Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11-C/1998.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ALIMENTOS
PRESTAÇÃO DE COISA
INCUMPRIMENTO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Data do Acordão: 04/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 829-A CC
Sumário: 1. Para distinguir entre uma prestação de facto e uma prestação de coisa, interessa determinar o objecto sobre o qual incide a acção do sujeito devedor: se o objecto da acção do sujeito devedor é um facto, a prestação é de facto; se o objecto da acção do devedor é uma coisa, a prestação é de coisa.

2. O objecto da prestação de alimentos a cargo do devedor (pai do menor) não é outra acção (um facto), mas sim uma quantia em dinheiro, portanto, uma coisa.

3. A sanção pecuniária compulsória prevista no n.º 1, do art.º 829.º-A do Código Civil, não se aplica à obrigação de alimentos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente….F (…), empreiteiro da Construção Civil, residente (…)Vila Nova de Foz Côa.

Recorridos….A (…) residente (…) Vila Nova de Foz Côa


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I. Relatório.

a) O presente recurso insere-se na oposição à execução que a requerida moveu ao requerido, em 1 de Dezembro de 2011, para obter coercivamente o pagamento das seguintes quantias:

─ €325,92 euros acrescida de juros de mora, contabilizados em €30,33 euros;

─ Juros à razão de 5% ao ano nos termos previstos no n.º 4 do artigo 829.º-A, do Código Civil.

─ €10 800,00 euros resultantes da aplicação da sanção pecuniária compulsória, prevista no n.º 1 do artigo 829.º-A, do Código Civil, à razão de €5,00 euros por dia desde o início da mora, fixado em 26 de Novembro de 2005.

O executado, em 20 de Abril de 2012, veio pagar as duas primeiras quantias, mas deduziu oposição à execução quanto à pretensão relativa à quantia de €10 800,00 euros, por entender que não era devida tal quantia.

Foi proferida decisão a julgar a oposição procedente e a declarar extinta a execução.

É desta decisão que vem interposto o presente recurso.

b) Após ter sido proferida decisão na 1.ª instância a sanar as nulidades imputadas nas alegações à decisão sob recurso, quanto à qual nada foi requerido pela recorrente, sobram para apreciação duas questões.

Uma tem a ver com as custas da execução, pois a recorrente entende que devem ficar parcialmente a cargo do executado recorrente, pois pagou parte da quantia exequenda já depois de instaurada a execução; a outra respeita à questão de fundo relativa à aplicação ou não da sanção pecuniária compulsória ao caso dos autos.

A recorrente concluiu desta forma:

«…6 - A obrigação do executado, judicialmente determinada por sentença homologatória e condenatória, transitada em julgado, que serve de titulo à execução, consubstanciada na obrigação da prestação mensal de alimentos, até ao dia 08 de cada mês, por meio de depósito bancário, com actualização anual automática do respectivo montante resultante da aplicação do índice de inflação, constitui obrigação pecuniária, com prazo certo.

7 - Obrigação de alimentos, que recaindo por determinação de sentença judicial, sobre o executado, pai do filho que deles carece, só por ele pode ser prestada, tratando-se por esta razão incontornável, de obrigação infungível.

8 - Não deixando de ser obrigação infungível, a circunstância de existir o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menor, pois contrariamente à surpreendente invocação da sentença recorrida, a intervenção deste Fundo constitui excepção que não derroga a regra geral da obrigação de alimentos ser irrenunciável e irrevogável em relação ao obrigado à sua prestação, só competindo ao Fundo de Alimentos assegurar o pagamento das prestações de alimentos se o obrigado, no caso concreto o executado/oponente, não possuísse rendimentos líquidos superiores ao salário mínimo nacional a partir da sentença que determinou ao mesmo executado a obrigação de prestar os alimentos ao filho menor.

9 - O executado/oponente nunca declarou nos autos, estar impossibilitado de cumprir a obrigação de alimentos por razões sócio-económicas de insuficiência económica, pelo que, com o devido respeito, não tem o Fundo de Alimentos que ser chamado à colação em defesa do incumprimento do executado, como é errado considerar-se, tout court, como se faz na sentença, pela sub-rogação.

10 -Tendo o executado condições económicas para realizar a prestação a que está judicialmente obrigado, tem o dever de a satisfazer, só a ele cabendo cumprir, ainda que coercivamente.

11- A obrigação de alimentos judicialmente determinada ao executado, e só a ele, para a cumprir no prazo certo também judicialmente determinado, assume todos os contornos de obrigação não fungível, cujo não cumprimento voluntário e tempestivo, permite o recurso à sanção pecuniária compulsória, como forma de incentivo ao cumprimento voluntário.

12- Só o executado está obrigado a satisfazer a prestação e não outrem, como não é indiferente à exequente, nem esta pode ser constrangida a receber de terceiro, a prestação que, por sentença judicial, só ao executado, pai do necessitado e carente de os receber, cabe fazer e não ao Fundo de Alimentos, estranho à sentença.

13 - Obrigação de alimentos que se revela como prestação pessoal e de facto, de cumprimento continuado com prazo certo, dando lugar a aplicação do disposto no artigo 933.º do CPC.

14 - O dever de paternidade que recai sobre o executado, do qual a prestação de alimentos ao filho menor é imanência irrefutável, quando determinada por sentença, como no caso, sendo como é, prestação irrenunciável, constitui obrigação perfeitamente enquadrável na categoria de prestação não fungível.

15 - Obrigação de alimentos que se revela como prestação pessoal e de facto, de cumprimento continuado com prazo certo, dando lugar a aplicação do disposto no artigo 933º do CPC.

16 - Não tendo o executado prestado devidamente e no prazo certo a que está obrigado por sentença, não apresentando qualquer explicação ou justificação válida para o incumprimento e tendo capacidade económica para cumprir, impõe-se, no caso concreto, a aplicação da peticionada sanção pecuniária compulsória.

17 - Contrariamente pois à sentença recorrida, a sanção pecuniária compulsória aplica-se automaticamente a todas as obrigações pecuniárias desde o trânsito em julgado da sentença condenatória, por cada dia de atraso no cumprimento, como foi peticionado pela exequente/oponida.

18 - Tal como se por motivo de força maior, a prestação dependente de qualidades pessoais do devedor, como a pintura de um quadro, por hipótese, não poder realizar-se por morte do pintor, ainda assim não deixa de ser conceptualmente infungível, do mesmo modo também, se a exequente bem vê as coisas e julga que sim, nos casos em que seja impossível o cumprimento da prestação de alimentos pelo obrigado, por comprovada incapacidade económica, situação esta que permite a intervenção, excepcional, do Fundo de Alimentos Devidos a Menores, não a afasta da categoria de prestação não fungível.

19 - Sendo devida a sanção pecuniária compulsória, estando em divida pelo executado o montante de 10800,00€, peticionado pela exequente a titulo da mesma sanção, deve consequentemente, prosseguir a execução e a penhora sobre o veículo penhorado, julgando-se totalmente improcedente a Oposição à Execução.

20- (…) mostram-se violados os artigos 814.º, 816.º e 817.º e 933º, todos do mesmo CPC e ainda, o artigo 829- A do C. Civil, para além de existir errada assimilação do conceito juridico-doutrinário, do que deve entender-se por prestação fungível e não fungível, e sua subsunção ao caso concreto da obrigação de alimentos, judicialmente determinada por sentença ao executado, para prestar em prazo certo e continuado, ao filho menor.

TERMOS EM QUE,

Por tudo quanto vem de alegar-se e concluir-se e com o Mui Douto Suprimento de V. Ex.ªs, deve dar-se total provimento ao presente recurso de Apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida em conformidade com as conclusões, julgando-se improcedente a Oposição à Execução, condenando-se o executado nas custas e ordenando-se o prosseguimento da execução e da penhora, assim se fazendo, JUSTIÇA».

II – Objecto do recurso.

O objecto do recurso consiste em averiguar se a prestação inerente à obrigação de alimentos é uma prestação fungível ou infungível.

Coloca-se ainda a questão de saber se o recurso também incide sobre a repartição da responsabilidade pelas custas, no sentido de se saber se devem ficar totalmente a cargo da recorrente ou apenas em parte, pois é certo que parte da quantia exequenda foi paga pelo executado já na pendência da execução.

A questão é colocada a propósito da nulidade de sentença com origem na omissão de um facto, na respectiva matéria de facto, asseverando que o executado pagou parte da quantia exequenda na pendência da execução.

Apesar de ter existido pronúncia em 1.ª instância sobre esta alegada nulidade de sentença, que concluiu pela sua inexistência, na dúvida sobre se esta é ainda uma questão sob recurso, a mesma será analisada.

III – Fundamentação.

AMatéria de facto provada.

1 - Por sentença homologatória de 26 de Novembro de 2004, proferida nos autos de Regulação do Poder Paternal nº 11-A/98, que cursaram por apenso ao processo 11/98, foi julgado válido e relevante o acordo alcançado entre a Exequente, A (…) e o Executado, F (…), sendo estes condenados a cumpri-lo nos seus precisos termos.

2 - Na sentença referida em A) fixou-se, no que concerne aos alimentos o seguinte: "O pai prestará, para alimentos do menor, a quantia mensal de €150,00 (Cento e Cinquenta euros), que depositará na conta n.º ..., da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L, com sede em ..., balcão de Vila Nova de Foz Côa, até ao dia 08 de cada mês, devendo a mesma ser actualizada anualmente de acordo com o índice de preços ao consumidor, excluindo o mercado de habitação e com inicio a 26 de Novembro de 2005".

3 - O executado não procedeu à actualização anual da prestação de alimentos de acordo com o índice de preços no consumidor.

4 - Foi penhorado a 02/03/2012 e no âmbito da acção principal a que os presentes autos estão apensos o veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca ... e com a matrícula ..., pelo valor de €8.500,00.

5 - O executado procedeu ao pagamento parcial da quantia exequenda no montante de €396,42 relativo à soma das diferenças resultantes das actualizações da pensão de alimentos, acrescidas dos juros à taxa legal de 4% e dos juros correspondentes à sanção pecuniária compulsória à taxa de 5%.

B – Questões objecto do recurso.

1 – A questão central do recurso consiste em saber se a prestação inerente à obrigação de alimentos é uma prestação fungível ou infungível.

A recorrente diz que a prestação de alimentos ao filho menor é imanente à paternidade pelo que, quando determinada por sentença, como é o caso, sendo como é, prestação irrenunciável, constitui obrigação perfeitamente enquadrável na categoria de prestação não fungível e dá lugar a aplicação do disposto no artigo 933.º do Código de Processo Civil.

Não assiste razão à recorrente.

Nos termos do n.º 1, do art.º 829.º-A (acrescentado ao Código Civil pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho), «Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso».

Como se referiu na sentença sob recurso, «… o que a Exequente pretende é que o Executado lhe entregue uma determinada coisa.

Ora, tal prestação consubstancia uma prestação de coisa e não uma prestação de facto, na medida em que o que se pretende é que o Executado entregue uma determinada quantia de dinheiro a título das actualizações devidas na pensão de alimentos.

Constatando-se, assim, que a prestação em causa consubstancia prestação de coisa e não prestação de facto está, desde logo, arredada a possibilidade de condenação do executado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso (…), na medida em que o artigo 829º-A do Código Civil se refere expressamente a “obrigações de prestação de facto”».

No caso dos autos, a prestação a cargo do executado é uma prestação de coisa e não uma prestação de facto.

A este respeito cumpre distinguir entre o objecto imediato e mediato da obrigação.

A este respeito, o Prof. Antunes Varela referiu o seguinte:

«Tendo principalmente em vista as obrigações com prestação de coisas, os autores costumam distinguir entre o objecto imediato e o objecto mediato da obrigação. O primeiro consiste na actividade devida (na entrega da coisa, na cedência dela, na sua restituição, etc.); o segundo, na própria coisa, em si mesma considerada» e, em nota de rodapé, o autor diz que «A distinção é menos nítida nas prestações de facto, onde apenas se poderá distinguir entre a actividade (dare, facere) ou omissão (non facere) do devedor e a actividade ou omissão abstractamente consideradas. É, todavia, nesta distinção que radica a classificação (legal e doutrinal) das prestações (de facto) fungíveis e não fungíveis» ([1]).

Continuando com este autor, o mesmo diz que a prestação do devedor pode revestir diversas modalidades, sendo que «A principal classificação distingue entre as prestações de facto e as prestações de coisa, conforme o seu objecto se esgota num facto ou se refere a uma coisa, que constitui o objecto mediato da obrigação» ([2]).

Por conseguinte, ambas as modalidades de prestação pressupõem sempre, de forma imediata, uma acção ou uma abstenção localizáveis na vontade do sujeito devedor.

Sendo assim, então para discernir entre uma prestação de facto e uma prestação de coisa, o que interessa determinar é o objecto sobre o qual incide a acção do sujeito devedor: se o objecto da acção do sujeito devedor é um facto, a prestação é de facto; se o objecto da acção do devedor é uma coisa, a prestação é de coisa.

Ora, no caso dos autos, não há dúvida que o objecto da acção devida pelo devedor (pai do menor) não é outra acção (um facto), mas sim uma quantia em dinheiro, portanto, uma coisa.

Estamos, por isso, perante uma prestação de coisa e não face a uma prestação de facto.

Ora, o texto do n.º 1, do art.º 829.º-A do Código Civil é claro no sentido da sanção pecuniária compulsória se aplicar apenas às «obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado».

Improcede, por isso, o argumento da recorrente no sentido de estarmos perante uma prestação de facto.

2 - Responsabilidade pelas custas.

Na sentença sob recurso foi decidido que as custas eram suportadas pela recorrente («Custas pela Oponida…»).

Afigura-se que esta decisão sobre custas se refere apenas ao apenso da oposição à execução, mas não ao processo principal.

Com efeito, as questões colocadas e decididas na oposição foram julgadas improcedentes na sua totalidade e daí que se justifique que as custas relativas a esse apenso ficassem a cargo da exequente.

Verifica-se, porém, que no processo principal o executado admitiu dever parte da quantia exequenda e, por essa razão procedeu ao respectivo depósito.

Por conseguinte, as custas da parte relativa ao processo principal não podem ser colocadas totalmente a cargo da exequente, pois nessa parte que o executado reconheceu dever, a exequente não decaiu.

Mas, como se afigura ser o caso, a decisão sobre custas, proferida na sentença que julgou a oposição, respeita apenas a este apenso e às suas repercussões sobre o processo principal, mas tais repercussões respeitam apenas àquilo que foi decidido na execução.

Improcede também o recurso nesta parte.

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela exequente.


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 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada. Coimbra, Almedina, 1980, pág. 68.
[2] Ob. cit., pág. 71.