Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
10/16.6GAPNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ARMA PROIBIDA
ARMA BRANCA
Data do Acordão: 09/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA (INSTÂNCIA LOCAL DE PINHEL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2.º, 3.º, 4.º E 86.º DA LEI Nº 5/2006 DE 23-02
Sumário: I - A detenção de arma proibida é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, cujo bem jurídico tutelado é ordem, segurança e tranquilidade pública, ou seja, a segurança da comunidade, face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, para o qual o legislador estabeleceu várias molduras penais, em função do grau de perigosidade dos materiais e instrumentos que constituem o seu objecto.

II - Podemos assim distinguir três tipos ou grupos de armas brancas:

- Os objectos ou instrumentos portáteis dotados de lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm;

- As facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso e os estiletes com lâmina ou haste, independentemente das suas dimensões; e,

- Os objectos destinados a lançar lâminas, flechas e virotões.

III - Uma faca que, embora dotada de mecanismo de abertura automática, por deficiência deste, designadamente, por ter a mola pasmada, não abre totalmente, o que significa, por um lado, a indisponibilidade instantânea da lâmina para cortar e perfurar, e por outro, a necessidade de utilização de ambas as mãos do detentor para a abrir totalmente, é apenas uma vulgar navalha e não, uma faca de abertura automática ou faca de ponta e mola.

Decisão Texto Integral:








Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

            No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Pinhel – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1, o Ministério Público requereu o julgamento em processo especial sumário, do arguido A.... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (redacção da Lei nº 50/2013, de 24 de Julho).

Por despacho proferido na audiência de julgamento de 3 de Março de 2016 [acta de fls. 54 e verso] foi comunicada ao arguido uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido oposto ou requerido.

            Por sentença de 3 de Março de 2016 foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5., perfazendo a multa global de € 1.000.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

                I – O recurso interposto é restrito a matéria de direito e é relativo à errada subsunção jurídica dos factos provados que a sentença a que fez, uma vez que, condenou o arguido pela autoria material, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2º, n.º 1. al. m), 3º, n.º 2, al. e), 4º, n.º 1 e 86º, n.º 1, al d), todas da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro (alterada peja Lei n.º 50/2013, de 24.07), na medida de pena de 200 dias de multa, à razão diária de 5,00 €, o que se vem a traduzir na invocação de erro de direito na subsunção jurídica da factualidade provada – cfr. al. b), do n.º 2 do art. 410º e al. c), do n.º 2, do art. 412º ambos do CPP.

II – A douta sentença recorrida merece a censura do recorrente, porquanto os factos que foram dados como provados, foram julgados de forma incorrecta, uma vez que, de acordo com a consideração dos mesmos, impunha-se uma decisão diversa, isto é, impunha-se a absolvição do arguido, o que se traduz na invocação de erro de direito na subsunção jurídica da factualidade provada – cfr. al. b), do n.º 2 do art. 410º e al. c), do n.º 2, do art. 412º, ambos do CPP.

III – A faca em causa não abria, nem recolhia automaticamente o gume da lâmina, pelo que, não poderia ser subsumida ao conceito de faca de abertura automática e de proibição a que se alude na al. e), do n.º 2, do art. 3º, n.º 1, do art. 4º e al. d), do n.º 1, do art. 86º, todos da Lei 5/2006, de 23,02, não sendo passível de ser integrada na classe A, na medida em que o seu mecanismo não funciona automaticamente em condições de perfurar, nem de ser usada instantaneamente, por acção de uma mola sob tensão ou outro sistema equivalente, já que o sistema desta se encontrava avariado, o que faz com que esta faca se subtraia e seja de excluir do proibido âmbito de previsão das alíneas ap), au) e ax), do n.º 1, do art. 2º, da Lei nº 5/2006, Acresce que,

IV – A mesma faca – que não era de abertura automática – nem sequer poderia ter sido qualificada como arma branca proibida, em virtude de a sua lâmina em aço inox medir apenas cerca de 7,3 cm de comprimento, ou seja, ter um cumprimento inferior ao máximo legal permitido – cfr. al. m), do n.º 1, do art. 2º, da Lei n.º 5/2006, o que significa que, à luz do art. 4º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, não é proibida a sua detenção e uso, razão pela qual e ao invés do que vem dito na sentença a quo, o arguido não podia, pois, ter a consciência de que a detenção e uso da faca não lhe eram permitidos.

V – In casu não se mostram, pois, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º n.º 1, al. m), 3º, n.º 2, al e), 4º, n.º 1 e 86º, n.º 1, al. d), todos da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro (alterada pela Lei n.º 50/2013. de 24.07), devendo, consequentemente, o arguido ser absolvido da prática desse crime.

VI – No mesmo sentido daquele que é propugnado pelo arguido e que determina a sua absolvição podem ler-se os Acs. da RC de 01.04.2009, processo n.º 1950/06.6PBAVR.C1, da RP de 03.12.2008, proc. n.º 0845701 e de 04.02.2009, proc. n.º 0817506, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt, a respeito do tratamento jurisprudencial dado ao tipo legal de crime disposto no art 86º – com a epígrafe «Detenção de arma proibida» – n.º 1, d), do RJAM.

VII – Ao decidir como decidiu a sentença recorrida violou o princípio da tipicidade e da legalidade previsto no art. 1º, do C. Penal e n.º 3, do art. 29º, da CRP, a que o Direito Penal se encontra rigorosamente submetido no escopo de impossibilitar arbítrios ou excessos e "(…) cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege), o que significa que "(…) por mais socialmente nocivo e reprovável que se afigure um comportamento, tem o legislador que o considerar como crime (descrevendo-o e impondo-lhe como consequência jurídica uma sanção criminal) para que ele possa como tal ser punido.(…)" – in Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, págs. 165 e 166.

VIII – A conduta do arguido é atípica quando referida ao tipo legal de crime em que se mostra condenado, pelo que, afastada que está a sua tipicidade, necessariamente, s exclui a sua punibilidade e se impõe a absolvição do recorrente.

                IX – A faca detida pelo arguido, além de não ser proibida, também não era apta a ofender o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, uma vez que, resultou demonstrado que a faca em causa não estava em condições, nem era idónea a perfurar, razão pela qual, a sua detenção não constituía perigo algum para a segurança da comunidade,

X – Por falta de preenchimento dos elementos do tipo legal de crime analisado, o Tribunal a quo fez uma subsunção errada dos factos ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, d) do RJAM, encontrando-se a sentença recorrida ferida de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos da al. b), do n.º 2, do art. 410º, do CPP, uma vez que aquele Tribunal fez uma incorrecta interpretação e aplicação do que vem disposto nos arts. 3º, n.º 2, al e), 4º, 86º, n.º 1, d), 2º, als. m) aax). todos do RJAM, 1º, do C. Penal e n.º 3, do art. 29º, da CRP.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser proferido Acórdão que revogue a decisão recorrida e que a substitua por outra decisão que determine a absolvição do arguido A... da prática do crime em que foi condenado, o que constitui uma decisão de, JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões

                1. Comete um crime de detenção de arma proibida, nos termos do artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, "quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo – al. d) "Arma da classe E, arma branco dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automático, (…) é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias". ".

2. A faca de abertura automática encaixa no conceito legal de arma branca, conforme o artigo 2..º, n.º 1, m), RJAM: "todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina (…) e, independentemente das suas dimensões, (…) as facas de abertura automática ou de ponta e mola".

3. O artigo 3.º, n.º 2, alínea e) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, dispõe que, entre outras, são armas da classe A: "As facas de abertura automática, estiletes, facas de borboleta, facas de arremesso, estrelas de lançar e boxers" e, ainda, de acordo com o preceituado no n.º 1 do artigo 4.º da referida Lei, "São proibidos a venda, a aquisição, o cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A".

4. Alega o recorrente que a faca aprendida não era de abertura automática, porque não se conseguia abrir automática e instantaneamente pressionando um botão e que não era apta a funcionar automaticamente como objecto perfurante por se encontrar em mau estado de conservação e de, a mesma se encontrar com o mecanismo avariado.

5. Resulta dos autos que a mola perdeu alguma capacidade de recuperar a sua dimensão inicial, não abrindo na totalidade, no entanto, a mesma mantêm capacidade de abertura automática, ainda que parcial e, ainda que a finalização da abertura da faca tenha que ser feita manualmente (o arguido referiu que a faca abria pressionando no botão, embora tivesse que o "carregar com força"), entendemos que a referida faca mantém as características necessárias para se subsumir à categoria de faca de abertura automática.

                6. Importa referir que resultou provado que o arguido sabia que não lhe era permitido a detenção e uso da referida arma, cujas características igualmente conhecia, sabendo que a mesma poderia ser utilizada como arma de agressão.

7. Entendemos que a qualificação jurídica adequada ao caso dos autos é a do crime a que mui douta mente o Tribunal a quo condenou o arguido.

V.as Exas., porém farão a habitual JUSTIÇA.


*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, afirmando que a especificidade das facas de ponta e mola é a disponibilidade instantânea da lâmina pela acção de uma mola, disponibilidade que a faca detida pelo recorrente não tinha, sendo por isso uma navalha normal, com lâmina inferior a 10 cm de comprimento pelo que, sendo justificada a sua posse para fins domésticos, não é punível a sua detenção, e concluiu pelo provimento do recurso.

*

            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

            Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.


*

            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão;

- O não preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida e consequente absolvição.


*

                        Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela foram considerados provados os seguintes factos:

            “ (…).

1. No dia 7 de Fevereiro de 2016, pelas 03 horas e 30 minutos, no recinto da “Feira das Tradições” nesta cidade, ocorreu uma acção de prevenção da criminalidade levada a cabo pelo Núcleo de Investigação Criminal (NIC) da GNR de Pinhel.

2. No decurso da mesma, foi encontrada na posse do arguido, guardada em bolsa que o mesmo trazia apertada à cintura ou no bolso direito da frente das calças que trajava, uma faca de abertura automática, sem marca, com uma lâmina em aço inox com cerca de 7,3 cm de comprimento e com o comprimento total de 17, 5 cm.

3. A faca referida em 2 encontra-se em mau estado de conservação, faltam-lhe dois parafusos no cabo ou empunhadura e a mola já se encontra pasmada não abrindo na totalidade, em condições de perfurar.

4. O arguido sabia ou, pelo menos, representou como possível que não lhe era permitido a detenção e uso da referida arma, cujas características bem conhecia, bem sabendo que a mesma poderia ser utilizada como arma de agressão, conformando-se com essa circunstância.

5. Mais sabia o arguido que a arma detida é insusceptível de manifesto e de registo, mas, não obstante, não se coibiu de a manter na sua posse nas circunstâncias descritas.

6. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. O arguido foi condenado:

- No âmbito do processo n.º 276/12.0SAGRD, por decisão datada de 10-04-2013, transitada em julgado em 15-05-2013, pela prática, em 18-06-2012, de um crime de roubo na via pública na forma tentada, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período com regime de prova;

- No âmbito do processo n.º 226/11.1SAGRD, por decisão datada de 2-10-2013, transitada em julgado em 11-11-2013, pela prática, em 8-05-2011, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.

[Mais se provou que:]

8. O arguido tem o 9.º ano de escolaridade.

9. Está desempregado.

10. Não aufere qualquer rendimento.

11. Vive com o irmão, a cunhada e o sobrinho.

12. Não tem filhos.

13. Trabalha sazonalmente na Suíça na colheita da fruta.

(…)”.

B) Nela foi considerado provado o seguinte facto:

“ (…).

A. O arguido não justificou a posse do objecto descrito em 2.

(…)”.

C) E dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

A prova da factualidade descrita em 1 e 2, fez-se com base nas declarações do arguido que reconheceu que guardava consigo o objecto descrito em 2, designadamente numa bolsa de apertar à cintura que transportava.

Para a demonstração da factualidade aludida em 1 e 2, o Tribunal sustentou, ainda, a sua convicção para dar tais factos como assentes com base no depoimento sério, objectivo, fundamentado, isento e, nessa medida, credível, da testemunha B... , Militar da GNR a exercer funções no NIC de Pinhel há cerca de 6 anos que conhece o arguido apenas e só do exercício das suas funções e da situação em apreço nos autos.

De referir que a indicada testemunha referiu ao Tribunal que o arguido guardava o objecto melhor descrito em 2 no bolso direito das calças que trajava.

Por essa razão, no confronto com as declarações do arguido, não havendo razões para descredibilizar, neste aspecto, as declarações do arguido, nem o depoimento da testemunha o Tribunal deu como provado que o arguido tinha a faca guardada em bolsa de apertar à cintura que o arguido transportava ou no bolso direito das calças que trajava.

Relativamente à demonstração da facticidade inserta em 3 o Tribunal atentou no auto de exame de fls. 29 e 29 verso.

Quanto à prova do descrito em 4, 5 e 6, a convicção do Tribunal firmou-se através das regras da experiência comum e de critérios de normalidade.

Com efeito, pese embora o arguido tenha dito ao Tribunal que não sabia que a detenção da faca em apreço é proibida, é notório e sabido que a detenção e o uso do objecto melhor descrito em 2 são proibidos por lei, sendo igualmente óbvias as suas características que o arguido bem conhecida. Tanto assim é que o arguido reconheceu que se “informou”, pese embora mal, se podia ou não deter a referida faca. Ora, se o fez foi porque, pelo menos, representou como possível, o seu carácter proibido.

Por outro lado, não resultou da audiência de julgamento que o arguido não tivesse essa compreensão da realidade e que não fosse capaz de tomar uma decisão em conformidade.

Relativamente aos antecedentes criminais o Tribunal valorou e atentou no teor do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.

Quanto às condições pessoais e económicas do arguido, o Tribunal deu como provadas as mesmas tal como declaradas pelo arguido.

Finalmente, o Tribunal deu como não provado que o arguido não justificou a posse do objecto aludido em 2 porquanto o mesmo justificou a posse da faca com o facto de a utilizar para cortar os “charutos” que fuma.

(…)”.


*

            Da existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão

            1. Alega o recorrente – conclusões II e X – que a sentença recorrida enferma de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos da alínea b) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, na medida em que se impunha decisão diversa ou seja, a sua absolvição, uma vez que o tribunal a quo incorreu em erro de direito na subsunção jurídica que fez dos factos provados.

            O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b) do nº 1 do art. 410º do C. Processo Penal, consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso]. 

Assim definido o vício, é evidente que a questão suscitada pelo recorrente nada tem a ver com ele. Com efeito, é entendimento do recorrente que os factos provados que constam da sentença são insusceptíveis de preencherem o tipo do crime de detenção de arma proibida por cuja prática foi nos autos condenado.

Sucede que, a ter razão o recorrente, o que se verifica é uma incorrecta qualificação jurídica dos factos e, portanto, um erro de direito, e não o vício da decisão, previsto na alínea b) do nº 1 do art. 410º do C. Processo Penal [erro de direito que, como supra se referiu, o recorrente também invoca].

Deste modo, e sem necessidade de mais considerações, concluímos que a sentença recorrida não padece do vício da decisão que o recorrente, aparentemente, lhe apontou.


*

Do não preenchimento do tipo do crime de detenção de arma proibida e da consequente absolvição

2. Alega o recorrente – conclusões III a VIII – que a faca que detinha, porque não recolhe nem abre automaticamente a lâmina, não é uma faca de abertura automática, e porque, por outro lado, a lâmina mede apenas 7,3 cm, não é arma branca proibida, pelo que, não estando preenchido o tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 50/2013, de 24 de Julho, a sua condenação implica uma violação dos princípios da tipicidade e da legalidade, previstos no art. 29º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

Vejamos então, se lhe assiste ou não razão.

Como dissemos, o recorrente foi condenado numa pena de multa por, em 7 de Fevereiro de 2016, na cidade de Pinhel, deter, de forma voluntária e consciente e com conhecimento das respectivas características, uma faca de abertura automática, com 7,3 cm de lâmina, conduta esta qualificada como crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro (redacção da Lei nº 50/2013, de 24 de Julho).

A detenção de arma proibida é um crime comum, de perigo abstracto e de mera actividade, cujo bem jurídico tutelado é ordem, segurança e tranquilidade pública ou seja, a segurança da comunidade, face aos riscos da livre circulação e detenção de armas proibidas, para o qual o legislador estabeleceu várias molduras penais, em função do grau de perigosidade dos materiais e instrumentos que constituem o seu objecto. 

Encontra-se previsto no art. 86º, nº 1 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro [sucessivamente alterada, sendo que a última alteração, operada pela Lei nº 50/2013, de 24 de Julho que, além do mais, deu nova redacção às alíneas a) e d) do número em referência] e doravante, designado por Regime Jurídico das Armas e Munições [RJAM]. No corpo deste nº 1 descrevem-se as modalidades da acção típica – detenção, transporte, importação, guarda, compra, aquisição a qualquer título ou por qualquer meio ou obtenção por fabrico, transformação, importação ou exportação, uso ou porte, sem autorização, fora das condições legais ou contra as prescrições da autoridade competente. Depois, nas suas quatro alíneas, são enunciados os equipamentos, materiais, engenhos, produtos, armas, munições e acessórios, susceptíveis de inclusão no objecto daquelas modalidades da acção, agrupados em razão do respectivo grau de perigosidade e daí, as distintas penas previstas em cada alínea. A alínea d) tem a seguinte redacção, na parte em que agora releva:

Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse (…).    

A alínea m) do nº 1 do art. 2º do RJAM define arma branca como, todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superiora 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas e virotões.    

Podemos assim distinguir três tipos ou grupos de armas brancas:

- Os objectos ou instrumentos portáteis dotados de lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm;

- As facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso e os estiletes com lâmina ou haste, independentemente das suas dimensões; e,

- Os objectos destinados a lançar lâminas, flechas e virotões.

Por sua vez, a alínea ax) do mesmo nº 1 define faca de abertura automática ou faca de ponta e mola como, a arma branca, ou instrumento com configuração de arma branca, composta por um cabo ou empunhadura que encerra uma lâmina, cuja disponibilidade pode ser obtida instantaneamente por acção de uma mola sob tensão ou outro sistema equivalente.  

Posto isto.

3. No ponto 3 dos factos provados da sentença recorrida como tal se considerou que, «A faca referida em 2 encontra-se em mau estado de conservação, faltam-lhe dois parafusos no cabo ou empunhadura e a mola já se encontra pasmada não abrindo na totalidade, em condições de perfurar».   

Resulta da motivação de facto da sentença que a convicção da Mma. Juíza a quo teve como exclusivo suporte probatório, o auto de exame de fls. 29 e 29 verso.  

Este auto de exame é o Relatório de exame pericial de fls. 29 e verso, elaborado pelo Núcleo de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública, Comando Distrital da Guarda, do qual constam as seguintes conclusões:

- Foi presente a exame uma faca de abertura automática ou faca de ponta e mola conforme alínea ax), do nº 1, do art. 2º, da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro com as subsequentes alterações;

- Faca de abertura automática ou de ponta e mola definida como «arma branca» conforme alínea m), do nº 1, do art. 2º do diploma acima mencionado;

- Arma branca da Classe A, conforme alínea e), do nº 2, do art. 3º, do mesmo diploma;

- A arma branca em análise não tem qualquer marca referenciável e desconhece-se o seu fabricante, sendo que apresenta lâmina em aço inoxidável «Stainless» com 7,3 cm de comprimento que encerra no seu cabo ou empunhadura de metal a madeira de cor vermelha, totalmente aberta tem um cumprimento de 17,5 cm integra o respectivo botão de desbloqueio da mola sob tensão e sistema de bloqueio conforme foto 1, incorpora também um suporte para fixação para o cinto, conforme foto 2;

- Encontra-se em mau estado de conservação, faltam-lhe dois parafusos no cabo ou empunhadura e a mola já se encontra pasmada não abrindo na totalidade, em condições de cortar e perfurar.

Do confronto do teor do ponto 3 dos factos provados com a última conclusão formulada no referido relatório de exame pericial resulta a sua coincidência, excepção feita à circunstância de, no primeiro, não constar, como devia [já que nenhuma justificação, para a omissão, se encontra feita na sentença], a, na segunda, afirmada incapacidade de a faca abrir na totalidade em condições de cortar. 

Sem grandes preocupações de rigor científico, que o caso dispensa, podemos dizer que a mola é um objecto flexível destinado a armazenar e a libertar energia mecânica, através da sua deformação [contracção e extensão]. O seu uso prolongado conduz à perda da capacidade de deformação ficando, gradualmente, mais fraca, por perda de tensão, até deixar assegurar convenientemente a mencionada função, dizendo-se então que a mola ficou «pasmada».

Como resulta da lei, e bem nota, no seu parecer, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o que é essencial na caracterização de uma faca de abertura automática ou de ponta e mola, é a disponibilidade instantânea da sua lâmina, recolhida no cabo, por acção de uma mola sob tensão.

É esta disponibilidade instantânea da lâmina, e não a sua dimensão, pela surpresa que causa [pode ser aberta com uma só mão] e a consequente drástica diminuição das possibilidades de defesa da vítima, que aumentam o grau de insídia na sua utilização e justificam a consideração de um perigo acrescido e a maior intensidade da ilicitude.

Se assim é, como cremos, uma faca que, embora dotada de mecanismo de abertura automática, por deficiência deste, designadamente, por ter a mola pasmada, não abre totalmente, o que significa, por um lado, a indisponibilidade instantânea da lâmina para cortar e perfurar, e por outro, a necessidade de utilização de ambas as mãos do detentor para a abrir totalmente, é apenas uma vulgar navalha e não, uma faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, tal como esta arma branca é definida na alínea ax) do nº 1 do art. 2º do RJAM.

Por outro lado, uma vez que a navalha em questão tem uma lâmina com 7,3 cm de comprimento, não é sequer qualificável como arma branca, nos termos do disposto na alínea m) do nº 1 do art. 2º do RJAM. E assim, é irrelevante saber se o agente justificou ou não a sua posse [o único facto não provado, formulado na negativa, versa, justamente, a não justificação da posse, sendo certo que consta da motivação de facto que o arguido justificou a posse da navalha, não tenha o tribunal a quo, no entanto, feito constar tal justificação da factualidade provada].   

Em suma, as concretas características e o actual estado da faca ou, talvez melhor dito, navalha, apreendida ao arguido não permitem a sua qualificação como faca de abertura automática ou faca de ponta e mola e também não permitem a sua qualificação como arma branca, o que determina que a sua detenção seja insusceptível de preencher o tipo do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m) e ax), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 50/2013, de 24 de Julho.

O não preenchimento do tipo determina, necessariamente, a absolvição do recorrente.


*

4. Uma derradeira questão, resultante da imposta absolvição, há que conhecer.

O ponto 4 dos factos provados como tal considerou, além do mais, que o arguido sabia ou, pelo menos, representou como possível que não lhe era permitida detenção e uso da referida arma, conformando-se com essa circunstância. Por sua vez, no ponto 6 dos factos provados como tal se considerou, além do mais, que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Trata-se de matéria relativa ao elemento subjectivo do tipo, ao dolo do agente, cuja prova, em regra, é feita por inferência, através da conjugação dos factos objectivos provados com as regras da experiência comum [aliás, isto mesmo se afirma na motivação de facto da sentença, quanto á fundamentação dos pontos de facto em referência].   

Entendendo-se não estar preenchido o tipo objectivo, obviamente que também não o estará o tipo subjectivo o que determina que os segmentos indicados daqueles pontos de facto passem a factos não provados, sob pena de se incorrer agora, e efectivamente, no vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Deste modo, os pontos 4 e 6 dos factos provados passam a ter a seguinte redacção:

- [4] O arguido conhecia as características da faca referida em 2 e sabia que a mesma poderia ser utilizada como arma de agressão;

- [6] O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente

E são aditados aos factos não provados os seguintes:

- [B] O arguido sabia ou, pelo menos, representou como possível que não lhe era permitida detenção e uso da referida arma, conformando-se com essa circunstância;

- [C] O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.


*

III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a sentença recorrida, absolvendo o arguido A... da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 50/2013, de 24 de Julho.

Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).


*

Coimbra,  14 de Setembro de 2016


 (Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)