas as luzes, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de “meio insidioso”

38º Desta feita, à semelhança de um canivete, também uma faca de cozinha, apesar de também poder ser usada como arma de agressão, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de “meio insidioso”.

39º Assim, a conduta do arguido não pode integrar-se na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.

3) DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

40º O Tribunal a quo decidiu aplicar uma pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão, próxima do limite máximo da moldura penal abstrata.

41º O recorrente não desconhece que a determinação da medida concreta da pena é efetuada casuisticamente.

42º Todavia, e porque o sistema jurídico deve ser encarado como um todo, congruente, para além das circunstâncias concretas do caso, deverá ter-se em consideração as penas fixadas pela Jurisprudência para crimes da mesma natureza, com graus de culpa similares ou mais acentuados do que nos presentes autos, designadamente os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (todos disponíveis em www.dgsi.pt) referentes a crimes de homicídio qualificado:

1) Acórdão do STJ de 15/01/2019, relatado pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Lopes da Mota:

Neste acórdão foi julgado um crime de homicídio, com premeditação e recurso a uma arma de fogo, tendo sido aplicada a pena de 18 anos de prisão;

2) Acórdão do STJ de 19/06/2016 relatado pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Manuel Augusto de Matos, no qual o arguido cometeu um crime de homicídio qualificado por asfixia tendo sido condenado na pena de 18 anos e 6 meses de prisão, um crime de violação (5 anos de prisão), um crime de Roubo (2 anos de prisão) e um crime de profanação de cadáver (9 meses de prisão), na pena única de 21 anos de prisão.

3) Acórdão do STJ de 06/07/2017 relatado pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Nuno Gomes da Silva, no qual o arguido foi condenado na pena de 19 anos de prisão pela prática de um crime homicídio qualificado em seio familiar (passional).

4) Acórdão do STJ de 30/03/2016 relatado pelo Sr. Dr. Juiz Conselheiro Santos Cabral, que aplicou uma pena de 16 anos de prisão.

43º Por conseguinte, tendo por referência os atuais padrões da jurisprudência, a pena de 22 anos de prisão é, com o devido respeito, ostensivamente desproporcionada e excessiva

44º Para além disso, o arguido discorda desta motivação mobilizada para a determinação concreta da pena, acreditando que a pena de prisão aplicada não deveria, nunca exceder os 16 anos de prisão, sendo esta a medida adequada à sua culpa.

45º É certo que o arguido atuou com culpa, mas não cremos que o grau de culpa seja de tal forma elevado que justifique a aplicação de uma pena de prisão muito próxima do limite máximo admitido por lei (25 anos).

46º Por outro lado, quanto às exigências de prevenção geral, estudos recentes apontam que a principal causa do alarme social relativamente às situações de violência no seio familiar é precisamente a forma como as notícias são veiculadas pelos meios de comunicação social.

47º Tais notícias são manipuladas por forma a causar impacto na sociedade, não devendo o arguido ser penalizado por esta atuação, com uma agravação na sua pena.

48º No que respeita às exigências de prevenção especial, é certo que na audiência de julgamento, resultou uma fraca capacidade do arguido de adesão às finalidades da punição.

49º No entanto, tal deve-se ao facto do arguido deter um diagnóstico de Perturbação de Personalidade Mista.

50º Não podemos olvidar que “Tal condição clínica é permanente no tempo, não existindo para ele cura à luz dos conhecimentos científicos atuais, podendo o tratamento servir para atenuar a manifestação comportamental da mesma” (cfr. relatório de perícia psiquiátrica medico-legal, pág. 12), podendo o arguido “beneficiar com acompanhamento psiquiátrico e psicológico (que deverá ser regular e prolongado) com vista a atenuar o impacto dos traços de personalidade disfuncionais no seu dia-a-dia, nomeadamente em termos de adaptação ao meio envolvente e grau de funcionamento psicossocial, bem como ajudar a adquirir estratégias de resolução de problemas mais adaptativas e a lidar com sofrimento psicológico adveniente (ansiedade e sintomas depressivos) das dificuldades que apresenta”(cfr. relatório de perícia psiquiátrica medico-legal, pág. 11).

51º Ou seja, mais importante do que a aplicação de uma pena de prisão excessivamente prolongada, seria impor ao arguido acompanhamento psiquiátrico e psicológico adequados, por forma a minimizar a perturbação de personalidade de que padece.

52º Cremos que as finalidades de prevenção especial ficariam clamorosamente mais acauteladas com a aplicação de uma pena de prisão mais curta, associada a medidas e injunções que impusessem acompanhamento psiquiátrico e psicológico ao arguido.

53º Mais, no acórdão recorrido refere-se que a ilicitude da conduta é elevadíssima por atentar contra o valor supremo da vida humana da sua companheira de facto.

54º Com o devido respeito, esta circunstância não deveria ser valorada na determinação concreta da pena, pois já foi tida em consideração na qualificação jurídica dos factos e funciona como circunstância agravante que determinou a qualificação do crime como homicídio qualificado. Salvo melhor entendimento, violou-se o princípio da proibição de dupla valoração…

55º Finalmente, como supra se mencionou, o arguido demonstrou remorso e sincero arrependimento.

56º Tal facto, deverá ser devidamente valorado a favor do arguido, e determinando a aplicação de uma pena de prisão mais curta.

57º Pelo exposto, deverá a pena de prisão aplicada ao arguido ser reduzida para 16 (dezasseis) anos de prisão, tempo este que se revela adequado e proporcional à culpa, exigências de prevenção geral e especial.

58º Uma vez que a decisão recorrida violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artºs 127º, 129º e 130º, todos do Código de Processo Penal e ainda o disposto nos artºs. 40, nºs 1 e 2, 70º, 71º e 132º, nº 2, alínea i), todos do Código Penal Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada J U S T I Ç A.


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3. O recurso, em 14/8/2019, foi admitido.

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 4. O Ministério Público, em 19/8/2019, apresentou resposta na qual defendeu a manutenção da decisão recorrida, contra-alegando, em resumo, o seguinte:

1. Discorda o ora recorrente da decisão de condenação quanto ao crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b), i) e j), do Código Penal.

2. Com efeito, entenderam os Meritíssimos Juízes que, da prova produzida em audiência, não resultam dúvidas que o arguido praticou os factos de que vinha acusado.

3. Não nos merece, contudo, reparo o acórdão recorrido.


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5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 14/10/2019, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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6. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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7. O arguido encontra-se em prisão preventiva, desde 23 de agosto de 2018, presentemente no E.P. de Coimbra, conforme, respetivamente, fls. 283 e 1316.

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8. Colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

“Acordam os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Leiria:

(…).

a) Factos provados

a.1) O arguido A. e a ofendida (…) iniciaram uma relação amorosa em 2014 e, desde Fevereiro de 2017, passaram a viver como se de marido e mulher se tratassem, na casa da (…), sita na Rua da (…), n.º (…), (…), (…).

a.2) Em data e por motivos não concretamente apurados, o arguido formulou o propósito de matar a (…).

a.3) Assim, mediante um plano previamente elaborado com tal propósito, no dia 18 de Abril de 2018, cerca das 17h00m, o arguido pediu a (…), sua ex-namorada, que lhe emprestasse o seu veículo automóvel ligeiro de mercadorias, da marca Peugeot, modelo Partner, de cor branca, com a matrícula (…), dizendo-lhe que precisava do mesmo para fazer mudanças, pese embora não tenha efectuado quaisquer mudanças, nem tivesse intenção de o fazer.

a.4) Nessa sequência, e conforme previamente combinado com (…), no dia 19 de Abril de 2018, entre as 04h00m e as 04h15m, o arguido foi buscar a referida carrinha à residência de (…), sita em (…), (…), aí deixando o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros Mercedes Benz, com a matrícula (…).

a.5) De seguida, conduzindo essa mesma carrinha Peugeot Partner, dirigiu-se às instalações da sociedade (…), onde trabalha, sitas na zona industrial da (…).

a.6) Aí chegado, cerca das 04h44m, pediu a (…), seu colega, que o acompanhasse aos (…), dizendo que ía aí deixar a carrinha Peugeot Partner para fazer uma revisão, com o que o colega concordou.

a.7) Nessa sequência, pelas 04h48m, o arguido saiu das instalações da empresa na carrinha Peugeot Partner, sendo seguido por (…), que circulava numa viatura da empresa, e dirigiu-se até à localidade dos (…), estacionando a carrinha na Rua (…), (…), frente à oficina de automóveis (…), dizendo ao colega que tinha de a deixar ali para ser reparada, o que não correspondia à verdade.

a.8) Após, o arguido abandonou o local com o colega na viatura por este conduzida, dirigindo-se novamente ao seu local de trabalho, onde preparou a carrinha da empresa, da marca Toyota, modelo Dyna, com a matrícula (…), com a qual saiu da empresa, cerca das 05h30m, para fazer a ronda.

a.9) Cerca das 11h49m, o arguido estacionou a viatura da empresa na Rua do (…), a cerca de 800m do local onde havia previamente estacionado a carrinha Peugeot Partner.

a.10) Ao trancar a carrinha da empresa, a fechadura da porta avariou-se.

a.11) De seguida, o arguido pediu boleia a (…), que por aí passava numa carrinha da Junta de Freguesia dos (…), e que o levou, a solicitação do arguido, até ao local onde estava a carrinha Peugeot Partner.

a.12) Então, o arguido entrou na carrinha Peugeot Partner, trocou de roupa e, após, sempre constante no propósito de matar a (…), dirigiu-se à residência de ambos.

a.13) Aí chegado, e ainda na execução do plano previamente traçado, entrou na sua residência, retirou um televisor LCD que se encontrava na sala e colocou-o na parte de carga da carrinha Peugeot Partner.

a.14) Depois entrou novamente em casa, tendo nessa altura chegado a (…), a qual se dirigiu então à cozinha e aqueceu um prato de sopa, que colocou em cima da mesa, após o que se sentou à mesa para almoçar.

a.15) Nisto, o arguido colocou umas luvas de borracha de cor azul, que se encontravam numa das gavetas da cozinha, e agarrou numa faca de cozinha, com cabo em plástico de cor amarela e lâmina com cerca de 25 cm de comprimento, com forma triangular.

a.16) Após, e encontrando-se a (…) de costas para o arguido, este abeirou-se daquela por trás e, empunhando a faca, pressionou-a contra o pescoço da mesma e, com força, deslizou-a pelo pescoço da ofendida, na horizontal, da direita para a esquerda (degolar).

a.17) A (…) levantou-se, virando-se para o arguido, que, de imediato, lhe desferiu com a faca vários golpes no corpo, atingindo-a no tórax e abdómen.

a.18) A (…) tentou defender-se, pondo os braços para a frente e fugindo pela cozinha.

a.19) O arguido foi atrás dela e deferiu-lhe novamente vários golpes, atingindo-a novamente no tórax e abdómen e, face aos movimentos defensivos da mesma, também nos membros superiores.

a.20) Após, (…) acabou por cair no chão da cozinha, sem se conseguir levantar, mas ainda mexendo os braços e as pernas.

a.21) Acto contínuo, o arguido dirigiu-se à outra cozinha da residência, onde abriu duas gavetas do móvel que aí se encontrava, e também à sala da residência, onde abriu mais umas gavetas, bem como a escrivaninha e uma porta de um dos móveis, de modo a fazer crer que tinha ocorrido um assalto.

a.22) De seguida, e vendo a (…) no chão a esbracejar e a espernear, o arguido saiu da residência, entrou na carrinha de matrícula 15-LZ-79, e dirigiu-se aos (…).

a.23) Ainda no caminho, o arguido telefonou do telemóvel da empresa com o n.º (…) para (…), mecânico, solicitando a reparação da fechadura da viatura da empresa, tendo este dito que ainda iria demorar.

a.24) O arguido disse-lhe então que iria fazer a entrega de encomendas em falta e depois regressaria para junto da viatura.

a.25) Antes de se dirigir à carrinha da empresa, o arguido dirigiu-se a uma zona de mato, no cruzamento das Ruas (…) e (…), (…), (…), parou o veículo, trocou de roupa e sapatos e atirou para dentro de um poço uma das luvas de borracha de cor azul, bem como a camisa com padrão xadrez, com quadrados azuis e brancos, o par de calças de ganga de cor preta e os sapatos, tipo vela, de cor castanha e sola em borracha, que usara aquando do esfaqueamento da (…), tendo arremessado na direcção oposta ao poço, para umas silvas, a faca usada para a golpear.

a.26) Depois, cerca das 14h00m, o arguido dirigiu-se novamente ao local onde tinha estacionado a carrinha da empresa, da qual retirou as encomendas em falta e que foi entregar, levando para tanto a carrinha Peugeot Partner.

a.27) Cerca das 14h45m, o arguido regressou para junto da carrinha da empresa, estacionando a carrinha Peugeot Partner a poucos metros da carrinha da empresa, na Rua do Bailadouro, junto da qual se encontrava já (…), a tentar resolver o problema da fechadura da porta da carrinha da empresa, o que conseguiu cerca das 14h55m.

a.28) Nessa sequência, o arguido, deixando a carrinha Peugeot Partner no local, regressou à empresa na carrinha da empresa, retomando os seus afazeres profissionais.

a.29) Cerca das 16h00m, o arguido saiu da empresa numa viatura conduzida pelo colega (…), o qual lhe deu boleia até ao local onde se encontrava a carrinha Peugeot Partner, dizendo-lhe que esta pertencia a um irmão seu.

a.30) Após, despediu-se do colega e, na carrinha Peugeot Partner, dirigiu-se a casa de (…), onde deixou a carrinha Peugeot Partner e um bilhete por si manuscrito, dirigido à (…), com os dizeres “Tir isso do carro e escondia. Não me ligues eu depois passo”, com o que se referia ao televisor LCD que havia previamente retirado da sua residência.

a.31) O arguido deitou ainda no caixote do lixo junto da porta da casa daquela uma das luvas de borracha de cor azul usada aquando do esfaqueamento da (…).

a.32) De seguida, o arguido regressou no seu veículo Mercedes Benz, de matrícula (…), à sua residência, onde chegou pelas 17h30m.

a.33) Estacionou o carro na garagem, entrou em casa, olhando para a falecida e, depois, dirigiu-se para a rua, começando a gritar e pedindo socorro, afirmando aos que, nessa sequência, acorreram ao local, que se tinha acabado de deparar com a ofendida no chão da residência, não sabendo o que se tinha passado, mas assinalando a falta do televisor, de um fio em ouro e de uma pulseira em ouro, de modo a que pensassem ter-se tratado de um assalto.

a.34) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a (…) sofreu as lesões analisadas e descritas a fls. 732 a 737, designadamente:

a) Na região cervical:

- lesão corto-perfurante, orientada horizontalmente (transversalmente), na região cervical anterior, medindo 9cm de extensão, com ângulo esquerdo agudo, com secção completa da veia jugular direita, epiglote e laringofaringe, e, imediatamente abaixo, escoriação linear, curvilínea de abertura superior, medindo 15 cm de comprimento, no seio da qual se visualizava ferida incisa sensivelmente transversal, medindo 0,5cm de extensão, inferiormente à qual, e à esquerda da linha média, se visualizava escoriação apergaminhada medindo 1x1cm, com orla equimótica azulada medindo 3x2cm;

b) No tórax – região peitoral direita:

- lesão corto-perfurante, oblíqua infero-lateralmente agudos, no terço superior da região esternal, paramediana direita, medindo 4cm de extensão e apresentando ambos os ângulos, com fractura da 4.ª costela e perfuração do lobo superior do pulmão direito;

- lesão corto-perfurante, ligeiramente oblíqua para baixo e para a esquerda, medindo 1cm de comprimento;

- escoriação na região infra-clavicular, sensivelmente longitudinal, medindo 1x0,5cm, com orla equimótica azulada, medindo 1x1cm;

- equimose arroxeada e azulada no quadrante supero-medial da mama, medindo 9cm de maior eixo, no seio da qual se observa escoriação oblíquo infero-lateralmente medindo 2cm de comprimento;

c) No tórax – região peitoral esquerda:

Na metade superior da mama:

- escoriação longitudinal medindo 1,5cm de comprimento, com orla arroxeada medindo 2x1,5cm, inferior e medialmente à qual se visualizava escoriação linear medindo 3,5cm de comprimento com orla equimótica medindo 4,5cm de maior eixo, inferior e lateralmente à qual se visualizava equimose arroxeada e azulada medindo 3x1,5cm de maiores eixos;

d) No abdómen – região epigástrica:

- lesão corto-perfurante, oblíqua para baixo e para a esquerda, com ângulo esquerdo agudo e o ângulo direito rombo, medindo 2,5cm de extensão, com perfuração do lobo esquerdo do fígado, numa extensão de 4cm de profundidade;

e) No abdómen – hipocôndrio direito (no sentido medial – lateral):

- lesão corto-perfurante, oblíqua para baixo e para a direita, com o ângulo esquerdo agudo e o ângulo direito rombo, medindo 3,5cm de extensão;

- lesão corto-perfurante, sensivelmente horizontal, com ângulo à direita agudo e o outro rombo, apresentando discreta cauda de rato para a direita, medindo 3cm de comprimento;

- lesão corto-perfurante, oblíqua para baixo e para a direita, com o ângulo direito (inferior) rombo e o outro agudo;

- lesão corto-perfurante, oblíqua para baixo e para a direita, com o ângulo superior agudo e o outro rombo, medindo 3cm de extensão,

com perfuração da 9ª costela e do lobo esquerdo do fígado;

- lesão corto-perfurante, orientada horizontalmente, com o ângulo medial agudo e o outro rombo, medindo 4cm de extensão, com fractura da transacção do arco médio para o posterior da 11ª costela.

f) No abdómen –região peri-umbilical direita (no sentido proximal – distal ou cefalo-caudal:

- lesão corto-perfurante, sensivelmente horizontal, com ângulo direito agudo (com cauda de rato direita) e o outro ângulo rombo, medindo 2,5cm de extensão;

- lesão corto-perfurante, sensivelmente horizontal, com ângulo direito agudo (com cauda de rato direita) e o outro ângulo rombo, medindo 1,5cm de extensão;

- lesão corto-perfurante, sensivelmente horizontal, com ângulo direito com cauda para a direita, e o outro ângulo rombo, medindo 4cm de extensão;

g) No abdómen – flanco esquerdo:

- lesão corto-perfurante, oblíqua para baixo e para a esquerda, com ângulo agudo e cauda de rato superior (superficial longitudinal) e o outro ângulo rombo, medindo 3,5 cm de extensão;

h) No abdómen – flanco direito (no sentido medial – lateral):

- lesão corto-perfurante, oblíqua para cima e para a direita, com ângulo direito agudo, medindo 2,5cm de extensão;

- lesão corto-perfurante, oblíqua para cima e para a direita, com cauda ascendente direita, medindo 2cm de extensão;

- lesão corto-perfurante, oblíqua para cima e para a direita, com cauda ascendente direita, medindo 3cm de extensão, paralela à 17;

- lesão corto-perfurante, sensivelmente longitudinal, com cauda ascendente direita, medindo 3cm de extensão;

i) No abdómen – região inguinal (transição para a coxa – região ilíaca):

- lesão corto-perfurante, sensivelmente horizontal, com ângulo medial agudo, medindo 2,5cm de extensão;

j) No membro superior direito:

- no dorso da mão, lesão incisa sensivelmente transversal, na região em correspondência com o 2º metacárpico, com ambos os ângulos agudos, medindo 2cm de extensão;

- no dorso da mão, lesão sensivelmente transversal, no nível em correspondência com a articulação metacarpofalângica do 3º dedo, com ambos os ângulos agudos e orla equimótica arroxeada, medindo 1,5cm de extensão;

- na face palmar da mão, lesão incisa do 2º dedo, no nível em correspondência com a articulação interfalângica distal, com ambos os ângulos agudos, medindo 1,5cm de extensão;

- no bordo medial do punho, escoriação sensivelmente transversal, medindo 1cm de comprimento;

- na face anterior do antebraço, lesão escoriada, com padrão aparentemente figurado, medindo 4,2cmde maiores eixos;

- na face postero-lateral do antebraço, múltiplas escoriações lineares, a maior curvilínea de abertura superior, medindo 4cm de comprimento.

k) No membro superior esquerdo:

- área equimótica arroxeada e azulada no terço superior da face anterior do braço, medindo 12x7cm;

- na felxura, ferida incisa sensivelmente longitudinal, com cauda distal, medindo 7cm de extensão;

- no cotovelo, ferida incisa, oblíqua supero-medialmente, de ângulo agudo inferior, medindo 6cm de extensão;

- múltiplas escoriações lineares na face postero-medial do antebraço, ocupando uma área com 17x8cm;

- duas lesões incisas no bordo lateral do punho, a maior de profundidade exuberante, medindo 5cm de extensão, com exposição do plano musculo-esquelético local;

- no bordo medial do punho, presença de quatro lesões incisas, com orla equimótica arroxeada, a maior oblíqua supero-lateralmente, medindo 4cm de extensão;

- no dorso da mão, duas lesões incisas, a maior interessando os 2º e 3º metacárpicos, medindo 3cm de extensão;

- no dorso do 3º dedo, duas lesões incisas nas falanges proximal e média, cada uma medindo 2cm de extensão;

- no dorso da mão, ao nível das falanges proximal e distal do 1º dedo (polegar), duas lesões incisas, medindo a proximal 1,5cm de comprimento e a distal medindo 6cm de extensão;

- lesão corto-perfurante atravessando a região tenar, entre os 1º e 2º metacárpicos, com exposição do plano músculo-esquelético local, medindo 6cm de extensão;

- na face palmar do nível correspondente à articulação metacarpofalângica do 2º dedo, lesão incisa sensivelmente transversal, medindo 2cm de extensão.

a.35) A morte da (…) foi devida às lesões traumáticas cervicais e tóraco-abdominais descritas.

a.36) Ao actuar do modo acima descrito, agiu o arguido com o propósito concretizado de pôr termo à vida da (…), sua companheira.

a.37) Sabia o arguido que a descrita actuação era idónea a provocar a sua morte, como provocou, atendendo ao objecto utilizado e às zonas do corpo atingidas, onde se alojam órgãos vitais.

a.38) Sabia o arguido que ao surpreender a (…) nos termos descritos, surgindo nas suas costas e assim a golpeando no pescoço, actuava cerceando a possibilidade de defesa da mesma.

a.39) Agiu ainda o arguido de forma calculada, preparando a execução do crime com calma e reflexão, revelando insensibilidade, indiferença e persistência na execução.

a.40) Agiu o arguido sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Mais se provou:

(…).

Mais se provou, ainda:

a.49) O arguido (…) é o mais velho de 3 filhos do casal progenitor. Os pais dedicavam-se à agricultura, estando actualmente reformados. Viviam de forma modesta, mas nunca estiveram em causa a satisfação das necessidades básicas. A relação familiar era caracterizada por vínculos afetivos entre todos os elementos do agregado.

a.50) (…) concluiu o 4º ano de escolaridade com 13 anos de idade. Por apresentar algumas dificuldades na assimilação das matérias letivas, reprovou no 1º, 2º e 3º ano de escolaridade.

a.51) Após o término dos estudos iniciou-se a trabalhar na construção civil, actividade que manteve até aos 30 anos de idade. Depois passou a trabalhar como motorista de pesados. No período compreendido de 2010 a 2014 manteve-se desempregado. Neste período foi beneficiário do RSI. Por inerência das obrigações fixadas no âmbito da atribuição deste subsídio, concluiu o 9º ano de escolaridade em regime de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências.

a.52) Aos 30 anos de idade o arguido casou com (…), de quem se viria a separar em fevereiro de 2017, ocorrendo o divórcio em maio do mesmo ano. Deste relacionamento tem dois filhos, actualmente com 29 anos e de 25 anos de idade.

a.53) Após o casamento, o arguido e a mulher construíram a habitação de família em (…), (…), onde passaram a residir até o arguido sair de casa, para ir viver com (…).

a.54) Durante o período de vigência do casamento o arguido mostrava-se pouco comprometido com a dinâmica familiar e mantinha dificuldades em expressar os seus sentimentos e afetos, não obstante sempre ter mostrado disponibilidade para prestar todo o apoio a financeiro que a família necessitava.

a.55) Há cerca de 4 anos (…) passou a apresentar alguma instabilidade a nível emocional, pelo que, por sugestão dos filhos e da ex-mulher, foi acompanhado em consultas de neurologia em médico da sua confiança, e iniciou terapêutica com ansiolíticos. Após o divórcio, (…) terá agravado a sua postura de instabilidade emocional, pelo que consultou um médico psiquiatra.

a.56) No período que antecedeu a prisão preventiva, o arguido residia maritalmente desde fevereiro de 2017 com (…), numa casa que era propriedade desta e que se situa numa zona rural, onde não existem problemáticas significativas.

a.57) O arguido iniciou o relacionamento amoroso com (…) ainda durante o período de vigência do casamento, mas apenas após o divórcio assumiu a relação amorosa perante os familiares, a qual se apresentava estável, pese embora nos últimos meses tenham ocorrido alguns conflitos e desentendimentos.

a.58) A subsistência do casal era assegurada pelo salário do arguido, que trabalhava como motorista na distribuição de produtos alimentares e auferia cerca de 650€ mensais, e pelo salário da (…), a qual trabalhava numa empresa de cerâmica da região e auferia o equivalente ao salário mínimo nacional. As despesas domésticas eram partilhadas pelo casal.

a.59) O arguido ocupava os seus tempos livres na prática trabalhos de bricolage na residência da (…), e frequentava algumas danceterias da região.

a.60) O arguido apresenta uma condição clínica designada de “Perturbação de Personalidade Mista”, com predomínio de traços paranóides, ansiosos e antissociais, que se caracteriza por um padrão estável e persistente de funcionamento intrapsíquico perturbado (estruturação maladaptativa da personalidade / carácter ) e consequente manifestação comportamental conforme, também perturbada: sentimentos de injustiça, tendência a projectar a culpa e a hostilidade expressando os conteúdos agressivos de formas indirectas, envolvendo outras pessoas, podendo apresentar suspeição, rigidez e hostilidade, pessoa imatura, queixosa, exigente, pessimista, teimosa e manipuladora, timidez, introversão, ansiedade social, sentimentos de inferioridade, falta de confiança, ansiedade, tendência ao isolamento e dificuldades nas relações sociais.

a.61) Tal condição clínica é permanente no tempo, não existindo cura para ela, à luz dos conhecimentos científicos actuais, podendo o tratamento servir para atenuar a manifestação comportamental da mesma. Existe probabilidade de o arguido voltar a cometer factos da mesma natureza daqueles em apreço nos presentes autos, em caso das circunstâncias em que se venha a encontrar configurem uma situação interpretada pelo mesmo como de elevada contrariedade.

a.62) A condição clínica de “Perturbação de Personalidade Mista” que o arguido padece não impedia o mesmo de avaliar a ilicitude dos seus actos nem de se determinar de acordo com essa avaliação.

a.63) No Estabelecimento Prisional de Leiria, o arguido recebe acompanhamento psicológico e psiquiátrico, continuando a fazer a medicação ansiolítica que já antes tomava.

a.64) No Estabelecimento Prisional de Leiria, o arguido frequentou um curso de formação de informática cujos conteúdos incluem também uma vertente psico-educacional. Actualmente encontra-se inativo.

a.65) Os filhos do arguido mostram-se zangados e desiludidos com a postura e conduta deste, todavia, já o visitaram no Estabelecimento Prisional e futuramente mostram-se disponíveis para lhe prestar o apoio que necessitar. Os progenitores e a ex-namorada (…) também já visitaram o arguido no EP.

a.66) Do CRC do arguido nada consta.

b) Factos não provados

(…).

c) Fundamentação da Matéria de Facto

(…).


*

d) Qualificação jurídica dos factos

(…).

e) Determinação da Medida da Pena

(…).


*

f) Do Pedido de Indemnização Civil deduzido a fls. 507 e segs:

(…).


****

III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º 1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões». 

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões a conhecer são as seguintes:

 – Saber se:

1) há erro de julgamento relativamente ao que consta da alínea a.2) dos factos provados e da alínea i) dos factos não provados/ deve ser aditado um facto provado do qual conste o arrependimento do arguido;

2) a conduta do arguido não pode ser integrada na alínea i), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal;

3) a medida concreta da pena deve situar-se nos 16 anos de prisão. 


****

1) Do erro de julgamento relativamente ao que consta da alínea a.2) dos factos provados e da alínea i) dos factos não provados/ aditamento de um facto provado do qual conste o arrependimento do arguido:

(…).

                                                           ****

O recorrente, ainda em sede de matéria de facto, considera que deve ser dado como provado o seu arrependimento.

O facto de o arguido declarar, por várias vezes, que se encontra arrependido pelo crime praticados, não configura, por si, prova suficiente do declarado arrependimento.

A mera verbalização de arrependimento pela conduta delitiva, mesmo consentindo uma atitude contrita, não se figura suficiente para fazer inscrever tal matéria nos factos provados, pois que o arrependimento só terá vigor atenuativo se traduzido em atos que o revelem, vale dizer, que demonstrem que o arguido interiorizou o desvalor da conduta, que se penaliza pela sua prática, e que atenuou ou intenta atenuar, até ao possível as consequências negativas dos atos delitivos perpetrados e que está determinado a não reiterar condutas delitivas.

Em casos de homicídio, sempre salvo o devido respeito, quando genuíno, o arrependimento não pode limitar-se a meros pedidos de desculpas, orais ou escritas, aos familiares da vítima, não pode ficar só por palavras ou intenções de pagar uma indemnização, quando isso é possível.

Matar alguém, de modo voluntário, não se compadece com simples pedidos de desculpa como manifestação de arrependimento.

Deve passar muito por uma atitude corporal reveladora de contrição que não deixa dúvidas sobre a sentida reflexão que o precedeu e, acima de tudo, pela assunção total do ato praticado, manifestada de uma forma especial que o comprove.

No caso presente, não resulta ter o arguido demonstrado, em audiência de julgamento, qualquer sinal de que o arrependimento manifestado através de palavras fosse acompanhado de algo mais.

Note-se, aliás, que o arguido nem demonstrou ter interiorizado totalmente o alcance do que fez, pois, durante o julgamento, deu uma explicação para os seus atos que não coincide com aquela que foi dada como provada, o que significa que continuou a procurar uma justificação para o sucedido que mitigue a sua culpa.

Na verdade, ainda que o arguido tenha afirmado estar arrependido, a sua postura face aos eventos ocorridos, procurando branquear a sua conduta, tentando diminuir o desvalor da sua ação, ou seja, desculpando­-se a si mesmo, ao invés de assumir a responsabilidade pelos seus atos, revelam que não foi afetado de forma relevante pelos factos que praticou, que não está arrependido (ninguém pode estar genuinamente arrependido de algo que nega ter feito ou, aceitando que o fez, apresenta justificações para assim ter agido, sem qualquer sustentação).

A demonstração do arrependimento passaria por aceitar os factos como descritos na acusação, pois uma confissão integral vai muito para além das meras palavras de arrependimento, apontando para algo genuíno.

Assim sendo, não vislumbramos motivo para o solicitado aditamento.


****

2) Da conduta do arguido não poder ser integrada na alínea i), do n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal:

O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2, alíneas. b), i) e j), do Código Penal.

O recorrente considera que a sua conduta não pode ser integrada na mencionada alínea i), na medida em que, à semelhança de um canivete, também uma faca de cozinha, apesar de também poder ser usada como arma de agressão, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de “meio insidioso”.

Pela sua pertinência quanto à presente questão, entendemos por bem citar o Acórdão do TRE, de 5/3/2013, Processo n.º 1264/11.0PCSTB.E1, relatado pelo Exmo. Desembargador João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt:

“(…). Trata-se da alínea que prevê o clássico “meio insidioso”. Em termos literais, a qualificativa por especial censurabilidade ou perversidade através de uso de “veneno ou qualquer outro meio insidioso”.

A jurisprudência e a doutrina têm estabilizado, ao longo dos anos, a definição deste conceito dentro do “exemplo padrão”, não obstante a aplicação prática do preceito, por vezes, surja associada a outros conceitos, como o uso de “meio particularmente perigoso” (al. h), a especial desproteção da vítima (al. c) ou se pretenda estender o conceito, confundindo-o com as suas consequências.

Na doutrina o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal –Parte Especial, Tomo I, pags. 38-39) afirma que «”insidioso” será todo o meio cuja forma assuma características análogas às do veneno, do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subretício, dissimulado ou oculto». Centralidade ao “meio”, portanto.

Maria Margarida Silva Pereira (Textos – Direito Penal II – Os Homicídios, Vol. II, Apontamentos de aulas 9/97, p. 42 – AAFDL, 1998) chama-lhe homicídio por traição ou por insídia, sendo que esta é “aproveitar distração, enganar a vítima, criar uma situação que a coloque em posição de não poder resistir com a mesma facilidade”. Centralidade à “situação”.

Na jurisprudência, para nos atermos ao século (com uma ou outra referência ao anterior, pelo que não há exaustividade), já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-11-2002 (Proc. 02P2812, rel. Cons. Lourenço Martins) referia o conceito à forma de atuação sobre a vítima como análoga à do veneno pelo seu «carácter enganador, subretício, dissimulado ou oculto»

Também já afirmava a dualidade do conceito pela “utilização de meios tendentes ao aproveitamento da desproteção da vítima”, algo que nos parece surgir como consequência, que não como critério.

A dificuldade na delimitação do conceito vem igualmente a espelhar-se na contraposição com o conceito de “meio especialmente perigoso”, conceito que, autónomo em função da previsão da alínea h), não parece poder ser utilizado como critério diferenciador, pois que a especial perigosidade já é consequência da insídia.

Quer-nos parecer que o fio condutor na análise deste “exemplo-padrão” se deve orientar pelo clássico “uso do veneno”, por apelo à natureza dissimulada da ação, como aliás, tem sido referido pela jurisprudência, designadamente pelo acórdão do STJ de 13-07-2011 (proc. 758/09.1JABRG.G1.S1, rel. Cons. Henriques Gaspar).

O carácter enganador, dissimulado, oculto, de traição ou perfídia, vem a ser retomado na fundamentação de vários acórdãos do STJ ao longo dos anos, com várias formulações, mas de acordo no essencial:

«Para efeitos de qualificação do homicídio, por meio insidioso, é de ter se tiver aquele cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subretício, dissimulado ou oculto - que, por sê-lo, não poderia deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida” - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 16-10-2003 (Proc. 03P3280, rel. Cons. Pereira Madeira);

«O meio é insidioso quando corresponde a um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida» - Acórdão STJ de 20/2/04 (Proc. n.º 1127/04 – 5ª, rel. Cons. Costa Mortágua);

“No conceito de meio insidioso cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-03-2005 (Proc. 05P546, rel. Santos Carvalho);

« …este tipo de comportamento é análogo à ação do veneno, no que tem de manhoso, capcioso e actuando de forma inesperada, apanhando a vítima desprevenida e deixando-a sem possibilidade de reagir» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 14-07-2006, proc. 06P1926, rel. Cons. Rodrigues da Costa);

«No meio insidioso o poder mortífero da arma mostra-se oculto; a vítima não o apreende, apercebendo-se do gesto criminoso» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-07-2007, proc. 07P1583, rel. Cons. Armindo Monteiro);

«”Insidioso” será todo o meio cuja forma assuma características análogas às do veneno» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2008 (proc. 07P4200 rel. Cons. Rodrigues da Costa);

«O meio insidioso traduz-se, por um lado, num comportamento caracterizado pela traição, por uma ação dissimulada, e, por outro lado, derivado disso, na colocação da vítima numa situação de pouca ou nenhuma possibilidade de defesa» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-04-2009 (proc. 08P3277, rel. Cons. Souto de Moura);

«O meio insidioso, conceito de difícil definição, tem subjacente uma ideia de utilização de meio dissimulado em relação ao qual se torna mais precária, ou ténue, uma reação defensiva» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-2010 (Proc. 58/08.4JAGRD.C1.S1, rel. Cons. Santos Cabral);

«Meio insidioso é o que se apresenta como enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para com a vítima, constituindo uma surpresa para a vítima ou colocando-a numa situação de vulnerabilidade ou desproteção em termos de a defesa se tornar difícil; é o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de se perceber o gesto criminoso.» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-07-2011 (proc. 758/09.1JABRG.G1.S1, rel. Cons. Henriques Gaspar)

Meio insidioso, em resumo, é o ataque sorrateiro que atinge a vítima descuidada ou confiante, o ataque dissimulado, enganador, traiçoeiro, pérfido, desleal para com a vítima.

Constatando isto, verificamos que estamos já longe da simples equiparação de um qualquer “meio” ao veneno.

Já não estamos só a falar de meios, sim também de “situações”.

Se com o veneno - e a equiparação do conceito de “meio insidioso” ao mesmo - se prevê um meio de execução da insídia, um instrumento, cedo surgem situações que se não limitam ao uso do meio, sim à perfídia pelas circunstâncias da ação (como, aliás, se constata nos exemplos jurisprudenciais supra citados).

É assim que se parte para a constatação de que a noção de "meio insidioso abrange não apenas os meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desproteção da vítima em relação ao agressor.”

E assim o termo «meio insidioso» vem a abranger não apenas o uso de um meio, um instrumento, mas também uma forma de ação, entre outras, a espera, a emboscada, a traição, a surpresa, a fraude, enfim, a dissimulação da ação.

Ou seja, o “meio” transmutou-se em “modo”, por necessidade da praxis, pelo que a al. i) deve passar a ser lida, de forma, pragmática como “utilizar veneno ou qualquer outro meio [ou modo] insidioso”.

Ou, em alternativa “utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso [ou modo dissimulado] ”, na medida em que o STJ vem a assumir claramente que a alínea abrange o “meio (instrumento) para execução do facto” e o “modo de execução do facto”, através da diferenciação das figuras da insídia e da dissimulação, consagrando o critério dual de análise normativa, ao lado da persistência do veneno como “meio”.

Veja-se o acórdão do STJ de 04-05-2011 (processo nº 1702/09.1 JAPRT.PLSI, rel. Cons. Armindo Monteiro): “A dissimulação é a ocultação da intenção hostil para com a vítima, surgindo à falsa fé quando não se perfila qualquer propósito de ofender; a insídia repousa mais no meio usado; a dissimulação mais no modo como é usado”. [6]

Nesta senda, de forma mais ou menos clara e sistematizada, seguiram os acórdãos do STJ de 09-06-2011 [7] (proc. 4095/07.8TPPRT.P1.S1, rel. Cons. Isabel Pais Martins) e 13-07-2011 [8] (Proc. 758/09.1JABRG.G1.S1, rel. Cons. Henriques Gaspar), de 07-09-2011 [9] (Proc. 356/09.0JAAVR.S1, rel. Cons. Oliveira Mendes) e de 30-11-2011 [10] (Proc. 238/10.2JACBR.S1, rel. Raul Borges).

Portanto, concluindo pela positiva, a insídia atua pelo meio e pelo modo, ambos traiçoeiros, pérfidos, inesperados, não-frontais, pelo que a alínea abrange a previsão de três situações: o uso de veneno; o uso de outro meio insidioso; a dissimulação da ação.

E pela negativa, para a caracterização da insídia ou dissimulação é irrelevante:

- o uso de “materiais especialmente perigosos de execução do facto”, já que característicos da al. h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal (o meio insidioso também pode ser especialmente perigoso);

- a possibilidade de o uso do meio afetar outros bens jurídicos (pode ocorrer mas é irrelevante como critério);

- a circunstância de sobressair a desproteção da vítima, circunstância esta devidamente protegida na al. c), que pode ocorrer mas também é irrelevante como critério;

Ocorrendo necessariamente – a desprotecção, por exemplo – ou podendo ocorrer no caso de uso de meio especialmente perigoso ou com possibilidade de afectar outros bens jurídicos, não caracterizam o exemplo-regra ou exemplo-padrão da alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.

Ora, passando ao concreto devemos começar por afirmar que, quando o Código Penal fala em meio insidioso não está a prever os instrumentos que habitualmente são utilizados na prática dos ilícitos penais como por exemplo o pau, a faca, a catana, a enxada, a pistola, mesmo que usados de surpresa.

Já o acórdão do STJ de 11 de Janeiro de 1995 [rec. n.º 46 631, BMJ 443 (1995), pág. 54] referia que (III) “ao aludir a «meio insidioso» — artigo 132.º, n.º 2, alínea f),do Código Penal —, a lei não quer abarcar os instrumentos usuais de agressão, ainda que manejados de surpresa, mas sim a utilização de meios ou expedientes de relevante carga de perfídia, como os que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agressor, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima, meios que andam sempre relacionados com uma certa traição e deslealdade do agente”.

Em termos percentuais e ressalvando a inexistência de estudos de campo, serão em menor número os casos em não existirá surpresa na ação ou no uso de meio, pelo que atribuir valor à surpresa como critério é desvirtuar a norma.

Também porque surpresa não é sinónima de traição. Aqui, no caso, terá havido surpresa – admite-se como eventualidade - mas não se prova traição, no sentido de acção dissimulada, pérfida.

E o facto de a arma ter sido usada "à queima-roupa" ou quase, é uma circunstância que não pertence à natureza da arma e que, portanto, não a torna insidiosa.

Assim, não sendo a arma (o meio, o instrumento) meio insidioso, resta saber se o modo o foi.

O que se prova é que o arguido abandona a discussão com a vítima, vai ao quarto buscar a arma, regressa e, estando esta deitada na cama, dispara.

Não há aqui qualquer dissimulação. Não há aqui qualquer traição.

As circunstâncias que impressionaram o tribunal recorrido (aproveitando estar sozinho com a vítima e esta estar indefesa) são irrelevantes para a caracterização da insídia.

Ambas são circunstâncias já tuteladas pela al. b) – e não tuteladas pela al. i) - e dispondo o arguido de arma no domicílio, a vítima estaria sempre indefesa face a qualquer seu acto de agressão. [14]

Não há lugar, pois, à agravante prevista na al. i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, pois que nem o meio é insidioso, nem a ação foi dissimulada.”

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            Aqui chegados, com base na doutrina e na jurisprudência acabadas de citar, consideramos que o uso da faca, por si, enquanto instrumento do crime, não deve ser considerado meio insidioso.

Contudo, já a ação do arguido foi dissimulada.

Na verdade, engendrou um esquema que lhe permitiu aparecer na residência de ambos, sem ninguém dar por isso, e surpreender a sua companheira, quando esta estava de costas, a almoçar, degolando-a, para, de seguida, também sem ninguém dar por isso, abandonar o local, após deixar rastos de que teria ocorrido um assalto, sem esquecer que, mais tarde, ao regressar do dia de trabalho, manifestou surpresa e desespero pela morte de (…).

Assim sendo, a ofendida foi atacada à traição, pelo que a conduta do arguido deve ser vista como um meio insidioso, enquanto modo dissimulado da ação.

Por conseguinte, soçobra a pretensão do recorrente.


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3) Da medida concreta da pena dever situar-se nos 16 anos de prisão:

Em nenhum outro momento o Juiz incorpora tão dramaticamente a Justiça, como quando fixa a pena aplicável, sendo certo que a lei não conhece indivíduos, prevendo apenas espécies – cf. R. Salleilles, “La Individualisation de la Peine”, Étude de Criminalité Sociale, Paris, 1927, pág. 267.

Conforme disse Montesquieu, «a justiça das penas, mais do que a sua severidade, é o que consagra a força das leis», tanto mais que uma pena não deve visar a retaliação sobre quem cometeu um crime, antes deve dirigir-se para a respectiva ressocialização.

Indubitável que os factos que ficaram provados são de extrema gravidade. O arguido atacou o bem jurídico mais valioso da nossa sociedade: a vida humana.

Nas suas conclusões, o recorrente pugna pela redução da pena para 16 anos de prisão.

Como todos sabem, a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º CP ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo. Ao referirmo-nos a culpa, fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 219).

É, pois, correcto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre actualizada no facto. De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, actualmente referidos de forma expressa no art.º 40.º, do Código Penal (cfr. Claus Roxin “Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal”, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94). A escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos.

Em síntese, o ilícito deve ser valorado em função da gravidade do ataque ao objecto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos, em suma, o efeito externo, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.

Revertendo ao caso dos autos:
Urge, pois, fazer apelo aos critérios estatuídos no citado art.º 71º, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Desde logo, deve ser tido em conta que o arguido agiu com elevado grau de ilicitude, degolando a vítima, desferindo-lhe vários golpes no corpo, atingindo-a no tórax e abdómen e membros superiores, o que revela grande agressividade no modo de execução.
Ainda com acentuado carácter agravante, há que considerar o dolo directo do arguido.
Além disso, ainda com carga negativa, a sua conduta revela uma personalidade calculista, capaz de dissimular os seus intentos.
O arguido não interiorizou o desvalor da sua conduta, em toda a sua dimensão.
São muito elevadas as exigências de prevenção geral, pois são cada vez mais frequentes os homicídios no seio das famílias, como é referido no acórdão recorrido.
Na realização dos fins das penas, as exigências de prevenção geral constituem, nos casos de homicídio, uma finalidade de primordial importância.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proibe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - artigo 24.º da Constituição da República – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade de qualquer cidadão e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos.
A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.   Como expende Figueiredo Dias em “O sistema sancionatório do Direito Penal Português”, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.
Como referido em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes.
No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, assaz brutal, a qual revela um reduzido valor que atribui à vida humana.
Uma pena inferior à aplicada na decisão ora em crise não implicaria para o arguido uma dissuasão necessária para nele reforçar o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.
Seria banalizar o seu comportamento, assim como de outros que agissem como ele, em circunstâncias semelhantes.
E no caso de infratores ocasionais, como é o caso do recorrente, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora a única que faz sentido em sede de prevenção especial.
Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, cremos que será de manter a pena aplicada de 22 anos de prisão, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrido.

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            IV. Decisão:

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5 ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP).

Coimbra, 4 de Dezembro de 2019

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (ajunta)