Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3077/10.7T2OVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
PRÉDIO URBANO
PARTE INTEGRANTE
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA, OVAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 204.º, N.º 1, AL. E) E N.º 2; E 205.º DO CC.
Sumário: 1. O tribunal de recurso poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos, podendo sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico.

2. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

3. Constitui parte integrante dum imóvel urbano, para efeito de cobertura abrangida por contrato de seguro - e não abrangida pela cláusula de exclusão de móveis - uma escultura em bronze, representando uma escada de linhas irregulares, que foi fixada por dois espigões de aço numa sapata de betão armado com 1mx1m, com 50 cms de espessura, construída para o efeito num dos alçados duma moradia, com um peso de 150 kgs e uma altura de 4,5 metros.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A..., L.DA, pessoa colectiva n.º (...), com sede na (...)em Ovar, intentou a presente acção, com a forma de processo sumária, contra B..., Companhia de Seguros, S.A., sociedade anónima com sede na (...)em Lisboa, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de €:20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tal, alega, em síntese, que:

- Com vista à conclusão de uma moradia unifamiliar, sita no (...), Ovar, contactou o M... para obter financiamento bancário;

- A aludida instituição bancária condicionou a concessão de tal financiamento à celebração, com a Ré, de um contrato de seguro “multi riscos“, tendo por objecto a referida moradia;

- Em consequência, a Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º (...) o qual cobria, para além do mais, actos de vandalismo e furto ou roubo, com garantia até 100 % do capital seguro, com uma franquia de 10%;

- Na referida moradia, a Autora implantou uma escultura em bronze, no valor de €:20.000,00 (vinte mil euros), a qual, no inicio de Março de 2010, desapareceu da sapata em betão armado onde se encontrava fixada;

- Após ter comunicado tal evento à Ré, esta comunicou que este estava excluído da cobertura da apólice, por força do n.º 3, alínea c), das Condições Gerais da Apólice;

- As cláusulas do contrato estavam previamente estabelecidas, não tendo existido qualquer negociação, pelo que se aplica o regime das cláusulas contratuais gerais;

- A cláusula invocada pela Ré para excluir a sua responsabilidade nunca foi comunicada à Autora;

- Mesmo que assim se não entenda, a referida cláusula não se aplica ao evento aqui em causa, que visa afastar a responsabilidade da seguradora no caso da subtracção de pequenos bens móveis deixados no exterior, e não de uma escultura, com o peso de 150 Kgs, que se encontrava chumbada à moradia,

A Ré apresentou contestação, a fls. 23 e segs, aceitando a existência e validade do invocado contrato de seguro e que só com a participação do alegado furto é que a autora lhe deu conhecimento da escultura pretensamente furtada, sendo que o seguro celebrado apenas cobria o imóvel, bem como que à autora foram lidas e explicadas todas as cláusulas do contrato em causa, designadamente a que se refere à exclusão dos “objectos existentes em logradouros, terraços, jardins, anexos não fechados ou varandas”,pelo que, mesmo a ter tal objecto sido furtado, o que impugna, a sua responsabilidade mostra-se excluída.

            A concluir-se pela sua responsabilidade, sempre terá de aplicar-se a franquia prevista de 10%.

            Pugna, em consequência, pela improcedência da acção.

Foi proferido despacho saneador tabelar e dispensada a selecção da matéria de facto assente e controvertida (cfr. fls. 44).

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento a qual se realizou de acordo com o formalismo legal, com gravação dos depoimentos prestados, tendo o Tribunal fixado a matéria de facto dada como provada e não provada, sem que houvesse reclamações, cf. fl.s 49 a 53.

No seguimento do que foi proferida a sentença de fl.s 54 a 61, na qual se decidiu o seguinte:

“Destarte, condeno a Ré B ... Companhia de Seguros, S.A., a pagar à Autora A ..., L.da a quantia de €:18.000,00 (dezoito mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento.

Custas por Autora A ..., L.da e B ..., Companhia de Seguros, S.A. na proporção do respectivo decaimento.”.

            Inconformada com a mesma, interpôs recurso a ré B ..., recurso, esse, admitido como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos (cf. despacho de fl.s 422), havendo a acrescentar que o mesmo tem efeito meramente devolutivo, cf. artigo 692.º, n.º 1, do CPC, finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões):

            1. Em face da prova produzida, os factos constantes do artigo 15.º da matéria dada como provada na douta sentença devem ser ou dados como não provados ou, pelo menos, alterada a redacção dos mesmos para a seguinte forma:

            “Em dia e hora que se desconhece, situado no início do mês de Março de 2010, uma escultura que se encontrava junto ao alçado norte da referida moradia deixou de estar em tal local.”.

            2. De nenhum dos documentos juntos aos autos resulta que alguma vez a A. tivesse dado conhecimento da existência da escultura alegadamente furtada e nesse sentido também depôs a testemunha C.... A instâncias do mandatário da R. (aos 7 m e 38 s) quando questionada sobre se chegou qualquer informação sobre a existência de tal objecto, respondeu que “apenas com a participação do sinistro).

            3. Razão pela qual entende a Apelante que deverá ser aditado aos factos dados como provados um artigo com a referida redacção: “Só por via da participação do sinistro teve a R. conhecimento da existência da escultura alegadamente furtada, já que nunca a A. havia comunicado à R. que tinha implantado no jardim do imóvel seguro uma obra de arte”.

            4. Mesmo entendendo-se que não deve ser alterado o artigo 15.º da matéria de facto dada como provada, mantendo-se por isso a sua redacção, entende a Apelante que jamais poderá, por tal facto, ser condenada nos presentes autos.

            5. Na realidade, é dado como provado que “pessoa ou pessoas desconhecidas saltaram o muro da casa e destruíram a escultura, levando consigo os destroços da mesma”.

            6. É um facto que, face à ausência de qualquer prova, não logrou a A. fazer qualquer prova de quem praticou tais actos – se é que os mesmos aconteceram – e, assim sendo, não logrou provar que os mesmos consubstanciem um furto ou qualquer acto de vandalismo, ou se, pelo contrário – e no limite – a escultura foi retirada do local pela própria A.

            7. Assim, mesmo que se tenha por assente – o que só para efeito de raciocínio se admite – a matéria vertida no artigo 15.º dos factos assentes, nunca daí se poderia extrair fundamentos para condenar a R. ao abrigo da cobertura contratada de “Actos de vandalismo, furto ou roubo”, porque, pura e simplesmente, se a escultura tivesse sido retirada do local onde se encontrava pela própria A. nunca tal situação se poderia qualificar como tal.

            8. Face ao exposto, deveria, mesmo, tendo a matéria vertida no referido artigo 15.º dos factos dados como provados ter a R. sido absolvida do pedido, devendo a sentença ser alterada nesse sentido.

            9. Por outro lado, entende a Apelante que a escultura alegadamente furtada não faz parte integrante do imóvel, nos termos do disposto no artigo 204.º, n.º 3, CC e assim, não poderá considerar-se abrangida pelo seguro já que se tratava de um seguro meramente do edifício.

            10. Apesar de tal peça se encontrar fixada numa base em betão no jardim do edifício, isto não faz com que a mesma possa ser qualificada como parte integrante do imóvel.

            11. Podem ser qualificadas como tal, por natureza e pela forma como desempenham uma função específica e directamente relacionada com um imóvel, as portas, as peças sanitárias ou outras semelhantes, mas já nunca o serão, por exemplo, os candeeiros apesar de se encontrarem fixados ao tecto.

            12. Encontra-se, justamente, numa situação semelhante a estes últimos a peça alegadamente furtada, que desempenhava uma função meramente decorativa e estética e, como tal, constituiria tal objecto parte do recheio ou conteúdo do edifício e, deste modo, não se encontrava abrangido pelo contrato de seguro celebrado.

            13. Por último, face à matéria dada como não provada não resulta que a referida escultura pertencesse à A. – mas sim ao escultor E..., nem que tivesse dado conhecimento à R. que a mesma integrava o imóvel seguro.

            14. Não resultou igualmente provado que a A. tivesse dado conhecimento à R. que a mesma integrava o imóvel seguro e, assim, se encontrasse abrangida pelo mesmo.

            15. Desta forma, são evidentes os erros de julgamento que levaram à condenação da R., devendo a sentença ser alterada, absolvendo-se a R. do pedido, por falta de prova dos factos alegados na petição inicial que permitiriam enquadrar a situação num caso de furto ou roubo ou num acto de vandalismo, bem como de que a peça supostamente furtada pertencia à A. e, assim, nos riscos cobertos pelo contrato de seguro.

            Termina, peticionando a procedência do seu recurso, com a consequente absolvição do pedido.

           

            Contra-alegando, a autora, pugna pela manutenção da decisão recorrida, designadamente, porque a prova produzida foi bem apreciada, devendo manter-se a factualidade dada como provada e não provada; que a existência e comprovação do furto não está dependente da identificação do respectivo autor, nem a cobertura contratada disso depende, para além de que os serviços da R. averiguaram o que acharam por conveniente, tendo esta recusado a existência da sua responsabilidade, com base na referida exclusão.

            Colhidos os vistos legais, há que decidir.        

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada, relativamente ao item 15.º dos factos dados como provados na sentença recorrida;

B. Se deve aditar-se aos factos dados como provados na sentença recorrida um item com a seguinte redacção:

“Só por via da participação do sinistro teve a ré conhecimento da existência da escultura alegadamente furtada, já que nunca a A. havia comunicado à R. que tinha implantado no jardim do imóvel seguro uma obra de arte”;

C. Se não está demonstrado o furto da referida obra de arte;

D. Se a escultura não faz parte integrante do imóvel e;

E. Se não resulta provado que a referida escultura pertencesse à A.

            É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1.º

Com vista à conclusão da construção de uma moradia unifamiliar sita no (...), Ovar, a Autora contactou o M ... para a concessão de um financiamento.

2.º

O M ... condicionou a concessão do financiamento à celebração de um contrato de seguro multirriscos com a Ré B ..., Companhia de Seguros, S.A., cujo objecto era a moradia em causa.

3.º

A Ré é uma empresa do mesmo grupo económico do M ....

4.º

Conjuntamente com a proposta de financiamento foi apresentada ao Autor a proposta de seguro apara a respectiva subscrição.

5.º

Os formulários da proposta estavam disponíveis no Balcão do M ....

6.º

A Autora celebrou o contrato de seguro titulado pela Apólice n.º 1602032.

7.º

O valor do capital seguro é de €:166.000,00 (cento e sessenta e seis mil euros).

8.º

Com base nesse capital eram calculados os prémios do seguro.

9.º

De entre as coberturas base constava: Actos de vandalismo furto ou roubo com garantia até 100 % do capital seguro com franquia de 10 %.

10.º

Em todas as casas cuja construção levava a efeito, a Autora implantava uma escultura, contratando para o efeito os serviços de um escultor.

11.º

Cada escultura era concebida de modo a ser integrada e harmonizada no conjunto arquitectónico da moradia.

12.º

Para a criação da escultura a implantar na moradia objecto do contrato de seguro, a Autora contratou os serviços do escultor E....

13.º

O referido escultor concebeu uma escultura em bronze representando uma escada de linhas irregulares.

14.º

A escultura foi fixada por dois espigões de aço numa sapata de betão armado com 1mx1m, com 50 cms de espessura, construída para o efeito no alçado norte da moradia.

15.º

Em dia e hora que se desconhece, mas situado no início do mês de Março de 2010, pessoa ou pessoas desconhecidas saltaram o muro da casa e destruíram a escultura, levando consigo os destroços da mesma.

16.º

O Representante Legal da Autora deu conhecimento do desaparecimento da escultura à Policia de Segurança Pública, tendo, posteriormente participado o evento à Ré.

17.º

O valor da escultura era de €:20.000,00 (vinte mil euros).

18.º

Após averiguações, a Ré comunicou à Autora que o evento se encontrava excluído da cobertura da apólice, sustentando tal posição no disposto no n.º 3, alínea c), das Condições Gerais do Contrato de Seguro.

19.º

A escultura tinha um peso de 150 Kgs. e uma altura de 4,5 metros.

            A. Incorrecta análise e apreciação da prova – reapreciação da prova gravada – relativamente ao item 15.º dos factos dados como provados na sentença recorrida.

Alega a ré que dos depoimentos prestados pelas testemunhas D ..., E ...e F ..., conjugados com o facto de apenas constar dos autos a declaração da PSP de Aveiro, relativa à participação do furto, não se pode dar como demonstrada a existência de tal furto mas, quando muito, que “em dia e hora que se desconhecem, situado no mês de Março de 2010, uma escultura que se encontrava junto ao alçado norte da referida moradia deixou de estar em tal local”.

            Posto isto, e em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção da prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2.ª instância.

Toda e qualquer decisão judicial em matéria de facto, como operação de reconstituição de factos ou acontecimento delituoso imputado a uma pessoa ou entidade, esta através dos seus representantes, dependente está da prova que em audiência pública, sob os princípios da investigação oficiosa (nos limites e termos em que esta é permitida ao julgador) e da verdade material, se processa e produz, bem como do juízo apreciativo que sobre a mesma recai por parte do julgador, nos moldes definidos nos artigos 653, n.º 2 e 655, n.º 1, CPC – as já supra mencionadas regras da experiência e o princípio da livre convicção.

Submetidas ao crivo do contraditório, as provas são pois elemento determinante da decisão de facto.

Ora, o valor da prova, isto é, a sua relevância enquanto elemento reconstituinte dos factos em apreço, depende fundamentalmente da sua credibilidade, ou seja, da sua idoneidade e autenticidade.

Por outro lado, certo é que o juízo de credibilidade da prova por declarações, depende essencialmente do carácter e probidade moral de quem as presta, sendo que tais atributos e qualidades, como regra, não são apreensíveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto directo com as pessoas, razão pela qual o tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido.

Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência”.

Estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.

Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão.

As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador.

A comunicação vai muito para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se inserem, pois como informa Lair Ribeiro, as pesquisas neurolinguísticas numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder - “Comunicação Global, Lisboa, 1998, pág. 14.

Já Enriço Altavilla, in Psicologia Judiciaria, vol. II, Coimbra, 3.ª edição, pág. 12, refere que “o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”.

Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento?

Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação.

Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância – cf. Acórdão do STJ, de 22 de Fevereiro de 2011, in CJ, STJ, ano XIX, tomo I/2011, a pág. 76 e seg.s.

Tendo por base tais asserções, dado que se procedeu à gravação da prova produzida, passemos, então, à reapreciação da matéria de facto em causa, a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar, em conformidade com o disposto no artigo 712, n.º 1, al. a), do CPC., pelo que, nos termos expostos, nos compete apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de 1.ª instância, face aos elementos de prova considerados (sem prejuízo, como acima referido de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção).

Vejamos, então, a resposta posta em causa pela ora recorrente, nas respectivas alegações de recurso.

Alteração da resposta dada ao item 15.º dos factos dados como provados na sentença recorrida.

           

Para melhor esclarecimento e facilitar a decisão desta questão, passa-se a transcrever o teor de tal item:

“15.º

Em dia e hora que se desconhece, mas situado no início do mês de Março de 2010, pessoa ou pessoas desconhecidas saltaram o muro da casa e destruíram a escultura, levando consigo os destroços da mesma.”.

A redacção deste item corresponde ipsis verbis ao alegado no artigo 17.º da petição inicial, o qual, assim, foi dado integralmente como provado, tal como resulta de fl.s 51.

O M.mo Juiz a quo motivou tal resposta da seguinte forma (cf. fl.s 52):

“Quanto à restante factologia, (em que se integra a ora em análise) a sua prova teve por base, antes de mais, o depoimento das seguintes Testemunhas:

- D..., autor do projecto de arquitectura da moradia e habitual colaborador da Autora, o qual confirmou a instalação da escultura e a sua ulterior subtracção. Pronunciou-se, igualmente, sobre a forma como tal obra-de-arte se encontrava fixada e o “modus operandi” necessário para a retirar, atentas as suas dimensões e peso.

Referiu conhecer o autor da escultura, bem como a sua cotação no mercado de arte, encontrando-se, assim, habilitado a indicar um valor para a obra;

- E..., artista plástico, autor da escultura aqui em causa, o qual confirmou a execução da obra e a sua colocação na moradia. Referiu que a escultura foi expressamente concebida para aquele espaço, foi lá colocada da forma constante do ponto 14.º, tem o peso e dimensões referidos em 19.º e foi transaccionada pelo valor referido em 17.º. Pronunciou-se, igualmente, sobre o desaparecimento da escultura. Relatou, por fim, o seu percursoprofissional, enquanto artista plástico;

- H..., galerista, o qual se pronunciou sobre a obra e a reputação artística do escultor E.... Em face de tal conhecimento, a Testemunha indicou o valor de mercado aproximado da escultura;

- F ..., o qual assistiu à colocação da escultura no local, pronunciando-se sobre o seu modo de fixação.

As Testemunhas “supra” indicadas demonstraram um conhecimento directo e circunstanciado da matéria a que foram inquiridas, respondendo, prontamente, aos esclarecimentos que a sua versão dos factos foi suscitando.

Foi, ainda, tido em conta o fotograma de fls. 15, representando a escultura.”.

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pela recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que a supra mencionada resposta seja modificada ou alterada, como proposto.

Ora, ouvidos, na íntegra, todos os depoimentos prestados pelas testemunhas, resulta que as mesmas, de relevante, referiram o seguinte:

D ..., disse que a escultura estava fixa numa sapata de betão, com espigões de aço e que soube do furto da escultura pelos jornais, leu tal notícia num jornal.

Mas disse mais do que isto, já que, igualmente, mencionou que a escultura não estava no local onde tinha sido colocada e que para a levarem “devem-ma ter amarrado com alguma coisa e puxado”.

E..., autor da escultura, referiu que a mesma tinha sido colocada através de espigões de aço, numa sapata em betão e foi informado de que a escultura tinha sido furtada.

F ..., referiu que o representante da autora lhe comunicou no café, que a escultura tinha sido roubada e até foi, na companhia do representante da autora, falar com um individuo que compra sucatas (que identificou), para tentar saber do destino da peça e posteriormente até foram a várias sucatas da região, com o mesmo objectivo.

G..., que na qualidade de perito, a mando da ré, efectuou a peritagem no caso em apreço, referiu que foi ao local e visionou a sapata de betão onde lhe foi indicado estar colocada a escultura, denotando esta orifícios no betão, no local onde estariam os espigões que encaixavam a peça na sapata.

A isto, de acrescentar a carta de fl.s 17, da autoria da ré, finda a averiguação que levou a cabo, na qual esta refuta a sua responsabilidade na peticionada indemnização, não com base na inexistência de furto mas sim no facto de que “o sinistro participado enquadra-se na exclusão prevista no n.º 3, alínea c) da cobertura de furto ou roubo, que exclui os objectos existentes em logradouros, terraços ou jardins”.

Assim, conjugando todos estes elementos, é de dar como provada a existência do furto de tal objecto, que ali foi colocado e dali foi retirado, por estranhos, nas relatadas condições, ninguém referindo que a escultura ainda lá se encontra, não obstante lá ter estado colocada.

Assim, improcede quanto a esta questão, o presente recurso, em função do que se mantém a redacção do referido item 15.º.

B. Se deve aditar-se aos factos dados como provados um item com a seguinte redacção:

“Só por via da participação do sinistro teve a Ré conhecimento da existência da escultura alegadamente furtada, já que nunca a A. havia comunicado à R. que tinha implantado no jardim do imóvel seguro uma obra de arte”.

Para tal, alega a recorrente que tal facto resulta do depoimento da testemunha C..., que o declarou.

No entanto, a veracidade de tal facto resulta, desde logo, da posição assumida nos autos pela própria autora.

Efectivamente, esta, logo na petição inicial (artigos 18.º e 19.º) apenas alegou que logo que deu falta da escultura deu conhecimento à PSP e posteriormente, participou o evento à ré.

E em sede de contra-alegações, refere que tal facto é irrelevante para a decisão da questão, uma vez que a responsabilidade da ré resulta do conteúdo do contrato de seguro celebrado entre ambas as partes e não lhe incumbia a obrigação de efectuar “tantas comunicações quanto os materiais e bens que, à medida da construção, iam sendo integrados e colocados no imóvel”.

Ora, regendo-se, como se rege, o contrato de seguro, pelo conteúdo da apólice (artigo 426.º do Código Comercial), o que releva é o risco contratado, até porque compulsada a mesma, dela não resulta para a segurada qualquer obrigação especial de comunicar a existência de determinados bens, estando definido na sua cláusula 1.ª qual o âmbito dos bens seguros, definindo-se os mesmos como “Bens móveis ou imóveis designados nas Condições Particulares” – cf. fl.s 29 dos autos.

Das Condições Particulares (4.ª) – cf. fl.s 28, resulta que os Bens E Objectos Seguros, são os que se localizam na Estrada do (...), lote 25, 3880-999, Ovar.

Assim sendo, o que assume relevo é a questão de saber se a escultura em causa faz ou não parte dos bens seguros, sendo a aludida comunicação irrelevante.

Pelo que, não obstante tal facto se poder ter por assente, carece de relevância para a decisão da questão sub judice, razão pela qual, não se acrescenta ao acervo da factualidade provada.

Consequentemente, no que toca a esta questão, tem o presente recurso, igualmente, de improceder.

C. Se não está demonstrado o furto da referida escultura.

            Com vista a tal desiderato, considera a recorrente que em virtude de a autora não ter feito a prova de quem foram as pessoas que furtaram a escultura, podendo, até, no limite, concluir-se que foi a própria autora a retirá-la do local, não se pode falar da existência de crime (furto).

            Na cláusula 5.ª das Condições Gerais da Apólice define-se furto como sendo o “Acto intencional de subtrair coisa móvel alheia, com intenção ilegítima de apropriação, para si ou para outra pessoa”, em qualquer das circunstâncias ali descritas.

            No item 15.º dos factos provados, consta que “pessoa ou pessoas desconhecidas saltaram o muro da casa e destruíram a escultura, levando consigo os destroços da mesma”.

            Tratava-se de uma escultura em bronze (item 13.º) e como é óbvio o que daqui resulta é que os autores do furto levaram, como pretendiam o bronze de que era feita a escultura, o que configura a existência de furto, tal como definido na apólice.

            Por outro lado, se foram pessoas ou pessoa desconhecidas, não foi a autora, que era conhecida.

            Sendo esta a interpretação a dar a tal resposta.

            Concluindo, verificou-se o furto da referida escultura, sendo o furto um dos riscos previstos e cobertos no contrato de seguro outorgado entre as ora partes.

            O que, igualmente, acarreta a improcedência desta questão do recurso.

           

            D. Se a escultura não faz parte integrante do imóvel.

            No que a tal concerne alega a recorrente que a escultura não faz parte do objecto do seguro, por não fazer parte integrante do imóvel, atento o disposto no artigo 204.º, n.º 3, do Código Civil, a qual desempenhava uma função meramente decorativa e estética que, por isso, constituiria parte do recheio ou conteúdo do edifício.

            Na sentença recorrida, para além de se considerar que não tinha aplicação ao caso em apreço a cláusula de exclusão prevista no artigo 3.º, al. c), da cláusula 5.ª, de acordo com a qual se consideravam excluídos da cobertura de furto “os objectos existentes em logradouros, terraços, jardins, anexos não fechados e varandas” e cujo segmento não foi impugnado em recurso (pelo que se tem por definitivamente resolvida tal questão), considerou-se que, ainda que o fosse, não se aplicaria a um objecto com as dimensões da escultura em causa, por aquela exclusão se reportar a objectos de pequeno e médio porte e facilmente transportáveis.

            Esta questão prende-se com a inaplicabilidade da aludida exclusão, pelo que, pelas mesma razões ora apontadas, nada mais há a referir.

            Mas como começámos por referir, para além desta razão, entendeu-se na sentença recorrida que o evento danoso se encontrava coberto pela garantia do contrato de seguro em causa, com o fundamento em que a escultura constitui parte integrante do imóvel, nos termos do artigo 204.º, n.º 3, do Código Civil, beneficiando da garantia a ele respeitante, contra o que se insurge a recorrente.

            Como resulta dos itens 13.º, 14.º e 19.º, tratava-se de uma escultura em bronze, representando uma escada de linhas irregulares, que foi fixada por dois espigões de aço numa sapata de betão armado com 1mx1m, com 50 cms de espessura, construída para o efeito no alçado norte da moradia, com um peso de 150 kgs e uma altura de 4,5 metros.

            Conforme o disposto no artigo 204.º, n.º 1, al. e) e 3 do Código Civil, são coisas imóveis “As partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos”, considerando-se “parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência”.

            Sendo móveis todas as demais não compreendidas neste preceito – cf. artigo 205.º do Código Civil.

            Como referem P. de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág.s 197 e 198 “são imóveis as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos, considerando-se como tais as coisas móveis ligadas materialmente ao prédio com carácter de permanência. Assim, os esteios e ferros de uma ramada, os motores eléctricos, a instalação de água e de luz, o aquecimento central, etc., são partes integrantes.”.

            Ou, como ensina Manuel de Andrade, in Teoria Geral …, vol. 1.º, a pág. 236 e seg.s, as partes integrantes dos prédios rústicos ou dos prédios urbanos apresentam-se como coisas móveis por sua natureza, mas que estão unidas com carácter de permanência a algum desses prédios para lhe aumentar as utilidades, conservando no entanto, uma individualidade própria e distinta do prédio.

            Ora, dadas as características da escultura em causa e a forma (acima já descrita) como estava implantada (fixada) no alçado norte da moradia, mister é concluir de que se tratava de uma parte integrante da moradia em causa e, por isso, objecto do contrato de seguro em apreço.

            De resto, como acima já se referiu, nos termos do artigo 1.º das Condições Gerais e 4.ª condição particular, os bens seguros são os localizados no edifício localizado no lote 25 da Estrada do (...), Ovar, o que confere uma cobertura mais ampla do que a estabelecida no referido artigo 204.º para a classificação de uma parte integrante de um prédio urbano, bem como imóvel.

            Assim, tal como decidido em 1.ª instância, é de concluir que o furto relatado nos autos (melhor dito, do respectivo objecto) se encontra coberto pelas garantias contratadas com a ré, no âmbito do ajuizado contrato de seguro.

            Consequentemente, também, quanto a esta questão, tem o presente recurso de improceder.

            E. Se não resulta provado que a escultura pertencesse à autora.

            No que a tal questão se refere, alega a autora que da matéria provada não resulta que a escultura seja da autora, mas sim do escultor E..., a quem ainda não havia sido paga, como resulta do depoimento por este prestado.

            Esta é uma questão que não foi arguida nem tratada na 1.ª instância, sendo, por isso, uma questão nova.

            Ora, como consabido, os recursos não se destinam a apreciar matéria nova, não alegada anteriormente.

            Ao invés, constituem “remédios jurídicos” para concretas questões, de direito ou de facto, já anteriormente decididas, na sequência da respectiva alegação pelas partes, salvo tratar-se de matéria de conhecimento oficioso, o que não é o caso.

            Assim, igualmente, quanto a esta questão, tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:       

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emídio Francisco Santos
António Beça Pereira