Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5471/17.3T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS ADVOGADOS E SOLICITADORES
CPAS
EXECUÇÃO
CONTRIBUIÇÕES
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
Data do Acordão: 03/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 212 Nº3 CRP, 96, 97 CPC, LEI Nº 28/84 DE 14/8, LEI Nº 17/2000 DE 8/8, DL Nº 42/2001 DE 9/2, LEI Nº 32/2002 DE 20/12, DL Nº 119/2015 DE 29/6
Sumário: 1. - A jurisdição dos tribunais judiciais é materialmente incompetente para a execução de dívida por contribuições não pagas por advogado beneficiário à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS).

2. - A jurisdição competente para conhecer dessa execução é a administrativa e fiscal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores” (doravante, CPAS), com os sinais dos autos,

intentou a presente execução para pagamento de quantia certa contra

S (…), advogada, também com os sinais dos autos,

no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Execução de Coimbra,

com base em certidão de dívida de contribuições não pagas para a CPAS, emitida pela Direção da mesma CPAS, ascendendo o pedido exequendo ao montante total de € 387,80 (correspondente a € 329,80 de contribuições em dívida e € 58,00 de juros).

Por decisão liminar datada de 21/09/2017, foi oficiosamente suscitada e conhecida a questão da “incompetência material deste Tribunal de Execuções para conhecer da presente execução”, âmbito em que logo foi decidido nos seguintes termos:

«Considerando que estamos perante uma situação de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria – artºs. 96 e 97 do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o requerimento executivo (certidão de dívida emitida pela Direcção da CPAS) – artigo 99, nº. 1, e artigo 726, nº. 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.».

Decisão essa complementada em 03/11/2017, nos seguintes termos:

«Lemos a exposição antes apresentada pela Exequente quanto à excepção de incompetência material deste Tribunal.

No entanto, face aos argumentos jurídicos vertidos nos acórdãos recentes citados no nosso despacho de indeferimento liminar, continuamos convictos de que essa nossa decisão é a mais acertada e assertiva, pelo que se profere a mesma sentença com a data de hoje, remetendo-se, por razões de economia processual e de celeridade, para essa decisão de 21-09-2017.».

Inconformada, a Exequente recorre do decidido, apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões:

«1.ª O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.

2.ª Pois a CPAS, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito,

3.ª A CPAS «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n. 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social - Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva”).

4.ª A CPAS não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva.

5.ª A CPAS não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.

6.ª Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores».

7.ª Mas além disso a CPAS não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.

8.ª Pelo que a CPAS não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”.

9.ª As contribuições para a CPAS não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.

10.ª As contribuições para a CPAS assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.

11.ª A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.

12.ª Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.

13.ª Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.

14.ª No novo regulamento da CPAS, aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à CPAS sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças ou na secção de processos de segurança social.

15.ª O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da CPAS, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da CPAS. (doc.1)

16.ª E porque “não há direito sem acção”, não resta à CPAS outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.

17.ª Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…»

18.ª Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a CPAS e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro “beco sem saída” pois a CPAS ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.

19.ª Pois, as dívidas à CPAS não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.

20.ª A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do RCPAS; a alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa

Nestes termos (…) deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue o Tribunal a quo, como competente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente acção executiva (…)».

Tendo o recurso sido admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, foi ordenada a citação da Executada para os termos do recurso e da causa.

Não foi junta contra-alegação de recurso, tendo sido foi ordenada a subida dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões da Apelante – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, o thema decidendum consiste em saber se cabe ao Tribunal recorrido, enquanto juízo de execução – e não à jurisdição administrativa e fiscal – a competência material para a tramitação do presente processo executivo.

III – Fundamentação

          A) Matéria de facto

Ante os elementos documentais dos autos, os pressupostos fácticos, a considerar, são os antes explicitados (cfr. relatório supra), aqui dados por reproduzidos.

          B) O Direito

Da competência material para a execução destinada à cobrança de contribuições em dívida à CPAS

A Apelante defende a revogação da decisão de indeferimento liminar da execução, por considerar não se verificar a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal recorrido (Juízo de Execução de Coimbra), ao contrário do entendimento adotado por este nos autos.

Considera, assim, a Recorrente, contra o expendido pela 1.ª instância, que a lei não contempla norma habilitante que permitisse a cobrança de dívidas à CPAS nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Autoridade Tributária (AT) ou pela Segurança Social.

Daí a sua conclusão no sentido de a decisão recorrida, a ser mantida, ter o efeito de deixar a Exequente sem tutela jurisdicional efetiva para o seu propósito executivo, ocasionando o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», inconstitucionalidade essa que invoca.

Antes, porém, esgrime a Apelante assumir ela uma “forte componente privatística”, não devendo ser qualificada como “entidade pública”, âmbito em que as “contribuições para a CPAS não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões”.

Na fundamentação da decisão em crise, seguindo jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) e do Tribunal de Conflitos ([1]), deixou-se consignado:

«(…) as contribuições em dívida ao CPAS não têm natureza civil, mas sim fiscal ou tributária, constituindo uma das fontes de receitas dessa instituição com vista à prossecução dos seus fins, inserindo-se no financiamento do subsistema de segurança social específico para os advogados e, como tal, integrando a satisfação de um encargo público fundamental do Estado, ou seja, garantir o direito à segurança social dos respectivos profissionais.

Deste modo, a competência para apreciar a presente acção executiva não pertence a este Juízo de Execução de Coimbra, em virtude do disposto no artigo 129.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

Estamos, pois, perante a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, a qual é de conhecimento oficioso, implicando o indeferimento liminar do requerimento executivo (Cf. artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º e 726.º, nºs 1 e 2, alínea a), do CPC).».

Que dizer?

Deve começar por admitir-se e reconhecer-se a existência da corrente jurisprudencial – com fundamentos estruturados e consistentes – em que se ancora a decisão recorrida.

Com efeito, no Ac. TRL, de 09/03/2017 ([2]) foi salientado que:

“I- As relações jurídicas estabelecidas entre a Caixa de Previdência dos Advogados e dos Solicitadores (CPAS) e os seus associados, são relações de natureza administrativa e cabem na competência geral mencionada na referida al. o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.

II- A remissão para «os requisitos previstos no CPPT», constante do n.º 5 do art.º 81º. do Regulamento aprovado pelo DL 119/2015 de 29/06, não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, não se afigurando curial o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira de que há falta de norma habilitante para propor execuções para cobrança das contribuições em dívida à CPAS.”.

Enunciado este na linha do anterior Ac. TRP, de 20/06/2016 ([3]), em cujo sumário pode ler-se, quanto àquela Caixa de Previdência, que:

«I- Nos termos do artigo 1.º do Novo Regulamento da Caixa de Previdência (…), publicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 119/2015, de 29 de Junho, (…) é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, e visa fins de previdência e de protecção social (…).

II- (…) é uma pessoa colectiva de direito público.

III- As relações jurídicas que se estabelecem entre ela e os seus associados, no âmbito do respectivo regulamento, assumem natureza administrativa e, por isso, nos termos da al. o), do n.º 1, do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores», como é o caso em apreço.

IV- Os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para tramitar um processo em que (…) pretende obter de um seu associado a cobrança coerciva de contribuições, competindo essa função aos tribunais administrativo e fiscais.».

E no Ac. do Tribunal de Conflitos, de 27/04/2017 ([4]) foi desenvolvido o seguinte entendimento:

«A CPAS foi criada pelo DL n.º 36550, de 22/10/47, como instituição de previdência reconhecida pela Lei n.º 1884, de 16/3/35 e pertencente à categoria “caixas de reforma ou de previdência”.

A previdência social foi definida pela Base XXV, n.º 1, da Lei n.º 2115, de 18/6/62, como a actividade que, mediante o pagamento regular ou irregular de quantias fixas ou variáveis, se propunha conceder benefícios pecuniários ou de outra natureza, no caso de se verificarem factos contingentes relativos à vida ou à saúde dos interessados, à sua situação profissional ou aos seus encargos familiares. De acordo com a Base III, n.º 3, desta lei de bases do sistema de previdência social, as caixas de reforma ou de previdência eram as instituições de inscrição obrigatória das pessoas que, sem dependência de entidades patronais, exerciam determinadas profissões, serviços ou actividades.

O art.º 63.º, n.º 1, da CRP, veio estabelecer que todos tinham direito à segurança social, sendo objectivo do sistema, nos termos do n.º 3 deste preceito, o de proteger os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou de diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

Traduzindo-se a segurança social num direito a prestações pecuniárias destinadas a garantir as necessidades de subsistência, é manifesto que as instituições que se destinam a exercer a previdência – uma das componentes do sistema de segurança social – realizam uma função de segurança social.

A Lei n.º 28/84, de 14/8 (Lei de Bases do Sistema de Segurança Social), dispôs que as instituições de previdência seriam gradualmente integradas no sistema de segurança social e que as criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77, de 31/12 (Lei Orgânica da Segurança Social), ficavam sujeitas, com as adaptações necessárias, àquela lei e à legislação dela decorrente (cf. artºs. 68.º e 79.º). De acordo com o seu art.º 46.º, n.º 2, a cobrança coerciva das contribuições para a segurança social seria feita através do processo de execução fiscal, cabendo aos respectivos tribunais a competência para conhecer das impugnações ou contestações suscitadas pelas entidades executadas.

A Lei n.º 17/2000, de 8/8, que revogou aquela Lei n.º 28/84, aprovando as bases gerais do sistema de solidariedade e de segurança social, manteve que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77 e estabeleceu que a cobrança coerciva dos valores relativos às quotizações e às contribuições era efectuado através de processo executivo e de secção de processos da segurança social (art.º 63.º, n.º 1) e que, enquanto não fosse legalmente definido o processo de execução previsto naquele art.º 63.º, n.º 1, a referida cobrança coerciva seria feita através do processo de execuções fiscais.

O DL n.º 42/2001, de 9/2, apenas pretendendo aplicar o disposto no CPPT ao sistema de solidariedade e segurança social, “dando continuidade ao trabalho já realizado, deixando para mais tarde e depois de algum tempo de prática a alteração do quadro legislativo em vigor” (cf. preâmbulo), criou as secções de processo executivo do sistema de solidariedade e segurança social, estabelecendo, no seu art.º 2.º, o seguinte:

“1- O presente diploma aplica-se ao processo de execução de dívidas à segurança social.

2- Para efeitos do presente diploma, consideram-se dívidas à segurança social todas as dívidas contraídas perante as instituições do sistema de segurança social pelas pessoas singulares e colectivas e outras entidades a estas legalmente equiparadas, designadamente as relativas a contribuições sociais, taxas, incluindo os adicionais, juros, reembolsos, reposições e restituições de prestações, subsídios e financiamentos de qualquer natureza, coimas e outras sanções pecuniárias relativas a contra-ordenações, custas e outros encargos legais”.

A Lei n.º 32/2002, de 20/12, revogou a Lei n.º 17/2000, mas, tal como esta, estatuiu que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77 (cf. art.º 126.º) e que a cobrança coerciva dos valores relativos às cotizações e às contribuições seria efectuado através do processo executivo e da secção de processos da segurança social (cf. art.º 48.º).

Esta Lei foi revogada pela Lei de bases da segurança social actualmente em vigor (Lei n.º 4/2007, de 16/1), a qual estabeleceu que a estrutura orgânica do sistema compreendia os serviços que faziam parte da administração directa e da administração indirecta do Estado, que eram pessoas colectivas de direito público denominadas instituições de segurança social (cf. art.º 94.º). Quanto às quotizações e contribuições não pagas, como quaisquer outros montantes devidos, seriam objecto de cobrança coerciva nos termos gerais (cf. art.º 60.º). Relativamente às instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do DL n.º 549/77, estatuiu-se que se mantinham autónomas com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições dessa lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (cf art.º 106.º).

O novo regulamento da CPAS, publicado em anexo ao DL n.º 119/2015, de 29/6, ao estabelecer o regime específico de segurança social dos advogados e solicitadores, reafirmou que essa Caixa era uma instituição de previdência autónoma, visando fins de previdência e de protecção social, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa que se regia por esse regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (cf. art.º 1.º), estando sujeita à tutela do Governo (cf. art.º 97.º) e gozando das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e previdência (cf. art.º 98.º). Relativamente às contribuições não pagas, o art.º 81.º n.º 5, estatuiu que a certidão de dívida emitida pela direcção constituía título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código do Procedimento e Processo Tributário.

Resulta do exposto que o pagamento forçado das contribuições para a segurança social, enquanto verdadeiras quotizações sociais que sendo imposições parafiscais apresentam grande semelhança com os impostos (cf. Ac. do T.Conflitos de 17/1/2008 – Conf. n.º 16/07) será feito através de processo de execução fiscal nas secções de processo executivo do sistema de solidariedade e segurança social, cabendo aos tribunais tributários neles exercer a actividade de natureza jurisdicional (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CPPT).

Decorre ainda do que ficou referido, que a CPAS, tendo por fim estatutário conceder pensões de reforma aos seus beneficiários e subsídios por morte às respectivas famílias, prossegue finalidades de previdência e, consequentemente, realiza uma função de segurança social, estando incluída na organização desta e sujeita desde sempre à legislação que a regula, ainda que de forma subsidiária. Com a sua criação foi, pois, instituído, para os advogados e solicitadores, um verdadeiro regime de segurança social, embora de natureza especial, que ainda perdura. Independentemente da sua qualificação como uma verdadeira instituição de segurança social, tanto a doutrina (cf. Freitas do Amaral in “Curso de Direito Administrativo”, 2012, págs. 370/371 e Mário Esteves de Oliveira in “Direito Administrativo”, Vol. I, 1984, pág. 213), como a jurisprudência deste Tribunal (cf. Ac. De 2/10/2008, proferido no Conflito n.º 010/08) tem entendido que se trata de uma pessoa colectiva pública. E, efetivamente, cremos que não pode deixar de assim ser qualificada, atendendo a que foi criada por acto normativo e iniciativa estadual, para assegurar a prossecução necessária de interesses públicos, na vertente da previdência, em benefício de um determinado universo delimitado funcionalmente, sendo dotada de prerrogativas de direito público, isto é, exorbitantes de direito privado.

Assim, no caso vertente, reportando-se o litígio à cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da CPAS (pessoa colectiva de direito público), ele emerge de uma relação jurídica administrativa e fiscal e não de uma relação de direito privado, dado que nela a Caixa intervém no exercício de um poder de autoridade que lhe é conferido directamente pela lei sendo, em consequência, competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos artºs. 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.° 1 e 4.º, n.º 1, al. o), ambos do ETAF. E estando em causa contribuições para um regime de segurança social, embora de natureza especial, são aqui aplicáveis, por força dos artºs. 106.º, da Lei n.° 4/2007 e 1.º do regulamento anexo ao DL n.° 119/2015, o disposto no art.° 60.º da Lei n.° 4/2007 e, com as necessárias adaptações, no DL n.º 42/2001, pelo que será através do processo de execução fiscal nos termos que ficaram referidos para a cobrança coerciva das dívidas à segurança social que o direito da CPAS terá de ser exercido.».

Entendimento que foi inteiramente sufragado no recente Ac. do mesmo Tribunal de Conflitos, de 01/02/2018 ([5]), este acrescentando ainda (também com pertinência para o caso dos presentes autos) que, «(…) numa perspetiva mais alargada, tem vindo a ser reiteradamente assumido na jurisprudência que os litígios emergentes das relações entre a CPAS e os seus subscritores devem ser dirimidos pela jurisdição administrativa e fiscal» ([6]).

E prossegue este último aresto do Tribunal de Conflitos:

«(…) a CPAS é uma instituição de previdência autónoma, mas sujeita à tutela do Governo e a enquadramento legal de natureza parcialmente pública, que visa precipuamente fins públicos (embora restritos a certa categoria de pessoa) de previdência e de proteção social. Enquanto instituição de previdência participa e colabora de forma própria e autónoma com o desígnio do Estado na realização de uma das suas incumbências constitucionais, qual seja, a de organização do sistema de segurança social (v. art. 63º da CRP). Concordantemente, goza das isenções e regalias previstas na lei para entidades públicas e para instituições públicas de segurança social e de previdência (art. 98º Regulamento CPAS; art.9º CIRC) e é obrigatória a inscrição no seu seio por parte dos profissionais respetivos. (…) para a lei (a que aprovou o Regulamento da CPAS), a organização e coordenação de um sistema de segurança social unificado e descentralizado é compatível com a existência de um sistema previdencial autónomo como o da CPAS. Ao regime jurídico da CPAS aplicam-se, subsidiariamente, as bases gerais do sistema de segurança social e a legislação dela decorrente (art. 106.º da Lei nº 4/2007 e art. 1º, nº 2 do Regulamento da CPAS). A cobrança coerciva das contribuições e quotas dos participantes no sistema previdencial de segurança social é efetuada nos termos legais (art. 60º, n° 1 Lei nº 4/2007). Ora, (…) esta remissão genérica, conjugada com a circunstância de a certidão de dívida emitida pela direção da CPAS constituir título executivo que deve observar os requisitos previstos no art. 163º CPPT, aponta decididamente no sentido de que aquele título, como os outros previstos no CPPT, deve servir de base para a instauração de processo de execução fiscal (arts.162º e 163º CPPT) e não (sem qualquer lógica) de execução comum.

Argumenta a Recorrente, porém, com a circunstância da Autoridade Tributária e Aduaneira se ter manifestado no sentido de não haver norma legal que habilite a instauração de processo fiscal para cobrança de dívidas à CPAS. Vê nisto, conjugadamente com a definição judicial do contrário, a criação de uma situação de indefesa violadora do art. 20° da CRP. Acontece que, como acima demonstrado, a boa interpretação da lei aponta precisamente em sentido adverso àquele que foi veiculado pela Autoridade Tributária e Aduaneira. Como também se faz notar no acórdão ora recorrido “[e ]sse entendimento não parece (...) ter em consideração que a remissão para «os requisitos previstos no CPPT», que resulta do nº 5 do art. 81º do referido Regulamento – «disposição especial» que, nos termos da alínea d) do art. 703º do CPC, visa permitir que a certidão de dívida de contribuições emitida pela direcção da CPAS valha como título executivo – não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal a que alude o nº 2 do art. 148º do CPPT, ao dispor que «poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei: a) outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo».”. E estando este Tribunal dos Conflitos a definir (e sob impulso da CPAS) precisamente qual das jurisdições (judicial ou administrativa e fiscal) envolvidas no caso é a competente, segue-se que a decisão aqui tomada é vinculativa, mesmo com referência aos momentos executivos pré-judiciais, para toda e qualquer autoridade pública tributária que tenha que lidar com uma pretensão executiva da ora Recorrente (v. art. 205º, nº 2 da CRP).».

Tudo por forma a definir – como ali foi decidido – “que a jurisdição competente para conhecer da execução em causa é a administrativa e fiscal”.

Não vemos quaisquer razões para divergir – antes pelo contrário – deste entendimento reiterado de Tribunais da Relação e do Tribunal de Conflitos, sendo que na citada fundamentação antecedente já estão respondidas as questões colocadas, também nestes autos, pela Exequente/Apelante.

Nesta perspetiva, inexiste, logicamente, a invocada violação de princípio constitucional, como o direito à tutela jurisdicional efetiva (tendo em conta o disposto no art.º 20.º, n.º 1, da CRP), garantido como direito fundamental, que pressupõe uma pretensão regularmente deduzida em juízo, o que exige a sua apresentação perante o tribunal materialmente competente, “não estando na disponibilidade das partes, obviamente, desenhar o âmbito dessa competência” ([7]).

Ademais, a Recorrente nunca ficaria num “beco sem saída” (conclusão 18.ª), pois do que se trata é de definir qual a jurisdição materialmente competente, se a dos tribunais judiciais ou a administrativa e fiscal – uma delas tem essa competência –, havendo, como visto, resposta reiterada da jurisprudência dos Tribunais superiores no sentido de a competência residir naquela jurisdição administrativa e fiscal.

Resposta essa, salvo o devido respeito, com que aqui se concorda.

Nada, pois, a censurar à decisão recorrida, estando justificado, em matéria de conhecimento oficioso, o decretado indeferimento liminar (art.ºs 96.º, n.º 1, al.ª a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, e 726.º, n.º 1, al.ª b), todos do NCPCiv.).

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPC):

1. - A jurisdição dos tribunais judiciais é materialmente incompetente para a execução de dívida por contribuições não pagas por advogado beneficiário à Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS).

2. - A jurisdição competente para conhecer dessa execução é a administrativa e fiscal.

                                                 ***
V – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas do recurso pela Apelante.

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 06/03/2018

         

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro


([1]) Bem como do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN).
([2]) Proc. 17398/15.9T8LRS.L1-2 (Rel. Maria Teresa Albuquerque), disponível em www.dgsi.pt, citado na decisão em crise.
([3]) Proc. 6988/16.2T8PRT.P1 (Rel. Alberto Ruço), também em www.dgsi.pt.
([4]) Proc. 037/16 (Rel. Fonseca da Paz), também em www.dgsi.pt.
([5]) Proc. 044/17 (Rel. José Rainho), também em www.dgsi.pt.
([6]) Convoca, neste âmbito, o Ac. do Tribunal de Conflitos, de 02/10/2008, Proc. 010/08, e os Acs. do STA, de 08/10/1996, Proc. 039924, de 22/09/2015, Proc. 0906/15, e de 09/01/2014, Proc. 01696/13, todos com sumário em www.dgsi.pt.
([7]) Assim o Ac. STA, de 22/09/2016, Proc. 0729/14 (Rel. José Veloso), também em www.dgsi.pt, onde é afirmado não se tratar “de qualquer falta de tutela jurisdicional efectiva, mas antes de lançar mãos do meio legal próprio para a obter. Por motivos de ordem pública, justiça, segurança e eficiência, é a lei que limita e disciplina as formas de aceder a juízo e os meios próprios de o fazer, sendo que não está na livre disponibilidade das partes operar esse tipo de escolhas e tentar impô-las a título de um pretenso direito à tutela jurisdicional efectiva”.