Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/13.8TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ANIMAIS
DEVER DE VIGILÂNCIA
CONCAUSALIDADE
DANO DA PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 02/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - PENACOVA - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 483, 493 Nº1, 562, 563, 566 CC
Sumário: 1.- Provando-se, por um lado, que o detentor de dois canídeos de raça pastor alemão postergou o seu dever de vigilância sobre os mesmos, e, por outro lado, que «muito próximo do local do acidente», a cerca de cem metros, no IP3, a rede que devia impedir o acesso a tal via estava furada e tombada em «largos metros da sua extensão», o sinistro deve ser imputado, em concausalidade, aquele detentor e à Estradas de Portugal.

2.- A indemnização pela privação do uso de automóvel exige a prova, posto que aliviada, dado tal ser facto quase notório, da sua necessidade, bem como do prejuízo que da privação decorre, o qual, à mingua da sua concreta definição, pode ser, essencialmente, fixado via juízo équo, dentro de limites que os factos apurados e os valores arbitrados pela jurisprudência tornem admissíveis.

3.- O lapso temporal a considerar para tal indemnização é o que decorre entre a data do sinistro e pagamento efetivo da indemnização, salvo se a ré provar que o lesado atrasou, deliberada ou injustificadamente, a propositura da ação, ou lhe era exigível que, mesmo antes da sua instauração, reparasse o veículo.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

M (…) intentou contra R (…) e Estradas de Portugal, S.A, ação declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário.

Pediu:

A condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia total de € 7.076,03, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data de citação até integral pagamento.

Alegou:

No dia 28 de Setembro de 2011, cerca das 21h00m, no IP3, junto ao nó de Figueira de Lorvão, seguia o veículo de matrícula (...) IB, de sua propriedade, no sentido Penacova-Coimbra e, sem que nada o fizesse prever, aparecem dois canídeos, propriedade do R. R (…), que atravessaram a faixa de rodagem da esquerda para a direita.

Numa tentativa de evitar embater nos cães, a condutora foi embater no lancil junto à berma direita, perdendo o controlo do veículo e acabando por ficar imobilizada junto ao separador central.

Com o embate o veículo ficou danificado, importando a reparação no de € 1.726,03, valor que despendeu, a que acrescem danos emergentes da privação do uso.

A  ré Estradas de Portugal, S.A, contestou.

Excecionou a incompetência material do Tribunal.

Mais alegou que a condutora do veículo sinistrado conduziria em excesso de velocidade, pois caso assim não sucedesse ter-se-ia apercebido da presença dos cães.

E disse que é de todo impossível exercer uma tal vigilância que preveja o aparecimento deste tipo de animais, o que constituiu caso fortuito.

Pediu:

A procedência da exceção ou, caso assim não se entenda, a improcedência da ação, devendo ser a R. absolvida do pedido.

O R. R (…) outrossim contestou:

Invocou, essencialmente, desconhecer a ocorrência do acidente, sabendo apenas que no dia em causa faleceu um animal canídeo de sua propriedade e um outro que, sendo propriedade da Câmara Municipal de Penacova, estava habitualmente em sua casa.

Acresce que os cães estavam fechados no interior da sua propriedade que é toda murada na confinância com o exterior. Por outro lado, junto ao local do acidente, a vedação que confronta com o IP3, encontrava-se danificada, estando furada, cortada e tombada, pelo que considera que cumpriu o dever de vigilância, tendo sido as Estradas de Portugal que incumpriram com o dever de garantir a segurança dos utilizadores do IP3.

Conclui pela improcedência da ação, devendo ser absolvido do pedido.

Foi proferido despacho saneador, onde foi julgada procedente a exceção de incompetência material, tendo sido a R. “Estradas de Portugal, S.A.” absolvida da instância.

2.

Seguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu:

«Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e consequentemente, condeno o Réu …a pagar à Autora… a quantia de € 3.886,03 (três mil oitocentos e oitenta e seis euros e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal para os juros civis, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, absolvendo-se no que demais havia sido peticionado.».

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido, com invocação dos seguintes argumentos finais:

(…)

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  608º nº2, ex vi do artº 663º n2, 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

1ª – Irresponsabilidade do réu ou concorrência de culpas dos réus com quota 30% para o recorrente;

2ª – Absolvição pelo dano de privação do uso do veículo ou redução do quantum condenatório.

5.

Os factos dados como provados e que importa considerar, são os seguintes:

1) No dia 28 de Setembro de 2011, cerca das 21h00m, no Itinerário Principal nº 3, ao Km 54,150, junto ao nó de Figueira de Lorvão, concelho de Penacova, ocorreu um acidente de viação.

2) Nesse dia, hora e local, seguia o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula (...) IB, no sentido Penacova-Coimbra, propriedade da Autora e conduzido por A (…).

3) Sem que nada fizesse prever, apareceram de modo inopinado dois canídeos de raça “pastor alemão”, que se encontravam à guarda do Réu R (…), que seguiam na faixa de rodagem onde circulava a condutora do veículo da A. em sentido contrário ao que seguia.

4) Numa tentativa de evitar embater nos cães em causa a condutora A (…) foi embater no lancil junto à berma direita, perdendo o controlo da viatura e acabando por ficar imobilizada junto ao separador central.

5) Na retaguarda do veículo pertença da Autora circulava uma outra viatura, na mesma faixa e sentido.

6) Este veículo acabou por embater num dos canídeos em causa.

7) Os cães apresentaram-se soltos na via rápida sem qualquer vigilância.

8) A condutora do IB seguia em estrada em que é proibido o trânsito de animais.

9) O local do embate ocorreu no lancil sito do lado direito atento o sentido de marcha da condutora do IB, a cerca de 50 metros da placa identificativa do Km 54,10.

10) A faixa por onde circulava a condutora A (...) tem a largura, no local, de 6,60 metros.

11) O IB ficou imobilizado junto ao separador central do IP3.

12) O piso encontrava-se em boas condições para a circulação rodoviária.

13) O tempo estava seco, sendo que já tinha caído a noite.

14) Não havia sinais de derrapagem do veículo da Autora.

15) A via em que circulava o veículo da Autora apresenta uma recta com boa  visibilidade.

16) O IP3 faz parte da rede nacional de itinerários principais.

17) Nos itinerários principais é proibida a circulação de peões, velocípedes e veículos de tracção animal.

18) Tais itinerários principais são vedados em toda a sua extensão, sendo proibido o acesso a estes a partir das propriedades marginais.

19) É à “Estradas de Portugal, S.A.” que incumbe o dever de zelar pela conservação e manutenção dos itinerários principais, como é o caso do IP3.

20) O veículo da Autora ao embater no lancil de protecção foi amolgado, quer na frente, quer na traseira, atingindo nomeadamente os apoios do motor, radiador, farolins, faróis, grelha, capot, barras de tensão, carter do motor, transmissão, chaparia e pintura.

21) Tais danos foram orçados em € 1.726,03 (mil setecentos e vinte e seis euros e três cêntimos).

22) Valor esse que a Autora já despendeu.

23) Em face da recusa do Réu R (…) em reparar a viatura sinistrada, a Autora solicitou no âmbito do seguro de protecção jurídica a sua intervenção, sendo que em Março de 2012 foi informada que este mantinha a recusa em indemnizar a Autora.

24) Por via disso decidiu realizar a reparação do mesmo, tendo que solicitar um empréstimo a familiares pois não dispunha da quantia em questão.

25) A Autora utilizava e utiliza o referido veículo nas suas deslocações para o seu local de trabalho.

26) Para além disso utilizava e utiliza o veículo para as suas saídas, só, com amigos e familiares, e para outros compromissos pessoais e profissionais.

27) A Autora utilizava e utiliza ainda o seu veículo para lazer e descanso, bem como, no mais que necessita.

28) Durante este período e porque não tinha dinheiro para comprar outro veículo para substituir o sinistrado teve de se socorrer de transportes alternativos para se poder deslocar no exercício daquelas actividades supra descritas.

29) Efectivamente, tem-se socorrido de transportes públicos, automóveis de familiares ou de amigos.

30) A reparação do veículo apenas foi concluída em Abril de 2012.

31) O Réu é proprietário de um imóvel situado na Rua (...) , na povoação de Figueira de Lorvão, aldeia esta que é contígua com o Itinerário Principal nº 3.

32) Os canídeos encontravam-se fechados no interior da propriedade urbana do réu que é toda murada na confinância com o seu exterior.

33) Um dos animais era propriedade do Réu, o outro era da Câmara Municipal de Penacova e que, a pedido desta, convivia e acompanhava habitualmente o canídeo propriedade do réu, estando por isso habitualmente na casa do réu.

34) Foi por essa razão que os responsáveis camarários solicitaram ao Réu que cuidasse do outro animal, porque resguardados na propriedade do Réu os animais não ofereceriam qualquer perigo para terceiros.

35) O acesso das propriedades rústicas e urbanas marginais do IP3 ao seu traçado e em toda a sua extensão rodoviária está vedado com uma rede em arame grosso com cerca de 150 cm de altura sustentada em estacas de madeira.

36) Junto ao local do acidente existe uma ponte superior ao IP3, através da qual é feita a passagem do trânsito de um dos lados para o outro.

37) Na data da ocorrência do acidente a vedação que confronta com o IP3 junto ao nó de Figueira de Lorvão, ou seja, junto ao Km 54, encontrava-se danificada, estando furada, cortada e tombada, em largos metros da sua extensão e muito próximo do local do acidente.

38) E esses estragos verificavam-se naquela zona do IP3 em ambos os sentidos da via, ou seja, quer no sentido Coimbra-Penacova, quer no sentido Penacova-Coimbra.

6.

Apreciando.

6.1.

A julgadora, depois de discorrer, em tese, acertada e curialmente, quanto à obrigação de indemnizar com base na responsabilidade aquiliana em função dos respetivos pressupostos -, facto voluntário, ilícito, imputável ao agente através de um juízo de culpa, causador de um dano ou prejuízo, através de um nexo causal  - abordou e dilucidou o caso concreto nos seguintes, essenciais, termos:

« Estabelece o artº 493º, nº 1 do Código Civil que “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.

Esta disposição é uma das previstas no Código Civil que inverte o ónus da prova, fazendo recair sobre o autor da lesão a demonstração de que não agiu com culpa…

No caso em apreciação nos autos constatamos que os cães intervenientes no acidente, um pertencia ao réu e o outro encontrava-se à sua guarda, pelo que sobre o réu recaía o dever de vigilância dos animais. Os cães circulavam no IP3 à noite, provocando o acidente, logo, o réu responde pelos danos provocados…

considera o Réu que que cumpriu o dever de vigilância, tendo sido as Estradas de Portugal que incumpriram com o dever de garantir a segurança dos utilizadores do IP3, pois junto ao local do acidente, a vedação que confronta com o IP3, encontrava-se danificada, estando furada, cortada e tombada.

Perante a matéria supra dada como provada verificamos que o IP3 faz parte da rede nacional de itinerários principais. Nestes é proibida a circulação de peões, velocípedes e veículos de tracção animal. Tais itinerários principais são vedados em toda a sua extensão, sendo proibido o acesso a estes a partir das propriedades marginais, sendo à “Estradas de Portugal, S.A.” que incumbe o dever de zelar pela conservação e manutenção dos itinerários principais, como é o caso do IP3.

O acesso …está vedado com uma rede em arame grosso com cerca de 150 cm de altura sustentada em estacas de madeira. Junto ao local do acidente existe uma ponte superior ao IP3, através da qual é feita a passagem do trânsito de um dos lados para o outro.

Na data da ocorrência do acidente a vedação que confronta com o IP3 junto ao nó de Figueira de Lorvão, ou seja, junto ao Km 54, encontrava-se danificada, estando furada, cortada e tombada, em largos metros da sua extensão e muito próximo do local do acidente e esses estragos verificavam-se naquela zona do IP3 em ambos os sentidos da via, ou seja, quer no sentido Coimbra-Penacova, quer no sentido Penacova-Coimbra.

Não obstante se tenha provado que a vedação que delimita o IP3 estava danificada em alguns pontos, nomeadamente junto ao local do acidente, tal não basta para afastar a presunção de culpa que incide sobre o Réu.

Com efeito, foi o mesmo que incumpriu o dever de vigilância ao deixar sair os cães do interior da sua propriedade, porquanto conforme resultou das declarações da sua mulher, quando abriram o portão para entrar com o carro deixaram fugir os animais, apenas se tendo apercebido que já não estavam no interior da propriedade quando fecharam o portão, incumbindo-lhe diligenciar por impedir que, enquanto o portão se encontrava aberto, os animais saíssem para o exterior…

Acresce que, não se demonstrou o local por onde os canídeos entraram no IP3, sendo que o acidente ocorreu junto ao nó de Figueira de Lorvão, local que não é vedado para permitir o acesso e saída dos veículos.

Importa, assim, concluir que o réu não logrou afastar a presunção de culpa…»

6.2.

Este discurso argumentativo apresenta-se curial quanto à verificação da responsabilidade do réu, em si mesma considerada.

Na verdade, os factos provados acarretam quanto a ele, necessária e, até, inelutavelmente, a sua responsabilização, desde logo pela inequívoca imposição do estatuído  na 1º parte do citado artº 493º do CC, a qual ele não conseguiu contrariar.

Efetivamente, a presunção  quanto à verificação  e existência da responsabilidade do vigilante, que tal normativo encerra, implica, para o beneficiário da mesma, a desnecessidade de provar os factos e os elementos que consubstanciam tal responsabilidade, rectius a culpa do agente; e, para este, acarreta o dever/ónus, não apenas de colocar em dúvida, através de contra prova, tal presunção e as consequências dela dimanantes, mas, mais, de provar factos que inequivocamente convençam do contrario e, assim, a possam afastar.

Ora os factos apurados não encerram essa virtualidade, antes, ao invés, confirmam e sedimentam tal presunção, ou seja, que o réu postergou o seu dever de diligência e cuidado, pois que, descuidada e negligentemente, deixou escapulir os canídeos, os quais ficaram entregues a si próprios, com os potenciais perigos e prejuízos que daí podiam advir, como efetivamente advieram.

Nesta conformidade, pode concluir-se que a responsabilidade, rectius culpa, do réu, mais do que presumida, é provada e efetiva.

O recorrente parece querer afastar a sua responsabilidade, imputando-a, em exclusivo, à Estradas de Portugal.

Já se viu que tal pretensão é inaceitável, pois que, como se viu, ele foi causador do sinistro.

Resta saber se em exclusivo, se em concorrência com a EP.

Na verdade, e como é até intuitivo, a verificação de um facto ou consequência, pode ter no seu despoletamento, génese e concretização, não apenas uma causa, mas duas ou mais causas, em concorrência ou concausalidade.

Aliás, uma menos curial abordagem do réu no seu recurso prende-se com esta problemática: ele pretende afastar a sua responsabilidade invocando que ela deve ser assacada à EP.

Mas, como se vê, mesmo que a esta possa ser atribuída responsabilidade, tal não afasta a sua, já constatada, atento o supra aludido: apenas a pode repartir.

6.3.

A julgadora entendeu que a culpa e a responsabilização do acidente se deve imputar em exclusivo ao réu porque «Não obstante se tenha provado que a vedação que delimita o IP3 estava danificada em alguns pontos…(porque) não se demonstrou o local por onde os canídeos entraram no IP3, sendo que o acidente ocorreu junto ao nó de Figueira de Lorvão, local que não é vedado para permitir o acesso e saída dos veículos.».

Sempre sdr., não se corrobora este entendimento.

Como é consabido, e no que tange à problemática da causalidade adequada, importa ter presente  constituir jurisprudência pacífica do nosso mais Alto Tribunal que:

«Na concepção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa de  Enneccerus-Lehman», acolhida no artigo 563.º do Código Civil segundo a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça - o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto»

Ademais:

 «Esta doutrina … não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado».

« …nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

-- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

-- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano» -Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005, 13-03-2008 e 18.12.2013 ps. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294, 08A369 e 1749/06.0TBSTS.P1.S1 in dgsi.pt; e A. Varela, das Obrigações em Geral, 2ª ed. ps. 746/756.

Ora no caso vertente provou-se:

«O local do embate ocorreu no lancil sito do lado direito atento o sentido de marcha da condutora do IB, a cerca de 50 metros da placa identificativa do Km 54,10.

Tais itinerários principais são vedados em toda a sua extensão, sendo proibido o acesso a estes a partir das propriedades marginais.

É à “Estradas de Portugal, S.A.” que incumbe o dever de zelar pela conservação e manutenção dos itinerários principais, como é o caso do IP3.

O acesso das propriedades rústicas e urbanas marginais do IP3 ao seu traçado e em toda a sua extensão rodoviária está vedado com uma rede em arame grosso com cerca de 150 cm de altura sustentada em estacas de madeira.

Junto ao local do acidente existe uma ponte superior ao IP3, através da qual é feita a passagem do trânsito de um dos lados para o outro.

Na data da ocorrência do acidente a vedação que confronta com o IP3 junto ao nó de Figueira de Lorvão, ou seja, junto ao Km 54, encontrava-se danificada, estando furada, cortada e tombada, em largos metros da sua extensão e muito próximo do local do acidente.

E esses estragos verificavam-se naquela zona do IP3 em ambos os sentidos da via, ou seja, quer no sentido Coimbra-Penacova, quer no sentido Penacova-Coimbra.»

Tanto basta para se poder imputar à EP quota de responsabilidade na produção do acidente.

Na verdade, muito próximo do local do acidente, a cerca de cem metros, a rede protetora da estrada encontrava-se furada, cortada e tombada em ambos os lados da via.

Estamos perante dois canídeos de grande porte – pastores alemães - que têm grande agilidade e grande facilidade de movimentos e de locomoção, pelo que a distância de algumas dezenas de metros é por eles facilmente, e em curto lapso de tempo, percorrida e alcançada.

Afigura-se, pois, mais do que plausível, aceitar que quando se escapuliram, os canídeos se introduziram  na estrada através do espaço que  era suposto estar vedado pela rede e que não estava.

Mais plausível do que a justificação da julgadora por chamamento do facto de o local do acidente ser junto a um nó da estrada onde não há vedação para permitir o acesso e saída dos veículos.

È que sendo o nó de saída e acesso uma infraestrutura de algumas centenas de metros, se os cães por ele tivessem entrado, com maior probabilidade o acidente se teria verificado não junto a ele, mas nele próprio.

Ademais, não está provado se, ou em que medida, o nó está desprotegido e, assim, em que grau ou intensidade permite ou facilita o acesso a animais do presente jaez.

Pelo que concluir a Srª Juíza, implicitamente, que foi por ali, ou mais provavelmente por ali, que os cães se introduziram, é conclusão inadmissível, ou, concedendo, menos plausível, até porque se alcandora em facto que não está provado ou suficientemente provado.

Antes pelo contrário; perante os factos apurados e a sensata e sagaz interpretação que deles deve ser efetivada, tem de concluir-se que com muito maior probabilidade os cães entraram no local onde a rede estava estragada.

Decorrentemente, perante os factos e a lei, urge outrossim imputar responsabilidade na verificação do sinistro à EP.

Tudo visto e ponderado julga-se equitativo e justo repartir a responsabilidade na proporção de metade para o réu e metade para a EP.

6.2.

Segunda questão.

6.2.1.

Clama o recorrente que a condenação pela privação do uso é ilegal porque não se apurou que o veículo quedasse imobilizado e impossibilitado de circular.

Tal impossibilidade, mais do que um facto concreto, é um facto conclusivo que tem de estar alicerçado e advir de acervo factual material.

Ora provou-se:

«O veículo da Autora ao embater no lancil de protecção foi amolgado, quer na frente, quer na traseira, atingindo nomeadamente os apoios do motor, radiador, farolins, faróis, grelha, capot, barras de tensão, carter do motor, transmissão, chaparia e pintura.»

Perante a magnitude da afetação da segurança da circulação do carro que, seguramente ou com muita probabilidade, estes danos acarretaram, é mais do que admissível a conclusão de que ele ficou impossibilitado de circular, ou, ao menos, que à autora não era exigível que com ele circulasse em tal estado.

Efetivamente, o juiz não deve ater-se, seca e formalmente, apenas à consideração dos factos estritamente apurados, mas antes podendo/devendo deles retirar as consequências que, sem os desvirtuar, são as suas normais e lógicas decorrências.

Nisto consistindo, aliás, quiçá o mais nobre e responsabilizante aspeto do seu múnus.

6.2.2.

Quanto ao dever de indemnização pela privação do uso.

Sobre este tema desenham-se duas posições na nossa jurisprudência.

Uma, minoritária, no sentido de que a mera indisponibilidade do bem constitui, só por si, dano indemnizável, independentemente da sua utilização efetiva – cfr. Ac. do STJ de  08.05.2013, p. 3036/04.9TBVLG.P1.S1

 Outra, maioritária, que propende para a obrigação de ser provada a necessidade do veículo e a existência de prejuízos; porém sem a exigência de os demonstrar minuciosamente, concedendo-se algum alívio probatório, pois que os danos decorrentes de tal privação, dimanam, desde logo - perante a premência da necessidade do automóvel na moderna sociedade -, das regras da lógica e da experiencia comum - Cfr. Acs. do STJ de 13-12-2007, dgsi.pt, p.07A3927, de 16-09-2008, p.8A2094,  de 30-10-2008, p.08B2662, de 30-10-2008  p. 07B2131 e  de 10.01.2012, p. 189/04.0TBMAI.P1.S1., de  04.07.2013, p. 5031/07.7TVLSB.L1.S1 e de 30.04.2014, p. 353/08.2TBVPA.P1.S1.

Adere-se a esta última corrente, na consideração, não, apenas, de se tratar de posição maioritária, mas, também, de ela se enquadrar melhor no nosso sistema jurídico, que faz depender a obrigação de indemnizar da existência concreta de danos.

É o que resulta, desde logo, do princípio geral da responsabilidade civil, estabelecido no n.º 1 do artigo 483.º do CCivil, e, depois, dos preceitos específicos sobre a matéria, nomeadamente os artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º.

Na verdade, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu  -artº 563º do CC.

Assim, a simples privação da possibilidade de uso do veículo  não é fator de atribuição de equitativa indemnização,  sendo ainda necessário demonstrar a concreta utilização que o lesado daria ao mesmo durante o período em que não o pode utilizar, a não ser que alegue outros prejuízos para além dessa privação.

É que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respetivo valor em dinheiro.

Acresce que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos – artº 566º, nº 2, do CC.

A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afetada.

Assim a mera privação do uso de um veículo automóvel é insuscetível de, só por si, fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, pois que pode não ter qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante.

Porque, vg. existiam outros meios de transporte à  disposição do dono ou porque acabou por deles não necessitar.

Donde que seja um ónus do lesado não apenas a alegação em abstrato de danos decorrentes da privação da viatura por falta de reparação da entidade responsável, sendo necessária a alegação concreta das situações em que a viatura deixou de ser fruída, mesmo que essa fruição ou gozo se traduza em atividades não lucrativas e se enquadre em aspetos úteis, lúdicos ou beneméritos.  

Isto, repete-se, sem prejuízo de entendermos que a prova a efetivar pelo lesado deve ser algo aliviada, não devendo exigir-se como reportada a factos minuciosos, pois que efetivamente, as regras da experiencia e da normalidade das coisas nos inculcam a ideia que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económico-social, a perda do uso de um veículo automóvel, por regra, acarreta afetações negativas e até prejuízos para o seu dono- Cfr. Ac. do STJ de 15.11.2011, dgsi.pt., p. 6472/06.2TBSTB.E1.S1 e de 30.04.2014, citado.

No caso  sub judice  provou-se:

25) A Autora utilizava e utiliza o referido veículo nas suas deslocações para o seu local de trabalho.

26) Para além disso utilizava e utiliza o veículo para as suas saídas, só, com amigos e familiares, e para outros compromissos pessoais e profissionais.

27) A Autora utilizava e utiliza ainda o seu veículo para lazer e descanso, bem como, no mais que necessita.

28) Durante este período e porque não tinha dinheiro para comprar outro veículo para substituir o sinistrado teve de se socorrer de transportes alternativos para se poder deslocar no exercício daquelas actividades supra descritas.

29) Efectivamente, tem-se socorrido de transportes públicos, automóveis de familiares ou de amigos.

 Tanto basta, como é evidente, para se concluir que a autora necessitava do carro e teve transtornos e prejuízos com a sua imobilização, assistindo-lhe, pois, jus a ser ressarcida pelos mesmos.

6.2.3.

Mais defende o insurgente que a indemnização:

« é manifestamente excessiva a indemnização arbitrada…porquanto em situações como esta de dano evolutivo, o princípio da boa fé, …impõe certas obrigações aos que nelas participam (como é, in casu, o lesado), uma das quais é precisamente o chamado dever de mitigar e de diminuir os danos ou, pelo menos, de conter o seu agravamento, devendo considerar-se a existência de culpa do lesado se não adoptar as medidas oportunas para o efeito (designadamente, mandando reparar a viatura e depois peticionando indemnização pelos respectivos custos), mantendo uma atitude de inércia e total passividade.».

E, em tese, assim é.

Na verdade, o titular de um direito deve exercê-lo não desmedida, arbitraria e, quiçá, atribiliáriamente, mas antes moderada e comedidamente, não podendo agravar, injustificadamente, a posição do devedor.

Os magnos  princípios da  boa fé e do abuso do direito são travões que, em ultima análise ou ratio, e se norma concreta inexistir, podem ser chamados à colação para obstar ou tornar ineficaz uma atuação desmedida e desconsiderante do accipiens por banda do solvens.

A inércia em propor a ação, a qual apenas é instaurada muito tempo após o sinistro para, depois, se pedir vultuosa indemnização pela privação do uso do veículo, pode configurar uma situação de iniquidade e, destarte, ser ilícita ou ilegítima.

Tal, porém, somente assim pode ser taxada em situações de inequívoca prova nesse sentido de factos concretos que tal possa clamar.

Tais factos podem ater-se ao impetramento de um valor a este título que seja exorbitante, desmedido e desproporcional,  designadamente por comparação com o valor dos demais danos, vg. a reparação.

Ou quando o desacordo entre o lesado e a ré – p. ex. segurador – apenas se reporta aos danos e a diferença quantitativa que os separa não é relevante ou acentuada, mas minudente.

Ou quando o lesado, no decurso das negociações, assume uma atuação omissiva ou não colaborante, retardando o definitivo conhecimento das posições das partes, e, depois, perante este e não concordando, instaura a ação após o decurso de largo lapso de tempo: largos meses ou até anos.

Mas já não constitui uma inercia ilegítima quando o autor propõe a ação dilatadamente no tempo após o sinistro se inexiste acordo quanto a culpa do sinistro e à responsabilização pelo mesmo.

 Ou a diferença de posições quanto aos danos indemnizáveis se reporta a valores significativos.

 Ou as negociações se prolongam no tempo sem que o lesado tenha tido atitude laxista, não colaborante ou leonina.

 Ou quando o tempo seja necessário para o lesado coligir prova ou organizar a defesa da sua futura posição processual.

Assim, pode dizer-se que, por via de regra:

«… a indemnização pela privação do uso de um veículo acidentado deverá ter como limites temporais, por um lado, a ocorrência do sinistro e, por outro, o pagamento efectivo da indemnização» - Ac. do STJ  de 16.04.2013, p. 7002/08.7TBVNG.P1.S1 

Sendo que:

«O facto objetivo de o lesado pedir indemnização pela privação do uso de veículo sinistrado algum tempo depois do sinistro não é suficiente para se considerar que tal atuação constitui um facto culposo que concorre para o agravamento dos danos traduzidos nos custos decorrentes da privação do uso (art. 570.º do CC)» - o Ac. do STJ de  28.11.2013, p. 161/09.3TBGDM.P2.S1.

E sendo certo que a seguradora que invoca a inercia ilegítima do lesado dela beneficia, tem ela o ónus de provar os factos que tenham virtualidade e força bastante para a consubstanciar.

No caso sub judice.

A ré funda este conspeto da sua pretensão recursiva porque entende que a autora deveria ter mandado reparar o veículo e pedir depois em juízo o preço da reparação; considerando, assim, que o lapso temporal a relevar a este título não devem ser os seis meses perspetivados na sentença, mas antes trinta dias a contar da data do embate.

Quanto a esta matéria, provou-se:

23) Em face da recusa do Réu R (…)i em reparar a viatura sinistrada, a Autora solicitou no âmbito do seguro de protecção jurídica a sua intervenção, sendo que em Março de 2012 foi informada que este mantinha a recusa em indemnizar a Autora.

24) Por via disso decidiu realizar a reparação do mesmo, tendo que solicitar um empréstimo a familiares pois não dispunha da quantia em questão.

Por aqui se vê que os factos apurados não podem alicerçar esta pretensão recursiva.

Não apenas a ré não provou que a autora retardou, abusivamente, a reparação do carro, como se provou que ela a efetivou  em tempo perfeitamente aceitável.

Pois que a ré, desde a data do acidente - 28 de setembro de 2011 - e até março de 2012, se recusou a efetivar a reparação, à qual a autora, e como os autos demonstram, tinha direito.

Sendo que após esta recusa, e constituindo a reparação um fardo pesado para a autora, pois que até teve de pedir empréstimo para o efeito, ela reparou o carro.

Não assiste, pois, ponta de razão à ré.

Antes pelo contrário tendo a autora agido com celeridade, máxime porque realizou  a reparação mesmo que esta tenha exigido para ela um esforço financeiro.

O que, inclusive, prova que ela, efetiva e prementemente, necessitava do veículo.

6.2.4.

Finalmente no atinente à pretensão da redução da taxa diária.

A mesma outrossim não tem cabimento.

Esta verba é, essencialmente, e para além dos concretos valores que se possam apurar em cada caso, fixada via juízo équo.

Certo é que equidade não equivale a arbitrariedade e incerteza, devendo existir em cada caso elementos factuais bastantes  para respaldar e para se poder sindicar –  obviamente não com minucia, mas apenas dentro dos limites admissíveis – o valor fixado – cfr. Ac. do STJ de 03.10.2013, p. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1

In casu provou-se:

28) Durante este período …teve de se socorrer de transportes alternativos para se poder deslocar no exercício daquelas actividades supra descritas.

29) Efectivamente, tem-se socorrido de transportes públicos, automóveis de familiares ou de amigos.

Tanto basta para se concluir que a quantia de 12 euros é  admissível, porque adequada aos presumidos gastos diários que a autora fez, em média, em transportes públicos, ou em automóveis de familiares e amigos.

 Sendo que, este vínculo familiar e afetivo não pode fundamentar o entendimento de que a autora aqui não teve custos, pois que, o uso do carro de tais pessoas não deixou de representar para a demandante uma dívida, quanto mais não seja, de gratidão, o que, na nossa sociedade que se pretende humanista e retributiva, também releva.

Ademais, tal quantia é, acrescidamente, aceitável quanto é certo que ela queda perto do limite mínimo que a jurisprudência costuma fixar e admitir, pois que nesta se têm arbitrado valores que vão dos sete euros e meio aos vinte e cinco euros – cfr. quanto a este valor, o Ac. do STJ de 16.04.2013, p. 7002/08.7TBVNG.P1.S1.

 

(im)procede, parcialmente, o recurso.

7.

Sumariando:

I - Provando-se, por um lado, que o detentor de dois canídeos de raça pastor alemão postergou o seu dever de vigilância sobre os mesmos, e, por outro lado, que «muito próximo do local do acidente», a cerca de cem metros, no IP3,  a rede que devia impedir o acesso a tal via estava furada e tombada em «largos metros da sua extensão», o sinistro deve ser imputado, em concausalidade, aquele  detentor e à Estradas de Portugal.

II -  A indemnização pela privação do uso de automóvel exige a prova, posto que aliviada, dado tal ser facto quase notório, da sua necessidade, bem como do prejuízo que da privação decorre, o qual, à mingua da sua concreta definição, pode ser, essencialmente, fixado via juízo équo, dentro de limites que os factos apurados e os valores arbitrados pela jurisprudência tornem admissíveis.

II - O lapso temporal a considerar para tal indemnização é o que decorre entre a data do sinistro e pagamento efetivo da indemnização, salvo se a ré provar que o lesado atrasou, deliberada ou injustificadamente, a propositura da ação, ou lhe era exigível que, mesmo antes da sua instauração, reparasse o veículo.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente, fixar a responsabilidade do réu em 50% e, assim, condená-lo agora no pagamento à autora da quantia de 1.943,02 - mil novecentos e quarenta e três euros e dois cêntimos -, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação, e dos  vincendos até integral pagamento.

Custas na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2016.02.16.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos