Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
170/16.6 JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
CRIME CONTINUADO
Data do Acordão: 11/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (JC CÍVEL E CRIMINAL – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 30.º DO CP
Sumário: I - Do art. 30.º, n.º 1, do CP, infere-se, sem mais, que a nossa lei perfilou como critério decisivo a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados.

II - A simplicidade da enunciação legal é, porém, enganadora, tendo a lei relegado para a doutrina e jurisprudência a solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes, ponto de partida da teoria do concurso.

III - Para o Prof. Figueiredo Dias o critério para determinar quantos os crimes cometidos pelo agente é o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

IV - Ou seja, constituindo o crime um facto punível, o mesmo traduz-se numa violação de bens jurídico-penais, que preenche um determinado tipo legal, sendo o núcleo dessa violação não o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico.

V - Pelo que, o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz: tal operação é que permite determinar quantos os crimes cometidos pelo agente.

VI- Face aos factos provados é possível descortinar, nos termos expressos, dois sentidos de ilícito perfeitamente distintos: um quanto ao crime de incêndio; outro atinente aos crimes de dano e, consequentemente, a justificar-se amplamente a condenação imposta por todos e cada um deles.

VII - Os pressupostos essenciais do crime continuado são:

- Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;

- Homogeneidade da forma de execução;

- Unidade de dolo no sentido de que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma “linha psicológica continuada”;

- Persistência de uma situação exterior que facilita a continuação da execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.


*

I – Relatório.

1.1. Após pronúncia, submetido a julgamento no Tribunal a quo, o arguido A... , já com os demais sinais nos autos, por acórdão adrede proferido, viu-se condenado, e ao que por ora mais releva, pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso real, de 3 (três) crimes de incêndio florestal, p.p. nos termos do art.º 274.º, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar 2 anos de prisão a cada um dos crimes; de 1 (um) crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º, n.º s 1 e 2, al. a), do Código Penal, praticado em 21 de Agosto de 2013, na pena parcelar de 4 anos de prisão; de 1 (um) crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º, n.º s 1 e 2, al. a), do Código Penal, praticado em 3 de Agosto de 2016, na pena parcelar de 3 anos e 3 meses de prisão; de 1 (um) crime de dano, p.p.p. art.º 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de 9 meses de prisão; de 3 (três) crimes de dano qualificado, p.p.p. art.º 213.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, na pena parcelar de 1 ano e 6 meses de prisão a cada um dos crimes; de 1 (um) crime de dano qualificado, p.p.p. art.º 213.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena parcelar de 2 anos e 3 meses de prisão; e de 3 (três) crimes de ofensa à integridade física qualificada, p.p.p. art.ºs 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal, na pena parcelar de 1 ano e 3 meses de prisão e, em cúmulo jurídico logo operado, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

1.2. Desavindos com tal veredicto, recorrem o arguido e o Ministério Público, sendo que das fundamentações ofertadas, cada um deles extraiu a formulação das seguintes conclusões:

(o arguido)

1.ª As penas parcelares impostas ao ora recorrente, relativas aos crimes de dano, devem ser excluídas.

2.ª A pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida.

3.ª O Acórdão recorrido deu mormente como provado que:

- No dia 21 de Agosto de 2013, o incêndio consumiu ainda seis residências (cinco das quais desabitadas), cinquenta e três casas de arrumos/armazéns e vários veículos, máquinas agrícolas e animais de exploração agrícola;

- Uma das casas de habitação consumidas pelo incêndio, propriedade de D... , continha no seu interior uma botija de gás, a qual, ao ser consumida pelas chamas, explodiu e, para reconstruir a sua residência, após a mesma ter sido atingida pela explosão, o referido D... despendeu da quantia global de € 23.000,00.

- O incêndio atingiu o terreno propriedade de B... , e os armazéns existentes junto à respectiva residência, cuja reconstrução ascendeu a € 2.200,00;

- O incêndio atingiu também dois terrenos propriedade de C... , consumindo duzentos vasos de flores, com o valor global de € 1.000,00;

- O incêndio consumiu várias infra-estruturas da Câmara Municipal de (...) , no valor total de € 2.062,00;

- O incêndio consumiu do mesmo modo várias infra-estruturas da rede de telecomunicações MEO, nomeadamente cabos, mordentes, grampos e abraçadeiras, com o valor global de € 19.342,80, cuja reparação ascendeu a € 11.610,05;

- Tal incêndio consumiu ainda redes eléctricas exploradas pela EDP Distribuição – Energia, S.A., cuja reparação ascendeu a € 8.692,92;

- O arguido actuou sempre ciente das possíveis consequências da sua conduta para a vida e a integridade física de terceiros e para bens patrimoniais alheios de elevado valor.

- Assim, sabia o arguido que os fogos por si ateados poderiam consumir prédios rústicos, edifícios, armazéns e infra-estruturas pertencentes a particulares ou a entidades públicas, ou destinados ao uso e utilidade públicos e que tal importaria a destruição das árvores, plantações, edificações e animais aí existentes e a consequente criação de um prejuízo para os respectivos proprietários, o qual poderia ultrapassar as quantias de € 5.100,00 e € 20.400,00, como se veio a verificar.

- O arguido sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

4.ª O arguido foi condenado por 3 tipos de crime: crime de incêndio; de dano e de ofensas á integridade física;

5.ª Pelos crimes de dano qualificado, p.p.p. art.º 213.º, n.º 2, al. a), por referência ao art.º 202.º, al. a), e 213.º, n.º 2, al. c) e os de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º, n.º 1, al. a), e 274.º, n.º 2, do Código Penal.

5.ª O crime de incêndio florestal protege os bens jurídicos Vida, Integridade física e Bens patrimoniais alheios de valor elevado;

No crime de dano o bem jurídico tutelado é a coisa alheia, a propriedade.

6.ª No crime de incêndio florestal estamos perante um crime de perigo comum e concreto. Crimes de perigo, por contraposição a crimes de dano, «são os crimes em que apenas se verifica (o perigo) de produção dessa lesão. Há aqui como que uma antecipação jurídica de protecção de bens para momentos anteriores à sua efectiva lesão, em que o legislador acautela, punindo, não a agressão a esses bens, mas, mais cedo ainda, o risco que certas condutas podem acarretar para tal agressão» (Simas Santos e Leal-Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, pág. 36, nota 45).

Crimes de perigo concreto, são aqueles em que para se preencher o respectivo tipo legal é necessário demonstrar a verificação de um perigo efectivo, real, actual, para determinado bem jurídico, surgindo aqui o próprio perigo como evento típico.

A norma define um crime de perigo comum e concreto:

 - De perigo comum, porque, na construção do tipo, o «perigo» constitui elemento que deve resultar da acção, mas que se estende ou deve verificar-se ou produzir-se em relação a um número «indiferenciado e indiferenciável» de «objectos sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos;

- De perigo concreto porque, na construção do tipo, o perigo vale o mesmo que o dano, porque é o perigo que constitui a forma de violação do bem jurídico; o perigo é elemento do tipo legal, sendo os bens jurídicos protegidos a vida, a integridade física e os bens patrimoniais de elevado valor.

7.ª Perante a factualidade dada como provada, não se contesta que o recorrente cometeu o crime de incêndio, isto quer tenha havido ou não propagação às arvores, armazéns, casas. A concretização do tipo é independente desta propagação.

8.ª O arguido ao atear o incêndio não quis pôr em perigo habitações, animais, casas de arrumos, isto foi o resultado do incêndio.

9.ª Numa palavra: o crime de incêndio consome, aqui, o de dano, sendo certo que a norma relativa ao primeiro, que o pune com prisão de três a doze anos ou de um a oito, é aquela que melhor defende e protege o interesse jurídico violado, já que a pena cominada para o segundo se contém entre dois e oito anos ou de um mês a cinco anos, dependendo da sua qualificação.

10.ª Em qualquer das situações, qualificados ou não, o crime de incêndio protege mais o bem jurídico violado.

11.ª No crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º do Código Penal, estatui-se:

 “1. Quem provocar incêndio em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2. Se, através da conduta referida no número anterior, o agente:

a) Criar perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado,…é punido com pena de prisão de três a doze anos.”

12.ª Nos termos do art.º 212.º:

1. Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animais alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”

E, de acordo com o subsequente art.º 213.º:

1. Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável:

a) Coisa ou animal alheios de valor elevado;

b) Monumento público;

c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos;

é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.”

13.ª O resultado – danos, ocorreram por via da acção criminosa inicial – incêndio, não foram queridos nem previstos pelo autor do incêndio, logo este não pode ser condenado pelos crimes de dano.

14.ª O crime de incêndio florestal engloba em si a destruição do terreno ocupado com a floresta, terrenos agrícolas alheios, a criação de perigo para bens patrimoniais alheios de valor elevado.

15.ª O bem jurídico protegido pela incriminação em causa é a vida, a integridade física de outrem, ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.

Atenta a factualidade apurada, e ora subsumida àquela previsão legal, não cabe dúvida de que se acham preenchidos tanto os requisitos objectivos como os subjectivos do tipo de crime em análise.

16.ª O crime de incêndio florestal, p. no art.º 274.º, exige que o agente, com a sua actuação, ponha em risco, em perigo real, efectivo, a vida ou a integridade física de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado. Como crime de perigo concreto, não é necessário que se verifique efectivamente a lesão.

Quanto ao tipo subjectivo, o crime exige o dolo.

17.ª Na pena unitária fixada estão incluídos vários crimes de dano. Concretamente, um p.p.p. art.º 212.º, n.º 1, tendo sido o arguido condenado na pena parcelar de 9 meses de prisão; três de dano qualificado, p.p.p. art.º 213.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, vindo o arguido condenado na pena parcelar de 1 ano e 6 meses de prisão, por cada um deles; um outro de dano qualificado, p.p.p. art.º 213.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado na pena parcelar de 2 anos e 3 meses de prisão.

18.ª Estaríamos assim perante uma dupla incriminação e condenação.

19.ª Devendo ser realizado novo cúmulo jurídico no qual sejam desconsideradas as penas atinentes ao crime de dano.

(o Ministério Público)

1.ª A discordância do recorrente cinge-se à medida das penas parcelares aplicadas aos cinco crimes de incêndio, pelos quais o arguido foi condenado, e ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos art.ºs 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. e), todos do Código Penal, de que é ofendido o assistente E... e ainda à medida da pena única que resultou do concurso de crimes, entendendo que, em face das elevadas exigências de prevenção geral e das particulares circunstâncias da prática dos factos pelo arguido, quer as penas parcelares quer a pena única são insuficientes para alcançar as finalidades da punição, e devem ser agravadas.

2.ª O arguido foi condenado por ter ateado o fogo que deu origem ao grande incêndio que, entre os dias 21 e 24 de agosto de 2013, devastou uma parte muito considerável da mancha florestal e propriedades agrícolas do concelho de (...) , que consumiu um total de 1.306 hectares de vegetação, com o valor global de € 212.058,00; cinco residências desabitadas; uma habitação; cinquenta e três casas de arrumos/armazéns; vários veículos e máquinas agrícolas e animais de exploração agrícola; ferimentos em três bombeiros que combatiam as chamas, consumiu infra-estruturas públicas; infra-estruturas da rede de telecomunicações MEO; redes eléctricas exploradas pela EDP; e determinou que no combate ao incêndio a Autoridade Nacional de Proteção Civil despendesse a quantia global de € 155.067,52.

3.ª Se o arguido poderia ter provocado este incêndio, de 21.08.2013, de forma imponderada levado por um qualquer instinto e sem pensar nas consequências dos seus atos, depois da ocorrência do incêndio, o arguido teve necessariamente de se aperceber da enorme devastação que provocou, dos extensos prejuízos materiais que causou e das vidas que colocou em perigo.

4.ª O arguido, na data dos factos residia e trabalhava em (...) , e o incêndio foi precisamente ateado em local abrangido pelo seu giro diário de distribuição de correio; assim, o arguido não podia deixar de se confrontar com o resultado dos seus actos, muito especialmente com a tragédia que se abateu sobre as pessoas que ali residiam e a quem ele fazia a entrega do correio; pessoas que o consideravam, atenta a boa imagem social de que o dispunha. No entanto, o arguido, no ano de 2016, até à data em que foi detido, provocou mais quatro incêndios.

5.ª A circunstância de o arguido ter provocado um incêndio de enormes dimensões, com graves prejuízos humanos, materiais e ambientais e, mesmo assim, persistir no mesmo tipo de conduta, tendo cometido mais quatro crimes de incêndio, sem reflectir nas consequências dos seus atos, revela uma absoluta impreparação para adoptar uma conduta conforme ao direito, em especial no que diz respeito ao tipo de crimes em causa nos autos, o que, determina um considerável acréscimo das exigências de prevenção especial, que em nosso entender não foi convenientemente ponderado na determinação das penas.

6.ª Dos incêndios perpetrados pelo arguido resultaram prejuízos muito elevados que não foram por si reparados.

7.ª A medida das penas parcelares aplicadas estão muito abaixo da culpa do arguido e, penas tão brandas serão insuficientes para alcançar os fins das mesmas, quer de prevenção geral quer especial e muito especialmente restabelecer a confiança da comunidade na validade das normas violadas, pelo que se impõe que as penas concretas sejam agravadas.

8.ª No que se refere à prática pelo arguido de um crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), praticado em 21 de Agosto de 2013, atenta a devastação de uma enorme área geográfica, deve ser aplicada a pena parcelar não inferior a seis (6) anos de prisão.

9.ª No que diz respeito aos três crimes de incêndio florestal cometidos pelo arguido, e p.p.p. art.º 274°, n.º 1, impõe-se que ao mesmo seja aplicada uma pena parcelar não inferior a três (3) anos de prisão a cada um deles.

10.ª Por sua vez, a prática pelo arguido de um crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274°, n.ºs 1 e 2, al. a), praticado em 3 de Agosto de 2016, justifica a aplicação de uma pena parcelar não inferior a quatro (4) anos de prisão.

11.ª Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p.p. art.ºs 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. 1), de que foi ofendido o assistente E... , atendendo às gravidade dos ferimentos, ao longo período de doença que os ferimentos demandaram para a sua cura e às sequelas que resultaram para o ofendido, deve o arguido ser condenado em pena parcelar não inferior a dois (2) anos e seis (6) meses de prisão.

12.ª Para determinação da pena única que resulta do concurso de crimes, importa considerar a personalidade do arguido e muito especialmente a propensão que o mesmo revela para a execução do crime de incêndio florestal bem como ainda o grau de elaboração que o mesmo colocou na preparação de todos os crimes, que praticou no decurso das suas funções de distribuidor postal (o que à partida o tornava insuspeito) e com a utilização de um engenho incendiário retardador, para que o fogo se alastrasse e fosse notado só depois de o arguido se afastar do local no veículo de trabalho.

13.ª Nesta perspectiva a pena concreta do concurso de crimes mostra-se excessivamente baixa e deverá ser fixada em medida não inferior a dez anos de prisão.

1.3. Notificados ao efeito, responderam cada um dos sujeitos processuais visados.

O Ministério Público aduzindo muito sinteticamente da bondade da decisão recorrida e daí do improvimento do recurso do arguido.

Este, por seu turno, concluindo pelo improvimento do recurso daquele, agora alicerçado nesta ordem de considerações:

1.ª A pena de concurso de crimes tem de ser determinada em função de factores específicos que traduzam a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.

2.ª A culpa é o pressuposto e limite inultrapassável da medida concreta das penas. A culpa não pode ultrapassar a medida concreta das penas.

3.ª Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no art.º 71.º do Código Penal, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração.

4.ª Decorre do n.º 2 do citado art.º 71.º, que na determinação da medida concreta da pena, se deve atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente.

5.ª Na determinação concreta da pena o tribunal a quo teve em atenção:

- o grau elevado da ilicitude da conduta do arguido;

-a intensidade do dolo;

-as exigências de prevenção especial;

- as exigências de prevenção geral.

6.ª O tribunal recorrido considerou: “as exigências de prevenção especial são moderadas atenta a integração social do arguido, ter admitido a prática de quase todos os factos e a inexistência de antecedentes criminais.”

7.ª O que se pretende com esta pena é,

- a prevenção geral  positiva ou de integração (as penas devem reforçar o sentimento de crença na vigência e validade do Direito): Durkheim, Jakobs, Figueiredo Dias.

- a prevenção especial positiva ou de reintegração (a condenação em pena de prisão ou outra e muito em especial a execução da pena devem ter como objectivo fundamental a reintegração do delinquente na sociedade - artº 40º do CP). F. Dias, Roxin...

8.ª O Ministério Público entende que a pena única deve ser fixada em medida não inferior a dez anos de prisão, essencialmente por o arguido, na sua opinião, revelar uma personalidade insensível aos comandos da ordem jurídica e social. O que não justifica de todo a elevação da pena para dez anos. O cúmulo é feito de forma arbitrária e de mão pesada, não tendo em consideração as atenuantes.

9.ª Resulta dos factos dados como provados que o arguido não tem uma predisposição criminosa, sempre pautou a sua vida pelo direito, era social, profissionalmente e familiarmente integrado. Estes actos surgem na vida do arguido de uma forma isolada, inexplicável até ao final.

10.ª Pode não ter sabido explicar porque o fazia, mas sabia, ou melhor sentia que não voltaria a atear incêndios.

11.ª De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

12.ª Perante o explanado parece evidente que uma pena média como a aplicada terá um efeito positivo sobre o arguido. Uma pena elevada 8-10 como pretendido pelo Ministério Público pode ter o efeito devastador de impedir, de ser demasiado tarde para a reintegração social do arguido.

13.ª O Colectivo ponderou o facto de o arguido ter confessado de forma quase integral e sem reservas os factos e por via disso beneficiar da atenuação nos termos do disposto no art.º 73.º do Código Penal. Como escreve o Prof. Figueiredo Dias, o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.

14.ª A pena foi fixada num quantum ajustado a contribuir para a reinserção social do agente e não prejudicar a sua posição social mais do que o inevitável e, por outro lado, neutralizar os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribuir para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração o que foi afectado com o delito e suas consequências.

15.ª O conceito legal de crime continuado é como resulta do n.º 2 do art.º 30.º do Código Penal, ou seja:

Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente.”

16.ª Para a emergência de um crime continuado, impõe-se estarmos perante «realizações plúrimas» que, por sua vez, assentam em várias resoluções criminosas.

17.ª Por outro lado, o crime continuado consiste em vários actos, repetidos mas intervalados, num determinado lapso temporal.

18.ª Os cinco crimes de incêndio perpetrados pelo arguido ocorreram nas datas seguintes:

- 21 de Agosto de 2013 pelas 11h50m;

- 3 de Agosto de 2016 pelas 15h56m;

- 11 de Agosto de 2016 pelas 11h31m;

- 12 de Agosto de 2016 pelas 13h56m;

- 18 de Agosto de 2016 pelas 15h02m.

19.ª Exige-se também a protecção do mesmo bem jurídico. Estamos perante cinco crimes de incêndio florestal, um ocorrido em Agosto de 2013 e quatro ocorridos em Agosto de 2016. O crime florestal protege os bens jurídicos Vida, Integridade física, e Bens patrimoniais alheios de valor elevado. No caso estamos perante o mesmo crime.

20.ª Exige-se a homogeneidade da execução, que está presente no caso em apreço: cigarro atravessado com fósforo atirado da carrinha em movimento, nos locais de passagem no percurso de trabalho.

21.ª Precisamos, ainda, de uma situação exterior, que facilita a prática de novo crime ou desincentiva o agente a agir de acordo com o Direito.

22.ª Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, pág. 209, afirma que o «pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição, da actividade criminosa, tornado cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.»

23.ª Para efeitos de aplicação do art.º 30.º, n.º 2, temos assim, que considerar que a conduta criminosa estava coberta por uma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa, mas que tal atenuação deve resultar de uma conformação especial do momento exterior da conduta, devendo estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter concorrido para o agente renovar a prática do crime.

24.ª De alguma forma o impulso que levou o arguido a atear o primeiro incêndio não foi freado por se verificarem oportunidades favoráveis à prática do crime, o arguido ateava os incêndios com a carrinha de trabalho em movimento, não se apeava, não se desviava do percurso de trabalho. Somos da opinião que se pode concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação. Estas oportunidades favoráveis ao voltarem a repetir-se, que já tinha sido aproveitada, dificultavam a quebra do círculo, impediam-no de parar de praticar aqueles actos.

25.ª Concluindo, as diversas acções do arguido são susceptíveis de se reconduzirem ao mesmo tipo legal de crime e uma vez que os bens jurídicos ofendidos não são eminentemente pessoais, temos que neste caso sempre se verificaria uma unidade criminosa, relativamente aos incêndios dos dias 03, 11, 12 e 18 de Agosto de 2016.

Assim, estaríamos perante 1 (um) crime continuado e 1 (um) crime de incêndio (21 Agosto de 2013). Neste caso sempre a condenação teria que ser por dois crimes de incêndio.

1.4. Cumpridas as formalidades devidas, foram os sutos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, com vista, nos termos do art.º 416.º do Código de Processo Penal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente ao provimento do recurso interposto pelo Ministério Público e, pelo contrário, ao denegar da pretensão do recorrente arguido.

Observado o estatuído pelo art.º 417.º, n.º 2 do diploma adjectivo indicado, nenhum dos visados respondeu.

1.6. Efectuado exame preliminar, no entendimento de que nada a tanto obstava, foi ordenado o prosseguimento dos autos, com a sua submissão a conferência.

Dos trabalhos desta emerge a presente decisão.


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II – Fundamentação.

2.1. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. Em dia não concretamente apurado do ano de 2012, o arguido A... decidiu atear vários fogos em diversas localidades do concelho de (...) ;

2. O arguido resolveu praticar tais factos utilizando o veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , pertencente à frota dos K...., S.A., por si utilizado no exercício das suas funções de carteiro, durante o seu horário de trabalho – compreendido entre as 11h00m e as 16h00m – no percurso do respectivo giro entre (...) e (...) .

3. Para alcançar aquele desiderato, o arguido determinou-se a lançar para a berma das estradas por onde passava um cigarro aceso trespassado com fósforos, o que faria sem sair da viatura, circulando em marcha lenta, sabendo que a ignição ocorreria cerca de dez minutos depois, ocasião em que já estaria distante do local.

Inquérito n.º 177/13.5 JAGRD:

4. No dia 21 de Agosto de 2013, pelas 11h50m, quando circulava no veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , na Estrada Municipal (...) no lugar da Quinta d (...) , freguesia de (...) , concelho de (...) , o arguido atirou um cigarro aceso trespassado com fósforos para a berma da estrada, atingindo a mancha vegetal ali existente, composta por pinheiro bravo, carvalho, castanheiro, freixo, amieiro e nogueira, após o que abandonou o local.

5. Cerca de dez minutos depois, o aludido cigarro provocou uma chama sobre a vegetação, a qual causou um incêndio que se alastrou, do que resultou a combustão de duzentos hectares (200ha) de pinheiro bravo, cento e cinquenta hectares (150ha) de carvalho, vinte e seis hectares (26ha) de castanheiro, onze hectares (11ha) de freixo, oito hectares (8ha) de amieiro, um hectare (1ha) de nogueira, sete hectares (7ha) de cerejeira, três hectares (3ha) de salgueiro, um hectare (1ha) de amendoeira e cinco hectares (5ha) videira, no total de mil trezentos e seis hectares (1306ha), com o valor global de € 212.058,00.

6. O incêndio consumiu ainda seis residências (cinco das quais desabitadas), cinquenta e três casas de arrumos/armazéns e vários veículos, máquinas agrícolas e animais de exploração agrícola.

7. Ao local do incêndio acorreram as Corporações de Bombeiros de (...) e de M....

8. Sucede que uma das casas de habitação consumidas pelo incêndio, propriedade de D... , continha no seu interior uma botija de gás, a qual, ao ser consumida pelas chamas, explodiu.

9. O impacto da explosão atingiu E... , F... e G... , bombeiros da Corporação de Bombeiros de M..., que se encontravam no local a combater as chamas.

10. E causou, de forma directa e necessária, a E... :

- Escoriações por todo o corpo;

- Queimaduras de segundo e terceiro graus em cerca de cinco por cento da superfície corporal, com atingimento da face lateral da coxa esquerda, da face volar do antebraço esquerdo, do bordo cubital do quinto dedo da mão esquerda e da parede abdominal;

- Feridas inciso-contusas no ombro direito; e,

- Hematoma na face externa direita do pescoço.

11. E... foi de imediato conduzido para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E., onde foi admitido no Serviço de Urgência;

12. Em 29 de Agosto de 2013 E... foi submetido a escarectomia tangencial;

13. Em 2 de Setembro de 2013 E... foi submetido a cobertura com enxertos cutâneos;

14. Em 6 de Setembro de 2013 E... teve alta e foi orientado para a consulta externa;

15. A última consulta ocorreu em 17 de Outubro de 2014, data em que foi dada alta clínica a E... ;

16. Actualmente, E... apresenta as seguintes sequelas:

- Cicatriz com 6x4 centímetros no membro superior esquerdo;

- Cicatriz de remoção de pele para enxertia com 20x15 centímetros no membro inferior direito – coxa;

- Cicatriz com 13x10 centímetros no membro inferior esquerdo – coxa;

- Cicatriz com 6x5 centímetros no membro inferior esquerdo – joelho;

- Cicatriz com 9x7 centímetros no membro inferior esquerdo – perna.

17. A data da consolidação médico-legal das lesões E... é fixável em 17/10/2014; as lesões terão resultado de traumatismo de natureza contundente e determinado 442 dias para a consolidação médico-legal com afectação da capacidade de trabalho geral (422 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (422 dias).

18. A factualidade acima descrita causou, de forma directa e necessária, a G... :

- Escoriação na anca direita;

- Edema na região cervical à direita;

- Contusão da nádega;

- Hipoacusia momentânea;

- Cefaleias.

19. A factualidade acima descrita causou, de forma directa e necessária a F... queimadura no membro superior esquerdo;

20. O incêndio ocorrido em 21 de Agosto de 2013 atingiu o terreno propriedade de B... , consumindo soito e pinheiros com o valor global de € 7.000,00 e os armazéns existentes junto à respectiva residência, cuja reconstrução ascendeu a € 2.200,00;

21. O incêndio atingiu também dois terrenos propriedade de C... , consumindo duzentos vasos de flores, com o valor global de € 1.000,00, e dois hectares (2ha) de pinheiro bravo, com o valor total de € 1.620,00;

22. O incêndio atingiu igualmente o terreno propriedade de Q... , consumindo a vinha, o olival, os castanheiros e o pinhal aí existentes.

23. O incêndio consumiu várias infra-estruturas da Câmara Municipal de (...) , no valor total de € 2.062,00.

24. O incêndio consumiu do mesmo modo várias infra-estruturas da rede de telecomunicações MEO, nomeadamente cabos, mordentes, grampos e abraçadeiras, com o valor global de € 19.342,80, cuja reparação ascendeu a € 11.610,05.

25. Tal incêndio consumiu ainda redes eléctricas exploradas pela EDP Distribuição – Energia, S.A., cuja reparação ascendeu a € 8.692,92.

26. Para a extinção do incêndio em crise, a Autoridade Nacional de Protecção Civil despendeu a quantia global de € 155.067,52, sendo:

- € 79.752,35 em meios aéreos;

- € 52.250,00 em recursos humanos;

- € 3.002,97 com o consumo de combustível;

- € 15.987,00 por danos sofridos; e,

- € 4.075,20 em alimentação do pessoal.

27. Para reconstruir a sua residência, após a mesma ter sido atingida pela explosão, D... despendeu da quantia global de € 23.000,00.

Inquérito n.º 60/16.2 GAPNH:

28. No dia 3 de Agosto de 2016, pelas 15h56m, quando circulava no veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , na Estrada Nacional n.º 102, na localidade de (...) , concelho de (...) , o arguido atirou um cigarro aceso trespassado com fósforos, para a berma da estrada, atingindo a mancha vegetal ali existente, composta por carvalho, mato e oliveiras, após o que abandonou o local;

29. Cerca de dez minutos depois, o aludido cigarro provocou uma chama sobre a vegetação, a qual causou um incêndio que se alastrou, do que resultou a combustão de um hectare e meio (1,5ha) de carvalho, dois hectares (2ha) de mato e meio hectare (0,5ha) de oliveira, no total de quatro (4) hectares;

30. O incêndio atingiu o terreno propriedade de L..., consumindo dez oliveiras, com o valor global de € 1.000,00;

31. O incêndio atingiu também o terreno propriedade de M..., consumindo quarenta oliveiras, com o valor global de € 2.500,00;

32. O incêndio atingiu igualmente o terreno propriedade de J... , consumindo um número não determinado de castanheiros.

Inquérito n.º 170/16.6 JAGRD:

33. No dia 11 de Agosto de 2016, pelas 11h31m, quando circulava no veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , na Estrada Nacional n.º 102, no lugar de (...) , concelho de (...) , o arguido atirou um cigarro aceso trespassado com fósforos para a berma da estrada, atingindo a mancha vegetal ali existente, composta por pasto e oliveiras, após o que abandonou o local;

34. Cerca de dez minutos depois, o aludido cigarro provocou uma chama sobre a vegetação, a qual causou um incêndio que se alastrou, do que resultou a combustão de um hectare (1ha) de vegetação e de pasto e de duas (2) oliveiras;

35. O incêndio atingiu o terreno propriedade de Z..., consumindo quinze oliveiras, com o valor global de € 600,00.

Inquérito n.º 171/16.4 JAGRD:

Inquérito n.º 172/16.2 JAGRD:

40. No dia 12 de Agosto de 2016, pelas 13h56m, quando circulava no veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , na estrada de terra batida que dá acesso ao Itinerário Principal n.º 2 (IP2), no local de (...) , concelho de (...) , o arguido atirou um cigarro aceso trespassado com fósforos para a berma da estrada, atingindo a mancha vegetal ali existente, composta por pasto e castanheiros, após o que abandonou o local.

41. Cerca de dez minutos depois, o aludido cigarro provocou uma chama sobre a vegetação, a qual causou um incêndio que se alastrou, do que resultou a combustão de mil metros quadrados (0,1ha) de pasto e mil metros quadrados (0,1ha) de castanheiros, no total de dois mil metros quadrados (0,2ha).

42. O incêndio atingiu o terreno propriedade de T... , consumindo castanheiros e carvalhos com o valor global de € 700,00.

43. Atenta a propagação do incêndio, resultante da continuidade horizontal dos combustíveis e da direcção do vento, estiveram em risco de ser consumidos pelas chamas o povoamento de pinheiro bravo, as instalações da sociedade (...) , e várias casas de habitação situadas no norte da Aldeia de (...) .

Inquérito n.º 75/16.0 GAPNH:

44. No dia 18 de Agosto de 2016, pelas 15h02m, quando circulava no veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault, modelo W, com a matrícula (...) , na Estrada Nacional n.º 102, lugar de (...) (...) e (...) , concelho de (...) , o arguido atirou um cigarro aceso trespassado com fósforos para a berma da estrada, atingindo a mancha vegetal ali existente, composta por vegetação, pinheiro e mato, após o que abandonou o local.

45. Cerca de dez minutos depois, o aludido cigarro provocou uma chama sobre a vegetação, a qual causou um incêndio que se alastrou, do que resultou a combustão de meio hectare (0,5ha) de pinheiro e mato.

46. Atenta a propagação do incêndio, resultante da continuidade horizontal dos combustíveis e da direcção do vento, estiveram em risco de ser consumidas pelas chamas várias casas de habitação situadas na localidade de (...) , a cerca setecentos metros do local da deflagração.

47. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de provocar incêndios nos sobreditos locais, bem sabendo que os fogos que ateava propagar-se-iam rapidamente, atento o tempo seco, as temperaturas elevadas e os locais escolhidos para a ignição, compostos, além do mais, por mato e vegetação rasteira.

48. O arguido actuou sempre ciente das possíveis consequências da sua conduta para a vida e a integridade física de terceiros e para bens patrimoniais alheios de elevado valor.

49. Assim, sabia o arguido que os fogos por si ateados poderiam consumir prédios rústicos, edifícios, armazéns e infra-estruturas pertencentes a particulares ou a entidades públicas, ou destinados ao uso e utilidade públicos e que tal importaria a destruição das árvores, plantações, edificações e animais aí existentes e a consequente criação de um prejuízo para os respectivos proprietários, o qual poderia ultrapassar as quantias de € 5.100,00 e € 20.400,00, como se veio a verificar.

50. Sabia ainda o arguido que os fogos por si ateados poderiam causar lesões aos habitantes e aos bombeiros que acorreram aos locais para combater os incêndios, como se veio a verificar, ciente que estes últimos deslocavam-se àqueles locais no exercício de um serviço público.

51. Para atear os incêndios o arguido usou cigarros que trespassou com fósforos, conhecedor das características e do modo de actuar destes.

52. O arguido sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

53. O arguido A... não tem antecedentes criminais.

Do relatório social:

54. A... nasceu na aldeia de (...) – (...) num agregado familiar formado pelos pais e mais cinco irmãos. Viviam em casa própria. Os pais dedicavam-se à agricultura e criação de gado, actividades de que subsistia a família, com algumas limitações mas sem passar necessidades.

55. A dinâmica familiar seria equilibrada, existindo laços de afecto e respeito entre os vários elementos e preocupação dos pais em transmitir valores morais e regras básicas aos descendentes, papel assumido principalmente pela mãe, que tinha os estudos básicos.

56. O arguido frequentou a escola em idade própria, mas no seu percurso registava dificuldades de aprendizagem pelo que apenas concluiu o 4.º ano aos 12 anos.

57. No período seguinte, além de ajudar os pais nas tarefas agrícolas e com as ovelhas, trabalhou com os irmãos na recolha de resina e posteriormente na construção civil. Sempre contribuiu para o orçamento familiar.

58. Aos 20 anos foi viver para Lisboa com um irmão que laborava nos K...., onde conseguiu ingressar algum tempo depois. Vinha regularmente visitar a família. Passados quatro anos conseguiu transferência para (...) , onde tem trabalhado como carteiro até ao presente.

59. Casou aos 26 anos com AA... , a quem conhecera na (...) poucos anos antes e de quem tem dois filhos com 23 e 14 anos respectivamente. Ambos integrados laboralmente, sempre tiveram uma relação coesa e um estilo de vida organizado.

60. Nos seus tempos livres o arguido convivia com a família e com colegas e amigos e dedicava-se ao cultivo de terrenos na sua aldeia de origem, para onde era hábito deslocar-se após o trabalho e aos fins-de-semana.

61. À data dos factos em apreço no presente processo, A... residia em (...) , com a mulher e filhos, em casa própria, um apartamento T3 com adequadas condições de habitabilidade, já totalmente paga ao banco.

62. O casal mantém uma relação estável e equilibrada, existindo sólidos laços afectivos entre ambos e com os filhos, sendo o arguido considerado um bom marido e um bom pai, presente e colaborante nas tarefas parentais. O filho mais velho, 23 anos, está concluir o mestrado de Biotecnologia na Universidade (...) e o mais novo, 14 anos, frequenta o 9.º ano em (...) .

63. O casal mantém relações próximas e convívio regular com as respectivas famílias de origem, no caso do arguido, irmãos, cunhados e sobrinhos uma vez que ambos progenitores já faleceram, a mãe há 20 e o pai há 14 anos.

64. A nível profissional A... mantinha a actividade de carteiro nos K.... de (...) , distribuindo a correspondência por todo o concelho. Segundo o seu superior hierárquico sempre foi um funcionário assíduo e cumpridor, que desempenhou as suas funções de forma responsável. Na relação com os colegas é descrito como um indivíduo prestável, correto e bem-disposto, mantendo relações de amizade e convívio social fora do local de trabalho.

65. A situação económica do arguido era equilibrada, assente no salário como carteiro na ordem dos e 950,00 líquidos, segundo refere. A esposa trabalha há vários anos num supermercado de (...) , onde refere auferir cerca de € 560,00 mensais. Mencionam como principal despesa a mensalidade que enviam ao filho mais velho, na ordem dos € 125,00.

66. Socialmente é um indivíduo muito conhecido (pela profissão que desempenha) e bem integrado, quer em (...) , quer na sua aldeia de origem, onde se desloca com frequência porque tem ali terrenos agrícolas e alguns animais para consumo doméstico.

67. As fontes comunitárias contactadas referenciam-no positivamente, como um indivíduo trabalhador, idóneo, com forte vinculação familiar, algo reservado mas com uma integração social correta e participativa.

68. Não lhe são conhecidos hábitos de consumo de bebidas alcoólicas, além do considerado normal em convívio social ou à refeição, de forma moderada. Não nos foram reportados pelas diversas fontes contactadas, indicadores de alguma perturbação comportamental por parte do arguido.

69. Nas primeiras horas de reclusão, quando foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, o arguido mostrava-se descompensado tendo efectuado uma tentativa de suicídio; foi observado nos serviços clínicos e iniciou de imediato apoio psicológico; apesar de algo deprimido numa primeira fase não voltou a manifestar essa ideação e estabilizou, sendo relevante o apoio que a família lhe tem prestado desde o início, muito valorizado pelo arguido.

70. No estabelecimento prisional A... tem mantido bom comportamento e capacidade para cumprir as regras. Não se encontra ocupado. Não voltou a solicitar apoio psicológico.

71. Recebe visitas frequentes da família que se mostra solidária no apoio ao arguido e preocupada com alguns problemas de saúde (tensão alta e um hidrocelo que necessita cirurgia urgente).

72. A... apresenta um percurso de vida normativo, caracterizado por um enquadramento familiar (de origem e constituído) funcional e organizado, um trajecto laboral desenvolvido de forma regular e responsável e uma imagem e inserção social favoráveis.

73. Da defesa do arguido:

74. O arguido é considerado um bom pai e pessoa educada e estimada por quem o conhece, sendo respeitado no meio em que reside e reconhecido como amigo do seu amigo e trabalhador;

Do pedido cível formulado pelo assistente/demandante E... :

75. O demandante, por causa da explosão e lesões sofridas passou a ser uma pessoa triste e angustiada e com constrangimentos por causa das sequelas visíveis no corpo;

76. Sofreu dores intensíssimas ao nível do membro superior esquerdo e membros inferiores;

77. Antes, era uma pessoa saudável e alegre;

78. O Município de M..., na qualidade de Tomador do Seguro de Bombeiro, através da ANMP, participou o sinistro à demandante (...) – Companhia de Seguros, S.A., a qual assumiu o pagamento das despesas com a situação de incapacidade temporária absoluta, no valor de € 6.309,14 e despesas de tratamento, no valor global de € 333,69;

79. O demandante recebeu da Liga dos Bombeiros Portugueses – Fundo de Protecção Social dos Bombeiro, a quantia de € 671,57.

2.2. Desconsidera-se a menção dos factos não provados feita constar na decisão recorrida, uma vez que irrelevante aos presentes recursos.

2.3. É do teor que segue a motivação probatória constante do aresto impugnado:

Os factos descritos, que coincidem com os da acusação, excepto os factos não provados, dado que sobre os mesmos não recaiu prova suficiente, resultaram da conjugação das declarações do arguido A... , conjugadas com os documentos, auto de reconstituição e prova pericial juntos aos autos, declarações do assistente E... e depoimentos das testemunhas prestados em audiência de discussão e julgamento.

O arguido A... , confirmou todos factos constantes da acusação excepto o factos constantes do inquérito n.º 171/16.4 JAGRD, tendo, relativamente a estes factos (36 a 39 dos factos provados e facto não provado) referido que nunca poderia ter causado os mesmos porque não passava naquele local no percurso que fazia normalmente durante o horário de trabalho, nem necessitava passar por tal local, não admitindo, assim, a prática daqueles factos, tendo merecido credibilidade as declarações do arguido nesta parte, ainda mais porque inexistem outros elementos de prova que coloquem o arguido naquele local, à data da ocorrência, apesar de a distância a percorrer pelo arguido para ir ao local onde se iniciou o incêndio distar apenas cerca de 6 quilómetros do percurso normalmente percorrido pelo arguido; declarações do arguido foram relevantes para a descoberta da verdade, tendo o mesmo esclarecido o tribunal acerca da sua rotina normal de trabalho, incluindo no período do almoço (que seria sempre entre as 12.30 horas e as 13.00 horas); quanto aos motivos que o levaram a praticar os factos em causa nos autos, não soube explicar o porquê mas apenas que lhe “dava vontade” e que tinha ouvido de um amigo, há uns anos atrás, da existência do engenho que passou a utilizar para provocar os incêndios e que consistia num cigarro atravessado por fósforos por acender e que, após acender o cigarro, quando a brasa do cigarro atingia os fósforos acabava por acendê-los e, assim, iniciar-se os incêndios; confirmou que atirava tais engenhos, quando se encontrava dentro do veículo que conduzia, em andamento, para a berma da estrada, em locais onde existia mato; arguido que confirmou que acabava sempre por ouvir falar nos incêndios que tinha causado mas não reflectia nas consequências, nem se preocupava em conhecer os danos que tinha causado; mais referiu que se encontra profundamente arrependido dos actos que praticou e que sente que nunca irá repetir actos de igual natureza; confirmou ainda ter indicado os locais onde provocou incêndios (todos da mesma maneira e por meio dos referidos engenhos incendiários), confirmando o auto de reconstituição junto aos autos; quanto ao modo de vida, referiu ter 2 filhos e que vivia com a mulher antes de ter sido detido mas que já terá sido decretado o divórcio;

- Nas declarações do assistente E... , quem, de modo isento e credível esclareceu o tribunal acerca do modo como acabou por ficar ferido quando se encontrava a combater um incêndio em 2013, pois é bombeiro e tinha sido chamado para combater o incêndio ocorrido em 21 de Agosto de 2013; esclareceu o tribunal acerca dos colegas de profissão que o acompanharam e se encontravam com ele quando se deu o rebentamento de uma botija que se encontrava numa casa e que fez com que o mesmo fosse projectado a uns metros e tenha ficado imobilizado; esclareceu ainda que foi sujeito a tratamento e que permaneceu resguardado em casa durante cerca de 8/9 meses, apenas tendo regressado ao trabalho em Abril de 2014, tendo ainda confirmado que sentiu muitas dores e foi sujeito a tratamentos e que, actualmente, se sente constrangido, envergonhado em mostrar as partes do corpo de onde foram retirados enxertos de pele e que ainda sente a pele esticada nas zonas do corpo queimadas; e que, durante o período de convalescença, sentiu transtornos, a relação com companheira do mesmo ficou limitada e sentiu-se revoltado com a situação em que se encontrava e procurava esconder as partes do corpo afectadas;

Quanto aos depoimentos das testemunhas indicadas pela acusação, demandante civil e assistente, isentas e credíveis, é de realçar:

- T... , demandante civil, e também testemunha de acusação, confirmou a existência de um incêndio no dia 15 de Agosto de 2016 que lhe queimou um terreno de que é proprietário (o mesmo terreno que está em causa na acusação e correspondente ao inquérito n.º 172/16.2 JAGRD), tendo descrito os danos causados bem como os prejuízos sofridos, nomeadamente por causa das castanhas que deixará de apanhar e vender (e que seriam cerca de 300 kg ao preço unitário de 2,50 euros), tendo acabado por confirmar que “uns meses antes ardeu um bocadito” daquele terreno, acabando por se verificar que, efectivamente ocorreram 2 incêndios no mesmo terreno: o do dia 12 de Agosto (confessado pelo arguido) e outro no dia 15 de Agosto (mencionado pelo demandante e que terá provocado a maior parte dos danos que relatou mas que não está em causa neste processo);

- P... , (testemunha de acusação comum à defesa do arguido) carteiro, colega de trabalho do arguido e que confirmou que o arguido sempre foi impecável no exercício das funções laborais e que sempre cumpriu o “giro” e que nunca foi apresentada qualquer reclamação pelo trabalho desempenhado pelo arguido; mais confirmou que a Quinta (...) ficava fora do percurso do arguido (o que acaba por confirmar as declarações do arguido);

- O... , (comum ao pedido cível formulado por T... e TT... ), confirmou o tipo de terreno de que os demandantes são proprietário, nomeadamente, composto de soito, mata e giestas;

- V...., (comum ao pedido cível formulado por T... e TT... ), Técnico no Município de (...) , referiu qual o fim dado pelos demandantes ao terreno em causa nos autos e acabou por confirmar a ocorrência de dois incêndios no mesmo local, um no dia 12 de Agosto e outro no dia 15, tendo este último causado prejuízos muito superiores pois foi muito maior; mais referiu que, relativamente ao incêndio ocorrido no dia 21 de Agosto de 2013, terão apurado cerca de 195 lesados e que os prejuízos terão sido em montante global de cerca de 3 milhões de euros e que apenas terá sido reconstruída uma habitação ardida por causa daquele incêndio;

- B... , militar da GNR, agente da Guarda Florestal, confirmou que desempenhou as suas funções em todos os incêndios em causa nos autos, mesmo o ocorrido em 2013, no levantamento da área ardida, tendo acabado por confirmar o teor dos relatórios juntos aos autos, as áreas ardidas e o tipo de engenho utilizado para iniciar/provocar os incêndios; mais referiu a ocorrência de dois incêndios no mesmo local nos dias 12 e 15 de Agosto de 2016;

- W..., militar da GNR, Mestre Florestal, confirmou ter participado na investigação do incêndio ocorrido em 2013 e ter chegado a ver o artefacto utilizado para causar o incêndio – cigarro atravessado por fósforos, tendo sido feito um relatório fotográfico;

Nos depoimentos das testemunhas arroladas pelo assistente:

- X..., (bancário desempregado), Presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários de M... e amigo do assistente, referiu que o assistente esteve com baixa médica e que teve dificuldades físicas, demonstrando estar afectado com o sucedido;

- R... , Guarda Prisional e Comandante dos Bombeiros Voluntários de M..., confirmou que a recuperação das lesões por parte do assistente foi lenta e necessitou usar cremes hidratantes, tendo ficado com cicatrizes e que se mostra mais cauteloso no desempenho das funções e é uma pessoa diferente mas o tempo decorrido tem diluído o modo de estar do mesmo;

- N... , bombeiro voluntário, referiu que o assistente era uma pessoa divertida, simpática e bom colega mas, por causa do acidente, se tornou mais reservado e queixava-se de dores nas pernas e num dos braços, tendo ficado com marcas na pele;

- S... , companheira do assistente, referiu que o ocorrido teve impacto na vida do assistente porque sofreu várias queimaduras (braço esquerdo, peito e pernas) e quando foi concedida a alta clínica voltou para casa mas continuou a ser acompanhado em Coimbra 1 vez por mês e teve que usar vaselina e creme gordo nas zonas do corpo queimadas, 3 vezes ao dia, bem como tomou medicação para afastar a comichão que sentia naquelas zonas do corpo; confirmou ainda que o assistente esteve de baixa cerca de 8 meses e que ficou com marcas visíveis no corpo; era mais alegre antes do acidente e fechou-se em casa; mostrava-se revoltado e “descarregava” em cima da companheira:

Nos depoimentos das testemunhas de defesa do arguido:

- H... , professora, vizinha e amiga do arguido, referiu conhecer o arguido há cerca de 15 anos e que o considera como uma pessoa espectacular, educada, trabalhadora, bom vizinho e pronto a ajudar os outros no que lhe for possível;

 - I... , filho do arguido, referiu que o seu pai, antes de ser detido, era o suporte da casa de família, o melhor pai do mundo e sempre transmitiu os melhores valores aos filhos, sendo uma pessoa trabalhadora e bondosa e que foi uma surpresa para todos o que aconteceu, tendo “caído o mundo sobre a família”; referiu que vê o pai da mesma maneira e que a mãe (mulher do arguido) não vai deixar de o apoiar (o que está em contradição com o alegado divórcio) e que o nível económico da família baixou com a prisão do pai;

- U... , Chefe da estação dos K.... em (...) , considera o arguido bom trabalhador, respeitador e cumpridor das obrigações, nunca tendo notado qualquer irregularidade na prestação das funções pelo arguido.

O tribunal teve também em consideração para formar a sua convicção:

- O teor da informação de serviço de fls. 2, acompanhada do suporte fotográfico de fls. 3 e 4, relativo ao incêndio ocorrido no dia 11 de Agosto de 2016, tendo-se oficiado à (...) a gravação das PTZ´s de controlo de tráfego nos nós de (...) e (...) e que acabaram por ser visionadas e da qual resultou a reportagem fotográfica de fls. 13 a 28 e levou à identificação da viatura do suspeito (viatura dos K....) e que este era o arguido A... , pois era o carteiro responsável pelos giros do (...) e de (...) ;

- Auto de reconstituição de fls. 47 a 56: o arguido apontando os locais onde teria lançado os cigarros acessos atravessados com fósforos, incluindo o incêndio que em audiência de julgamento não admitiu a prática (inquérito 171/16.9 JAGRD) e, como se referiu, não se provou que tenha sido o arguido a cometê-lo;

- Auto de apreensão de fls. 57, de 1 isqueiro e 1 caixa de fósforos no interior do veículo dos K.... de matrícula (...) e 1 isqueiro na posse do arguido e auto de exame directo de fls. 619, encontrando-se os isqueiros em perfeito estado de funcionamento e a caixa com 14 fósforos;

- Autos de notícia e fichas de determinação das causas de fls. 58 a 93, 178 a 179, bem como análise dos apensos 1 e 2, 1-A;

- Relatório de ocorrência de fls. 185 a 190, 211 a 215 e 362 a 371;

- Relação de ofendidos no incêndio de 21 de Agosto de 2013 de fls. 198 a 199;

- Elementos clínicos de fls. 222 a 235, 508 a 511, 678 a 683 e 690 a 692;

- Materiais instalados e custo de mão-de-obra suportados pela MEO, de fls. 244-247 e 796 a 799;

- Comprovativo de giro afecto ao arguido nos K...., bem como mapas de assiduidade, de fls. 253 a 270;

- Edital do Município de (...) de fls. 298 a 302;

- Informação da ANPC de fls. 360;

- Autos de apreensão de fls. 382, 384;

- Fotografias de fls. 389 a 390;

- Relatórios de perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 532 a 533 e 1269 a 1270 a E... (tendo-se concluído que a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 17/10/2014; as lesões terão resultado de traumatismo de natureza contundente; terão determinado 442 dias para a consolidação médico legal com afectação da capacidade de trabalho geral (422 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (422 dias) resultaram para o assistente as cicatrizes descritas e perigo para a vida do mesmo); de fls. 536 a 537 a F... ; 542 a 543, 774 a 775 e 1121 a 1122 a G... ;

- Autos de visionamento de fls. 607 a 614;

- Documentos de fls. 813 a 845 pela demandante Lusitânia;

- Documentos juntos pelo assistente a fls. 1173 a 1174.

Relativamente à situação do arguido foi considerado o relatório social de fls. 1238 e, por último, o tribunal considerou o certificado de registo criminal junto a fls. 1117.

Toda a prova foi analisada à luz das regras do senso comum, da experiência e da normalidade do acontecer, tendo resultado da conjugação dos diversos meios de prova e, com relevância, da própria confirmação dos factos pelo arguido, excepto no respeitante ao inquérito e factos acima referidos, não resultando daqueles meios de prova, forma de confirmar que também terão sido praticados pelo arguido, sendo insuficiente ter o mesmo indicado onde se teria iniciado o incêndio na auto de reconstituição, tendo o tribunal que acreditar nas palavras do arguido, as quais, diga-se, foram relevantes para a descoberta da verdade.

Arguido que, não obstante ainda hoje não saber explicar a motivação para a prática dos factos em julgamento a não ser que “dava-lhe a vontade”, mostrou estar arrependido de os ter praticado.


*

2.4. Objecto dos recursos.

As conclusões formuladas pelos recorrentes delimitam o âmbito dos recursos.

Na verdade, são apenas as questões por si suscitadas e sumariadas nas respectivas conclusões as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

In casu, não emerge nenhuma circunstância reclamando esta intervenção oficiosa; como assim, vistas as conclusões dos recorrentes, e salvo eventual prejudicialidade que a resolução de uma delas possa contender para as demais, são as seguintes as questões decidendas:

(recurso do arguido):

a) A conduta do agente, reportada ao sucedido no dia 12 de Agosto de 2013, integra unicamente a autoria de um crime de incêndio, não também, em concurso efectivo de infracções, os assacados cinco crimes de dano, tal como conclusão do acórdão recorrido?

b) Atento o expendido, impõe-se reformular o quantum de pena aplicado ao recorrente?

c) A descrita conduta do recorrente integra, por outro lado, a prática de um crime de incêndio (em 12 de Agosto de 2013) e de um outro crime, mas este sob a forma continuada (factos relatados dos dias 3; 11; 12 e 18, estes todos de Agosto de 2016)?

(recurso do Ministério Público):

a) Mostra-se curial agravar as penas parcelares cominadas ao arguido pela prática dos cinco propalados crimes de incêndio, bem como de ofensa à integridade física qualificada, na pessoa do ofendido e assistente E... ?

b) Bem como, decorrentemente, a pena única que há-de emergir do cúmulo jurídico a realizar subsequentemente?

Vejamos, então.

2.5. Antecedendo a resolução da primeira das questões colocadas, relembremos da factualidade que lhe subjaz, qual seja:

Inquérito n.º 177/13.5 JAGRD:

- No dia 21 de Agosto de 2013, o incêndio consumiu ainda seis residências (cinco das quais desabitadas), cinquenta e três casas de arrumos/armazéns e vários veículos, máquinas agrícolas e animais de exploração agrícola.

- Uma das casas de habitação consumidas pelo incêndio, propriedade de D... , continha no seu interior uma botija de gás, a qual, ao ser consumida pelas chamas, explodiu; para reconstruir a sua residência, após a mesma ter sido atingida pela explosão, D... despendeu da quantia global de € 23.000,00.

- O incêndio atingiu o terreno propriedade de B... , e os armazéns existentes junto à respectiva residência, cuja reconstrução ascendeu a € 2.200,00.

- O incêndio atingiu também dois terrenos propriedade de C... , consumindo duzentos vasos de flores, com o valor global de € 1.000,00.

- O incêndio consumiu várias infra-estruturas da Câmara Municipal de (...) , no valor total de € 2.062,00.

- O incêndio consumiu do mesmo modo várias infra-estruturas da rede de telecomunicações MEO, nomeadamente cabos, mordentes, grampos e abraçadeiras, com o valor global de € 19.342,80, cuja reparação ascendeu a € 11.610,05.

- Tal incêndio consumiu ainda redes eléctricas exploradas pela EDP Distribuição – Energia, S.A., cuja reparação ascendeu a € 8.692,92.

- O arguido actuou sempre ciente das possíveis consequências da sua conduta para a vida e a integridade física de terceiros e para bens patrimoniais alheios de elevado valor.

- Assim, sabia o arguido que os fogos por si ateados poderiam consumir prédios rústicos, edifícios, armazéns e infra-estruturas pertencentes a particulares ou a entidades públicas, ou destinados ao uso e utilidade públicos e que tal importaria a destruição das árvores, plantações, edificações e animais aí existentes e a consequente criação de um prejuízo para os respectivos proprietários, o qual poderia ultrapassar as quantias de € 5.100,00 e € 20.400,00, como se veio a verificar.

- O arguido sabia ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

A questão tal como colocada pelo recorrente é a da unidade ou pluralidade de infracções, tema central da dogmática penal. No caso, concretamente, entre o crime de incêndio ocorrido no dia 12 de Agosto de 2013 e os alegados cinco crimes de dano também então cometidos, de acordo com o aresto sob censura.

Este tema mostra-se recorrente, donde que, e perfunctoriamente à dilucidação do caso presente, se imponham breves considerações genéricas.

Normativo decisivo o que consta do art.º 30.º, n.º 1, do Código Penal, em cujos termos «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

Dele se infere, sem mais, que a nossa lei perfilou como critério decisivo a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados. A simplicidade da enunciação legal é, porém, enganadora, tendo a lei relegado para a doutrina e jurisprudência a solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes, ponto de partida da teoria do concurso.

Vejamos, como antecâmara à delimitação da provável resolução da questão elencada, e ainda que de forma sintética, os contributos da primeira, cujos dois marcos de referência na concretização conceptual daquele preceito legal, são os ensinamentos de Eduardo Correia e de Figueiredo Dias[1].

Para Eduardo Correia, a antijuricidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou vários tipos de crime, pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

Assim, a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. O critério para averiguar acerca da existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – isto é, de determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. Sendo que, por cada vez que tal sucedeu, há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

A pedra de toque consiste, segundo este autor, em determinar os critérios que permitem afirmar tal pluralidade de processos resolutivos. Ou seja, em determinar os critérios que permitem concluir se estamos na presença de uma ou de várias resoluções criminosas.

Tais critérios, defende esse malogrado Mestre, terão de passar pela análise do concreto modo como se desenvolveu o acontecimento exterior e, em particular, da conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Existirá uma pluralidade de resoluções sempre que medeie entre as actividades do agente um intervalo de tempo tal que, de acordo com as regras de lógica e experiência comum, se possa afirmar que o agente as levou a cabo sem qualquer renovação do processo de motivação. O critério da conexão temporal não é, contudo, rígido, admitindo a prova de que o agente se determinou efectivamente de forma diversa da que resulta do critério da conexão temporal.

Em síntese, para Eduardo Correia, o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas.

Por sua vez, Figueiredo Dias apresenta uma construção dogmática algo diferente do tema da unidade ou pluralidade de crimes. Com efeito, para este autor, o critério para determinar quantos os crimes cometidos pelo agente é o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Ou seja, constituindo o crime um facto punível, o mesmo traduz-se numa violação de bens jurídico-penais, que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico. Pelo que, o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz: tal operação é que permite determinar quantos os crimes cometidos pelo agente.

A apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto deverá ser feita recorrendo a alguns (concretos) subcritérios fundamentais. Esses critérios são o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global.

As particularidades do caso concreto decidirão da premência de uns em detrimento de outros, podendo acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direcção ao mesmo resultado. Eles funcionam, pois, como indicadores da unidade ou da pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

Fazendo uso da síntese realizada por Leal-Henriques e Simas Santos:

«Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo torna-se necessário, além da pluralidade de tipos violados, o recurso ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (Eduardo Correia), ou pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexado com um resultado típico concreto (Figueiredo Dias)»[2].

Para falarmos em unidade ou pluralidade importa, então, de acordo com os diversos entendimentos sufragados, falar de acções em sentido naturalístico, tipos de crime, bens jurídicos, sentidos de ilícito?

De acordo com a posição que se nos afigura mais curial seguir, critério preferível será o de atentarmos, num primeiro momento, naquele que será o comportamento global na sua singular especificidade, como simples caso naturalístico, e, após, como hipótese que apela a uma solução de Direito, espácio-temporalmente localizado, ou seja, (já) como caso jurídico. É deste caso jurídico que emanam os vários sentidos de ilicitude típica exigidos para se poder falar em pluralidade de crimes, distinguindo-a da unidade de crimes, em que apenas um sentido de ilicitude é descortinável[3].

Na verdade, ultrapassadas as teorias mecânico-naturalísticas, que punham a tónica na unidade ou pluralidade de acções praticadas, instaurou-se uma perspectiva que peca por excesso (se aquelas pecarem por defeito) de normativismo, na medida em que destaca a pluralidade de tipos legais violados como critério para aferir da pluralidade de crimes. Era esta a posição de Eduardo Correia e foi no intuito de a ultrapassar que Figueiredo Dias ensaiou (e logrou) a demonstração segundo a qual, casos existem nos quais um certo comportamento pode preencher vários tipos legais de crime (ou várias vezes o mesmo tipo legal) concretamente aplicáveis e tal não obrigar, por força de imperativos de justiça superiores, à aplicação de uma pena nos termos do art.º 77.º do Código Penal.

Como agir, então, perante situações em que os conteúdos de ilícito presente no facto global se interceptam de forma tal que punir o agente nos termos deste normativo redundaria numa inaceitável violação do princípio jurídico-constitucional da proibição da dupla valoração? E, naqueles outros em que, por outro lado, punir o agente por apenas um dos crimes viola o mandato da esgotante apreciação da matéria ilícita?

Resposta perante uma pluralidade de normas concretamente aplicáveis, a de que duas situações se podem descortinar[4]:

• uma em que o “grande facto” apresenta vários sentidos autónomos inerentes a cada um dos ilícitos praticados (concurso efectivo);

• outra em que o “grande facto” aparece dominado por um sentido autónomo de ilicitude preponderante ou prevalecente, que determina a pena a aplicar, e em cuja moldura funcionará a totalidade dos factos relevantes, consubstanciadores do comportamento global (concurso aparente).

Em suma, à questão de saber qual o quid a ter em conta para se falar em unidade ou pluralidade de crimes deverá responder-se: «o verdadeiro objecto da contagem pressuposta é constituído por sentidos da vida que vivem no comportamento global, e não acções, em sentido naturalístico ou qualquer outro, ou entidades abstractas»[5].

Norteados pelo que vimos de dizer, não colhe a pretensão do arguido recorrente, e, ao invés, mostra-se assertiva a solução sufragada no acórdão recorrido.

Em ponderação global sobre se ocorria um concurso efectivo ou um concurso aparente de infracções (rectius, se os crimes de incêndio consomem os de dano, tal como constituiu versão do arguido) estava, vista a totalidade da actuação do arguido e consequências daí resultantes, além da prática pelo arguido de 5 crimes de incêndio florestal [2 agravados nos termos do n.º 2, al. a), do artigo 274º, do Código Penal], a imputação de 6 crimes de dano qualificado e 5 de dano simples, previstos e puníveis pelos art.ºs 212.º e 213.º, n.ºs 1, als. a) e c) e 2, al. c).

Retorquiu-se na peça sindicada (sic) que «A resposta é, em parte, positiva.

Na verdade, atentos os considerandos relativos aos crimes de incêndio florestal, há que afastar situações de facto que impliquem danos em terreno ocupado com floresta, incluindo matas, ou pastagem, mato, formações vegetais espontâneas ou em terreno agrícola, próprios ou alheios, porquanto já fazem parte do tipo de crime de incêndio florestal, o mesmo não acontecendo quanto aos factos reconduzíveis a danos em coisa alheia de valor elevado, coisa destinada ao uso e utilidades público; ou que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público.

No caso em análise, provou-se (segue-se a transcrição da factualidade que começámos por elencar neste item 2.5.[6])…

Tendo presentes as considerações acabadas de tecer e em face daquela factualidade dada como provada é indubitável que o arguido danificou coisa alheia destinada ao uso e utilidades público - dois contentores e um recipiente Ecoponto que não lhe pertenciam -, agindo em autoria material e com dolo eventual (cfr. artigo 26.º, 1.ª parte, e 14.º, n.º 2, do Código Penal).

Mostram-se, assim, preenchidos todos os acima enunciados elementos constitutivos - objectivo e subjectivo - do tipo legal do crime de dano, 1 da previsão do artigo 212.º, n.º 1, 3 da previsão do artigo 213.º, n.º 1, alínea c) e 1 da previsão do n.º 2, alínea a), todos do Código Penal.» (sublinhado nosso)

Relembrando os ensinamentos de Figueiredo Dias, teremos então (e afastado o autónomo sentido de ilícito quanto aos três vislumbrados crimes de ofensa à integridade física qualificada que o arguido sequer controverte) que foi aqui possível descortinar, nos termos expressos, dois sentidos de ilícito perfeitamente distintos: um quanto ao crime de incêndio; outro atinente aos crimes de dano e, consequentemente, a justificar-se amplamente a condenação imposta por todos e cada um deles.

2.6. Seguinte questão a reclamar solução a que contende com a qualificação jurídico-criminal da conduta assumida pelo arguido: a prática de um crime de incêndio (em 12 de Agosto de 2013) e, por outro lado, a autoria de um mesmo ilícito, mas este sob a forma continuada (factos ocorridos nos dias 3; 11; 12 e 18, estes todos de Agosto de 2016)?

De acordo com o já mencionado art.º 30.º do Código Penal, mas agora seu n.º 2, «Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.»

É entendimento mais ou menos pacífico da doutrina e jurisprudência que os pressupostos essenciais do crime continuado são, por isso, os seguintes:

- Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;

- Homogeneidade da forma de execução;

- Unidade de dolo no sentido de que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma “linha psicológica continuada”;

- Persistência de uma situação exterior que facilita a continuação da execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente[7].

Fundando-se a diminuição da culpa no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente, o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição, conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diversa.

Importante, portanto, será determinar quando existiu um condicionalismo exterior ao agente que facilitou a acção daquele, facilitou a repetição da actividade criminosa (“tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”[8]) e, por isso, atenuante da culpa.

Citamos as conclusões nas quais o arguido fundamentou esta sua pretensão. Alegou, para tanto:

“16.ª Para a emergência de um crime continuado, impõe-se estarmos perante «realizações plúrimas» que, por sua vez, assentam em várias resoluções criminosas.

17.ª Por outro lado, o crime continuado consiste em vários actos, repetidos mas intervalados, num determinado lapso temporal.

18.ª Os cinco crimes de incêndio perpetrados pelo arguido ocorreram nas datas seguintes:

- 21 de Agosto de 2013 pelas 11h50m;

- 3 de Agosto de 2016 pelas 15h56m;

- 11 de Agosto de 2016 pelas 11h31m;

- 12 de Agosto de 2016 pelas 13h56m;

- 18 de Agosto de 2016 pelas 15h02m.

19.ª Exige-se também a protecção do mesmo bem jurídico. Estamos perante cinco crimes de incêndio florestal, um ocorrido em Agosto de 2013 e quatro ocorridos em Agosto de 2016. O crime florestal protege os bens jurídicos Vida, Integridade física, e Bens patrimoniais alheios de valor elevado. No caso estamos perante o mesmo crime.

20.ª Exige-se a homogeneidade da execução, que está presente no caso em apreço: cigarro atravessado com fósforo atirado da carrinha em movimento, nos locais de passagem no percurso de trabalho.

21.ª Precisamos, ainda, de uma situação exterior, que facilita a prática de novo crime ou desincentiva o agente a agir de acordo com o Direito.

22.ª Eduardo Correia, in Direito Criminal, II, pág. 209, afirma que o «pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição, da actividade criminosa, tornado cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.»

23.ª Para efeitos de aplicação do art.º 30.º, n.º 2, temos assim, que considerar que a conduta criminosa estava coberta por uma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa, mas que tal atenuação deve resultar de uma conformação especial do momento exterior da conduta, devendo estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter concorrido para o agente renovar a prática do crime.

24.ª De alguma forma o impulso que levou o arguido a atear o primeiro incêndio não foi freado por se verificarem oportunidades favoráveis à prática do crime, o arguido ateava os incêndios com a carrinha de trabalho em movimento, não se apeava, não se desviava do percurso de trabalho. Somos da opinião que se pode concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinados por nova motivação. Estas oportunidades favoráveis ao voltarem a repetir-se, que já tinha sido aproveitada, dificultavam a quebra do círculo, impediam-no de parar de praticar aqueles actos.

25.ª Concluindo, as diversas acções do arguido são susceptíveis de se reconduzirem ao mesmo tipo legal de crime e uma vez que os bens jurídicos ofendidos não são eminentemente pessoais, temos que neste caso sempre se verificaria uma unidade criminosa, relativamente aos incêndios dos dias 03, 11, 12 e 18 de Agosto de 2016.

Assim, estaríamos perante 1 (um) crime continuado e 1 (um) crime de incêndio (21 Agosto de 2013). Neste caso sempre a condenação teria que ser por dois crimes de incêndio.”

No Acórdão do STJ proferido no âmbito do processo 06P1574[9], apreciou-se de idêntica questão suscitada pelo aí arguido, e isto em termos que se nos afiguram adequados á situação vertente:

«Alega o recorrente que, mesmo que assim se não entendesse, sempre se deveria considerar que os dois incêndios constituiriam um crime continuado, por estarem preenchidos os requisitos do n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal, dado que os factos ocorreram em dois dias seguidos e foram praticados de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa ─ a facilidade com que teria ateado o primeiro fogo no mesmo local e a impunidade com que o teria feito, sem que ninguém dele suspeitasse.

De entre os requisitos do crime continuado exigidos pelo artigo 30.º, n.º 2, do Código Penal, figura a actuação do agente no quadro de uma mesma solicitação exterior, diminuindo consideravelmente a culpa.

A diminuição da culpa há-de resultar da facilidade oferecida ao agente pela verificação de determinadas circunstâncias, de tal sorte que o agente sucumbe mais facilmente à repetição da conduta delituosa.

Como ensinava o Prof. E. Correia, a considerável diminuição da culpa tem de decorrer da «existência de uma repetição que, de fora para dentro, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» (D. Criminal, II, pg. 208 e ss.).

No caso, não de pode falar de qualquer circunstância exterior facilitadora da prática dos actos delituosos tornando menos exigível a repetição do acto.

As circunstâncias de eventualmente ter sido fácil o ateamento do primeiro incêndio e de não ter sido punido por esse facto são irrelevantes para o efeito: a primeira porque corresponde à situação normal de lançar fogo a ervas secas durante o verão, a segunda porque quando alguém pratica um ilícito penal num dia não se sente tentado a repetir o acto no dia seguinte só porque não foi punido ou preso nesse curto espaço de tempo.

Faltando o referido requisito do crime continuado, há que concluir pela prática de dois crimes de incêndio.»

Bem ao invés do que afirma o recorrente - isto é, que de alguma forma o impulso que o levou a atear o primeiro incêndio não foi freado por se verificarem oportunidades favoráveis à prática do crime; ateava os incêndios com a carrinha de trabalho em movimento, não se apeava, não se desviava do percurso de trabalho, tudo denotando a existência de um único processo resolutivo, dificultavam a quebra do círculo, impediam-no de parar de praticar aqueles actos – todo o quadro invocado atesta da inexistência de um quadro exterior fora do normal e que por qualquer forma tornasse menos exigível ao agente que se comportasse de forma diferente. O arguido foi apenas compelido pela sua personalidade mal formada e que de forma capciosa aproveitava o “giro” da sua profissão para cometer e tornar de difícil percepção os sucessivos incêndios.

Donde a improcedência também deste fundamento do recurso.

2.7. Tempo de apreciar o recurso interposto pelo Ministério Público.

Neste circunspecto, a discordância deste recorrente cinge-se à medida das penas parcelares aplicadas aos cinco crimes de incêndio, pelos quais o arguido foi condenado, e ao crime de ofensa à integridade física qualificada, de que é ofendido o assistente E... e ainda à medida da pena única que resultou do concurso de crimes; entendimento assumido, o de que perante as elevadas exigências de prevenção geral e as particulares circunstâncias da prática dos factos pelo arguido, quer as penas parcelares quer a pena única são insuficientes para alcançar as finalidades da punição, impondo-se a agravação de todas elas.

Dispõe o art.º 40.º do Código Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - n.º 1, e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - n.º 2.

Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabem ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz[10].

A norma do art.º 40.º condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, senda a culpa o limite da pena mas não seu fundamento.

Neste programa de política criminal, a culpa tem uma função que não é a de modelar previamente ou de justificar a pena, numa perspectiva de retribuição, mas a de «antagonista por excelência da prevenção», em intervenção de irredutível contraposição à lógica do utilitarismo preventivo[11].

O modelo do Código Penal é, pois, de prevenção, em que a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art.º 40.º determina, por isso, que os critérios do art.º 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição; no (actual) programa político criminal do Código Penal, e de acordo com as claras indicações normativas da referida disposição, não está pensada uma relação bilateral entre culpa e pena, em aproximação de retribuição ou expiação.

O modelo de prevenção - porque de protecção de bens jurídicos - acolhido determina, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada[12].

A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art.º 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

No crime de incêndio, como crime de perigo, as exigências de prevenção geral são determinantes na fixação da medida concreta da pena, para aquietação da comunidade e afirmação de valores essenciais afectados por comportamentos que, antes e para além de causarem efectivos danos, são aptos a colocar em perigo bens jurídicos essenciais, tanto pessoais como patrimoniais de elevado valor.

As exigências de prevenção especial de socialização, que convivem mas não se sobrepõem à prevenção geral, são, no caso, relevantes, quando considerado o percurso pessoal do recorrente e a rebeldia que manifesta pela ofensa a valores comunitários com tutela penal, revelada pela existência de uma primeira actuação em 2013 e outras reiteradas em 2016, todas de igual natureza.

A culpa é, por seu lado, acentuada. O recorrente actuou aproveitando as facilidades que o exercício normal da sua profissão lhe propiciava, deflagrando sucessivos incêndios e fazendo-o de forma a tornar mais difícil a detecção de ter sido ele o seu agente contínuo.

Não concorrem, por outro lado, circunstâncias do elenco do art.º 71.º do Código Penal que possam ser de valorar favoravelmente.

Deste modo, ponderando o sentido e os critérios da jurisprudência do STJ na determinação da pena em crimes de incêndio[13], e tendo em consideração, no caso, das especiais exigências de prevenção geral e especial, indo de encontro à pretensão do recorrente Ministério Público, agravam-se as penas parcelares dos crimes de incêndio para os limites por si próprio sugeridos.

Idem para o propalado crime de ofensa à integridade física qualificada.

Tempo de, finalmente, atentar na medida da pena única que, como vem sendo repetidamente afirmado pela jurisprudência e pela doutrina, é construída dentro da moldura abstracta definida pelo n.º 2 do art.º 77.º do Código Penal, a partir das penas parcelares aplicadas aos diversos crimes, determinando-se em função da culpa e da prevenção, levando em linha de conta o critério específico da consideração conjunta dos factos e da personalidade do arguido (art.º 77.º, n.º 1, do Código Penal)[14].

À visão atomística relativa à determinação das penas singulares sucede agora uma visão de conjunto da totalidade dos factos, como se de um facto global se tratasse, de forma a detectar a gravidade do ilícito global com referência à personalidade unitária do arguido.

Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva a sua avaliação concreta e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira” criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade.”[15]

Com a sua conduta, o arguido questionou os bens jurídicos da vida, integridade física e do património de outrem, além do próprio ecossistema florestal. Fê-lo causando graves consequências materiais e humanas.

Os crimes de incêndio causam na população em geral, para lá de um sentimento de insegurança e de alarme social, também um sentimento de repulsa.

A ilicitude global é de grau elevado, desde logo pelo número de actos em que se desdobrou a conduta do arguido, pela sua natureza, pelo modo pensado e planeado de execução e gravidade.

As exigências de prevenção geral positiva ou de integração são muito elevadas, desde logo dada a incidência deste tipo de criminalidade na sociedade portuguesa.

Cumpre atentar na integração familiar e socioprofissional do arguido enquanto factor adjuvante da sua ressocialização.

No contexto exposto, tudo valorado, inclusive as novas penas parcelares arbitradas, a pena única de 9 anos e seis meses de prisão afigura-se adequada e proporcional à severidade dos factos e à culpa do seu agente.


*

III - Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes desta RC em:

1) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.

2) Conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência:

- No que se refere à prática pelo arguido de um crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a), praticado em 21 de Agosto de 2013, alterar a pena aplicável para seis (6) anos de prisão.

- No que diz respeito aos três crimes de incêndio florestal cometidos pelo arguido, e p.p.p. art.º 274°, n.º 1, alterar para três (3) anos de prisão a pena devida para cada um deles.

- Por sua vez, no que tange ao crime de incêndio florestal, p.p.p. art.º 274°, n.ºs 1 e 2, al. a), praticado em 3 de Agosto de 2016, alterar a pena aplicável para quatro (4) anos de prisão.

- Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p.p. art.ºs 143.º, n.º 1 e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. 1), de que foi vítima o ofendido e assistente E... , alterar a punição devida para dois (2) anos e seis (6) meses de prisão.

- Em cúmulo jurídico destas e das demais penas parcelares a considerar, condenar o arguido na pena única de (9) nove anos e (6) meses de prisão.

Custas do recurso interposto pelo arguido, pelo próprio recorrente, com a taxa de justiça de 5 UC (sem prejuízo de eventual concessão de apoio judiciário e/ou de legal isenção) – cfr. art.ºs 513.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais

Sem custas o recurso interposto pelo Ministério Público, pese embora o parcial decaimento, mas ponderando-se a respectiva isenção processual.


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Coimbra, 29 de Novembro de 2017

(Brizida Martins – relator)

(Orlando Gonçalves – adjunto)


[1]   In A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1996, Almedina, e, Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, tomo I, 2.ª edição, 2007, Coimbra, respectivamente.
[2]   Código Penal Anotado, 3.ª edição, 1.º volume, 2002, Rei dos Livros, pp. 384 e 385.
  Numa síntese das posições assumidas por ambos os Mestres citados, vd. o bem elaborado trabalho Concurso Efectivo e concurso aparente de Crimes, elaborado em 2011, no âmbito do mestrado em ciências jurídico-criminais, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, por Joana Margarida Boaventura Martins.
[3] Joana Margarida Boaventura Martins, ob. cit., págs. 27/8.
[4] Ainda Joana Margarida Boaventura Martins, ob., cit., pág. 28.
[5] João da Costa Andrade, Da Unidade e Pluralidade de Crimes, doutrina geral e crimes tributários, citado na obra mencionada na nota que antecede.
[6] Nota nossa.
[7] Cfr. aresto deste TRC in processo n.º 250/09.4 JALRA.C, relatada pela Exma. Desembargadora Pilar Oliveira., acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[8] Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 209.
[9] Acessível em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., Anabela Miranda Rodrigues, “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena privativa de liberdade”, in Problemas Fundamentais de Direito Penal, Colóquio Internacional de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, págs. 179 e segs, mencionados no aresto do STJ, processo n.º 07P2270, que citamos, e acessível em www.dgsi.pt.
[11] Cfr. idem, ibidem.
[12] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 227 e segs.
[13] Cfr. v. g. acórdãos de 29/Março/2007; de 3/Abril/2003 e de 25/junho/1997, in, respectivamente, processos n.ºs 1030/07; 467/02 e n.º 271/97.
[14] Exemplificativamente o Ac. do STJ in processo n.º 353/15.6 PAVPV.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[15] Direito Penal Português – As Consequência Jurídicas do Crime, 4.º Reimp., C. Ed. pág. 302.