Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
273/05.2TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
RECUSA
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.405, 410, 413, 440, 441, 801, 808 CC, 106 CIRE
Sumário: 1. - Decorre do n.º 1 do artigo 106.º do CIRE, que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato promessa, desde que verificados cumulativamente dois requisitos: i) se foi atribuída eficácia real ao contrato; ii) se houve prévia traditio.
2. - Não tendo sido atribuída eficácia real ao contrato promessa, verificando-se a ausência de um dos requisitos essenciais previstos no n.º 1 do artigo 106.º do CIRE, apesar de ter havido traditio da coisa prometida, o administrador da insolvência pode recusar o cumprimento do contrato.

3. - Não se poderá considerar sinal, um crédito não quantificado no contrato, referente a comissões de vendas, devido pelo promitente-vendedor ao promitente-comprador.

4. - Ainda que haja sinal, porque o administrador da insolvência actua de forma lícita, no âmbito das suas atribuições e competências legais, ao abrigo da faculdade de recusa que lhe é conferida pelo artigo 106.º do CIRE, não se verifica o incumprimento culposo, mas antes uma forma especial de extinção do contrato, prevista na lei, sem que importe restituição em dobro.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
L (…) intentou a presente acção declarativa, que corre termos sob a forma ordinária, contra J (…) pedindo que seja proferida sentença que, por força da execução específica do contrato-promessa referido no artigo 1º da petição inicial, declare a autora e condene o réu a reconhecê-la como dona e legítima possuidora do imóvel identificado nos artigos 1º a 6º da petição inicial, condenando-se ainda o réu a pagar à autora a quantia que se vier a apurar ser suficiente para cancelar junto da “Entidade bancária..., S.A.” a hipoteca que incide sobre o imóvel.
A título subsidiário, pediu a autora: a condenação do réu no pagamento da quantia de € 146.646,58 correspondente ao dobro do sinal/preço que recebeu com a retenção em seu poder das comissões devidas à autora; ou a condenação do réu, no pagamento, por força de uma eventual nulidade do contrato-promessa, da quantia de € 73.323,29 e juros, à taxa de 4%, desde 30 de Setembro de 2003, acrescidos de € 18.335,81 referentes a comissões não pagas nem imputadas no preço do contrato-promessa, conferindo-se à autora o direito de retenção do imóvel enquanto essa quantia não for integralmente liquidada.
Para tanto alegou, em síntese: por contrato escrito de 30 de Junho de 2002, o réu prometeu vender à autora, prometendo esta comprar, uma fracção de um prédio urbano correspondente à fracção B, parte de um condomínio; as assinaturas das partes apostas nesse contrato não foram reconhecidas presencialmente porque o réu prescindiu dessa formalidade alegando não haver necessidade do seu cumprimento, também não tendo sido feita menção à licença de utilização na medida em que o réu ainda não a tinha conseguido obter; foi acordado que a escritura definitiva devia ser feita até 30 de Agosto de 2003 sem se estipular qual dos outorgantes a devia marcar; uns dias antes do final de Agosto de 2003, o réu veio dizer que não faria a escritura, pelo que a autora lhe fixou um prazo admonitório ou suplementar de 30 dias, comunicando ao réu que tinha marcado a escritura para 30 de Setembro de 2003; o réu não compareceu nem justificou a ausência, assim incumprindo culposamente o contrato no qual se havia consignado que a venda seria feita livre de ónus ou encargos; no contrato-promessa não foi fixado qualquer sinal a pagar pela autora, uma vez que o réu tinha consigo 50% das comissões àquela devidas no âmbito de um contrato de agência que haviam celebrado; na verdade, o réu contratou a autora como promotora de vendas das moradias construídas no condomínio, tendo a autora direito a uma comissão de 5% ou de 2,5%, consoante a venda fosse feita através da autora ou por outras agências, e ainda a metade da diferença entre o preço pretendido pelo réu e o preço efectivo da venda ao cliente; à excepção da moradia prometida à autora e uma outra a uma filha do réu, a autora arranjou compradores para as restantes moradias, pelo que, a título de comissões e de overprice, o réu teria de lhe pagar € 115.746,05, tendo feito entregas que totalizaram apenas € 24.086,95.
Conclui a autora que, a considerar-se que o montante retido pelo réu constitui sinal do contrato-promessa, compete ao réu dobrar a quantia correspondente ao preço de venda acordado, perfazendo € 146.646,58; a considerar-se nulo o contrato-promessa, por omissão de formalidades imputáveis à autora, esta tem o direito à restituição do que prestou, isto é, ao montante das comissões e outros valores até ao preço da venda prometida realizar, acrescido de juros desde a data do incumprimento definitivo.
O réu contestou alegando não falar, não ler, nem escrever português, tendo assinado todos os contratos sem nunca os ler e desconhecendo as exigências legais como o reconhecimento presencial das assinaturas e a certificação notarial da existência de licença de utilização.
Mais alegou que: a autora não está legalmente habilitada para exercer a mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda; por outro lado, a autora concordou em receber uma comissão, de 5% ou 2,5%, consoante fizesse a venda ou a mesma fosse feita por terceiros, sobre o preço da tabela, concordando ainda em não receber qualquer comissão nas vendas feitas exclusivamente pelo réu, não constando do contrato esta última condição porque a autora disse ao réu que era desnecessário; mais acordaram que os preços de tabela de venda seriam revistos à medida que as casas fossem construídas, sendo as comissões calculadas em relação a esses preços e deduzidas no overprice; ao ignorar tais condições, a autora disparou o valor dos seus rendimentos para uma verba inadmissível; acresce que, como contratualmente estipulado, o réu reteve, a título de sinal, metade das comissões que acordou pagar à autora, pelo que só esse valor poderia ser considerado como sinal.
Na sua contestação, o réu impugnou a alegada recusa em fazer a escritura em Setembro de 2003, alegando que só não foi efectuada por ainda se encontrar em falta parte do preço da venda, e que pagou à autora € 26.132,37, sendo que, até àquela data, a autora tinha direito a comissões no montante de € 46.687,63.
O réu pediu ainda a condenação da autora, como litigante de má-fé, em multa e indemnização, deduzindo em reconvenção os seguintes pedidos:
a) A declaração de nulidade dos contratos mencionados nos artigos 1º e 29º da petição inicial; ou, a considerarem-se válidos,
b) A condenação da autora a reconhecer que o valor do sinal prestado equivale a metade das comissões apuradas com referência à actividade por si prestada até 30 de Setembro de 2003;
c) A sua condenação pelo incumprimento culposo do contratopromessa com a consequente perda do sinal;
d) Em qualquer caso, a condenação da autora em indemnização pela ocupação e utilização que fez da casa objecto do contrato prometido desde 30 de Junho de 2002 até efectiva desocupação e entrega ao réu, computada em € 250,00 por cada mês de ocupação, somando até à data a quantia de € 9 500,00.
Na réplica, a autora alega que o réu entende tudo o que lhe dizem e que discute pormenorizadamente qualquer cláusula, acordo ou negócio que lhe proponham, que nunca se recusou a celebrar a escritura, que nada deve ao réu e sempre ocupou a casa sem oposição ou pedido de desocupação da mesma, impugna a restante matéria de facto alegada pelo réu, refere que o réu confessou extrajudicialmente que já recebeu o preço do imóvel prometido vender, dando ainda o consentimento na sua ocupação, e concluiu pela improcedência deste e pede a condenação do réu, como litigante de má-fé.
O réu apresentou articulado de tréplica alegando não ter assinado a declaração de quitação, que constitui a confissão invocada pela autora, mantém o alegado na contestação e conclui pela impugnação da genuinidade e autenticidade do documento.
Posteriormente, a autora veio alegar que após a entrada da acção, o réu celebrou mais uma escritura de venda de uma moradia do condomínio com base na promoção efectuada pela autora, que assim tem direito a receber a quantia de € 5.375,00, e que interveio em dois outros negócios cujas escrituras ainda não foram realizadas mas em relação aos quais o réu já recebeu a totalidade do dinheiro, cabendo à autora as quantias de € 5.500,00 e de € 2.525,00, sendo que, neste segundo caso, ser-lhe-ia devida a importância de € 7.125,00, mas o réu já lhe entregou € 4.600,00.
Com fundamento nos novos factos alegados, requereu a ampliação do pedido descrito na alínea c) para o montante de € 86.713,29, acrescido das restantes quantias aí referidas.
O réu respondeu sustentando que a ampliação do pedido não constitui desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, pelo que só poderia ter lugar na réplica, alegando ainda que o valor de € 4.600,00 corresponde à totalidade da comissão acordada entre as partes em relação a um dos negócios e impugnando a alegada promoção da venda pela autora relativamente aos restantes negócios, concluindo pelo indeferimento do pedido de ampliação.
Admitida a ampliação do pedido e julgada válida e regular a instância em sede de despacho saneador, o Tribunal procedeu à selecção da matéria de facto assente e controvertida com relevo para a decisão da causa em termos que mereceram reclamação da autora, parcialmente deferida.
Foi o réu entretanto declarado insolvente, por sentença transitada em julgado, veindo o respectivo administrador a intervir no processo, passando a figurar, na qualidade de ré, a massa insolvente de J (…)
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi decidida a matéria de facto, sem reclamações, após o que foi proferida sentença, onde se decidiu:
«I) Indeferir o pedido de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
II) Na total improcedência da acção, absolver a ré massa insolvente de D (…) de todos os pedidos formulados pela autora L (…).
III) Na parcial procedência da reconvenção:
i) Declarar a nulidade do contrato de mediação imobiliária outorgado entre a autora L (…) e o insolvente J (…), condenando a autora a restituir à ré massa insolvente de J (…) a quantia de € 26 132,00 (vinte e seis mil cento e trinta dois euros);
ii) Condenar a autora a desocupar o imóvel que vem ocupando.
IV) Absolver a autora dos restantes pedidos deduzidos pela ré.
V) Julgar não verificada a litigância de má-fé de autora e ré.»
Não se conformando, veio a autora interpor recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

1. Declarado judicialmente o incumprimento culposo do promitente vendedor já não pode o administrador da massa declarar que não quer cumprir, dado que o incumprimento gerou imediatamente os efeitos da resolução imprópria, limitando-se o tribunal a concretizar os efeitos que decorrem da lei – no caso substituir apenas a declaração do faltoso.

2. A norma do artigo 106 do CIRE apenas visa regular as situações em que ainda não há esse incumprimento definitivo culposo, onde também ainda se pode recorrer à execução específica (sendo que o STJ, Ac. 21.01.2003, ao contrário de Calvão da Silva, admite essa mesmo em caso de mora).

3. Ou seja, deve ler-se tal norma apenas para os casos em que ainda não procedeu resolução, própria ou imprópria, e essencialmente onde ainda não decorreu uma situação de incumprimento culposo definitivo.

4. A alteração legislativa enunciada no preâmbulo do CIRE (‘Poucas são as soluções que se mantiveram inalteradas neste domínio’ e ‘deverá tratar-se de contrato em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento tanto pelo insolvente como pela outra parte’) dão-nos a exegese interpretativa de tal preceito.

5. Tal interpretação está de acordo com os efeitos da resolução imprópria, que opera ispo iure, sem necessidade de qualquer declaração.

6. E está de acordo com a potestividade da entrega do imóvel, que é afinal aquilo que se exige na acção de execução específica, adequando-se ao direito de retenção.

7. Deste modo, deve alterar-se a douta decisão no sentido de conceder o direito de execução específica do contrato.

8. O acordo dado pelo insolvente à remuneração dos serviços prestados pela autora sob a forma de comissões e partilha do overprice não é irrelevante.

9. Constitui contrato de agência, realizado no âmbito da liberdade de autonomia de vontade, admissível em direito, enquanto prestação de serviços.

10. Um tal acordo, se olhado à luz do DL 211/2004 seria mesmo lícito, não sendo contrato de mediação imobiliária mas sim a actividade de angariação imobiliária, permitida pelo artigo 4º do DL 211/2004, apenas dependente de inscrição em organismo oficial aí especificado.

11. Porém, ao tempo em que foi firmado, tal acordo não tinha tratamento legislativo, porquanto sobre isso era omisso o DL nº 118/93, de 13 de Abril, ficando apenas legislada a matéria da angariação no DL de 2004.

12. Para preencher a lacuna legislativa sempre pode o intérprete socorrer-se das normas do contrato de agência, por recurso ao artigo 10 nº 1 do CC.

13. De acordo com o artigo 293 do CC, o conteúdo desse negócio nulo seria certamente conteúdo de negócio regular, por ter os elementos essenciais desse, a forma e o fim prosseguido, sendo que lhes era lícito supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade.

14. Ademais, o sinal não pode ser havido como contrato autónomo, não se confundindo com o seu valor.

15. A prestação que constitui o sinal será sempre uma prestação, mesmo que tivesse origem em contrato nulo.

16. Porque as partes podem fixar livremente o conteúdo positivo da prestação e corresponde a um interesse do credor, digno de protecção legal. (artigo 397 e 397 do CC)

17. Sendo que a lei consubstanciou no artigo 397 e 398 a teoria de que a prestação é uma comportamento e actividade do devedor e só mediatamente se configura como coisa.

18. Jamais, pois, a invalidade resultante desse acordo poderia afectar a prestação do sinal.

19. Mesmo que assim fosse, - isto é contrato inválido – sempre o valor dessa prestação teria que ser devolvido, por força do artigo 289 do CC.

20. De outro modo, o benefício do credor dessa prestação seria injustificado e locupletamento à custa alheia, não tolerado pelo direito.

21. Por isso, para o caso de proceder nulidade, deve proceder direito a restituição do recebido (valor da prestação da Autora), procedendo então o pedido c) da acção.

22. E de todo o modo, deve improceder a condenação na entrega da casa, que nem sequer foi peticionada na reconvenção, constituindo tal conhecimento nulidade da douta sentença (artigo 668 nº 1 al. d do CPC)

23. Foram violadas as disposições dos artigos 106 do CIRE, 10, 289, 293, 397 e 398, 410, 441, 442 do CC, Assento do STJ nº 4/95, de 28MAR95, Dec. Lei nº 178/86, de 3/07 (com as alterações do DL nº 118/93, de 13/04 (contrato de agência), e DL nº 118/93, de 13 de Abril e 668 nº 1 alínea d) do CPC.

Termos em que

Alterando-se a decisão recorrida, no sentido de conceder o direito de execução específica ou subsidiariamente considerar que tem carácter de sinal a quantia entregue ou retida a título de comissão, e deste modo absolvendo-se a Autora ainda do pedido reconvencional, se fará Justiça.
A ré não apresentou contra-alegações.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) definição do âmbito de aplicação do artigo 106.º do CIRE – nas conclusões 1.ª a 7.ª, a recorrente alega que a norma em causa não é aplicável in casu, porque apenas visa regular as situações em que ainda não há incumprimento definitivo culposo; ii) aferição da natureza e validade do contrato celebrado entre a autora e o primitivo réu (insolvente) – matéria suscitada pela recorrente nas conclusões 8.ª a 17.ª; e iii) definição das consequências da eventual declaração de nulidade do contrato celebrado entre as partes – matéria suscitada nas conclusões 18.ª a 23.ª.

2. Fundamentos de facto
Está provada nos autos a seguinte factualidade relevante (que não foi objecto de impugnação):
1) Por acordo reduzido a escrito celebrado em 30 de Junho de 2002 (e não 30 de Junho de 2001 como consta do mesmo), J (…) prometeu vender à autora, “livre de quaisquer ónus ou encargos”, e esta prometeu comprar-lhe o seguinte prédio: “fracção B composta de rés-do-chão e 1º andar com arrumos, aos quais foi atribuído o nº 2, destinado à habitação, constituída por sala, dois quartos, três casas de banho e cozinha equipada” [alínea A)].
2) Refere-se na cláusula 1ª do contrato, que a aludida fracção faz parte de um condomínio resultante de uma operação urbanística a que foram sujeitos os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ... e ...[alínea B)].
3) Os aludidos prédios, que pertenciam a J (…) e que se situam na freguesia de ..., foram anexados e deram lugar ao prédio misto descrito sob o nº ... [alínea C)].
4) Através da apresentação 02/171201 foi depois desanexado dessa descrição o prédio descrito sob o nº ..., onde, por sua vez, foi reconstruído um edifício constituído por 6 moradias integrado pelas fracções autónomas “A”, “B”, “C”, “D”, “E” e “F” [alínea D)].
5) Consta da cláusula 3ª do acordo aludido em 1: «o pagamento será efectuado pela já retenção de 50% do total das comissões em dívida a segunda outorgante da 1 fase já concluída em Maio de 2002 e 50% do total das comissões em poder do primeiro outorgante, no acto das escrituras das primeiras oito fracções da segunda fase do projecto» [alínea E)].
6) Acordaram as partes que a autora não tinha de entregar a J (…) qualquer quantia a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões devidas à autora no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado [alínea F)].
7) O preço acordado pela autora e J (…) foi de PTE 14.700.000$00/€ 73.323,29 [alínea G)].
8) Acordaram as partes que a escritura se realizaria até 30 de Agosto de 2003 [alínea H)].
9) A autora remeteu a J (…), em 30 de Agosto de 2003, uma carta registada com a comunicação de que tinha acabado de marcar a escritura no Cartório Notarial de ... para 30 de Setembro de 2003 [alínea I)].
10) J (…) não compareceu no Cartório Notarial de ... no dia 30 de Setembro, encontrando-se no aludido Cartório alguma documentação para a realização da escritura de compra e venda marcada [alínea J)].
11) Encontra-se registada hipoteca a favor da “ Entidade bancária..., S.A.” sobre o imóvel objecto do contrato-promessa [alínea K)].
12) J (…) contratou a autora como “promotora de vendas” de todas as moradias construídas no aludido Condomínio da Estrela, por contrato celebrado por escrito em 26 de Outubro de 2000 [alínea L)].
13) Ficou acordado que a autora receberia: uma comissão de 5% sobre o valor fixado por J (…) para cada moradia, caso a venda fosse feita através da autora; uma comissão de 2,5% se essa venda se efectuasse através de outras agências; e metade da diferença entre o preço pretendido por J (…) e o preço efectivo da venda ao cliente (o chamado overprice) [alínea M)].
14) Para além de outras moradias projectadas, J (…) reconstruiu 6 e edificou outras 8 de raiz [alínea N)].
15) As 6 moradias de raiz baptizou-as de A... (3 delas), C... (2 delas), Ca..., Car.... e E...e as restantes (as reconstruídas) numerou de 1 a 5 e chamou W....a uma outra [alínea O)].
16) Por conta das aludidas comissões, J (…) fez entregas à autora, entre 19 de Novembro de 2000 e 1 de Junho de 2002, que totalizam, pelo menos, PTE 4.829.000$00/€ 24.086,95 [alínea P)].
17) A diferença até ao pagamento integral do preço do acordo referido em 1 seria satisfeita pela retenção por parte de J (…) de outras comissões devidas à autora pela sua mediação imobiliária numa segunda fase do projecto que aquele desenvolvera [resposta ao 1º].
18) As assinaturas que as partes colocaram no aludido acordo não foram reconhecidas presencialmente [resposta ao 2º].
19) Não foi feita menção à licença de utilização do prédio porque J (…)ainda não tinha conseguido obtê-la [resposta ao 3º].
20) Em virtude de J (…) não querer celebrar a escritura pública até ao dia estipulado no acordo (30 de Agosto de 2003), a autora fixou-lhe um prazo de mais 30 dias [resposta ao 5º].
21) Os preços mínimos que J (…) queria receber por cada um dos imóveis aludidos em 15 eram os seguintes: i. A ... 1 (hoje conhecido por lote 4.5) – PTE 21.000.000$00; ii. A ... 2 (hoje conhecido por lote 4.4) – PTE 21.000.000$00; iii. A ... 3 (hoje conhecido por lote 4.3) – PTE 21.000.000$00; iv. C ... 1 (hoje conhecido por lote 4.2) – PTE 21.500.000$00; v. C ... 2 (hoje conhecido por lote 4.1) – PTE 21.500.000$00; vi. Ca ... (hoje conhecido por lote 3.3) – PTE 16.500.000$00; vii. Car ... (hoje conhecido por lote 3.2) – PTE 14.000.000$00; viii. E ... (hoje conhecido por lote 3.1) – PTE 14.000.000$00; ix. Moradia 1 – PTE 16.000.000$00; x. Moradia 2 – PTE 14.700.000$00; xi. Moradia 3 – PTE 20.500.000$00; xii. Moradia 4 – PTE 14.500.000$00; xiii. Moradia 5 – PTE 17.500.000$00; e xiv. W ...ou ... – PTE 16.000 000$00 [resposta ao 7º].
22) As moradias aludidas em 15 foram vendidas pelos preços seguintes: i. A ... 1 – PTE 22.000.000$00; ii. A ... 2 – PTE 25.000.000$00; iii. C ... 1 – PTE 25.000.000$00; iv. C ... 2 – PTE 24.000.000$00; v. Ca ... – PTE 17.500.000$00; vi. Car ... – PTE 16.000.000$00; vii. E ... – PTE 14.500.000$00;
23) À excepção de duas moradias, uma prometida à autora, a moradia 2, e outra a uma filha de J (…) (uma das denominadas A ...), a autora arranjou compradores para as moradias referidas em 22, pelo que, considerando as comissões devidas e o overprice conseguido, J (…) deveria pagar à autora € 105.059,120 de capital (a que acrescem € 7.003,94 de juros) [resposta ao 9º].
24) J (…) fala apenas algumas palavras em português, língua que nem lê, nem escreve [resposta ao 10º].
25) A autora, por vezes, traduzia oralmente para J (…) alguns documentos que lhe dava para assinar [resposta ao 11º].
26) J (…) assinou os contratos-promessa de venda de suas casas, como o aludido contrato, redigidos em língua portuguesa, língua que não lê [resposta ao 12º].
27) A autora não era agente imobiliária legalmente habilitada para exercer mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda (confissão), e J (…) aceitou remunerar a sua actividade através de comissões e partilha do chamado overprice [resposta ao 14º].
28) Por contrato escrito datado de 26 de Outubro de 2000, a autora e J (…) declararam:
«Entre J (…), proprietário do condomínio fechado, ..., e L (…), promotora de vendas do mesmo, celebrou-se o seguinte acordo:
- Toda a construção é dada, para venda, em exclusivo a L (…);
- Sempre que se realize uma venda através da promotora, esta recebe 5%. No caso da venda se efectuar através de outras agências, a promotora receberá apenas 2,5%;
- No caso de existir over price, esse valor será dividido pelo construtor e pela promotora na percentagem de 50% para cada um; depois de retirados os 5% do valor inicial; (sublinhado corresponde à inscrição manuscrita)
- Sempre que o construtor alterar os preços tem de comunicar à promotora e esta fará o mesmo no caso de venda;
- É por conta da promotora toda a divulgação, publicidade e acompanhamento dos clientes ao local do condomínio» [resposta ao 15º].
29) A 8ª casa da tabela (E ...) foi a primeira a ser vendida pelo preço de PTE 14.500.000$00 [resposta ao 27º].
30) As comissões devidas por J (…) resultaram dos seguintes negócios: i. Em 27 de Outubro de 2000, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por E ... – bungalow, pelo preço de PTE 14.500.000$00/€ 72.326,00; ii. Em 17 de Março de 2001, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por Ca ..., pelo preço de PTE 17.500.000$00/€ 87.290,00; iii. Em 10 de Abril de 2001, J (..) prometeu vender a (…) a casa designada pelo nº 12, pelo preço de PTE 18.000.000$00/€ 89.784,00; iv. Em 30 de Abril de 2001, J (…)prometeu vender a (….) a casa designada por Car ... – bungalow, pelo preço de PTE 16.000.000$00/€ 79.808,00; v. Em 10 de Maio de 2001, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por Apartamento 1, pelo preço de PTE 18.500.000$00/€ 92.278,00; vi. Em 30 de Junho de 2001, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por Apartamento 6, pelo preço de PTE 18.000.000$00/€ 89.784,00; vii. Em 18 de Julho de 2001, J (…) prometeu vender a (…)a casa designada por 3.1, pelo preço de PTE 23.500.000$00/€ 117.218,00; viii. Em 11 de Julho de 2001, J (…)prometeu vender a (…) a casa designada por A ..., pelo preço de PTE 22.000.000$00/€ 109.736,00; ix. Em 23 de Julho de 2001, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por C ..., pelo preço de PTE 24.000.000$00/€ 119.711,00; x. Em 3 de Setembro de 2001, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por 1.2, pelo preço de PTE 22.000.000$00/€ 109.736,00; xi. Em 15 de Fevereiro de 2002, J (…) prometeu vender a (…) a casa designada por C ... nº 5, pelo preço de € 124.700,00 [resposta ao 36º].
31) A autora recebeu, até Setembro de 2003, a quantia de aproximadamente € 26.132,00 [resposta ao 40º].
32) No dia 30 de Setembro de 2003, às 17 horas, a autora e J (…) foram juntos para uma reunião na Câmara Municipal de ... [resposta ao 41º].
33) A autora utiliza a casa objecto do aludido acordo desde Junho de 2002 [resposta ao 42º].
Mais se encontra provado, face às certidões juntas aos autos a fls. 656 e seguintes:
34) A autora (ora recorrente) reclamou na Insolvência de J (…) a quantia de € 112.063,04, correspondente a € 105.059,10 de capital e € 7.003,94 de juros, referentes a comissões de vendas.
35) Tal crédito foi integrado na relação de créditos reclamados, a que se refere o n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, apresentada pelo Administrador da Insolvência (fls. 658), tendo sido reconhecido e graduado na sentença proferida pelo Tribunal de Gouveia em 28.07.2008 (fls. 672 dos autos).
36) A ora recorrente, já depois de reconhecido o seu crédito e de expirado o prazo de reclamações, requereu no processo de insolvência, o reconhecimento do seu alegado direito de retenção da casa em discussão nestes autos, tendo sido determinado o desentranhamento do referido requerimento (fls. 664), decisão confirmada por esta Relação (fls. 676), e pelo STJ (fls. 686).

3. Fundamentos de direito
3.1. Definição do âmbito de aplicação do artigo 106.º do CIRE
3.1.1. A natureza do incumprimento
Nas conclusões 1.ª a 7.ª, a recorrente alega que o artigo 106.º do CIRE não é aplicável in casu, porque apenas visa regular as situações em que ainda não há incumprimento definitivo.
Defende a recorrente que na situação a que se reportam os autos, se verifica o incumprimento definitivo do contrato por parte do réu inicial (insolvente), e que tal incumprimento «gerou imediatamente os efeitos da resolução imprópria», concluindo que «a norma do artigo 106 do CIRE apenas visa regular as situações em que ainda não há esse incumprimento definitivo culposo, onde também ainda se pode recorrer à execução específica».
Mas ter-se-á verificado o invocado incumprimento definitivo?
Vejamos a factualidade relevante provada:
- Acordaram as partes que a escritura se realizaria até 30 de Agosto de 2003 [alínea H) – facto 8].
- A autora remeteu a J (…), em 30 de Agosto de 2003, uma carta registada com a comunicação de que tinha acabado de marcar a escritura no Cartório Notarial de ... para 30 de Setembro de 2003 [alínea I) – facto 9].
- J (…) não compareceu no Cartório Notarial de ... no dia 30 de Setembro, encontrando-se no aludido Cartório alguma documentação para a realização da escritura de compra e venda marcada [alínea J) – facto 10].
- Em virtude de J (…) não querer celebrar a escritura pública até ao dia estipulado no acordo (30 de Agosto de 2003), a autora fixou-lhe um prazo de mais 30 dias [resposta ao art. 5º da BI – facto 20].
 - A carta remetida pela autora ao réu (insolvente), consta de fls. 20 dos autos e tem o seguinte teor: «… Venho comunicar-lhe que acabei de marcar essa escritura para o próximo dia 30 de Setembro de 2003 às 17 horas no Cartório Notarial de .... Agradeço a sua comparência. Cumprimentos
Não tendo outorgado a escritura até ao dia 30 de Agosto, o réu constituiu-se em mora, ou incumprimento temporário.
É sabido que a mora do devedor depende dos seguintes pressupostos: inexecução da obrigação no vencimento; possibilidade de execução futura e imputabilidade dessa inexecução ao devedor. São requisitos da referida mora o acto ilícito (que consiste em o devedor deixar de efectuar oportunamente a prestação) e a culpa (em tal lhe ser atribuível/imputação dessa inexecução ao devedor).[1]
Para além dos casos em que a mora, em conjugação ou não com outras causas, fez desaparecer o interesse do credor na prestação, há que ter em conta todos os outros em que tal não acontece mas nos quais não seria legítimo obrigar o credor a esperar indefinidamente pelo cumprimento. Por isso, a lei prevê a possibilidade de o credor (parte não inadimplente), uma vez incurso em mora o devedor, fixar a este um prazo suplementar razoável – mas peremptório – dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio, que pode conduzir às consequências do art.º 801º, se a obrigação não for cumprida dentro desse prazo fixado na mesma interpelação ou intimação.
Tal situação encontra-se prevista na 2ª parte do n.º 1 do art.º 808º, nestes termos: «Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação».
Trata-se de uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.
A lei permite assim, que através da fixação de um prazo peremptório, se obtenha uma clarificação definitiva de posições, traduzindo-se tal declaração num ónus imposto ao credor que pretenda converter a mora em não cumprimento, ou incumprimento definitivo[2].
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010[3], trata-se de uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.
Porém, a interpelação admonitória – que pressupõe que o credor tenha ainda interesse no cumprimento - deve conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
E tais requisitos terão, imperativamente, que estar presentes, para que a interpelação tenha a virtualidade de transformar em definitivo o incumprimento temporário, como sublinha o Supremo Tribunal no acórdão de 20.05.2010, cujo sumário se transcreve parcialmente[4]:

(…)

IV - Para produzir os efeitos de incumprimento e resolução estabelecidos no art. 808º-1 C. Civil, a interpelação admonitória, deve, além de fixar um prazo razoável para o cumprimento, informar com clareza que a inexecução da prestação dentro desse prazo terá como consequência ter-se a mesma como definitivamente não cumprida, isto é, deve conter uma intimação clara, inequívoca e não condicionada ou irrevogável para cumprir sob pena de se ter como verificado o incumprimento definitivo.

V - Não satisfará a exigência a interpelação em que o credor declare que se reserva o direito de considerar definitivamente incumprido o contrato e a faculdade de o resolver, na hipótese de manutenção da situação de incumprimento pelo devedor. (…)
Na falta de fixação de prazo razoável para o cumprimento da obrigação, com explícita cominação de que esta se terá por definitivamente não cumprida se não ocorrer o cumprimento nesse prazo, não pode considerar-se ter havido interpelação admonitória nos termos e para os efeitos do art.º 808º, n.º 1.
É o que acontece nos presentes autos.
Sobre a autora (ora recorrente), incumbia a alegação e prova da interpelação admonitória prevista na segunda parte do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil[5], susceptível de converter em definitivo o incumprimento temporário do réu, obedecendo tal declaração aos requisitos doutrinários e jurisprudenciais enunciados supra.
A autora não logrou fazer tal prova, sendo certo que a carta junta aos autos a fls. 20 não contém um elemento fundamental: a admonição ou a cominação de que a obrigação se teria por definitivamente não cumprida se não se verificasse o cumprimento por parte do réu dentro do prazo peremptório fixado.
Em conclusão, a recorrente não logrou provar a conversão do incumprimento temporário (mora) em incumprimento definitivo, não tendo a interpelação que efectuou, a virtualidade de operar tal conversão, pelo que se revelam improcedentes as conclusões 1.ª a 7.ª, nas quais defende a inaplicabilidade do artigo 106.º do CIRE, com fundamento em que tal normativo apenas visa regular as situações em que ainda não há incumprimento definitivo.

3.1.2. Os pressupostos da execução específica
Tem-se debatido na doutrina e na jurisprudência, a questão de saber se a execução específica é viável apenas em situações de mora, ou também naquelas em que se verifica o incumprimento definitivo.
Em acórdão de 7.05.2009[6], o STJ defendeu que «a execução específica da obrigação de contratar prevista no art. 830.º, n.º 1, do CC, apenas tem lugar quando não há incumprimento definitivo mas simples mora, enquanto que a possibilidade de exigência do sinal (singelo ou dobrado) consagrada no art. 442.º, n.º 2, do CC, somente é possível numa situação de incumprimento definitivo
 Em abono da tese expendida no aresto citado, refere-se esta posição como dominante na jurisprudência do mais alto tribunal, e citam-se vários autores, entre os quais Ana Prata, que se pronuncia sobre a questão, nestes termos: «Em qualquer caso como decorre dos princípios gerais e já foi sobejamente salientado, ainda que se consi­dere que o não cumprimento é pressuposto de recurso ao instrumento da exe­cução específica, sempre esse não cum­primento é apenas aquele que for temporário, pois que, se já existir definitivo inadimplemento – qualificado ou não por impossibilidade – a execução específica encontra-se então precludida».
Posição diversa é assumida pelo mesmo Supremo Tribunal, no acórdão de 26.01.2006[7], de cujo sumário se transcreve a primeira parte:

I - São requisitos da execução específica de contrato-promessa, ao abrigo do art.830.º, n.º 1, C.Civ. : a) - que a natureza da obrigação assumida pela promessa não seja incompatível com a substituição da declaração negocial; b) - que não exista convenção em contrário; c) - que se verifique incumprimento por parte do demandado da obrigação de celebrar o contrato prometido.

II - Tanto o incumprimento definitivo, como a mora, podem dar lugar à execução específica de contrato-promessa, bastando a mora, ou seja, consoante art. 804.º C.Civ., o simples retardamento culposo do cumprimento da obrigação de celebrar o contrato definitivo, para justificar o recurso à execução específica de contrato-promessa. (…)
Januário Gomes[8], chama a atenção para uma diferença relevante entre a primeira e a segunda parte do n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil: na primeira parte está prevista a conversão da mora em incumprimento definitivo fundada na perda do interesse do credor, sendo certo que tal perda de interesse não ocorre necessariamente na “segunda via de conversão”, prevista na segunda parte do normativo em apreço.
Escreve o autor citado:

Pode ocorrer que com o decurso infrutífero do prazo peremptório, o credor perca o interesse na prestação. Essa não será, porém, consequência natural e lógica do decurso do prazo, podendo perfeitamente conceber-se casos em que o credor recorre, sem sucesso, à “estratégica” da intimação admonitória, mas mantendo, afinal, interesse na realização da prestação pelo devedor.

O n.º 1 do art. 808.º consagra, de certa forma, uma equiparação de efeitos: o credor que intimou infrutiferamente o devedor para cumprir fica com as mesmas armas do credor que perdeu o interesse na prestação. Mas isso não significa que o credor intimante - cujo interesse na prestação se mantenha - perca, por essa razão, os direitos que a subsistência do interesse lhe permitem exercer: referimo-nos, em primeiro lugar, à acção de cumprimento, cujo exercício pelo credor intimante, após o decurso infrutífero do prazo, faz todo o sentido, pese embora o incumprimento definitivo; no entanto, o recurso a essa acção é inteiramente ilógico nos casos em que o incumprimento decorre da objectiva perda de interesse.
Em suma: não faz sentido defender a possibilidade da utilização da execução específica do contrato por parte de quem perdeu o interesse na sua realização (1.ª parte do n.º 1 do artigo 808.º do CC), revelando-se no entanto coerente o recurso a tal meio processual, por parte de quem, apesar de ter convertido em incumprimento definitivo a mora do devedor, através da interpelação admonitória (2.ª parte do n.º 1 do artigo 808.º do CC), mantém ainda o interesse no cumprimento.
É esta a posição acolhida no acórdão da Relação do Porto, de 20.01.2005[9], sintetizada desta forma no primeiro ponto do seu sumário: «A execução específica do contrato promessa pode ter lugar, não só em caso de mora, mas também em situações de incumprimento definitivo, desde que o credor não tenha perdido o interesse na prestação.»
Em conclusão: face ao que ficou dito, na situação a que se reportam os autos, considerando que se mantém a mora do recorrido e que a ora recorrente mantém o interesse na realização da prestação (celebração do contrato prometido), seria à partida viável o recurso à execução específica[10].

3.1.3. A relevância da posição do administrador da insolvência
Sob a epígrafe “Promessa de contrato”, dispõe o artigo 106.º do CIRE[11]:

1 - No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.

2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no nº 5 do artigo 104º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor.
Decorre do n.º 1 do normativo transcrito, que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato promessa, desde que verificados cumulativamente dois requisitos: i) se foi atribuída eficácia real ao contrato; ii) se houve prévia traditio.
Nos termos do n.º 1 do artigo 413.º do Código Civil, as partes podem, mediante declaração expressa e inscrição no registo, atribuir eficácia real à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, dispondo o n.º 2, que tal promessa deve constar de escritura pública, excepto quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, caso em que é bastante documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante se trate de contrato promessa unilateral ou bilateral.
Na situação sub judice, houve tradição da coisa, mas não se verifica a atribuição de eficácia real ao contrato.
A diferença mais relevante entre o contrato promessa a que não foi atribuída eficácia real e o contrato promessa com eficácia real, traduz-se no seguinte: na primeira hipótese, o promitente-comprador apenas tem a seu favor um direito de crédito à celebração do contrato definitivo, nada podendo fazer se a obrigação se extinguir por impossibilidade decorrente da alienação da coisa prometida (sem prejuízo da constituição da obrigação de indemnização); na segunda hipótese, o promitente-comprador mantém sempre o direito real de aquisição, que pode ser exercido independentemente do devedor, onde quer que se encontre a coisa e enquanto esta exista[12].
De acordo com o já citado n.º 1 do artigo 413.º do Código Civil, a atribuição de eficácia real ao contrato promessa implica necessariamente a inscrição no registo[13].
Ora, no caso sub judice, não foi atribuída eficácia real ao contrato promessa (não há registo), verificando-se a ausência de uma dos requisitos essenciais previstos no n.º 1 do artigo 106.º do CIRE: a eficácia real do contrato promessa.
Como factualidade essencial, há que ter em consideração a declaração inequívoca junta aos autos a fls. 525, do administrador da insolvência, que se reproduz parcialmente: «… mais informando que a massa insolvente se recusa ao cumprimento do contrato-promessa a que se referem os Autos
Considerando que os requisitos enunciados no normativo citado são cumulativos, concluímos que, apesar de ter havido traditio da coisa prometida, o administrador da insolvência pode recusar o cumprimento do contrato-promessa, por não lhe ter sido atribuída eficácia real.
Assim se revelam, improcedentes, também com estes fundamentos, as conclusões 1.ª a 7.ª, nas quais a recorrente defende a inaplicabilidade do artigo 106.º do CIRE.

3.2. Natureza e validade do contrato celebrado entre a autora e o primitivo réu (insolvente). Consequências da sua nulidade.
Nas conclusões 8.ª a 21.ª, alega a recorrente que os serviços prestados sob a forma de comissões e partilha do overprice constitui contrato de agência, não sendo contrato de mediação imobiliária mas sim actividade de angariação imobiliária, permitida pelo artigo 4º do DL 211/2004, mas quando foi firmado não tinha tratamento legislativo, porquanto sobre isso era omisso o DL nº 118/93, de 13 de Abril.
Mais alega que a prestação que constitui o sinal será sempre uma prestação, mesmo que tivesse origem em contrato nulo, e que a invalidade do acordo nunca poderia afectar a prestação do sinal, pelo que, no caso de se considerar o acordo nulo, deve proceder direito a restituição do recebido (valor da prestação da Autora), procedendo então o pedido c) da acção.
Na douta sentença recorrida, conclui-se pela validade do contrato-promessa, não tendo tal decisão sido impugnada pelas partes.
Provou-se a seguinte factualidade relevante:
1) J (…) contratou a autora como “promotora de vendas” de todas as moradias construídas no aludido Condomínio da Estrela, por contrato celebrado por escrito em 26 de Outubro de 2000 [alínea L) – facto 12].
2) Ficou acordado que a autora receberia: uma comissão de 5% sobre o valor fixado por J (…) para cada moradia, caso a venda fosse feita através da autora; uma comissão de 2,5% se essa venda se efectuasse através de outras agências; e metade da diferença entre o preço pretendido por J (…) e o preço efectivo da venda ao cliente (o chamado overprice) [alínea M) – facto 13].
3) J (…) prometeu vender à autora, e esta prometeu comprar-lhe o seguinte prédio: “fracção B composta de rés-do-chão e 1º andar com arrumos, aos quais foi atribuído o nº 2, destinado à habitação, constituída por sala, dois quartos, três casas de banho e cozinha equipada” [alínea A) – FACTO 1].
4) Consta da cláusula 3ª do acordo aludido em 1: «o pagamento será efectuado pela já retenção de 50% do total das comissões em dívida a segunda outorgante da 1 fase já concluída em Maio de 2002 e 50% do total das comissões em poder do primeiro outorgante, no acto das escrituras das primeiras oito fracções da segunda fase do projecto» [alínea E)] – facto 5.
5) Por conta das aludidas comissões, J (…) fez entregas à autora, entre 19 de Novembro de 2000 e 1 de Junho de 2002, que totalizam, pelo menos, PTE 4.829.000$00/€ 24.086,95 [alínea P) – facto 16].
6) A diferença até ao pagamento integral do preço do acordo referido em 1 seria satisfeita pela retenção por parte de J (…) de outras comissões devidas à autora pela sua mediação imobiliária numa segunda fase do projecto que aquele desenvolvera [resposta ao 1º - facto 17].
7) A autora não era agente imobiliária legalmente habilitada para exercer mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda (confissão), e J (…) aceitou remunerar a sua actividade através de comissões e partilha do chamado overprice [resposta ao 14º - facto 27].
8) Por contrato escrito datado de 26 de Outubro de 2000, a autora e J (…)declararam:
«Entre J (…), proprietário do condomínio fechado, ..., e L (…), promotora de vendas do mesmo, celebrou-se o seguinte acordo:
- Toda a construção é dada, para venda, em exclusivo a L (…);
- Sempre que se realize uma venda através da promotora, esta recebe 5%. No caso da venda se efectuar através de outras agências, a promotora receberá apenas 2,5%;
- No caso de existir over price, esse valor será dividido pelo construtor e pela promotora na percentagem de 50% para cada um; depois de retirados os 5% do valor inicial; (sublinhado corresponde à inscrição manuscrita)
- Sempre que o construtor alterar os preços tem de comunicar à promotora e esta fará o mesmo no caso de venda;
- É por conta da promotora toda a divulgação, publicidade e acompanhamento dos clientes ao local do condomínio» [resposta ao 15º - facto 28].
O contrato em causa foi celebrado em 26 de Outubro de 2000, sendo nessa data, a actividade de mediação imobiliária regulada pelo Decreto-Lei nº 77/99, de 16 de Março.
O n.º 1 do artigo 3.º do diploma legal em apreço definia a referida actividade como aquela em que «… por contrato, uma empresa se obriga a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra ou na venda de bens imóveis ou na constituição de quaisquer direitos reais sobre os mesmos, bem como para o seu arrendamento e trespasse, desenvolvendo para o efeito acções de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e sobre as características dos respectivos imóveis».
Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º, constituía requisito essencial para a concessão e manutenção da licença: «ser sociedade comercial, ou outra forma de cooperação de sociedades, com sede efectiva num Estado membro da União Europeia, que tenha por objecto e actividade principal o exercício da actividade de mediação imobiliária e a denominação nos termos estipulados no n.º 1 do artigo 7.º»
Por outro lado, o exercício da actividade carecia de licenciamento (artigo 8º, nº 1), sendo, aliás, a violação dessa norma punida com coima de PTE 500 000$00 a PTE 6 000 000$00 [artigo 32º, nº 1, alínea a)].
Do confronto da norma citada, com o facto 27 (confessado pela autora em audiência de julgamento) - «A autora não era agente imobiliária legalmente habilitada para exercer mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda…» - conclui-se pela manifesta nulidade do contrato de mediação em causa.
Alega a recorrente nas suas doutas alegações, que, se tratava de “actividade de angariação imobiliária”, mais tarde permitida pelo artigo 4º do DL 211/2004, devendo o tribunal preencher a lacuna legislativa, com recurso às normas do contrato de agência, nos termos do artigo 10.º n.º 1 do CC.
Salvo o devido respeito, afigura-se manifesta a nulidade do contrato, face à imperatividade do regime legal em vigor à data da sua celebração.
Por outro lado, face à factualidade provada, mesmo ao abrigo do regime legal posterior invocado pela recorrente (DL 211/2004 de 20 de Agosto), nunca seria possível considerar a existência de um “contrato de angariação imobiliária” válido.
Vejamos porquê.
O artigo 2.º do diploma legal invocado pela recorrente, define a actividade de mediação imobiliária como «aquela em que, por contrato, uma empresa se obriga a diligenciar no sentido de conseguir interessado na realização de negócio que vise a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posição em contratos cujo objecto seja um bem imóvel.».
No que se reporta à invocada actividade de angariação imobiliária, define-a o artigo 2.º, como «aquela em que, por contrato de prestação de serviços, uma pessoa singular se obriga a desenvolver as acções e a prestar os serviços previstos, respectivamente, nos n.º 2 e 3 do artigo 2.º, necessários à preparação e ao cumprimento dos contratos de mediação imobiliária, celebrados pelas empresas de mediação imobiliária
Como se esclarece no preâmbulo do diploma legal em apreço, a angariação imobiliária «consiste na prestação de serviços a uma ou mais empresas de mediação».
Ou seja: nos termos da lei invocada (que já considerámos não aplicável à situação da recorrente), a actividade de angariação imobiliária estabelece-se entre o prestador de serviços e a empresa de mediação, e nunca entre o prestador de serviços (angariador) e o titular do direito de propriedade sobre os imóveis.
Prevê a lei uma relação triangular - relações contratuais distintas: i) uma estabelecida entre o proprietário dos imóveis e a empresa de mediação; ii) outra estabelecida entre o angariador e a empresa de mediação.
O artigo 24.º do regime legal citado, impõe, no seu n.º 1, como condições de exercício da actividade de angariação imobiliária: i) inscrição no IMOPPI em vigor; e celebração de contrato de prestação de serviços com empresa de mediação imobiliária detentora de licença válida.
O n.º 2 do mesmo normativo prevê a emissão de cartões de identificação aos angariadores imobiliários inscritos, pelo IMOPPI, válidos por um período de três anos e revalidados por idênticos períodos, nos termos do n.º 3.
Finalmente, o artigo 25.º estabelece os requisitos cumulativos de ingresso e manutenção na actividade, entre os quais se exige que o angariador seja empresário em nome individual, com firma de acordo com o estipulado no n.º 1 do artigo 27.º e domicílio efectivo num Estado membro da União Europeia;
Há que recordar o facto 27 (confessado pela autora em audiência de julgamento) - «A autora não era agente imobiliária legalmente habilitada para exercer mediação imobiliária, fazer contratos-promessa e preparar escrituras de compra e venda…» - para concluir pela manifesta nulidade do contrato, mesmo que fosse aplicável o DL 211/2004 de 20 de Agosto, por absoluta ausência dos requisitos formais imperativos enunciados no referido diploma legal.
Do exposto se conclui que o contrato em causa é nulo.
E a questão seguinte que se coloca é a de saber se, apesar da nulidade do contrato, são devidas comissões.
É a seguinte a doutrina expressa no Assento nº 4/95, de 28 de Março (in DR I-A de 17.05.95, pág. 2939) «Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do artigo 289º do Código Civil
Tem tido acolhimento na jurisprudência, o entendimento de que, quando se verifica a nulidade do negócio jurídico, ainda que o autor peça a restituição com fundamento diverso, o tribunal deve ordená-la com base na nulidade, fazendo diferente qualificação jurídica da mesma causa de pedir[14].
 Como refere Menezes Cordeiro[15], a actuação do mecanismo previsto no artigo 289.º do Código Civil, traduz-se na extinção recíproca, por compensação, das prestações restituitórias:
«… a declaração de nulidade a anulação do negócio têm efeito retroactivo, segundo o art. 289º, n.º1. Desde o momento em que uma e outra sejam decididas, estabelece-se, entre as partes, uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos desse preceito. Nos contrato de execução continuada em que uma das partes beneficie do gozo duma coisa - como no arrendamento ou de serviços como na empreitada, no mandato ou no depósito - a restituição em espécie não é, evidentemente, possível. Nessa altura, haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. Isto é, sendo um arrendamento declarado nulo, deve o “senhorio” restituir as rendas recebidas, e o “inquilino” o valor relativo ao gozo de que desfrutou e que equivale, precisamente, às rendas. Ambas as prestações restituitórias se extinguem, então, por compensação, tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroactiva, nestes casos».
Esta tese doutrinária tem encontrado acolhimento pacífico na jurisprudência, nomeadamente nas situações em que é decretada a nulidade do contrato de mediação imobiliária, como se ilustra com o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.04.2004[16]

I - O contrato de mediação imobiliária é nulo, se não for celebrado por escrito, não podendo contudo essa nulidade ser invocada pela entidade mediadora.

II - Tendo sido declarada a nulidade do contrato, há que proceder à reposição da situação anterior das partes, a efectuar nos termos do art. 289, nº1, do C.C., e não por recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.

III - Não podendo a ré restituir, em espécie, os serviços de mediação prestados pelo autor, o melhor critério para achar o correspondente valor é a ré pagar a comissão que foi acordada sobre o preço da venda, pois foi aquele valor que as próprias partes fixaram como justo e adequado, do ponto de vista contratual, para a remuneração dos serviços do mediador.
Na situação sub judice, haverá que concluir que a autora (ora recorrente), tem direito ao valor das comissões, estando facilitada a tarefa do tribunal, na medida em que as partes acordaram em sede de audiência de julgamento, quanto aos quesitos 3.º, 7.º, 8.º e 9.º da base instrutória, fixando o valor das comissões em € 105.059,10, e o dos juros devidos, em € 7.003,94. (acta, fls. 512)
Revela-se assim parcialmente procedente a argumentação da recorrente, vertida nas conclusões 8.ª a 13.ª, considerando que, apesar da nulidade do acordo, são devidas as “comissões”.

3.3. A inexistência do sinal e a consequência da extinção do contrato-promessa
Provou-se a seguinte factualidade relevante:
- Consta da cláusula 3ª do acordo aludido em 1: «o pagamento será efectuado pela já retenção de 50% do total das comissões em dívida a segunda outorgante da 1 fase já concluída em Maio de 2002 e 50% do total das comissões em poder do primeiro outorgante, no acto das escrituras das primeiras oito fracções da segunda fase do projecto» [alínea E) – facto 5].
- Acordaram as partes que a autora não tinha de entregar a J (…) qualquer quantia a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões devidas à autora no âmbito de um denominado contrato de agência que haviam celebrado [alínea F) – facto 6].
Refere a recorrente nas suas alegações:
«15. A prestação que constitui o sinal será sempre uma prestação, mesmo que tivesse origem em contrato nulo (…) 18. Jamais, pois, a invalidade resultante desse acordo poderia afectar a prestação do sinal.»
Suscita-se a questão de saber se poderá atribuir-se a natureza de sinal, a um crédito do promitente-comprador sobre o promitente-vendedor, existente no momento da celebração do contrato.
Dispõe o artigo 440.º do Código Civil: «Se, ao celebrar-se o contrato ou em momento posterior, um dos contraentes entregar ao outro coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, é a entrega havida como antecipação total ou parcial do cumprimento, salvo se as partes quiserem atribuir à coisa entregue o carácter de sinal.»
É a seguinte, a redacção do artigo 441.º «No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.»
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8.04.2008[17], embora a lei não forneça um conceito de sinal, resulta dos artigos 440.º e 441.º do C. Civil, que o mesmo consiste na entrega, por uma das partes à outra, de «coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito», desde que as mesmas partes tenham a intenção de lhe atribuir esse carácter, apresentando-se, assim, como uma cláusula dum contrato, podendo assumir natureza confirmatória ou penitencial (convenção de antecipação de cumprimento ou resolutiva).
Haverá que considerar, no entanto que vigora nesta matéria o princípio da liberdade contratual, enunciado no artigo 405.º do Código Civil, que permite às partes «fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver».
Face ao princípio enunciado na norma citada, nada obstava a que as partes convencionassem que um determinado crédito da promitente-compradora sobre o promitente-vendedor, devidamente quantificado, pudesse revestir a natureza de sinal.
Ora, na situação sub judice, não é isso que acontece.
Pelo contrário, as partes convencionam «que a autora não tinha de entregar a J (…) qualquer quantia a título de sinal, dado que este já tinha consigo 50% das comissões devidas à autora…»
Ou seja, as partes afastam expressamente a presunção (que poderia equacionar-se), de atribuição da natureza de sinal ao crédito da autora sobre o réu.
Tem-se discutido se a presunção prevista no art. 441.º do CC tem natureza juris et de jure ou apenas juris tantum, sendo claramente maioritária a opinião de que se trata de presunção juris tantum, ilidível mediante prova em contrário, nos termos do art. 350.º, n.º 2 do Código Civil[18].
Mas, como se disse, as partes convencionaram expressamente que a autora “não tinha que entregar sinal”, por ser titular de um crédito de comissões, propondo-se compensar tal crédito no acto do pagamento do preço, com a celebração da escritura.
Mas há um outro argumento, que afasta a qualificação de sinal, do crédito da autora: o facto de o mesmo não se encontrar quantificado no contrato-promessa.
Com efeito, o artigo 440.º do Código Civil refere a entrega de “coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação, referindo o artigo 441.º que se presume sinal a “quantia” entregue.
Decorre do exposto que a cláusula “sinal” terá que se traduzir num “coisa” ou “quantia” concreta, não bastando a mera remissão para um crédito não quantificado[19], de forma a permitir o funcionamento do mecanismo sancionatório previsto no n.º 2 do artigo 442.º do CC: «Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue…».
Em suma: quer pelo sentido da estipulação das partes, quer pela não quantificação no contrato, do crédito da ora recorrente (promitente-compradora), no contrato promessa que se discute nos autos não houve sinal[20].
No entanto, mesmo que se considerasse a existência de sinal, contrariamente à tese preconizada pela recorrente, nunca seria devido o seu valor em dobro, considerando as razões que se seguem.
Como já se referiu, por declaração inequívoca junta aos autos a fls. 525, o administrador da insolvência recusou o cumprimento do contrato-promessa.
Como também se concluiu, tal recusa é legítima, face à factualidade provada (não atribuição de eficácia real ao contrato) e ao disposto no artigo 106.º do CIRE.
Ora, a devolução do sinal em dobro (peticionada pela recorrente na alínea b) do seu petitório formulado na petição), pressupõe o incumprimento culposo.
Na situação a que se reportam os autos, não restam dúvidas de que o administrador da insolvência agiu no âmbito das suas atribuições e competências legais, de forma lícita, face ao citado artigo 106.º do CIRE, na medida em que se verificavam os pressupostos de facto que permitiam a recusa.
Não ocorreu assim incumprimento culposo, mas antes uma forma especial de extinção do contrato, prevista na lei.
Do exposto se conclui: não existe sinal, mas mesmo que existisse, não haveria lugar à pretendida restituição em dobro[21].
Improcedem, face ao exposto, as conclusões 14.ª a 20.ª.

3.4. A questão da restituição da casa
Alega a recorrente, nas suas conclusões 21.ª e 22.ª:

21. Por isso, para o caso de proceder nulidade, deve proceder direito a restituição do recebido (valor da prestação da Autora), procedendo então o pedido c) da acção.

22. E de todo o modo, deve improceder a condenação na entrega da casa, que nem sequer foi peticionada na reconvenção, constituindo tal conhecimento nulidade da douta sentença (artigo 668 nº 1 al. d do CPC)
Culmina a recorrente as suas conclusões, preconizando a «alteração da decisão recorrida, no sentido de conceder o direito de execução específica ou subsidiariamente considerar que tem carácter de sinal a quantia entregue ou retida a título de comissão, e deste modo absolvendo-se a Autora ainda do pedido reconvencional
No que respeita à restituição da casa, a mesma decorre imperativamente da extinção do contrato-promessa decretada pelo administrador da massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 106.º do CIRE, por se encontrarem verificados os respectivos pressupostos.
Com efeito, extinto o contrato-promessa[22], deixa de ser realizável o contrato prometido (tendo sido já considerada improcedente a pretensão de execução específica), ficando sem fundamento juridicamente válido, a ocupação do imóvel.
Como se refere no acórdão do STJ, de 11.09.2008[23], o promitente comprador, investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedida na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, porque lhe falta o animus possidendi, sendo apenas o titular de um direito pessoal de gozo, destinado a perdurar como tal, até à celebração do contrato definitivo ou à adjudicação compulsória da coisa ou até à resolução ou anulação do contrato-promessa.
Quanto ao direito de retenção, invocado pela recorrente, que peticiona o seu reconhecimento na alínea c) do seu petitório, valem nesta sede todas as considerações tecidas a propósito da licitude da extinção do contrato efectuada pelo administrador da insolvência.
A lei prevê (alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do CC), o direito de retenção a favor do beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º.
Ora, na situação sub judice, como se concluiu, não há incumprimento culposo, nem sinal, pelo que também não existe obrigação de restituição (em dobro ou em singelo).
Por outro lado, a quantia reclamada pela recorrente, referente a comissões, nada tem a ver com o contrato-promessa, não havendo qualquer correspondência entre esse alegado crédito e a casa objecto do extinto contrato promessa.
Finalmente, cumpre esclarecer que, contrariamente ao que a recorrente alega, a devolução da casa foi peticionada na alínea D) da reconvenção, onde se pede a sua condenação: «… em indemnização pela ocupação e utilização que fez da casa, objecto do contrato prometido (…) até efectiva desocupação e entrega ao réu…».
Revela-se, em consequência, manifestamente improcedente a argumentação da recorrente, no que se reporta à recusa de restituição da casa.

3.5. A questão das comissões
Na alínea c) do seu petitório, a ora recorrente pede a condenação da recorrida no pagamento de comissões que alega serem-lhe devidas, no âmbito do acordo celebrado com o primitivo réu.
Conforme se decidiu no ponto 3.2 do presente acórdão, o referido acordo traduz-se num contrato de mediação nulo por vício de forma, tendo-se considerado serem devidas à recorrente as comissões emergentes do negócio jurídico em causa, apesar da sua nulidade, nos termos do artigo 289.º do Código Civil.
Em sede de audiência de julgamento, as partes acordaram em fixar o valor das referidas comissões em € 105.059,10, e o dos juros devidos, em € 7.003,94. (acta, fls. 512)
Está no entanto provada nos autos a seguinte factualidade relevante:

34) A autora (ora recorrente) reclamou na Insolvência de ... a quantia de € 112.063,04, correspondente a € 105.059,10 de capital e € 7.003,94 de juros, referentes a comissões de vendas.

35) Tal crédito foi integrado na relação de créditos reclamados, a que se refere o n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, apresentada pelo Administrador da Insolvência (fls. 658), tendo sido reconhecido e graduado na sentença proferida pelo Tribunal de Gouveia em 28.07.2008 (fls. 672 dos autos).
Ou seja: a autora (ora recorrente) já peticionou na sede processual própria (insolvência), o crédito que aqui reclama, que foi na sua totalidade reconhecido e graduado por sentença judicial transitada em julgado.
E tal crédito só poderia ser reconhecido no processo de insolvência (e não neste), face às razões que se seguem.
Decretada a insolvência e alterada subjectivamente a instância, com a intervenção da massa insolvente na qualidade de ré, os interesses discutidos na acção deixaram de dizer respeito apenas aos intervenientes originários, passando a ser legítimos interessados, relativamente ao seu desfecho, um número indeterminado de credores, cujos interesses a lei tutela.
Com efeito, conforme proclama o preâmbulo do DL 52/2004, de 18 de Março o «objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores».
Como refere Lebre de Freitas[24], com o CIRE «o fim da recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única, que orienta todo o regime (…) conferindo a soberania aos credores».[25]
No que respeita à reclamação de créditos, a lei prevê expressa e imperativamente o direito a todos os credores, de impugnarem os créditos reclamados, no que concerne à reclamação inicial (artigo 130.º n.º 1 do CIRE), reiterando esse direito na acção de verificação ulterior, obrigatoriamente proposta contra a massa insolvente e contra todos os credores (artigo 146.º, n.º 1).
Perante este quadro processual imperativo, que visa garantir o direito dos credores na insolvência, considerando a impossibilidade de constituição de caso julgado relativamente a esses credores, da decisão que reconhecesse o crédito da autora nesta acção, o crédito da autora apenas poderia ser reclamado e reconhecido no processo de insolvência.
E foi-o, daí decorrendo a total improcedência do recurso, na parte em que a recorrente pretende uma segunda condenação da ré (massa insolvente), no pagamento das comissões.
Terá que naufragar o recurso nesta parte, mantendo-se a decisão recorrida, embora com diversos fundamentos.

3.6. A devolução do valor recebido pela autora
Considerou-se na douta sentença recorrida: «Finalmente, por força do princípio de reposição da situação anterior consagrado no artigo 289º, nº 1, do Código Civil, deverá a autora restituir/entregar à ré a importância por si recebida a título de comissões, que ascende a € 26 132,00»
Como já se referiu, em sede de audiência de julgamento, as partes acordaram em fixar o valor das referidas comissões em dívida, em € 105.059,10, e o dos juros devidos, em € 7.003,94. (acta, fls. 512)
Em coerência, deverá entender-se que tal fixação, já em sede de audiência, constitui confissão de dívida da ré (massa insolvente) e um “acerto final” do crédito da autora sobre a ré.
Com efeito, ao aceitar como crédito da autora, referente a comissões, os valores referidos, de capital e juros, em audiência de julgamento, a massa insolvente terá equacionado todas as vicissitudes contratuais, nomeadamente eventuais adiantamentos por conta desses valores[26].
Por outro lado, como se referiu, foi exactamente o mesmo valor (capital e juros), que se considerou como crédito sobre a insolvente, reconhecido e graduado no processo de insolvência, em decisão já transitada em julgado.
Pelas razões expostas, deverá proceder o recurso, no que concerne à segunda parte da alínea i) do ponto III) do dispositivo da sentença recorrida (condenação da autora a restituir à ré a quantia de € 26.132,00).
No mais, se deverá manter o julgado.

III. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, ao qual se concede parcial provimento, e, em consequência, em revogar a sentença recorrida, na parte em que condena a autora «a restituir à ré massa insolvente de J (…) a quantia de € 26.132,00», mantendo-se a douta decisão recorrida em toda a parte restante.
Custas do recurso por apelante e apelada, na proporção dos decaimentos, que se fixa, respectivamente, em 4/5 e 1/5, mantendo-se as custas da acção nos termos definidos na sentença recorrida.
                                                         *




Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
 Emídio Costa


[1]Vide  Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, págs. 269 e seguintes.
[2] Vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II., 7ª edição, págs. 125 e seguinte.
[3] Proferido no Processo n.º 4320/07.5TVLSB.L1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt.

[4] Proferido no Processo n.º 1847/05.TBVIS:C1, acessível em http://www.dgsi.pt.
[5] Ou, em alternativa, a perda de interesse na prestação, previsto na primeira parte do mesmo normativo.
[6] Proferido no Processo n.º 09A0350, acessível em http://www.dgsi.pt.
[7] Proferido no Processo n.º 05B3996, acessível em http://www.dgsi.pt.
[8] Em Tema de Contrato-Promessa, 6.ª Reimpressão, Lisboa, 2005, pág. 43 e seguintes.
[9] Proferido no Processo n.º 0437000, acessível em http://www.dgsi.pt.
[10] Tanto mais que se trata de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão sobre edifício, não sendo susceptível de afastamento pelas partes, o direito à execução específica, nos termos do n.º 3 do artigo 830.º do CC.
[11] Na redacção dada pelo DL 200/2004, de 18/8, com entrada em vigor a partir de 15.09.2004
[12] António Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1.º Vol. AAFDL, 1980, pág. 475 e 476.
[13] No sentido da natureza constitutiva do registo do contrato promessa, vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista, página 388; no sentido de que tal registo tem apenas “natureza consolidativa”, destinando-se a evitar possíveis aquisições tabulares, vide António Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 474.
[14] Acórdão da relação de Lisboa, de 18.02.1993, in CJ, Ano XVIII, Tomo 1, pág. 147.
[15] Tratado de Direito Civil Português, Tomo 1.º, pág. 657 e 658.
[16] Proferido no Processo n.º 04A800, acessível em http://www.dgsi.pt
[17] Proferido no Processo n.º 07A381, acessível em http://www.dgsi.pt
[18] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 340; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª edição, pág. 113; e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 4.ª edição, pág. 418.
[19] E, neste caso, até controvertido no que respeita ao seu montante.
[20] No sentido de que o sinal tem que corresponder à entrega de uma coisa ou quantia determinada (não podendo, em consequência, atribuir-se tal qualificação ao alegado crédito não quantificado), vejam-se: Ana Prata, O Contrato-promessa e o seu Regime Civil, página 743 a 750; e Nuno Manuel Pinto de Oliveira, Ensaio sobre o Sinal, páginas 10 a 13.
[21] No sentido apontado, veja-se o acórdão do STJ, de 11.04.2000, proferido no Processo n.º 00A166, acessível em http://www.dgsi.pt, no qual se refere que os recorrentes «…não podem, consequentemente, pedir a restituição do sinal em singelo. Para isso teria que ter sucedido uma outra coisa, que era ter sido usada pelo liquidatário judicial a sua faculdade de optar pela resolução…»
[22] Tal extinção deverá qualificar-se como revogação, por oposição à resolução (que pressupõe a existência de uma causa justificativa), à caducidade (que pressupõe um facto não voluntário), e à denúncia (específica dos contratos de duração indeterminada) – vide: Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, Coimbra Editora, 4.ª edição, 2002, pág. 380 e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.º Volume, AAFDL, 1980, pág. 166).
[23] Relatado por Santos Bernardino, proferido no Processo n.º 08B1547, acessível em http://www.dgsi.pt
[24] Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência, Revista Themis, Edição especial, 2005, Vários, Almedina, página 12.
[25] O mesmo entendimento perfilham Carvalho Fernandes e João Labareda - Colectânea de Ensaios Sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 21 – que referem que o CIRE, fazendo jus à sua denominação, abandonou a errónea ideia quanto à suposta prevalência da via da recuperação, deixando aos credores uma significativa margem de intervenção.
[26] Tanto mais que o valor final aceite pela massa insolvente é inferior ao peticionado pela autora na petição.