Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
681/15.0TBACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – ALCOBAÇA – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 473º E 474º DO C. CIVIL.
Sumário: I - A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos (artigos 473.º, n.º 1, e 474.º, ambos do Código Civil), tornando-se necessário que:
a) Haja um enriquecimento;

b) O enriquecimento careça de causa justificativa;

c) O enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;

d) A lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado

II – A 1ª das situações previstas no nº 2 do artº 473º do C.Civil é a da restituição daquilo que for indevidamente recebido (“condictio indebiti”).

III - No que diz respeito ao enriquecimento, este pode consistir “na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista (...)”.

IV - Como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela, “poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento”.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra[1]

I - 1) - A C..., C.R.L., com sede na Rua ..., instaurou, em 27/02/2015, na Instância Local - Secção Cível - da Comarca de Leiria, contra “A..., Lda.” (1ª R.), com sede em ..., e contra “V...” (2ª Ré), com sede em (...), Itália, acção declarativa, de condenação, com processo comum, fundada nas normas do enriquecimento sem causa, pedindo a condenação das Rés a pagarem-lhe a quantia de € 9.639,00, acrescida de juros legais à taxa de 4% contados desde a data da citação até integral pagamento.

Alegou, para o efeito e em síntese, que:

- Em 30/03/2012, a Ré A... ordenou à A. a transferência de sua conta D/O nº ..., domiciliada na sede da A. em ..., da quantia de € 5.000,00 para a Ré V..., com IBAN IT ..., e a transferência do montante de € 9.639,00 para J..., Itália, com IBAN – IT...

- Porém, por erro, a A., em 02/04/2012, transferiu para o IBAN da 2ª Ré não apenas a quantia de € 5.000,00, mas também a quantia de € 9.639,00 que deveria ter sido transferida para o IBAN de J...

- A 2ª Ré recusou-se a devolver a quantia de € 9.639,00;

- A 1ª Ré solicitou à A. que creditasse na sua conta a referida quantia, o que a A. fez em 11/04/2012;

- Em 21/03/2013 a 2ª Ré, alegando uma situação de incumprimento da Ré A... para com aquela sociedade e a emissão de uma factura pro forma à 1ª Ré no montante de € 4.430,00, comunicou à A. que não havia qualquer montante a devolver;

- Posteriormente, a sócia gerente da 1ª Ré, A..., Lda., comunicou à A., em reunião realizada na sede desta, que não devolveria qualquer montante à A.;

- Ocorreu, assim, o ingresso de € 9.639,00 na esfera patrimonial da 2ª Ré, o que representou para ela um evidente enriquecimento, de resto em nada prejudicada pelo alegado aproveitamento de se pagar da pretensa dívida da 1ª Ré e da constituição de um crédito a favor desta;

- Também a 1ª Ré enriqueceu à custa da A., sem justa causa, pois viu compensada pelo erro da A. o alegado crédito da 2ª Ré sobre aquela, como ainda beneficiou de uma factura no montante de € 4.443,00.

2) - Ambas as Rés contestaram.

Concluiram pugnando pela sua absolvição.

3) - Por cartas envidas em 03/07/2015 aos respectivos Exmos. Mandatários, as partes foram notificadas do despacho de 01/07/2015, com o seguinte teor:

“Analisados os articulados apresentados, afigura-se que o estado do processo permite conhecer imediatamente do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, mediante a apreciação do pedido deduzido, nos termos do art. 595º, nº 1, al. b), do CPC.

Assim, a fim de evitar “decisões-surpresa”, faculta-se às partes a correspondente discussão de facto e de direito, por escrito e no prazo de 10 dias - cfr. artigos 3º, nº 3, e 591º, nº 1, al. b), do CPC.”.

4) - Em 29/10/2015 foi proferido saneador-sentença, em cuja parte dispositiva se consignou:

«[…] julgo a presente acção parcialmente procedente, e consequentemente:

a) condeno a Ré V... a pagar à Autora a quantia de € 9.639,00 (nove mil, seiscentos e trinta e nove euros), acrescida de juros legais à taxa de 4% contados desde a data da citação (ocorrida a 09/03/2015

- cfr. fls. 29 e 31) até integral pagamento.

b) absolvo a Ré A..., Lda. do que contra si foi peticionado.

Custas pela Autora e pela Ré V..., em partes iguais.

Valor da causa (artigos 296º, 297º, nº 1, e 306º, nº 2, do CPC): € 9.639,00 (nove mil, seiscentos e trinta e nove euros)[…]».

II - A 2ª Ré, “V...”, notificada desta decisão, por carta endereçada em 02/11/2015 ao seu ilustre Mandatário, veio dela recorrer de Apelação, oferecendo, na alegação que apresentou em 07/12/2015, as seguintes conclusões:

...

Terminou pedindo a procedência do recurso, decidindo-se pela sua absolvição do pedido formulado na P.I..

III - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil[2] (doravante, NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se passará a identificar como CPC), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”[3] e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento dos litigantes, não está obrigado a apreciar.

Deste modo, para além das “nulidades” e irregularidades processuais que a Apelante invoca, bem assim como a violação dos princípios constitucionais que imputa ao Tribunal “a quo”, o que aqui está em causa, essencialmente, é saber se é de considerar inexistir, ao invés do decidido, enriquecimento sem causa, à custa da Autora, por parte da Ré, ora apelante.

*

IV - No saneador-sentença consideram-se “…admitidos por acordo os seguintes factos que não foram efectivamente impugnados por nenhuma das Rés, nem estão em oposição com as respectivas defesas consideradas no seu conjunto (cfr. art. 574º, nº 2, do CPC)”:

«1º - Em 30/03/2012, a Ré A (...), ordenou à A. a transferência de sua conta D/O nº (...), domiciliada na sede da A. em Alcobaça, da quantia de € 5.000,00 para a Ré V (...) IBAN IT (...)e a transferência do montante de € 9.639,00 para V (...),  (...), Itália, IBAN - IT (...). Porém, (cfr. art. 1º da p.i.)

2º - Por erro, a A., em 02/04/2012, transferiu para o IBAN da Ré V (...) não apenas a quantia de € 5.000,00, mas também a quantia de € 9.639,00 que deveria ter sido transferido para o IBAN de V (...). (cfr. art.  2º da p.i.)

3º - A 2ª Ré recusa-se a devolver a referida quantia de € 9.639,00 (cfr. parte do art. 4º da p.i.)

4º - A A., por solicitação da 1ª Ré, creditou em 11/04/2012 a conta desta identificada em 1º em € 9.639,00, ficando assim a A. sem aquele montante. (cfr. parte do art. 5º da p.i.)».

*

V - O nº 1, do art. 473.º, do Código Civil (CC), estabelece: “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletar”.

Por sua vez, o n.º 2 desse mesmo artigo dispõe: “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”.

Ora, a 1ª das situações previstas no aludido nº 2 do artº 473º, é, precisamente, a da restituição daquilo que for indevidamente recebido (“condictio indebiti”).

Da sentença impugnada, passa-se a transcrever-se os trechos que espelham o essencial do entendimento que aí se seguiu e que conduziu à condenação da ora Apelante:

«[…] Esta obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de quatro requisitos (artigos 473.º, n.º 1, e 474.º, ambos do Código Civil), tornando-se necessário que:

a) Haja um enriquecimento;

b) O enriquecimento careça de causa justificativa;

c) O enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição;

d) A lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado

No que diz respeito ao enriquecimento, este pode consistir “na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista (...)” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 454), o que sucedeu com a 2ª R., que, ao receber na sua conta bancária a transferência no valor de € 9.639,00 efectuada por erro, obteve um enriquecimento correspondente a um acréscimo patrimonial naquele valor.

Tal enriquecimento, que se verifica manifestamente quanto à 2ª Ré, já não se verifica quanto à 1ª Ré, pois esta não obteve qualquer acréscimo patrimonial com esta situação. De facto, começou até por ter uma diminuição patrimonial com o débito de € 9.639,00 feito pela A. na sua conta a fim de ser efectuada a transferência em crise, tendo tal diminuição sido “anulada” com o crédito posterior (também efectuado pela A.) na sua conta de igual montante.

Por outro lado, como já referido, não é esta a sede própria para apurar se a 2ª Ré é credora da 1ª Ré e nos termos por aquela alegados, pelo que não se pode concluir nesta acção que a 1ª Ré obteve, através do erro da A., algum enriquecimento.

(…)

Como já aludido, não se depreende da lei, seja por força de norma expressa, seja por decorrência da unidade do sistema, que a A. tenha que suportar a satisfação de qualquer eventual crédito que a 2ª Ré alegadamente detenha sobre a 1ª Ré.

Como bem referem Pires de Lima e Antunes Varela, “poderá dizer-se que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento” (ob. cit., pág. 456).

Importa que se verifique uma correlação entre o empobrecimento da A. e o enriquecimento da 2ª R., consubstanciada no facto de a vantagem patrimonial alcançada por uma delas resultar no sacrifício sofrido pela outra.

E isso demonstrou-se também provado nos autos, pois foi na exata medida em que a A., por solicitação da 1ª Ré (na sequência do erro cometido pela A. ao debitar na conta da 1ª Ré o valor de € 9.639,00 que indevidamente transferiu para a 2ª Ré), creditou em 11/04/2012 a identificada conta da 1ª Ré em € 9.639,00 (ficando assim a A. sem aquele montante, tanto mais que a 2ª Ré recusa-se a efectuar a restituição de tal valor), que a A. sofreu o seu empobrecimento.

Por último, não se vislumbra qualquer outro meio, de entre as normas jurídicas aplicáveis, que importe o ressarcimento da A. face ao locupletamento da 2ª R., pelo que se mostra legítimo e fundado o recurso à figura do enriquecimento sem causa para proceder à justa reintegração patrimonial da A., verificando-se, deste modo, preenchidos, quanto à 2ª Ré, os requisitos para que haja lugar à restituição. […]».

Adiante-se já, que, face à matéria de facto em que assentou a decisão recorrida, não se vislumbra que erro tenha havido na análise jurídica que foi efectuada pela primeira Instância na sentença recorrida e, portanto, que a subsunção dos factos ao direito aplicável aí efectuada conduza a resultado diverso da parcial procedência da acção, nos termos decididos.

Efectivamente, atenta a matéria de facto fixada no saneador-sentença, não se detecta, em face das normas legais aplicáveis, modo de discordar da decisão de direito tomada pelo Tribunal “a quo”, já que em tal sentença - para a qual aqui se remete - enunciando-se devidamente as questões a resolver, foram estas solucionadas correctamente e com fundamentação adequada, à luz do disposto nos artºs 342º, nº 1, 473º, 474º, 479º, 480º, 559º, e 806º, todos do Código Civil.

Não obstante o que se acabou de dizer não se deixará de focar alguns pontos da argumentação da Apelante, cuja refutação ficará, assim, com acrescida explicitação.

Perfilhamos o entendimento do Acórdão do STJ, de 25/10/2011 (Revista nº 1182/09.1TVLSB.S1.L1), que se encontra sintetizado no respectivo sumário, ora reproduzido na parte que mais interessa à situação de que tratamos:

«[…] O contrato de depósito (irregular) constitui-se, nos termos da prática bancária, como um contrato de adesão, porquanto o depositante e o banco estipulam entre eles um conjunto de regras predefinidas a que o aderente dá o seu assentimento e mediante o qual o banco se compromete a oferecer determinados serviços, como sejam a transmissão regular dos movimentos bancários efectuados, de débito e crédito, com o respectivo saldo final.

III - Através do acto de depósito o tradens aceita transferir para a esfera de domínio (propriedade) do accipiens o risco sobre a gestão da quantia que transferiu, sendo que a partir desse momento se alheia da responsabilidade quanto ao uso e fruição, por transferência para a esfera de responsabilidade do depositário. Cabe ao depositário, enquanto proprietário da coisa transferida responder pelo risco de extravio ou dissipação da coisa até ao montante exigível no momento da solicitação da restituição.

IV - Tendo-se constatado um incremento de um depósito numa conta existente num banco, operado por um depósito, injustificado, efectuado pelo banco depositário, ocorreu, na esfera do depositante que recebeu o depósito, indevido e injustificado, um enriquecimento sem causa. Na verdade, sendo o banco proprietário da quantia, indevida e injustificadamente, deslocada para uma conta de depósito existente no mesmo banco, o banco ficou depauperado ou degradado no respectivo património em montante correspondente à quantia deslocada. […]»[4].

Portanto, do acima exposto logo resulta que, no presente caso, não interessa se a 2ª Ré se julgava, em virtude de a 1ª Ré ter débitos para com ela, com direito a fazer sua a quantia de € 9.639,00, que a Autora, por erro, transferiu para a sua conta, pois, quem, na realidade ficou sem aquele montante foi a ora Autora, sendo que, só em virtude desse erro, que respeitou à ordem dada pela sua cliente (a 1ª Ré), é que a 2ª Ré viu aumentado o seu património com o depósito na sua conta resultante dessa transferência.

Portanto, em termos imediatos, porque a Autora só por erro, já que não estava autorizada pela sua cliente (a 1ª Ré) a efectuar tal movimento, é que transferiu a quantia de € 9.639,00 para a conta da 2ª Ré, essa transferência foi indevida e a Autora, por isso, ficou, sem justificação legítima, desprovida dessa quantia, que passou a integrar o património da ora Apelante.

Note-se que a instituição bancária é absolutamente alheia às hipotéticas relações jurídicas que subjazem às transferências que faz por ordem dos respectivos clientes, bastando, para o efeito, que esteja legitimada por estes a fazê-las.

A 2ª Ré até poderia ter créditos sobre a 1ª Ré que superassem esse montante, mas isso não a legitimaria a fazer sua uma quantia que a Autora, apenas por mero lapso - indevidamente, pois -, transferiu para a sua conta.

Também não colhe a argumentação da Apelante quando refere que “…havia necessidade de se produzir prova atendendo à interpretação da vontade real dos intervenientes.”.

É que essa asserção descura, em primeiro lugar, que, embora se alegue o erro da Autora, enquanto explicação única para a deslocação dos € 9.639,00 para o património da 2ª Ré, a causa de pedir, aqui, repousa exclusivamente no enriquecimento sem causa e não em qualquer nulidade resultante de um vício da vontade.

Em segundo lugar, olvida a Apelante, que esse erro, ou lapso, enquanto expressão fáctica do engano da Autora consubstanciado na transferência daquela quantia ter sido efectuada para a conta daquela 2ª Ré, ao invés de o ser, conforme instruções da cliente da Autora (1ª Ré), para a conta de “V (...)”, foi matéria alegada nos artºs 1 e 2 da PI e que, por não impugnada, se teve como assente.

No caso “sub judice”, dúvidas não parece haver, assim, de que a 2ª ré obteve uma vantagem patrimonial no montante de € 9.639,00, à custa do património da autora - que se viu empobrecido em montante correspondente -, sem causa que a legitimasse, porquanto apenas resultante de erro da autora na execução da ordem de transferência da sua cliente. Por outro lado, não facultando a lei, à autora, outro meio específico de desfazer a referida deslocação patrimonial, apresenta-se legitimada a utilização do instituto do enriquecimento sem causa (cfr. artº 474º do CC).

Conforme resulta do exposto e do que foi explicitado na sentença não tem qualquer fundamento dizer que o enriquecimento indevido, resultante da transferência em causa, ocorreu na esfera patrimonial da 1ª Ré e não no da ora Apelante.

Dado que, como se vê do exposto, o valor da acção não é superior a metade da alçada da Relação e os elementos fácticos já apurados na acção, eram suficientes ao julgamento de mérito, estava legitimado que esse julgamento se efectuasse, como sucedeu, em sede de saneador (artºs 595º, b) e 597º, c), do NCPC), não havendo lugar, nem a audiência prévia nem - até porque se apresentariam como actos processuais destituídos de qualquer utilidade - a diligências de prova e à realização de audiência final.

O contraditório foi assegurado pelo Tribunal “a quo” ao notificar as partes do despacho de 01/07/2015, acima reproduzido, não se podendo, assim, crismar de “decisão-surpresa” aquela que foi proferida no saneador-sentença ora impugnado.

De todo o modo, sempre se adiantará, que a falta de contraditório que origine a chamada decisão-surpresa (artº 3, nº 3, do NCPC) consubstancia omissão que se integra nas chamadas nulidades processuais atípicas, ou secundárias, previstas no artº 195º, nº 1, do NCPC (nº 1 do artigo 201º do CPC, do pretérito CPC)[5], e, assim sendo, a ter ocorrido, sempre deveria ter sido reclamada na 1ª Instância, no prazo de dez dias a contar da notificação da sentença, pelo que, quando foi arguida, na alegação de recurso da Apelante, entrada em juízo em 07/12/2015, sempre estaria já sanada.

Vejamos.

As nulidades processuais devem, em princípio, ser arguidas perante o tribunal onde se alega terem sido cometidas, só cabendo ao Tribunal de recurso conhecê-las, em regra, no recurso que for interposto do despacho que as aprecie.

À Relação não compete, efectivamente, decidir em 1ª instância de nulidade processual cometida no Tribunal “a quo”, excepto (para além do caso previsto no artº 199º, nº 3, do NCPC, correspondente ao art.º 205º, nº 3, do CPC)[6] se se tratar de nulidade de conhecimento oficioso que não deva considerar-se sanada.

Do exposto resulta que o nosso entendimento é o de que uma tal nulidade não perde o seu regime próprio de arguição, não passando a seguir o regime de impugnação da sentença, do despacho ou do Acórdão, mesmo quando é numa destas peças processuais que se revela a decisão-surpresa. Sabemos que já tem sido seguido entendimento diferente, o que ocorreu por exemplo, no Acórdão da Relação do Porto, de 23/09/2013 (Apelação nº 430/11.2TTMTS.P1)[7], e na jurisprudência que aí se cita, mas, ao que julgamos, na maioria dos arestos do STJ que tratam da matéria em causa, o entendimento acolhido foi o que acima perfilhámos[8].

Assim, não sendo, a nulidade que ora está em causa, de conhecimento oficioso deveria ter sido reclamada pela ora Apelante junto do Tribunal “a quo” no referido prazo de dez dias a contar do conhecimento da mesma, ou seja, pois que nesse momento a conheceu - ou, pelo menos, estava em condições de a conhecer, usando a diligência devida -, desde a ocasião em que se presume que o seu Exmo. Advogado foi notificado do saneador-sentença ora sob recurso (05/11/2015), de onde resulta que, só tendo sido arguida em 07/12/2015, nas alegações do recurso que a Apelante interpôs para esta Relação, esta nulidade, além de não ter sido reclamada perante o tribunal competente para a conhecer, teria de se considerar já sanada pelo decurso do aludido decêndio.

O entendimento que acabámos de expressar e aquilo que mais acima dissemos quanto à propriedade e acerto do conhecimento de mérito da acção em sede de despacho-saneador, conduz, por falta dos pressupostos em que tal argumentação estava alicerçada, que se quede sem subsistência válida, o apontar, ao Tribunal “a quo”, a violação do princípio do contraditório que a Apelante invoca, bem assim como a violação dos princípios constitucionais da igualdade do acesso ao direito do contraditório e da proibição da indefesa.

De todo o modo, acrescentaremos, que, a válida imputação de inconstitucionalidade, sendo mister que respeite, não a uma decisão, mas a uma norma que foi aplicada (ou a uma sua dimensão parcelar, ou interpretação), impõe que se concretize a norma em questão e se indique as razões que levam a concluir que a mesma, ou determinada interpretação que dela foi feita, se apresenta incompatível com normas ou princípios constitucionais, indicando-se, pois, a dimensão normativa que, no caso, se considera inconstitucional.[9]

Ora, o alegado pela Apelante quanto à violação dos princípios constitucionais que refere, fica-se, salvo o devido respeito, por uma inconsequente arguição, que não se confunde com a adequada arguição de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pois que não se assaca, concretamente, a qualquer preceito aplicado pelo Tribunal recorrido, o vício de contraditoriedade com normas ou princípios constantes da Constituição.

Assim, apenas se nos oferece dizer que não vislumbramos que a interpretação das normas efectivamente aplicadas pela 1ª Instância viole os preceitos constitucionais invocados pela Apelante.

A conclusão que se tira é, pois, a de que, sem infracção dos preceitos cuja violação a Apelante imputa ao Tribunal “a quo”, bem se decidiu no saneador-sentença recorrido, ao condenar-se a ora Apelante nos termos aí decididos.

VI - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, na improcedência da apelação, confirmar o decidido no saneador-sentença recorrido.

Custas a cargo da Apelante.

Coimbra, 11 de Outubro de 2016

(Luiz José Falcão de Magalhães)

    (Sílvia Maria Pereira Pires)

    (Maria Domingas Simões)


[1] Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, evidentemente, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e entrado em vigor em 01/09/2013.
[3] Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.
[4] O sublinhado é nosso.
[5] Cfr. quanto à omissão da observância do princípio do contraditório, ou da cooperação, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 12/07/2012 (Apelação nº669/10.8TJLSB-B.L1-2), onde se diz: «O nosso legislador processual, aquando das sucessivas revisões, não inseriu na subsecção da “nulidade dos actos”, a omissão da observância do princípio do contraditório, ou da cooperação, como nulidade principal, de conhecimento oficioso e a todo o tempo (para o que teria de consagrar necessariamente um regime específico que não se coaduna com as da ineptidão de falta de citação ou erro na forma de processo previstas no art.º 202), donde a conclusão, face ao espírito que preside ao regime das nulidades, de que a omissão do acto em questão cai no princípio regra da nulidade secundária ou relativa sujeita a arguição. Tal omissão, tudo indica, cai no art.º 201/1.» (consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf?OpenDatabase”).
[6] Conforme se refere, sobre o anterior CPC, no Acórdão do STJ de 6/7/2005 (Revista nº 04B1171) “o n.º 3 do artigo 205 não faculta propriamente à parte tornar a nulidade objecto de recurso, mas tão-só, excepcionalmente, argui-la perante o tribunal ad quem no caso de o processo, antes de findar o prazo de arguição, ter sido expedido em recurso, ou seja, quando já não é possível assegurar o seu conhecimento pelo tribunal mais vocacionado”.
[7] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
[8] “O incumprimento do contraditório antes da prolação de decisão surpresa não constitui nulidade da própria decisão, pois se situa a montante, integrando as nulidades gerais previstas no art. 201.°, n.° 1, do CPC.” (sumário do Acórdão do STJ, de 11/10/2011, proferido no incidente suscitado nos autos de recurso n.° 175/2002.P1.S1 – 6); Cfr. tb., no sentido que aqui seguimos, o Ac. do STJ de 01-02-2011, Revista n.º 6845/07.3TBMTS.P1.S1 - 1.ª Secção; o Ac. do STJ, de 04-12-2012, nos autos de Revista n.º 714/09.0TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, todos com sumário acessível em “http://www.stj.pt/jurisprudencia/sumarios”.
[9] Cfr. Acórdão nº 328/07, de 29/05/2007, do Tribunal Constitucional (Processo n.º 374/07, 2.ª Secção), consultável em “http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20070328.html”.