Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
289/09.0TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
FUNDO DE GARANTIA
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Data do Acordão: 11/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ART. 3º, Nº 6, DA LEI Nº 75/98 DE 19/11 E NO ART. 9º, Nº 4, DO DEC. LEI N.º 164/99, DE 13/05
Sumário: I – É nula – por falta de fundamentação – a decisão que, sem indicação de qualquer facto e sem qualquer apreciação jurídica, se limita a afirmar que se mantêm os pressupostos que determinaram a fixação da prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e que, por isso, determina a manutenção daquela obrigação.

II – Sendo imposto à pessoa que recebe a prestação devida pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores o ónus de renovar anualmente a prova dos pressupostos subjacentes à sua atribuição – como decorre do disposto no art. 3º, nº 6, da Lei nº 75/98 de 19/11 e no art. 9º, nº 4, do Dec. Lei n.º 164/99, de 13/05 – não pode o Tribunal afirmar ou presumir que tais pressupostos se mantêm sem que seja feita uma nova e efectiva prova no que respeita à sua verificação.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Por decisão proferida nos presentes autos em 20/04/2010, determinou-se que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores procedesse ao pagamento da quantia mensal de 100,00€, a título de alimentos devidos ao menor, A... (nascido em 10/03/1995), em substituição do progenitor, B...

Em 28/09/2011, foi proferido despacho, determinando a manutenção daquela obrigação a cargo do Fundo, por se manterem os pressupostos que havia determinado a sua fixação.

Em 10/05/2012, a progenitora do menor, C..., veio apresentar requerimento, alegando que se mantinham todos os pressupostos da obrigação a cargo do Fundo e que estava em dívida a prestação referente a Abril de 2012, sendo que a última prestação paga era a referente a Março.

Requeria, por essa razão, a notificação do Fundo de Garantia para efectuar o pagamento da prestação referente a Abril e das demais prestações vincendas.

Na sequência desse requerimento, veio a ser proferido – em 24/05/2012 – o despacho com o seguinte teor:

Mantendo-se os pressupostos que determinaram a fixação de prestação substitutiva de alimentos a menores a cargo do FGADM determino a manutenção da obrigação do referido FG prestar o montante fixado nestes autos a favor do menor A ...– art.º 9.º, n.º 4, do DL n.º 164/99, de 03.05”.

Discordando dessa decisão, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto douto despacho de fls .... , de 24/04/2012, que decide pela manutenção da prestação assegurada pelo FGADM nos autos em apreço, em substituição do devedor incumpridor, e com o qual, salvo o devido respeito, não se pode conformar,

2ª - Porquanto o FGADM considera que não se encontra preenchido o pressuposto legal essencial subjacente à atribuição da prestação de alimentos: a menoridade do beneficiário;

3ª - E ainda que assim não fosse, entende igualmente que o douto despacho recorrido não se encontra fundamentado.

4ª - Quanto à falta de preenchimento do pressuposto legal referente à menoridade do beneficiário, tal entendimento resulta quer da letra e da ratio legis dos diplomas que regulam o FGADM, quer da diferente natureza das prestações de alimentos em causa.

5ª - Conforme resulta dos autos, Cláudia Ramos atingiu a maioridade em 23/03/2012.

6ª - A Lei n.º 75/98 de 19/11 e o Decreto-Lei n.º 164/99, de 13/05 destinam-se única e exclusivamente à protecção de menores.

7ª - Tal decorre indubitavelmente do elemento literal: da designação do Fundo, e forma expressa, na epígrafe da Lei n.º 75/98, no preâmbulo do DL n.º 164/99, e em todo o articulado de ambos os diplomas.

8ª - Nos termos do art. 9.º do Código Civil, o intérprete "Não pode" considerar qualquer interpretação que "não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

9ª - A prestação do FGADM é uma prestação substitutiva, impondo o preenchimento cumulativo dos pressupostos legais.

10ª - O direito a alimentos resultante da condição jurídica de menor, extingue-se com o advento da maioridade e esta atinge-se aos 18 anos, nos termos do art. 130.º do CC.

11ª - O maior apenas mantém o direito a alimentos dos progenitores em verificando-se o condicionalismo referido no art. 1880.º CC, tendo, para tanto, de instaurar a competente acção judicial contra o progenitor incumpridor, nos termos do art. 1412.º CPC, conforme entendimento jurisprudencial.

12ª - Acresce que a decisão recorrida condena o FGADM a prestar alimentos a um maior de idade com um critério indeterminado.

13ª - Face ao que antecede, o FGADM entende que cessou a obrigação legal de assegurar a prestação de alimentos nos autos relativamente a em 10/03/2012,

14ª - Porquanto nessa data cessou o preenchimento do pressuposto legal essencial subjacente à atribuição da referida prestação: a condição de ser menor.

15ª - O entendimento jurisprudencial, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça, tem sido uniforme no sentido de que o regime previsto nos diplomas do FGADM não se aplica a maiores de idade.

16ª - O FGADM considera que devia ter sido determinada nos autos a cessação da prestação à data da maioridade do beneficiário e que, não tendo sido assim, deve ser decretada a sua cessação com efeitos reportados à mesma.

17ª - Sem prescindir, e não obstante o acima vertido, o douto despacho recorrido padece de falta absoluta de fundamentação,

18ª - Presumindo-se que considera renovada a prova anual pela beneficiária de que se mantêm os pressupostos legais subjacentes à atribuição da prestação assegurada pelo FGADM, e determinando a manutenção da sua prestação, sem que qualquer elemento de prova lhe seja dado a conhecer.

19ª - Com efeito, não existe qualquer menção à composição e aos rendimentos do agregado familiar em que se encontra inserido o menor, nem foram remetidos documentos dos quais tal informação possa resultar;

20ª - Nem qualquer referência ao preceituado no DL. n.º 70/2010, de 16 de Junho, aplicável ao FGADM por força do disposto nos artigos 1.º, n.º 2, alínea c), e 16.º, inclusivé na renovação anual da prova.

21ª - Acresce que o FGADM também desconhece se se mantém a impossibilidade de imposição coerciva da prestação ao devedor, pressuposto subjacente à sua intervenção.

22ª - O despacho em apreço incide sobre o mérito da causa, fazendo impender sobre o FGADM a obrigação de continuar a assegurar a prestação, motivo pelo qual devia ter sido fundamentado, de harmonia com os artigos 158.º e 668.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC.

23ª - Pelo que se invoca a sua nulidade, por omissão, nos termos do art. 201.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, com as devidas consequências legais.

24ª - Face ao supra exposto, entende-se que o despacho recorrido violou o disposto na Lei n.º 75/98 de 19 de Novembro e Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, no seu todo, bem como o artigo 9.º do CC, quanto à maioridade da beneficiária,

25ª - Assim como o disposto nos artigos 158.º, n.ºs 1 e 2 e 668.º, n.º 1. al. b), ambos do Código de Processo Civil, quanto à falta de fundamentação,

26ª - Tendo, de igual modo, contrariado a jurisprudência uniforme dos tribunais superiores, incluindo do ST J, quanto a ambas as matérias.

Assim, conclui, deve ser revogado o despacho recorrido, e, consequentemente:

a) Determinando-se o proferimento de novo despacho que determine a cessação para o FGADM do dever legal de assegurar o pagamento da prestação de alimentos fixada nos presentes autos, por cessação do preenchimento do pressuposto legal essencial subjacente à mesma: a menoridade do beneficiário;

b) Determinando-se que os efeitos da cessação da prestação do FGADM sejam reportados à data da maioridade daquele; tudo nos precisos termos da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro e do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, no artigo 9.º do CC e na jurisprudência.

Sem prescindir,

c) Declarando-se a nulidade do despacho recorrido por falta absoluta de fundamentação, nos termos e com os efeitos do disposto nos artigos 158.º e 668.º, n.º 1, al. b), e 201.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

 

Posteriormente, o Apelante veio apresentar requerimento, onde reconhece ter incorrido em lapso no que se reporta à maioridade do beneficiário, requerendo que seja dado sem efeito o vertido no ponto I das alegações e das correspondentes alíneas a) e b) do pedido e declarando manter interesse no recurso no que se refere ao ponto II das suas alegações e, consequentemente, no pedido constante da alínea c).

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a decisão recorrida está ou não ferida de nulidade, por falta de fundamentação.


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III.

Apreciemos, pois, o objecto do recurso.

Sustentava o Apelante, nas suas alegações, que deveria ter sido determinada a cessação da prestação a que estava vinculado em virtude de o menor ter atingido a maioridade.

É evidente, porém, que, como resulta de certidão junta aos autos, o menor ainda não atingiu a maioridade, porquanto nasceu em 10/03/1995 e, reconhecendo o lapso em que havia incorrido, o Apelante veio requerer que, nessa parte, fossem consideradas sem efeito as suas alegações, circunscrevendo e limitando o seu recurso à questão a que aludia no ponto II das suas alegações e ao pedido constante da alínea c), ou seja, à falta de fundamentação e consequente nulidade da decisão recorrida.

Analisemos, pois, essa questão.

Considera o Apelante que a decisão recorrida é nula por absoluta falta de fundamentação e, ao que nos parece, terá razão.

Com efeito, dispondo o art. 668º, nº 1, alínea b) do C.P.C. que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, a verdade é que a decisão recorrida não indica os factos nem os argumentos jurídicos que conduziram à decisão, limitando-se a afirmar (sem que diga porquê e com que fundamentos) que se mantêm os pressupostos que determinaram a fixação de prestação substitutiva de alimentos a menores a cargo do FGADM, determinando consequentemente a manutenção da obrigação do referido FG a prestar o montante que havia sido fixado a favor do menor A ....

E, sendo certo que a decisão recorrida não indica a respectiva fundamentação de facto, a verdade é que nem sequer foi produzida qualquer prova que permita a sua fixação.

Em conformidade com o disposto no art. 3º, nº 6, da Lei nº 75/98 de 19/11 e no art. 9º, nº 4, do Dec. Lei n.º 164/99, de 13/05, a pessoa que recebe a prestação tem o ónus de renovar anualmente a prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição, sob pena de a mesma cessar.

Note-se que o legislador impôs à pessoa que recebe a prestação o ónus de renovar a prova dos pressupostos subjacentes à sua atribuição e isso significa, naturalmente, que o tribunal não pode afirmar ou presumir – como se fez na decisão recorrida – que tais pressupostos se mantêm sem que seja feita uma nova e efectiva prova da sua verificação.

Como decorre do disposto no art. 1º da Lei nº 75/98 de 19/11 e no art. 3º do Dec. Lei nº 164/99 de 13/05, a obrigação (a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos) de assegurar o pagamento das prestações de alimentos devidos a menores apenas existe – e apenas subsiste – se a pessoa judicialmente obrigada a prestar os alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e se o alimentado não tiver rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.

Importa ainda notar que, entretanto, foi publicado o Dec. Lei nº 70/2010 de 16/06, que veio introduzir novas regras de capitação de rendimentos aplicáveis ao reconhecimento e manutenção do direito a diversas prestações dos subsistemas de protecção familiar e de solidariedade, determinando expressamente – cfr. art. 1º, nº 2, alínea c) – que tais regras são aplicáveis ao pagamento das prestações de alimentos, no âmbito do Fundo de Garantia de Alimentos a Menores e alterando o art. 3º do Dec. Lei nº 164/99, cujo nº 3 passou a ter a seguinte redacção: “O conceito de agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação de rendimentos, referidos no número anterior, são calculados nos termos do Dec. Lei nº 70/2010, de 16 de Junho”.

Por outro lado, dispõe o art. 25º desse diploma que o regime estabelecido se aplica às prestações e apoios sociais em curso e determina, após a data da sua entrada em vigor, a reavaliação extraordinária da condição de recursos, sendo, por isso, evidente que a manutenção da obrigação do Fundo de Garantia que foi fixada nos autos tem que ser vista à luz dos critérios aqui estabelecidos e em função dos rendimentos que, efectivamente, são auferidos pelo menor e respectivo agregado familiar.

Ora, a verdade é que a decisão de manter a obrigação do Fundo de Garantia nos mesmos termos que havia sido fixada por decisão de 20/04/2010 não foi antecedida de qualquer prova no que toca à efectiva e actual verificação dos pressupostos de que depende aquela obrigação.

De facto, não sabemos – porque não foi feita qualquer prova – se a situação e os rendimentos do agregado familiar onde o menor está inserido ainda é idêntica àquela que, em 2010, determinou a decisão de fixar em 100,00€ a prestação a cargo do Fundo ou se, eventualmente, essa situação se alterou e em que termos. A progenitora do menor, que naquela data não tinha trabalho regular, permanece nessa situação? Ou terá agora um emprego e trabalho regular onde aufere rendimentos que afastariam, pelas regras de capitação do rendimento actualmente em vigor, os pressupostos da obrigação a cargo do Fundo? E, sendo certo que, naquela data, a sua situação estava a ser objecto de avaliação para eventual apoio de R.S.I., qual é a situação actual? E o progenitor do menor permanece na mesma situação?

Não dispomos desses factos. E não dispomos porque, de facto, nenhuma prova foi produzida, já que apenas foi junta aos autos uma certidão do Serviço de Finanças da qual consta que não foi entregue qualquer declaração de rendimentos nem consta na base de dados a obtenção de rendimentos sujeitos à obrigação de entrega dessa declaração, certidão esta que não é suficiente para fazer a prova dos pressupostos de manutenção da obrigação aqui em causa.

Concluimos, pois, em face do exposto, que a decisão recorrida não indica nem enuncia qualquer facto que permita concluir que se mantêm os pressupostos legais da obrigação do Fundo de Garantia – não dizendo sequer (como se impunha, se fosse esse o caso) que a situação de facto é hoje idêntica àquela que se verificava em 2010 e que foi enunciada na decisão que, nessa data, foi proferida – e, portanto, não poderemos deixar de concluir que tal decisão é nula por falta absoluta de fundamentação.

Acresce que não existe sequer – porque não foi produzida – qualquer prova dos factos que permitiriam avaliar, à luz dos critérios actualmente vigentes, a eventual manutenção dos pressupostos de que depende aquela obrigação e, portanto, não resta outra solução que não seja a de anular a decisão recorrida para que, após renovação da prova legalmente imposta (que terá que ser efectuada sob pena de cessar a obrigação do Fundo), seja proferida nova decisão que, indicando os fundamentos de facto, analise esses factos à luz dos critérios normativos actualmente em vigor, com vista a concluir se se mantêm ou não os pressupostos legais de que depende a manutenção da obrigação aqui em causa.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – É nula – por falta de fundamentação – a decisão que, sem indicação de qualquer facto e sem qualquer apreciação jurídica, se limita a afirmar que se mantêm os pressupostos que determinaram a fixação da prestação a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e que, por isso, determina a manutenção daquela obrigação.

II – Sendo imposto à pessoa que recebe a prestação devida pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores o ónus de renovar anualmente a prova dos pressupostos subjacentes à sua atribuição – como decorre do disposto no art. 3º, nº 6, da Lei nº 75/98 de 19/11 e no art. 9º, nº 4, do Dec. Lei n.º 164/99, de 13/05 – não pode o Tribunal afirmar ou presumir que tais pressupostos se mantêm sem que seja feita uma nova e efectiva prova no que respeita à sua verificação.


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, anula-se a decisão recorrida, determinando-se que a pessoa que recebe a prestação seja notificada, em conformidade com o disposto no art. 9º, nº 5, do Dec. Lei nº 164/99 de 13/05, para renovar a prova dos pressupostos da atribuição da prestação aqui em causa, sob pena de cessação da mesma, após o que deverá ser proferida nova decisão que, com indicação da fundamentação de facto e de direito, conclua pela manutenção ou cessação daquela prestação.
Sem custas.
Notifique.

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Adjuntos: Dr.ª Maria Domingas Simões

                Dr. Nunes Ribeiro