Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
610/06.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: APERFEIÇOAMENTO DOS ARTICULADOS
ARRENDAMENTO URBANO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
NULIDADE DO CONTRATO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
PAGAMENTO
RENDA
Data do Acordão: 11/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 508º, Nº 3 CPC; 9º DO RAU
Sumário: I. As situações de convite referidas no n.º 3 do art.º 508º do C. P. Civil, são configuradas, quase unanimemente, pela doutrina como despacho de aperfeiçoa­mento não vinculado.

II - O art.º 9º do R.A.U. só permitia o arrendamento de edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato estivesse atestado pela licença de utilização.

III - A exigência da licença de utilização tem o objectivo de obrigar os proprietá­rios ao cumprimento das regras legais relativamente a obras de construção ou que condicionam a utilização das novas edificações, tendo tais regras natureza administra­tiva e destinando-se, essencialmente, à observância de requisitos de salubridade, segu­rança e estética dos edifícios.

IV - No domínio do R.A.U. a falta de licença de utilização não determina a nuli­dade do contrato de arrendamento, sujeitando apenas o senhorio ao pagamento de uma coima, nos termos do art. 9º, n.º 5, podendo, ainda, o arrendatário resolver o contrato, com direito a indemnização – n.º 6, do art.º citado.

V - Pode o arrendatário optar pela resolução do contrato ou pela realização das obras necessárias à emissão da competente licença de utilização do arrendado – art.º 9º, n.º 6, do R.A.U. – com a manutenção do mesmo.

VI - A invocação da excepção do não cumprimento no âmbito dos contratos de arrendamento tem visto o seu campo de aplicação muito limitado, porquanto uma vez entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz. Certo, o locador continua obrigado a proporcionar o gozo da coisa ao locatário; mas esta é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Os Autores instauraram acção a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré a reconhecer o direito de proprie­dade sobre o imóvel em questão e que seja decretado o despejo imediato do locado devoluto de pessoas e bens ou, se assim se não entender, seja a Ré condenada a resti­tuir-lhe o referido imóvel, bem como que a mesma seja ainda condenada a pagar-lhes a quantia de € 73.771,94, acrescida de juros de mora à taxa legal (4%), desde a data da citação até integral e efectivo sem prejuízo das rendas vincendas.
Para tanto alegaram, em síntese:
- São donos e legítimos proprietários de um prédio urbano e celebraram com a Ré, em 28/05/2000, um contrato-promessa de arrendamento referente a tal prédio.
- A Ré, a partir de 01/08/2000, passou a ocupar e usufruir o dito imóvel, no desenvolvimento da sua actividade comercial de restauração e passou, também, a pagar-lhes, mensalmente, uma prestação pecuniária no valor de 300.000$00 (renda essa que foi posteriormente, por acordo das partes, reduzida para 255.000$00).
- Apesar de terem apelidado o referido contrato como de promessa de arren­damento, o que as partes celebraram foi um verdadeiro contrato de arrendamento para fins comerciais, pelo qual, os Autores se obrigaram a proporcionar à Ré o gozo tempo­rário (10 anos) de um imóvel, mediante retribuição.
- A última renda que a Ré pagou foi a relativa ao mês de Abril/2001, encon­trando-se vencidas e não pagas as rendas relativas aos meses de Maio/2001 a Feve­reiro/2006, num total de € 73.771,94.
- Não foi ainda emitida licença de utilização relativamente ao imóvel arren­dado, o que pode determinar a nulidade do contrato, estando a Ré, em consequência, obrigada a restituir o local e pagar-lhes o valor acordado pelo seu uso.

A Ré contestou, alegando em síntese:
- O contrato promessa de arrendamento que celebrou com os Autores é efec­tivamente nulo, tendo presente que, na data da assinatura do contrato, era obrigatória a celebração dos arrendamentos para comércio através de escritura pública, para além de ser exigido licença de utilização, sob pena de nulidade.
- O prazo do início do arrendamento foi diferido até Agosto de 2000, altura em que previsivelmente os Autores conseguiriam a licença.
- As partes, apesar de saberem e aceitarem que o contrato não poderia surtir os seus efeitos legais a partir dessa data e mesmo sabendo que tinham de celebrar o contrato prometido, ao iniciarem as prestações recíprocas em Agosto de 2001 fizeram-no sem suporte legal e sem qualquer contrato válido que o estabelecesse.
- Sendo nulo o contrato, dever-lhe-ão ser restituídas as prestações pagas, num total de € 12.569,71 e deverá haver lugar à eventual fixação de uma quantia compensatória pela ocupação do espaço (não peticionada).
- Os Autores, apesar de reconhecerem a nulidade do contrato formularam um pedido de despejo imediato, o que lhe deve ser negado, dado não serem devidas quais­quer rendas decorrentes de um contrato válido.
- O contrato celebrado destinava-se à promessa de arrendamento do local onde hoje se encontra a funcionar o “Restaurante …” e a Ré entrou na posse do imóvel, não no dia 01/08/2000, mas sim no dia imediato ao da assinatura do contrato, começando desde logo a efectuar obras e modificações para a instalação do restaurante.
- Aquela prestação pecuniária foi alterada de 300.000$00 para 255.000$00, por acordo entre as partes, após inúmeras reclamações sobre as deficientes condições de funcionamento, da inexistência de licenças, não celebração do contrato prometido e da inexistência de recibos.
- Não corresponde à verdade que as partes não estivessem perfeitamente cientes de que estavam a assinar apenas um contrato promessa, sem prejuízo de se terem conformado com a inexistência da licença de utilização por um prazo razoável, no convencimento, porém, de que a mesma seria obtida pelos Autores, para o que instou estes últimos durante meses.
- A Ré, após várias negociações para chegar a um outro valor de renda ou obter a licença em falta, tal nunca foi conseguido, não tendo continuado a pagar qual­quer quantia pela utilização do imóvel, considerando a inexistência de tal licença de utilização.

A Ré deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação dos Autores a reconhecerem a nulidade do contrato promessa de arrendamento e, em consequência, a restituírem-lhe a quantia de € 12.569,71 que já receberam, bem como a pagarem-lhe a quantia de € 90.000,00 pelas benfeitorias realizadas, bem como € 2.250,00 pelas coimas pagas em virtude da inexistência de licença e € 1.500,00 pelos vários prejuízos também decorrentes da inexistência de licença, tudo num total de € 116.319,71 euros, montantes acrescidos de juros legais a contar desde a notificação da presente contestação.
 Para fundamentar estes pedidos alegou, em síntese:
- A nulidade do contrato implica a restituição das quantias que entretanto pagou aos reconvindos, no valor de € 12.569,71, bem como o que despendeu em trabalhos e materiais de adaptação e modernização do estabelecimento e na aquisição de equipamento indispensável para o funcionamento do restaurante - uma quantia não inferior a € 90.000,00.
- Todas as obras realizadas são do perfeito conhecimento dos reconvindos, que as autorizaram e aceitaram, constituindo benfeitorias necessárias ou úteis, feitas de boa fé e relativamente às quais terá de ser ressarcida.
- Foram-lhe aplicadas 3 coimas de cerca de 750 euros cada devido à inexis­tência de licença e a problemas dela decorrentes.
- A inexistência de licença fez com que não pudesse desenvolver a sua acti­vidade de uma forma correcta.

Os Autores apresentaram réplica, na qual sustentaram:
- Ao contrário do que é afirmado pela Ré, o contrato promessa de arrenda­mento a ser qualificado como tal, não sofre de qualquer vício de nulidade.
- Tal apenas sucederá, por inexistência de licença de utilização, se aquele for considerado um verdadeiro contrato de arrendamento, mas nunca nulo por vício de forma, uma vez que, a partir de 30/04/2000, deixou de vigorar a exigência de escritura pública para os contratos de arrendamento para comércio.
- Não sendo possível a restituição do gozo da coisa, a Ré está obrigada a res­tituir o correspondente valor, determinado pelo montante da renda multiplicado pelo número de meses em que usou o local e não pagou a quantia entre ambos acordada.
- No que concerne aos prejuízos invocados pela Ré, os Autores, pese embora impugnando os mesmos, sustentaram que os mesmos nunca lhes poderão ser imputados uma vez que a Ré sempre teve conhecimento da inexistência de licença de utilização, o que não a impediu de fazer obras no locado, nem de manter o estabelecimento aberto desde aquela data.
- Quanto às benfeitorias alegaram que as obras realizadas no prédio foram da exclusiva iniciativa e responsabilidade da Ré, tendo as partes, acordado, no contrato, que as obras realizadas pela Ré necessárias ao exercício da sua actividade, seriam por esta suportadas integralmente.

Após a designação da data para audiência de discussão e julgamento, a Ré requereu a ampliação do pedido reconvencional – a qual foi admitida – para o valor de € 250.000,00, alegando ter constatado que a quantia, que ao longo do tempo se foi apurando, é bastante superior, mais concretamente na ordem dos € 200.000,00, e que desde a instauração da acção muitas outras obras de adaptação essenciais ao funciona­mento mínimo do locado tiveram de ser efectuadas, para cumprir requisitos legais que foram sendo exigidos com a entrada em vigor de nova legislação, tendo despendido com os mesmos quantia não inferior a € 50.000,00.

Veio a ser proferida decisão que julgou a causa nos seguintes termos:
1) Julgar a presente acção totalmente procedente e em consequência conde­nar:
a. A ré B…, Lda. a reconhecer o direito de propriedade dos autores S… e F… sobre o prédio urbano, sito em …, inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo … e registado na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o nº … da Freguesia …, bem como a restituir aos mesmos tal prédio devoluto de pessoas e bens.
b. A ré B…, Lda. a pagar aos autores S… e F… a quantia de setenta e três mil setecentos e setenta e um euros e noventa e quatro cêntimos (€ 73.771,94), bem como o montante mensal de € 1.271,93, desde Março de 2006 até à efectiva restituição do prédio supra referido aos autores, montantes esses acrescidos de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da citação e respectivas datas de vencimento de cada uma das prestações que se venceram após tal data e até integral e efectivo pagamento.
2) Julgar totalmente improcedente a reconvenção deduzida por B…, Lda. e em consequência absolver de todo o pedido reconvencional S… e F...

Inconformada a Ré recorreu da decisão, formulando as seguintes conclusões

Conclui pela procedência do recurso.

Os Autores apresentaram alegações, defendendo a confirmação da decisão recorrida.

1. Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­ga­ções do recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A sentença é nula por contradição entre a matéria de facto e a funda­mentação jurídica e a decisão, quanto ao valor do gozo do imóvel arrendado?
b) O julgamento deve ser anulado para permitir a ampliação da matéria de facto sujeita a prova, convidando-se a Ré a completar o alegado no pedido reconven­cional?
c) A resposta dada ao quesito 18º formulado na base instrutória deve ser alterada?
d) A Ré pode excepcionar o não cumprimento pelos Autores da obrigação de obterem a licença de utilização do imóvel arrendado, para justificar o não pagamento das rendas?
e) A Ré tem direito a ser indemnizada pelo valor das obras que efectuou no arrendado?
                                
2. Da nulidade da sentença
Da leitura das alegações do recurso da Ré e respectivas conclusões resulta que esta invoca a nulidade da sentença constante do art.º 668º, n.º 1, c), do C. P. Civil, alegando a existência de uma contradição insanável entre a matéria de facto dada como provada, a fundamentação de direito e a consequente decisão daí resultante.
Dispõe aquele art.º 668º, n.º1, c):
É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a deci­são.
A nulidade prevista na al. c), do nº 1, do art.º 668º, do C. P. Civil, verifica-se quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resul­tado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou seja, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta àquela que logicamente deveria ter chegado.
Só releva, para este efeito, a contradição entre a decisão e os respectivos fundamentos.
Na fundamentação da sentença entendeu-se que o valor do gozo do prédio que devia ser restituído por força da nulidade do contrato era o mesmo que as partes tinham estipulado como renda, enquanto a Ré defende que esse valor deve ser aquele que foi obtido por prova pericial.
Ora, perante o entendimento expresso na fundamentação da sentença, inde­pendentemente do seu acerto, a condenação no pagamento do valor das rendas é o seu resultado lógico, pelo que não há qualquer contradição entre os fundamentos e a deci­são recorrida, não se verificando a nulidade apontada.
3. Da ausência de convite ao aperfeiçoamento da reconvenção
No seu recurso a Ré defende que ao não ter sido proferido despacho a con­vidá-la a aperfeiçoar a reconvenção, com vista à concretização dos factos densificado­res das benfeitorias, não foram carreados para a base instrutória todos os factos necessá­rios ao julgamento da causa, pelo que deve este ser anulado e ordenada a sua remessa à 1ª instância para a prolação daquele despacho.
Dispõe o art.º 508º, n.º 1, do C. P. Civil:
Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho desti­nado a convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes.
No n.º 3, dispõe:
Pode ainda o juiz convidar as partes a suprir as insuficiências ou impre­ci­sões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada...
Assim, se o juiz entender que alguns dos factos alegados pelas partes são insuficientes ou imprecisos, poderá sugerir a apresentação de novo articulado onde se supram tais deficiências.
As situações de convite referidas no n.º 3, do art.º 508º, do C. P. Civil, são configuradas, quase unanimemente, pela doutrina como despacho de aperfeiçoa­mento não vinculado.[1]
Entendemos que, inserindo-se a prolação deste despacho, num quadro de poderes discricionários do juiz, este usá-lo-á conforme considere justo e adequado às circunstâncias do caso, não sendo a sua inércia sindicável.[2]
Pelo exposto não sendo vinculado o despacho a que alude o art.º 508º, n.º 3, do C. P. Civil, não é a sua omissão recorrível, improcedendo este fundamento do recurso.
4. Dos factos

5. Do direito aplicável
5.1. Qualificação do contrato
Autores e Ré celebraram um contrato que intitularam de contrato-promessa de arrendamento.
A catalogação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo contratual, necessária para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela depen­dente. A qualificação de um contrato é matéria de direito sobre a qual o tribunal se pode pronunciar livremente, sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham empregado. O nome com que as partes baptizaram o acordo celebrado poderá, quanto muito, servir como um elemento, entre muitos outros, a ter em consideração no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, nada garantindo que a conclusão atingida coincida com o "nomen" utilizado pelas partes.
Como escreveu Galvão Teles :
"A não adequação da designação adoptada pelas partes à real natureza do contrato pode resultar de circunstâncias várias, ou de equívoco ou ignorância ou do objecto de defraudar a lei, procurando enquadrar o negócio num modelo que não é o seu, para, através do uso da denominação específica de outro e a confusão assim estabelecida, tentar extrair daí consequências jurídicas favoráveis às partes ou a uma delas e que não são compatíveis com a índole e regime do negócio efectivamente desejado...Em qualquer dos casos, o regime a observar, em última análise será o do próprio tipo negocial que vier a diagnosticar-se através das operações de interpreta­ção e qualificação, afastando-se todas e quaisquer soluções para que apontasse a incorrecta denominação usada pelas partes, mas que não sejam conciliáveis com a espécie contratual realmente celebrada" [3].
Há, pois, que proceder a uma interpretação da actividade negocial das partes, tendo por elementos de trabalho o texto contratual e a vivência da relação contratual estabelecida, de modo a verificar a correcção da nomenclatura utilizada pelos outor­gantes.
Como já referimos na epígrafe que serve de pórtico ao acordo escrito fala-se em Contrato de Promessa de Arrendamento.
Mais abaixo constam do mesmo as seguintes expressões: prometem dar, promete tomar, e prometido arrendamento
Porém, do restante clausulado verifica-se que as partes quiseram logo com este acordo pôr em funcionamento a relação contratual.
Assim, com a celebração do intitulado contrato de promessa a promitente arrendatária começaria logo a fruir o local prometido arrendar, numa fase inicial e durante os meses de Junho e Julho de 2000 para a realização da obras necessárias ao fim do contrato, e a partir de Agosto de 2000 já fruiria o local como objecto do contrato celebrado, começando, nessa data, os promitentes locadores a receber mensalmente as rendas acordadas, como contrapartida dessa fruição.
Da cláusula 3ª, a) consta o seguinte:
a) O prometido arrendamento é celebrado pelo prazo de 10 anos, tem o seu início no dia 1.8.2000 e renova-se automática e sucessivamente por períodos de um ano, enquanto não for denunciado por qualquer das partes, através de carta registada com aviso de recepção, com a antecedência mínima de 3 meses em relação ao seu termo inicial ou de qualquer das suas renovações:
Ora, caracterizando-se o contrato de arrendamento pela obrigação de alguém proporcionar a outrem o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição, só pode concluir-se que as partes, com o acordo escrito celebrado, não quiseram apenas prometer vincular-se mais tarde a uma relação contratual arrendatícia, mas vincular-se desde logo a essa relação. As partes acabam por não prometer dar de arrendamento e tomar de arrendamento em data futura, mas, já neste escrito, dão e tomam de arrenda­mento diferindo para 1 de Agosto de 2000 o início da vigência desse contrato.
Esta dilação do início da vigência do contrato em nada obsta à sua caracteri­zação como contrato definitivo, pois é comum, quando os locados necessitam de obras, dilatar-se o início para a data previsível em que as mesmas estarão concluídas e o arrendatário poderá gozar, nos termos acordados, o locado.
A única coisa que fica para mais tarde é a mera formalização deste contrato exigida por lei [4] [5], sendo o compromisso de cumprimento das obrigações típicas do contrato de arrendamento assumido de imediato.
E a vida da relação contratual subsequente a este acordo comprova indiscuti­velmente esta interpretação do clausulado no pretenso contrato-promessa.
Provou-se que a Ré ocupa, mediante o pagamento de retribuição, o local prometido arrendar. A relação locatícia já é uma realidade e não um simples projecto para o futuro, num sinal inequívoco que as partes já contrataram definitivamente.
Assim, da análise do contexto do acordo celebrado em 29.5.2000 e da vida da relação nascida desse contrato, concluiu-se, em oposição com a decisão recorrida, que a vontade real das partes foi a de celebrar um contrato com obrigações e direitos típicos de um contrato de arrendamento e não de um contrato-promessa de arrenda­mento, pelo que na sequência desta interpretação, com recurso à vontade subjectiva, como exige o art.º 236º, do C. Civil, há que qualificar o contrato celebrado como contrato de arrendamento para o comércio [6].

5.2. Da validade do contrato
O contrato em causa foi celebrado por escrito particular, sendo, atenta a data da sua celebração – 29.5.2000 –, válido.
Na data da sua celebração encontrava-se em vigor o R.A.U., que dispunha no art.º 7º, quanto à forma dos contratos de arrendamento – na redacção que lhe foi dada pelo DL 64-A/2000, de 22.4 – que os contratos de arrendamento deviam ser celebrados por escrito, deixando de se exigir a escritura pública mesmo para os arrendamentos comerciais.
No caso, a forma exigida por lei foi observada, porquanto as partes reduzi­ram o contrato a escrito.
No entanto, conforme resulta dos factos apurados, não dispunha o locado de licença de utilização a qual era exigida pelo art.º 9º, do R.A.U., que só permitia o arrendamento de edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato estivesse atestado pela licença de utilização.
A exigência da licença de utilização tem o objectivo de obrigar os proprietá­rios ao cumprimento das regras legais relativamente a obras de construção ou que condicionam a utilização das novas edificações, tendo tais regras natureza administra­tiva e destinando-se, essencialmente, à observância de requisitos de salubridade, segu­rança e estética dos edifícios.
No domínio do R.A.U. a falta de licença de utilização não determina a nuli­dade do contrato de arrendamento, sujeitando apenas o senhorio, ao pagamento de uma coima, nos termos do art. 9º, n.º 5, podendo, ainda, o arrendatário resolver o contrato, com direito a indemnização – n.º 6, do art.º citado [7].
Podendo o arrendatário optar pela resolução do contrato ou pela realização das obras necessárias à emissão da competente licença de utilização do arrendado – art.º 9º, n.º 6, do R.A.U. – com a manutenção do mesmo, é forçoso concluir-se que o contrato celebrado, como é o caso do celebrado entre Autores e Ré, sem licença de utilização é válido, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação das questões suscitadas neste recurso que radicavam na nulidade do contrato.
A circunstância de contrariamente aos fundamentos da decisão recorrida se ter concluído pela validade do contrato, não determina necessariamente a revogação da sentença da 1.ª instância, uma vez que a condenação na restituição do arrendado e no pagamento da quantia dela constante, pode também decorrer da resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas, como os Autores haviam peticionado, a título principal. Isto é a sentença pode ser confirmada, com uma diferente fundamentação, pelo que cumpre apurar a verificação da causa resolutiva alegada.

5.3. Do não pagamento de rendas
Os Autores pediram a resolução do contrato de arrendamento celebrado com a Ré, com fundamento na falta de pagamento de rendas.
Defende a Ré que, pese embora, tenha resultado provado que a última prestação pecuniária pelo gozo do locado que pagou aos Autores foi a relativa ao mês de Abril de 2001, não estava obrigada ao seu pagamento, uma vez que os Autores incumpriram parcialmente a sua obrigação, no que respeita à obtenção de licença de utilização do locado, limitando, por esse facto, o gozo do locado à Ré.
Pretende a Ré utilizar a figura da excepção de não cumprimento para justificar o não pagamento das rendas.
Nos termos do disposto no art.º 428º do C. Civil, se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.
A excepção do não cumprimento constitui uma excepção peremptória de direito material, cujo objectivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações contratuais, valendo tipicamente no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso, pela qual uma das partes, não negando, nem limitando o direito do outro ao cumprimento, recusa a sua prestação, enquanto não for realizada ou oferecida simultaneamente a contraprestação.
Esta excepção não é mais que a recusa temporária do devedor – credor de uma prestação não cumprida no âmbito de um contrato sinalagmático – que, assim, retarda, legitimamente, o cumprimento da sua prestação enquanto o credor não cumprir a prestação que lhe incumbe.
A invocação da excepção de não cumprimento pressupõe que uma das partes possa recusar a sua prestação à outra, enquanto esta não cumprir, o que naturalmente requer que o cumprimento seja ainda possível.
A possibilidade de se poder exercer esta excepção depende da verificação cumulativa de três requisitos: a existência de um contrato bilateral ou sinalagmático, a não fixação de prazos diferentes para as prestações dos contratantes, e que a contraparte não tenha cumprido a sua prestação.
No entanto, estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, esta excepção poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro.
No caso que nos ocupa, estamos, sem qualquer dúvida, na presença de um contrato sinalagmático qualificado como de arrendamento urbano comercial, contrato este que impõe a ambos os contraentes obrigações correspectivas, – o senhorio tem a obrigação de assegurar o gozo da coisa ao locatário, estando este obrigado ao pagamento da renda, como contrapartida.
A invocação da excepção do não cumprimento no âmbito dos contratos de arrendamento tem visto o seu campo de aplicação muito limitado, porquanto uma vez entregue ao locatário a coisa locada, o sinalagma em grande medida se desfaz. Certo, o locador continua obrigado a proporcionar o gozo da coisa ao locatário; mas esta é uma obrigação sem prazo ou dia certo para o seu cumprimento, ao passo que é a termo a do pagamento da renda [8].
Contudo, como se escreveu-se Ac. do S. T. J., de 10.10.2006 [9]:
De qualquer modo, tem-se admitido o funcionamento do instituto mesmo no caso de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso, mas fazendo intervir então, sempre que as circunstâncias concretas o imponham, o princípio da boa fé e a “válvula de segurança” do abuso do direito (art.ºs 762º, nº 2, e 334º do CC). E isto porque, como justamente observa o Prof. Almeida Costa na RLJ 119º, pág. 144, “seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito.
Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito. Em particular no âmbito da locação, este mesmo Autor (loc. cit., pág. 145/146), depois de chamar a atenção para o facto de a ideia de proporcionalidade ou equilíbrio das prestações aflorar a propósito da redução da renda ou aluguer se o locatário sofrer privação ou diminuição do gozo da coisa, conclui o seguinte: “O recurso do arrendatário a este instituto, se existe cumprimento defeituoso ou parcial pelo senhorio, apenas o dispensa de pagar a renda correspondente à falta verificada. A quantificação pode tornar-se mais ou menos difícil. Quando as partes não chegarem a acordo sub­siste o remédio da consignação em depósito, mas o arrendatário corre o risco de o seu cálculo pecar por defeito, depositando uma renda menor do que a devida”.
Neste caso, e após análise dos factos que foram julgados provados, resulta que o locado não tem licença de utilização, o que já acontecia e era do conhecimento da Ré na data da celebração do contrato, e que tal facto determina que esta não possa ter livro de reclamações no estabelecimento que, desde 1.8.2000, funciona no locado, aberto ao público.
Dos factos provados não resulta, pois, que do incumprimento dos Autores no que toca à falta de obtenção de licença de utilização tenha ocorrido uma diminuição do gozo do locado para além da impossibilidade de ter livro de reclamações, tendo, como atrás se disse, resultado provado que desde o início do contrato ali funciona um restaurante.
Atenta a diminuta relevância da única limitação apurada, não se verifica, uma diminuição do gozo do locado que justifique que a Ré não pague o montante das rendas acordadas, pelo que essa falta de pagamento permite a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio nos termos do art.º 1083º, n.º 3, do C. Civil, e a exigência do pagamento das rendas vencidas correspondente ao montante que a Ré foi condenada a pagar pela sentença recorrida.
Por estes motivos deve ser confirmada a sentença recorrida, com fundamentos diversos, na parte em que além de reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o arrendado, que nunca esteve em causa nesta acção, condenou a Ré a restituí-lo e a pagar o valor das referidas rendas, acrescido de juros de mora.

5.4 Da indemnização pela realização de benfeitorias
A Ré deduziu pedido reconvencional, visando a condenação dos Autores a pagarem-lhe uma determinada quantia correspondente aos valores despendidos com a realização de obras de adaptação e modernização do estabelecimento, e na aquisição de equipamento indispensável para o funcionamento do restaurante.
Tendo o contrato de arrendamento cessado por resolução do mesmo pelos senhorios, por falta de pagamento de rendas, a Ré só poderá ter direito a ser indemnizado pelas despesas que teve com obras realizadas no arrendado, na medida em que tenha introduzido benfeitorias no arrendado.
Provou-se que a Ré despendeu quantia concretamente não apurada em trabalhos e materiais de adaptação e modernização do restaurante referido em D) e na aquisição de diverso equipamento para o seu funcionamento.
O art.º 1074º, n.º 5 do C. Civil, dispõe que, salvo estipulação em contrário, o locatário é equiparado ao possuidor de boa-fé quanto a obras que haja feito licitamente na coisa locada.
No contrato de arrendamento estipulou-se que os senhorios autorizavam a arrendatária a fazer as obras que entendesse necessárias ao exercício da sua actividade, sendo esta a suportá-las integralmente, pelo que, por vontade das partes, excluiu-se o direito a qualquer indemnização resultante da realização das referidas obras.
Não se tendo provado qualquer elemento indicativo da vontade das partes quando inseriram esta cláusula no contrato é esse o sentido que a ele atribuiria o declaratário normal, colocado na posição dos outorgantes, uma vez que só ele justificaria tal menção, pelo que deve ser com esse sentido que deve ser interpretado tal texto negocial, nos termos do art.º 236º, do C. Civil.
Estando esta matéria na livre disponibilidade das partes, conforme resulta da redacção do citado art.º 1074º, n.º 5, do C. Civil, não tem a Ré direito a reclamar qualquer indemnização pelas obras que realizou no arrendado, pelo que deve o recurso ser também julgado improcedente nesta parte.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Ré.


Sílvia Pires (Relatora)

Henrique Antunes

Regina Rosa


[1] Neste sentido:
Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil – Vol. II, pág. 79, ed. 1997, da Almedina,
Montalvão Machado, in O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à Luz do Novo Código de Processo Civil, pág. 255, da 2.ª ed. da Almedina.
  Em sentido contrário:
Paulo Pimenta, in A Fase do Saneamento do Processo Antes e Após a Vigência do Novo Código de Processo Civil, pág. 182, ed. de 2003, da Almedina

[2] Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pág. 355, ed. de 2001, da Coimbra Editora,
Ac. S.T.J. de:
 18.3.04, relatado por Ferreira de Almeida, acessível in www.dgsi.pt , proc. 04B572,
 21.11.06, relatado por Sebastião Povoas, acessível in www.dgsi.pt, proc. 06A3687,
 27.11.07, relatado por João Camilo, acessível in www.dgsi.pt, proc. n.º 07A3918,
 2.2.09, relatado por Nuno Cameira, acessível in www.dgsi.pt proc. n.º 08A3887.


[3] Em parecer publicado na C.J., Ano XVII, Tomo 2, pág. 27.
[4] Na cláusula 8ª previu-se o seguinte: O contrato definitivo será celebrado logo que seja concedida ao prédio identificado na cláu­sula 1ª a licença de utilização.

[5] E este adiamento da formalização do negócio talvez explique o motivo pelo qual as partes designaram um contrato de cariz claramente definitivo como mero contrato-promessa, devido ao obstáculo que resulta da matéria provada - a falta de licença de uti­lização exigida pelo art.º 9º, nº 1, do R.A.U.

[6] Relativamente a situações semelhantes em que as partes denominaram de promessa um contrato de cariz definitivo pode ler-se o Pare­cer citado na nota 1.

[7]  Neste sentido os Acórdãos do S. T. J.:
de 10.10.06, relatado por Nuno Cameira, acessível em www.dgsi.pt;
de 19.2.08, relatado por Sebastião Povoas, www.dgsi.pt;
de 29.9.08, relatado por Azevedo Ramos, www.dgsi.pt.

[8] Aragão Seia, em Arrendamento Urbano, pág. 412, da 7.ª ed., da Almedina,

[9] Relatado por Nuno Cameira e acessível em www.dgsi.pt.