Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1473/10.9TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA DE VIATURA
GARAGISTA
RESPONSABILIDADE
FALTA
CONTRATO DE SEGURO
FGA
Data do Acordão: 05/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU, 1º J CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 483º E 506º Nº 1 DO CC, DL 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: I. No domínio da vigência do DL 522/85, de 31 de Dezembro, se no momento da ocorrência do acidente o veículo entregue para reparação é conduzido pelo garagista -por si ou por intermédio de um seu comissário- é aquele que tem a sua direcção efectiva e não o respectivo dono;

II. Sendo o garagista sujeito da obrigação de indemnizar, não tendo celebrado contrato de seguro, recaímos no âmbito da previsão do art.º 21.º do DL 522/85, competindo ao FGA a satisfação da indemnização que for devida, dada a inexistência de seguro válido.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

No Tribunal Judicial de Viseu,

Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Av.ª da República, n.º 76, Lisboa, Porto, instaurou acção declarativa de condenação, a seguir a forma sumária do processo comum, contra:

Companhia de Seguros A..., com sede na (...), Lisboa, e, subsidiariamente, contra

B... residente na Rua (...), Viseu, e G... Lda., com sede na mesma morada, pedindo a condenação da Ré Seguradora a pagar-lhe a quantia de €11 440,70, acrescida de juros desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, e ainda no pagamento da quantia que se apurar a título de despesas de cobrança, a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença; no caso da 1.ª Ré não vir a ser considerada responsável, pediu a condenação dos demais Réus no pagamento da referida quantia de €11 440,70, acrescida de juros desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, a que deverão acrescer os juros já vencidos e devidos pelo Réu B..., no montante de €656,89, e ainda no pagamento da quantia que se apurar a título de despesas de cobrança, a liquidar em sede de ampliação do pedido ou execução de sentença.

Alegou, para tanto, e em síntese, ter ocorrido um acidente de viação no dia de 19 de Junho de 2007, no qual foram intervenientes o veículo de matrícula (...)RV, propriedade de C... e então conduzido pelo Réu B..., e o veículo de matrícula XD(...), propriedade de D... mas na ocasião conduzido por E.... . O acidente em causa ficou a dever-se em exclusivo à conduta culposa do condutor do RV, sobre o qual recaía o dever de ceder a passagem ao veículo XD, por força da existência, na via de onde provinha, do sinal vertical B-1, regra estradal que inobservou, infracção que foi causal do embate.

Mais alegou que a responsabilidade civil decorrente dos acidentes de viação em que interviesse o veículo RV encontrava-se transferida para a demandada seguradora, mediante contrato de seguro em vigor à data do acidente, celebrado pelo proprietário do veículo. No entanto, esta Ré veio a declinar qualquer responsabilidade, face à consideração de que a viatura RV se encontrava a ser conduzida pelo Réu B... na qualidade de mecânico da oficina de automóveis explorada pela Ré “G..., Lda.”, a quem o veículo “RV” tinha sido confiado pelo proprietário para ser reparado, sendo que o primeiro não era titular do denominado “seguro de carta” e a Ré “ G..., L.da” não tinha contratado o seguro obrigatório de garagista. Face à posição assumida pela seguradora, desconhecendo o autor em que qualidade o Réu B... se encontrava a conduzir o RV, predispôs-se a indemnizar a condutora do XD que, em consequência do acidente, sofreu ferimentos e careceu de assistência hospitalar.

Invocou ainda ter o acidente em causa sido simultaneamente caracterizado como de viação e de trabalho, tendo sido nesta sede demandada a “Companhia de Seguros M..., S.A.”, a qual, no âmbito do processo n.º 22/08.3TTVIS, que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Viseu, pagou à lesada uma indemnização no valor de € 11 153,70. O autor procedeu ao reembolso desta quantia, tal como liquidou ao Hospital de São Teotónio, em Viseu, a quantia de €287,00, custo da assistência prestada à sinistrada.

Encontrando-se agora sub-rogado nos direitos da lesada, atento o disposto no art.º 592.º, n.º 1 do CC e 25.º do DL 522/85, de 31/12, e sendo seu entendimento, face ao que dispõe o art.º 15.º deste último diploma, que a responsável é a primeira ré, contra esta deduz a sua pretensão; prevenindo todavia que outro venha a ser o entendimento perfilhado pelo Tribunal, serão então responsáveis o 1.º réu, na sua qualidade de condutor e responsável civil, justificando a demanda da 2.ª ré o facto de não ter celebrado contrato de seguro obrigatório de garagista.

*

Citados os RR, contestou a ré Companhia de Seguros A..., S.A. e, defendendo-se por excepção, invocou a excepção dilatória da sua ilegitimidade para a causa, por na ocasião do acidente a responsabilidade emergente da circulação do RV não se encontrar abrangida pelo contrato de seguro celebrado entre a contestante e o respectivo proprietário, uma vez que era conduzido pelo 2.º réu na qualidade de mecânico da 3.ª ré, que é sujeito da obrigação de segurar, nos termos do n.º 3 do art.º 2.º do DL 522/85, de 31/12, aplicável ao caso. Por assim ser, e não tendo interesse em contradizer, concluiu pela sua absolvição da instância.

Cautelarmente, alegou que das averiguações efectuadas chegou à conclusão que também a condutora do XD contribuiu para o acidente dos autos, por circular com velocidade superior à permitida no local, que era de 50 km/h, concorrência de culpas que terá de se reflectir na indemnização que for devida.

*

Também os demais RR contestaram a acção tendo, em articulado aperfeiçoado, dado do acidente uma versão que permite imputar a culpa pela sua ocorrência à condutora do outro veículo interveniente, por circular com velocidade excessiva, e tanto assim que, ao dar conta da presença do RV, cuja dianteira assomava no entroncamento -o que não podia deixar de ocorrer, atendendo a que se tratava de local de muito reduzida visibilidade, agravada pela circunstância de a margem direita da estrada, considerando o sentido de marcha do XD, se encontrar coberta de matos, ervas e arbustos altos- aplicou travões a fundo, perdendo de imediato o controle da viatura, despistando-se, indo embater com a parte lateral direita na frente esquerda do RV. A violência do embate, patenteada pelos estragos provocado no XD -rebentamento do pneu dianteiro e destruição da parte lateral direita- permite concluir que o veículo seguia animado de velocidade superior a 90 Km/hora, manifestamente excessiva, atentas as características do local.

Mais alegou o réu B... que não é mecânico, conduzindo na ocasião a viatura RV a título meramente particular e correspondendo a uma solicitação do respectivo proprietário, estando o acidente coberto pelo contrato de seguro celebrado com a demandada seguradora.

Com os aludidos fundamentos, concluem pela sua absolvição do pedido.

*

Teve lugar audiência preliminar, nela tendo sido requerida a suspensão da instância (cf. acta de fls. 167/168).

O FGA veio ainda apresentar articulado superveniente, aqui tendo alegado ter pago à lesada a quantia de € 806,92 correspondente a 30% da remuneração, facto superveniente no qual assentou ampliação do pedido inicialmente formulado, peticionando a condenação dos RR no pagamento de também este montante, acrescido de juros.

Por extemporâneo, o articulado em causa não foi admitido por despacho transitado (cf. fls. 191/192).

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade invocada pela demandada seguradora, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamação das partes.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual o Tribunal se deslocou ao local do acidente, vindo a final a decidir a matéria de facto controvertida nos termos da decisão de fls. 262 a 269, decisão não reclamada.

Foi depois, e na devida oportunidade, proferida sentença, que decretou a absolvição da demandada seguradora, tendo condenado os demais RR solidariamente no pagamento ao autor da quantia de €10 750,71, acrescida de juros de mora vencidos desde a citação, à taxa de 4%, até efectivo e integral pagamento, bem assim, das despesas com a instrução e regularização do sinistro, a apurar em incidente de liquidação.

*

Inconformados, apelaram os RR condenados e, tendo apresentado as suas alegações, sintetizaram-nas nas seguintes necessárias conclusões:

“I- Analisando o depoimento da testemunha E..., condutora do veículo interveniente no acidente com a matrícula XD(...), é evidente que as respostas aos artºs. 8º, 11º, 19º, 20º, 23º, 24º, 26º e 27º da Base Instrutória teriam de ter uma resposta diferente.

II- Declarou aquela testemunha E... em audiência de julgamento que antes de entrar no entroncamento avistou o veículo conduzido pelo Réu B...parado, e que esta, apesar de ter tempo e espaço para parar o seu veículo antes do entroncamento, não o fez e continuou a sua marcha.

Disse ainda que ela tinha boa visibilidade e viu o Réu B... parado antes do entroncamento, e que este não tinha boa visibilidade. Confessa que travou a 22 metros –– do local do embate – como refere o croquis do auto de ocorrência da GNR –, e que o carro dela entrou em derrapagem, no entanto, nada fez para o controlar, porque pôs as mãos na cara e fechou os olhos (cfr. depoimento gravado aos minutos 07:00, 07:13, 07:50, 08:55, 09:12, 09:22, 09:43, 10:27, 11:57, 12:08 e 12:16).

III- Para além da testemunha E..., condutora do veículo “XD”, nenhuma outra testemunha viu o acidente, apesar que a testemunha F... refere ter visto o veículo por ela conduzido a aproximar-se, ouviu a travagem e só viu o aparato dos veículos após o embate.

Daí que o depoimento daquela condutora é determinante para percebermos a dinâmica e as circunstâncias objectivas em que o acidente se deu.

IV- Não obstante o veículo RV, conduzido pelo Réu B...ter entrado no entroncamento que se apresentava com o sinal de trânsito de cedência de prioridade ao trânsito que se fazia na Estrada do Aeródromo/Viseu, a verdade é que o mesmo parou antes de entrar no entroncamento, respeitando assim, as precauções e cuidados que aquele sinal de trânsito lhe impõe.

V- Tal como está provado nos autos -resposta ao artº. 18º da Base Instrutória- no dito entroncamento o condutor do “RV” só conseguia aperceber-se do trânsito que circulava na estrada com prioridade (Estrada do Aeródromo) no sentido Aeródromo – Viseu, quando o veículo por si conduzido já se encontrasse com a frente dentro da hemi-faixa de rodagem da estrada com trânsito prioritário.

VI- O Réu não podia – nem devia – permanecer indefinidamente com a frente do veículo que conduzia invadindo a hemi-faixa de rodagem por onde circulava “XD”, pelo que reiniciou a sua marcha, tendo depois sido embatido por este último, próximo da linha longitudinal descontinua que divide os dois sentidos de marcha. Por outro lado,

VII- A condutora do veículo XD circulava a uma velocidade de, pelo menos, 60km/hora (resposta ao artº. 15º da Base Instrutória) a qual era excessiva para as condições atmosféricas (chuva) e características e condições da estrada onde circulava, numa estrada em que a hemi-faixa de rodagem é estreita (tem apenas de 2,60m – resposta ao quesito 3.º), com o piso molhado.

VIII- A condutora do “XD” não pode deixar de ser havida como a responsável pelo acidente de viação dos autos, tendo agido com culpa manifesta, ou quando assim se não entenda, o que só por mero dever de patrocínio se admite, devem ambos os condutores ser tidos como responsáveis em partes iguais e em repartição de culpas.

Assim,

IX- O artº. 11º da Base Instrutória deveria ter dado como provado que “como consequência do referido em 8º e 9º o veículo “XD” embateu com a parte da frente direita na parte dianteira esquerda do veículo “RV”. Ou seja, a resposta a tal artigo deveria ser no sentido inverso ao que o M. Juiz “a quo” considerou;

X- O artº. 8º da Base Instrutória foi dado como provado, sendo que deveria ter sido dado como provado com o esclarecimento de que o veículo RV parou no entroncamento referido em 1º;

XI- Os artºs. 19º e 20º da Base Instrutória devem ser dados como provados.

XII- O artº. 22º da Base Instrutória merecia resposta de “provado apenas que o entroncamento referido em 1º é visível para os condutores que circulam na Estrada do Aeródromo, no sentido Aeródromo/Viseu, pelo menos a 22 metros de distância do mesmo”.

XIII- O artº. 23º da Base Instrutória foi confessado totalmente pela condutora do “XD”, pelo que deveria ter sido dado como provado;

XIV- O artº. 24º da Base Instrutória deveria ter sido dado como “provado apenas que a condutora do veículo “XD” não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia em consequência da velocidade de que o mesmo vinha animado, do facto de ter fechado os olhos após iniciar a travagem e ter largado as mãos do volante”;

XV- O artº. 26º da Base Instrutória deve ser dado como provado, pois não restam quaisquer dúvidas face às confissões da testemunha condutora do “XD” de que ela entrou em derrapagem e perdeu o controle do veículo que conduzia;

XVI- A matéria provada no artº. 27º da Base Instrutória deve sê-lo com referência à resposta do artº. 11º constante destas alegações.

XVII- Também as respostas aos artºs. 29º, 30º e 31º da Base Instrutória devem ser alteradas.

XVIII- O Réu B...aquando do acidente de viação dos autos não conduzia o “RV” ao serviço da Ré “ G..., Ldª.”, sob as ordens e no interesse desta, sendo que tal veículo aquando do acidente não estava confiado já à Ré “ G..., Ldª.”.

XIX- Na verdade, o dito veículo “RV” foi confiado no período da manhã do dia em que ocorreu o acidente à Ré “ G..., Ldª.”, o qual foi reparado e ficou pronto à hora do almoço desse mesmo dia.

XX- Conforme depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha I..., após ter sido informada que o veículo estava já reparado e pronto para ser entregue solicitou o favor de o Réu B...lhe levar o veículo reparado às instalações do stand automóvel “ N...”, porquanto o funcionário deste não podia deslocar-se às instalações da oficina automóvel para o ir buscar e teria de o entregar ao seu proprietário no final desse mesmo dia (cfr. depoimento gravado aos minutos 07:54, 09:11 e 11:49).

XXI- Não foi a Ré “ G..., Ldª.” quem solicitou ao Réu B...que levasse o carro, que então já estava reparado, ao stand, mas foi ele quem conduzia o carro para o dito stand quando se deu o acidente.

Conduzia, contudo, o veículo a título meramente pessoal e a pedido da testemunha I..., a quem prestava um mero favor.

XXII- Do mesmo modo como o condutor sobre o qual recaía o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, também o condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito, cfr. o disposto no artigo 29.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada.

XXIII- Por escrito constante da apólice com o n.º 00015588025, datado de 02 de Março de 2007, C... declarou transferir para a titularidade da Ré “Companhia de Seguros A..., S.A.”, a qual declarou assumir, as obrigações decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...)RV, conforme documento de fls. 97 a 100 dos autos.

XXIV- Prevê o artigo 29.º, n.º 1 alínea a), do Decreto-lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro, que as acções destinadas à efectivação da responsabilidade decorrente de acidente de viação, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a seguradora quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório. Pelo que, encontrando-se transmitida, pelo proprietário do veículo RV, a responsabilidade civil da obrigação de indemnizar para a ré Companhia de Seguros A..., S.A. por efeito do contrato de seguro, deveria apenas esta última ser demandada e condenada na presente acção.

XXV- Alega o Autor que pagou à Companhia de Seguros M..., S.A. a quantia de 11.153,70€ e ao Hospital de São Teotónio de Viseu, a quantia de 287,00€ pelos danos alegadamente sofridos pela condutora do veículo XD, e que tais valores foram definidos no âmbito da acção n.º 22/08.3TTVIS correu termos no 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Viseu, intentada pela condutora do veículo XD contra aquela seguradora. Acontece que o autor não alega na presente acção quais os danos sofridos pela condutora do veículo XD, e os aqui recorrentes não foram intervenientes naquela acção n.º 22/08.3TTVIS, razão pela qual desconhecem tais danos e em momento algum tiver oportunidade de se pronunciar sobre a indemnização arbitrada.

XXVI- Com a decisão recorrida foram violadas as normas constantes dos artigos 29.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada, 29.º, n.º 1 alínea a), do Decreto-lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro, 467.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil.

Com os aludidos fundamentos pretendem a revogação da sentença recorrida e sua substituição por decisão que absolva os recorrentes do pedido.

*

Contra alegou a demandada seguradora e, restringindo a sua resposta à impugnação da matéria de facto que incidiu sobre os artigos 29.º a 31.º, pugnou naturalmente pela manutenção da decisão recorrida, sentido em que igualmente se pronunciou o FGA.

*

Delimitação do objecto do recurso

Embora tendo anunciado que pretendiam impugnar também a resposta dada ao artigo 34.º da base instrutória (cf. fls. 3 e 4 do recurso), a verdade é que nas alegações produzidas a respeito da impugnação da matéria de facto e, mais tarde, nas conclusões formuladas (cf. conclusões I e XVII) omitiram os apelantes qualquer referência a este artigo, donde estarmos, assim se afigura, perante lapso na indicação. De todo o modo, atendendo ao disposto no n.º 4 do art.º 635.º do NCP, terá de se haver este ponto da matéria de facto como excluído do objecto do recurso.

 *

Sabido que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões colocadas à apreciação deste Tribunal:

i. do erro de julgamento: da alteração das respostas aos artºs. 8.º, 11.º, 19.º, 20.º, 22.º, 23.º, 24.º, 26.º e 27.º, 29.º, 30.º e 31.º da base instrutória;

ii. decorrente da pretendida modificação dos factos, decidir pela culpa exclusiva ou pelo menos concorrente da condutora da viatura;

iii. da responsabilidade da ré seguradora por força do contrato de seguro celebrado com o proprietário da viatura RV;

iv. do exercício da sub-rogação legal.

 *

I. da modificação da matéria de facto

Pretendem os RR apelantes ter ocorrido erro de julgamento, tendo sido erradamente respondidos os artigos 8.º, 11.º, 19.º, 20.º, 23.º, 24.º, 26.º e 27.º, todos eles atinentes à dinâmica do acidente, apelando ao testemunho prestado pela condutora do outro veículo interveniente, E..., decisivo, uma vez que ninguém mais presenciou o embate, devendo ainda ser modificadas as respostas dadas aos artigos 29.º, 30.º e 31.º, louvando-se desta feita no depoimento prestado por I....

Perguntava-se nos artigos daquele primeiro grupo:

Art.º 8.º- Ao chegar ao entroncamento referido em 1.º o condutor do RV não abrandou a sua marcha?

Ao assim perguntado respondeu o Tribunal negativamente (e não positivamente, conforme por lapso os apelantes referem nas suas alegações -cf. fls. 8), pretendendo os recorrentes que a resposta seja no sentido de que o veículo RV parou no referido entroncamento.

Art.º 11.º- Em consequência do referido em 8.º e 9.º [no qual se indagava se o condutor do RV não cuidara de verificar se na estrada municipal do Aeródromo, na direcção Estrada Municipal do Aeródromo/Viseu, circulavam outros veículos, designadamente o XD, e que mereceu igualmente resposta negativa por banda do Tribunal], o veículo RV embateu com a sua parte dianteira esquerda na parte dianteira direita do veículo?”.

O artigo formulado mereceu resposta restritiva com o seguinte teor: “Provado apenas que o veículo RV embateu com a sua parte dianteira esquerda na parte dianteira do veículo XD”, pretendendo os apelantes que a resposta correcta é a contrária, devendo antes dar-se como assente ter sido o veículo XD a embater no RV.

Art.º 19.º- No circunstancialismo de tempo e de lugar referidos em A), o condutor do veículo RV parou à entrada do entroncamento referido em 1.º?

A resposta foi a de “Não provado”, que os apelantes pretendem seja alterada para “Provado” por força da intervenção deste Tribunal.

Art.º 22.º- O entroncamento referido em 1.º só é visível para os condutores que circulam na Estrada do Aeródromo, no sentido Aérodromo/Viseu, quando dele estão a menos de 20 mt?

O artigo em causa mereceu resposta negativa, pretendendo os apelantes ter resultado provado que o aludido entroncamento é visível para os condutores que circulam na Estrada do Aeródromo, no sentido Aérodromo/Viseu, pelo menos a 22 mt de distância do mesmo, o que deveria ter sido reflectido na resposta dada.

Art.º 23.º: “A condutora do XD apercebeu-se do veículo RV quando este já se encontrava com a sua frente na Estrada do Aérodromo, no sentido Aérodromo/Viseu?

A resposta foi, também aqui, negativa, requerendo os apelantes, por esta via do recurso, a sua alteração para “Provado”, invocando a confissão da condutora do XD.

Art.º 24.º- E só não conseguiu imobilizar o veículo XD em consequência do referido em 15.º [no qual se perguntava se circulava a velocidade superior a 90 Km/hora, e que mereceu resposta restritiva, tendo sido dado por assente que circulava a uma velocidade de pelo menos 60 Km/hora]?

A resposta dada pela Mm.ª juíza “a quo” foi ainda aqui negativa, contrapondo os apelantes que a resposta correcta e adequada à prova produzida é antes a de “Provado apenas que a condutora do veículo XD não conseguiu imobilizar o veículo que conduzia em consequência da velocidade de que o mesmo vinha animado, do facto de ter fechado os olhos após iniciar a travagem e ter tirado as mãos do volante”.

Art.º 26.º- E perdeu o controlo da viatura?

A resposta negativa dada ao artigo assim formulado deverá ser, no entendimento expendido pelos recorrentes, substituída pela de sinal contrário.

Art.º 27.º- Em consequência do que veio a embater com a sua parte lateral direita na frente esquerda do RV?

A resposta dada, tendo por referência aquela que merecera o art.º 11.º, deve manter-se, defendem, mas tendo em conta a modificação desta última.

*

No que respeita aos artigos 29.º, 30.º e 31.º, visavam todos eles a determinação de quem detinha, aquando do acidente, a direcção efectiva da viatura.

Era o seguinte o teor dos artigos em causa, tendo sido respondidos como segue:

Art.º 29.º- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o réu B... conduzia o veículo RV no exercício das funções de mecânico da ré “ G..., Lda.”?

Provado apenas que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em A), o réu B... conduzia o veículo RV ao serviço da ré G..., Lda.

Art.º 30.º- Sob as suas ordens e no seu interesse?

Provado.

Art.º 31.º- Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em A), o veículo RV tinha sido confiado à ré G..., Lda. para reparação?

Provado.

Impugnando cada uma destas respostas, e apelando ao depoimento prestado por I..., corroborado pelo testemunho de J..., defendem os apelantes que todas elas deviam ter sido negativas, sentido em que pretendem a sua alteração.

Apreciando:

O Mm.º Juiz “a quo”, na motivação da decisão proferida, e no que concerne à dinâmica do embate, fez apelo aos elementos constantes da participação do acidente -a despeito de ter detectado divergência, cujos termos explicitou, entre a largura da faixa de rodagem ali consignada e aquela que no local se constatou ser a real- e depoimento prestado pela condutora da viatura XD, corroborado, disse, no que respeita ao ponto de embate e manobra de recurso efectuada, pelos registos fotográficos juntos.

A propósito do conhecimento, em sede de recurso, da impugnação da matéria de facto, vem sendo jurisprudência reiterada por banda do STJ, que se mantém actual à luz do NCPC, que neste âmbito alargou até os poderes da Relação, que “ao apreciar os invocados erros de julgamento sobre os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente, o Tribunal da Relação está efectivamente vinculado a realizar uma reapreciação substancial da matéria do recurso de apelação, sindicando adequadamente, através de audição do registo ou gravação da audiência que necessariamente acompanha o recurso, a convicção formada pelo tribunal de 1ª instância e formando sobre tais pontos de facto impugnados a sua própria convicção, que pode ou não ser coincidente com a do juiz a quo.

Será, pois, manifestamente inconciliável com a efectividade do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, vigente no nosso sistema jurídico desde 1994, (…) uma análise das provas realizada em plano puramente abstracto, com mero apelo a critérios de desrazoabilidade ostensiva ou de flagrante desconformidade com os elementos probatórios documentados nos autos, desfocada de uma apreciação crítica, feita perante a especificidade do caso concreto e com decisivo apelo ao conteúdo casuístico dos vários meios de prova efectivamente produzidos em audiência. Deste modo, “A efectiva reapreciação da prova implica [pois] a sua análise crítica sem limitações de ordem formal, ou seja, independentemente daquela que foi feita no tribunal recorrido, envolvendo a criteriosa e equilibrada apreciação, com apelo à racionalidade geral e particular do colectivo de juízes e às regras da lógica e da experiência.

Em suma, tal como o deve fazer o juiz que apreciou a prova em primeiro grau, deve o colectivo de juízes da Relação declarar, de entre os factos objecto da impugnação pelo recorrente, quais os que considera ou não provados, analisando criticamente os provas por aquele indicadas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (artigo 653º, nº 2, do Código de Processo Civil). Isso significa que o colectivo de juízes da Relação deve formar e afirmar, a respeito dos factos em causa, com base nas provas que reapreciou, a sua própria convicção, idêntica ou diversa daquela que foi expressa no tribunal recorrido, a este se substituindo nessa parte”.

Por outro lado, reconhecendo embora que a apreciação das provas constantes de depoimentos gravados apresenta dificuldades em confronto com a apreciação de primeiro grau no tribunal da 1.ª instância, onde funciona plenamente o princípio da imediação, tendo o juiz ao seu dispor toda uma panóplia de elementos que, estando subtraídos ao colectivo de juízes deste Tribunal, auxiliam à valoração dos testemunhos -vg. reacções ou gestos espontâneos da testemunha, de inestimável valia na sua creditação- tal não autoriza a Relação a abster-se de formular um juízo probatório sobre os factos cuja reapreciação lhe é pedida, sob pena de se pôr em causa o referido segundo grau de jurisdição.

Tal é o entendimento que se sufraga e em obediência a ele se ouviram na sua totalidade os depoimentos das indicadas testemunhas e de outras que à referida matéria depuseram. E, desde já se adianta, a apreciação crítica dos assinalados meios de prova, conjugados com os registos fotográficos juntos aos autos, impõe a modificação de algumas das respostas dadas. Vejamos em que termos:

Antes de mais, cumpre esclarecer que não é rigoroso falar em confissão por banda da condutora do outro veículo interveniente no embate, a testemunha E.... Com efeito, sendo a confissão o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cf. art.º 352 do Código Civil), não detendo aquela a qualidade de parte, não há lugar a confissão. Não obstante trata-se, como é óbvio, de testemunha com um conhecimento qualificado dos factos, sendo igualmente correcto que não detém interesse no desfecho da causa. Todavia, como é próprio da natureza humana, nem sempre o interveniente no acidente, ainda que na posição particular de nenhuma responsabilidade em concreto lhe poder ser assacada no processo em que depõe, está disposto a, de modo espontâneo, reconhecer a sua culpa ou mesmo alguma culpa. Daí que cumpra ao juiz, apreciando criticamente a prova produzida e fazendo pleno uso da liberdade (que não arbítrio) que a lei lhe confere para executar tal tarefa, entrar em linha de conta com todos esses aspectos.

Assente sem discussão nos autos encontra-se o facto do local do embate configurar uma recta com entroncamento, sendo a via principal a Estrada Municipal do Aérodromo, nela entroncando do lado direito, considerando o sentido Aérodromo/Viseu, a estrada que conduz ao campo de futebol da Muna (e também ao estabelecimento de oficina explorado pela ré sociedade, da qual provinha o veículo RV), no qual se encontrava então implantado, junto ao dito entroncamento, o sinal Vertical B1. Igualmente indiscutido aquele outro de, na ocasião, o veículo RV, conduzido pelo réu B..., provir desta última via, transitando o ligeiro de passageiros com a matrícula XD pela via prioritária, no sentido Aérodromo/Viseu.

Debruçando-nos agora sobre o teor da resposta negativa que mereceu o artigo 8.º, logo se vê que a resposta proposta pelos apelantes não cabe no âmbito do quesito. Com efeito, perguntando-se se o veículo RV, ao chegar ao entroncamento, não abrandou (facto negativo, cuja prova incumbia ao autor, interessado na sua demonstração), extravasa claramente do âmbito do perguntado responder que o veículo em causa parou (matéria, aliás, que é objecto do artigo 19.º, cuja resposta negativa foi igualmente impugnada). Tal excesso de resposta importaria que se desse a mesma como não escrita (cf. n.º 4 do art.º 646.º do CPC em vigor ao tempo da prolação da decisão sobre a matéria de facto), afigurando-se assim inteiramente correcta aquela que lhe foi dada e que, por isso, se mantém.

O que vem de se dizer é válido no que respeita à modificação pretendida para a resposta ao art.º 22.º, que não se contém igualmente no âmbito do perguntado. De resto, cabendo ao juiz que profere a decisão tomar ainda em consideração os factos que resultem assentes em virtude de lícitas presunções judiciárias (cf. art.º 607.º, n.º 4, aplicável aos acórdãos ex vi do art.º 663.º, n.º 2 do NCPC), considerando que a condutora do XD deixou impressos no asfalto rastos de travagem com a extensão de 22 mt (cf. a resposta positiva ao art.º 28.º), lícito se torna concluir que avistou o RV a uma instância superior. Não obstante poder tal facto ser considerado em sede de decisão, motivo não se vê para alterar a resposta dada, que se mostra conforme à prova produzida.

No que se reporta às respostas dadas aos artigos 11.º, 19.º, 20.º, 23.º, 24.º, 26.º e 27.º, tendo essencialmente em consideração o testemunho prestado pela interveniente no acidente E..., que o Ex.mº Juiz “a quo” destacou mas que, em nosso entender, não relevou devidamente, não serão as mesmas de manter nos seus precisos termos.

Antes de mais, é de toda a justiça assinalar a forma exemplarmente sã e consistente como a referida condutora do XD depôs, fornecendo um relato do acidente coincidente, na sua essência, com aquele que resultou do depoimento de parte prestado pelo próprio réu B..., coerência que confere muito naturalmente credibilidade ao depoimento de um e do outro. Depois, elementos como os registos fotográficos do local e do veículo XD após o embate, a informação fornecida pela participação policial, especialmente mediante o croquis então elaborado, e o depoimento da testemunha F... não permitem manter as respostas dadas. Em relação a esta última, desde já se refere, não secundamos o juízo a propósito expressado pelo Mm.º juiz “a quo”, a quem o depoimento prestado mereceu reticências, apelidando-a de testemunha surpresa -por como tal não se ter apresentado perante a GNR- alegadamente presencial do acidente. Acontece que, ouvidas as declarações prestadas, não só a testemunha não declarou ter presenciado o acidente -precisou que se apercebeu da aproximação do XD, que “vinha de cima” (sic) (ou seja, pela sua frente), virou costas para entrar na loja à qual se dirigia quando ouviu a travagem, seguida do barulho do embate, o que fez muito naturalmente com que se virasse, deparando-se com os veículos já embatidos atrás de si-, como referiu expressamente que deixou o local antes da chegada da GNR. Acresce que mencionou pormenores, como aquele da condutora do XD ter sido retirada da viatura e depositada na berma, o que a própria confirmou, sugestivos da sua presença no local, não suscitando o teor das declarações prestadas a mais leve suspeita quanto à sua veracidade.

Isto dito, não há dúvida que o réu B... imobilizou o veículo no entroncamento, assim tendo sido avistado pela condutora do XD, que foi a tal propósito peremptória, afirmando e reiterando ter visto “o senhor parado para entrar” (sic), outro tanto tendo afirmado aquele. Daí que não possa obviamente subsistir a resposta negativa dada ao artigo 19.º, que assim se altera para “Provado”.

Por outro lado, também não há dúvida que devido à má visibilidade do entroncamento, agravada pela existência de matos e ervas (em especial uma mimosa que caía para a estrada, conforme detalhou a testemunha António Marques que, na qualidade de Presidente da Junta, ordenou a sua limpeza nos dias imediatos ao acidente -cf a resposta positiva dada ao art.º 17.º) no terreno adjacente à vala do lado direito da estrada, considerando o sentido de marcha do XD, só penetrando com a frente do veículo na dita estrada do aeródromo os condutores que provinham da Rua do Campo de Futebol conseguiam avistar os veículos que se aproximavam pelo seu lado esquerdo (cf. resposta positiva ao artigo 18.º). Diversamente, conforme confirmou, a condutora do XD tinha visibilidade para o entroncamento, o que lhe permitiu ver o veículo conduzido pelo réu ali imobilizado. E por isso continuou a sua marcha. Todavia, conforme relatou, viu-se surpreendida pelo avanço daquele outro veículo, que se atravessou na sua faixa de rodagem, motivo pelo qual meteu travões a fundo, tentando imobilizar a viatura, o que não logrou conseguir, em seu dizer devido ao estado do piso, que se encontrava então molhado. Face à iminência da colisão, e para evitar embater em cheio na porta do condutor do outro veículo, guinou o seu veículo para a esquerda, acabando por embater com a frente, lado esquerdo, do veículo que conduzia, na parte lateral esquerda, da porta para a frente, do veículo RV o qual, aquando do embate, percepcionou como estando imobilizado na via. Mais referiu estar agora convencida de que o condutor do RV não a tinha de facto avistado ou, em alternativa, tinha avaliado mal o tempo de que dispunha até o veículo por si conduzido chegar ao entroncamento, hipótese esta que descartamos, atendendo a que o R. entrou vagarosamente na estrada, o que não é compatível com a realização de mudança de direcção à esquerda face à aproximação de um outro veículo, em que a natural reacção do condutor é executar a manobra com a maior rapidez possível.

E tal relato do acidente trazido pela condutora do XD é, diga-se uma vez mais, idêntico ao que resulta do depoimento do réu B.... Declarou este que, após ter imobilizado o veículo no entroncamento, precaução que tomou devido à má visibilidade, não tendo avistado qualquer veículo, avançou vagarosamente pela estrada do aeródromo, na qual pretendia tomar o sentido Viseu-Aeródromo, o que implicava efectuar manobra de mudança de direcção à esquerda. Aí avançou cerca de 1mt-1,5 mt em sua estimativa, após o que se viu surpreendido com o barulho da travagem, seguindo-se-lhe o embate, sendo certo que quando foi embatido pelo XD se encontrava parado.

Face às referidas versões, no essencial concordantes, assentemos pois em que o veículo XD foi embater com a sua parte lateral direita na frente esquerda do veículo RV, o que aliás, resulta corroborado pelos registos fotográficos juntos atinentes à zona dos veículos onde se verificaram os estragos (atente-se nos danos sofridos pela viatura conduzida pela testemunha E... nos registos de fls. 119 e 122, perfeitamente compatíveis com a versão relatada). Daí a alteração das respostas dadas ao art.º 11.º, que passará a ser de “Não Provado”, e também ao art.º 27.º, este merecendo a resposta de Provado.

Também o perguntado nos artigos 20.º e 21.º resultou demonstrado, com excepção da concretização da velocidade a que avançou o RV, alterando-se portanto em conformidade o sentido das respostas dadas.

Quanto ao art.º 23.º, ao contrário do que pretendem os apelantes, a condutora do XD não “confessou” ter-se apercebido do RV quando este se encontrava já com a frente na estrada do aeródromo; na verdade, o que a testemunha afirmou foi coisa diversa, declarando ter avistado aquele veículo imobilizado à entrada do entroncamento, neste sentido se alterando a resposta negativa dada ao artigo em causa.

Em relação ao 24.º, para lá da resposta proposta exceder o âmbito do quesito formulado, não temos de modo nenhum como demonstrado que a condutora do XD não tenha conseguido evitar o embate devido a ter fechado os olhos após iniciar a travagem e tirado simultaneamente as mãos do volantes. Sendo verdade ter a testemunha afirmado que, face à iminência do embate, fechou efectivamente os olhos, certo é que a colisão era então, segundo as suas palavras, iminente, pelo que ter os olhos abertos ou fechados era, neste preciso momento e para tal efeito, indiferente. Depois, não surpreendemos do seu depoimento -ressalvando a hipótese de ter replicado em audiência o gesto feito, e que ficou subtraído à gravação- que tenha tirado as mãos do volante, tapando com elas os olhos; aliás, tendemos a considerar que a referência ao fechar de olhos exclui, de algum modo, o tapar de olhos com as mãos. De realçar ainda ter a testemunha relatado que para evitar embater em cheio na porta do condutor do veículo RV, o que poderia magoá-lo gravemente, guinou o volante para a esquerda, o que indicia que, tendo percepcionado o perigo, executou manobra adequada a minorá-lo, incompatível com a actuação desastrada que emerge da versão pretendida pelos recorrentes.

Já quanto à questão da velocidade, ficou apurado que na ocasião o XD circulava a não menos de 60 Km/hora, resposta mais uma vez assente nas declarações da própria condutora, apesar da testemunha F..., num primeiro momento de frente para o veículo, que viu aproximar-se, ter percepcionado que “para o carrito que era - um Fiat pequenito” (sic)  “vinha a andar um bocadito demais”, tendo ainda em atenção “o tempo que estava”. De todo o modo, essa foi a velocidade tida por assente -resposta não impugnada- sendo certo ainda que, tendo os RR alegado (na esteira aliás do que resultava do relatório pericial) que a velocidade máxima permitida para o local era de 50 Km/hora, nada nesse sentido foi apurado (ou sequer perguntado).

Não obstante, mesmo considerando uma velocidade instantânea de 60 Km/hora, ponderando as características da via -estrada com uma largura total de 5,20 mt e piso molhado- e a aproximação de um entroncamento (que, de resto, a condutora avistou, sendo certo ainda que por ali passava com alguma frequência, por se situar nas proximidades a residência dos sogros, da qual provinha na ocasião), atentando ainda na extensão do rasto de travagem deixado pelo veículo XD, afigura-se lícito concluir que a sua condutora não logrou imobilizar a viatura devido à velocidade a que circulava e estado do piso, neste sentido se alterando a resposta negativa que mereceu o art.º 24.º.

No que respeita ao art.º 26.º, apesar da referida testemunha E... ter referido que quando accionou os travões o carro deslizou, tendo ido de raspão, a verdade é que, conforme se assinalou, ainda virou a direcção à esquerda -os rastos de travagem denunciam essa direcção- a fim de evitar uma colisão mais directa no RV, indiciando que, conforme declarou, a despeito de a não ter conseguido imobilizar, não perdeu exactamente o controle da viatura. Daí que se mantenha a resposta dada a este artigo.

Centrando agora a nossa atenção nos artigos 29.º, 30.º e 31.º, desde já se refere não proceder, quanto às respostas que lhes foram dadas pelo Mm.ª juiz “a quo”, as objecções dos apelantes.

Pretendem os recorrentes que do depoimento da testemunha I... resulta que na ocasião o réu B... estaria a conduzir a viatura RV a solicitação deste, actuação em tudo alheia à Ré sociedade.

A respeito, não ficámos com dúvidas quanto ao facto de não ter ficado demonstrado que o réu B... se encontrava a fazer a experimentação da viatura, em contrário do consignado no auto de declarações elaborado aquando da averiguação levada a cabo pela ré seguradora. A este propósito, há que dizê-lo, ouvido o perito averiguador, a testemunha P... , ficámos com muitas dúvidas quanto à influência que possa ter tido na redacção final daquele depoimento, tendo sido, neste conspecto, mais eloquentes os seus silêncios e a alegação de que já não estava certo do que exactamente se passara, do que a afirmação genérica de que as testemunhas escrevem o que bem entendem. Não obstante, a verdade é que também o Mm.º Juiz disso se não terá igualmente convencido, atento o teor restritivo da resposta dada ao artigo 29.º, o qual acolhera tal alegação da ré. Aliás, conforme resultou dos depoimentos das testemunhas H..., que trabalha para a ré sociedade como administrativa, e O..., técnico de electrónica mecânica que na ocasião procedeu à reparação do RV, o réu B... não exercia ali funções de mecânico, nem aquela concreta avaria demandava necessidade de experimentar a viatura após a reparação, conforme esclareceu a aludida testemunha Varanda.

Temos assim como seguro que, encontrando-se a viatura já reparada, seria intenção do réu B... proceder à sua entrega no stand N..., gerido pela testemunha I..., que tal solicitara, o que confirmou em audiência e foi dado como assente (cf. resposta ao artigo 35.º), aqui se abrindo um parêntesis para esclarecer que o cliente da ré sociedade era, na circunstância, o referido I... -ou o stand N..., no caso de ser pessoa colectiva por aquele gerida, o que se desconhece- que vendera o veículo RV à testemunha C.... Tendo este último reclamado uma deficiência de funcionamento da viatura dentro do período de garantia concedido, entregou a mesma no stand que, por sua vez, a entregou nas instalações da ré sociedade para que procedesse à sua reparação.

No entanto, e conforme o Mm.º juiz “a quo” destacou na motivação da decisão, esclareceu o réu no seu depoimento de parte que na precisa ocasião do acidente dirigia-se antes a uma fábrica de estofos, a fim de verificar se se encontravam prontos aqueles que ali haviam sido deixados a reparar pela ré sociedade um tempo antes.

Ora, se o gerente de uma sociedade que explora uma oficina acede ao pedido de um cliente no sentido de proceder à entrega de um veículo já reparado em determinado local, ao invés de ser o cliente a ir buscá-lo, afigura-se que conduzirá a viatura já no interesse deste e não da sociedade reparadora, uma vez que a obrigação de entrega não estaria compreendida no acordo celebrado, tratando-se de uma mera cortesia[1]. Não obstante, assim já não sucederá quando utiliza a viatura que lhe foi confiada para “fazer um recado” à sociedade, caso em que a condução se fará, ainda aqui, no interesse e seguindo instruções desta, tal como ficou consignado na resposta que mereceram os artigos 29.º e 30.º.

Nestes termos, e porque dos depoimentos assinalados não resultou contrariado o sentido das respostas impugnadas, são as mesmas mantidas.

*

II. Fundamentação

De Facto

Agora definitivamente estabilizada, é a seguinte a matéria de facto a considerar:

1. Na data de 19 de Junho de 2007, pelas 15h.40m, na Estrada Municipal que liga o Aeródromo a Vala, no concelho de Viseu, ocorreu um embate em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula “ (...)RV”, propriedade de C... e conduzido pelo Réu B..., e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula “XD(...)”, propriedade de D... e conduzido por E... (al. A) da MA).

2. No local do acidente o piso é em asfalto (ponto n.º 2 da BI).

3. A faixa de rodagem tem uma largura de 5,20 metros (ponto n.º 3 da BI).

4. O local do embate referido em 1. configura uma recta com entroncamento à direita, proveniente do Campo de futebol da Muna, atento o sentido de marcha Estrada Municipal do Aeródromo/Viseu (ponto n.º 1 da BI).

5. Na via que provém do Campo de futebol da Muna, e junto ao entroncamento referido em 4., encontra-se colocado o sinal vertical B1 (ponto n.º 10 da BI).

6. No circunstancialismo de tempo e lugar referido em 1. o tempo estava de chuva.

7. Na ocasião, o veículo “XD” circulava na Estrada Municipal do Aeródromo, na direcção Estrada Municipal do Aeródromo/Viseu (ponto n.º 4 da BI).

8. Pelo lado direito da hemi-faixa de rodagem respectiva (ponto n.º 5 da BI).

9. O veículo “RV” circulava na estrada do Campo de Futebol em direcção à estrada do Aeródromo (ponto n.º 6.º da BI).

10. E pretendia sair do entroncamento referido em 4. para iniciar a sua marcha na Estrada Municipal do Aeródromo (ponto n.º 7.º da BI).

11. O veículo RV pretendia mudar de direcção à esquerda, para tomar o sentido de circulação Viseu-Aeródromo (ponto n.º 21.º da BI).

12. No circunstancialismo de tempo e de lugar referido em 1., o terreno adjacente ao lado direito da Estrada do Aeródromo, atento o sentido Aeródromo/Viseu, encontrava-se com ervas e arbustos altos (ponto n.º 16.º da BI).

13. No entroncamento referido em 4., os condutores que provêm da Rua do Campo de futebol só conseguem aperceber-se do trânsito que circula na Estrada do Aeródromo, no sentido Aeródromo-Viseu, quando já se encontram com a parte da frente dos respectivos veículos dentro da faixa de rodagem da Estrada do Aeródromo, no sentido Aeródromo/Viseu (ponto n.º 18.º da BI).

14. No circunstancialismo de tempo e lugar referido em 1. o condutor do veículo RV parou à entrada do entroncamento referido em 4. (resposta ao art.º 19.º).

15. E reiniciou a sua marcha, de modo a que a frente do veículo entrasse na Estrada do Aeródromo (resposta ao art.º 20.º).

16. A condutora do veículo XD apercebeu-se da presença da viatura RV quando esta se encontrava imobilizado à entrada do entroncamento (resposta ao art.º 23.º)

17. No circunstancialismo de tempo e de lugar referido em 1., o veículo “XD” circulava a uma velocidade de pelo menos 60 Km/horas (ponto n.º 15.º da BI).

18. Ao aperceber-se do veículo RV na faixa de rodagem da estrada do Aeródromo, a condutora do “XD” travou a fundo e entrou em derrapagem (ponto n.º 25.º da BI).

19. A condutora do XD não conseguiu imobilizar o veículo devido à velocidade a que circulava e estado do piso, que se encontrava molhado (resposta ao art.º 24.º).

20. Indo embater com a parte lateral direita do XD na frente esquerda do veículo RV (resposta ao art.º 27.º).

21. O embate referido ocorreu na Estrada Municipal do Aeródromo, na direcção Estrada Municipal do Aeródromo/Viseu, na hemi-faixa direita de rodagem, considerando o sentido de marcha do XD, próximo da linha longitudinal descontínua que divide os dois sentidos de trânsito (ponto n.º 12.º da BI).

22. O veículo “XD” deixou rastos de travagem de 22 metros (ponto n.º 28.º da BI).

23. Algum tempo depois do acidente referido em 1., a Junta de Freguesia de Campo mandou limpar o referido terreno adjacente (ponto n.º 17.º da BI).

24. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1., o Réu B... conduzia o veículo “RV” ao serviço da Ré “ G..., Lda.” (ponto n.º 29.º da BI).

25. Sob as suas ordens e no seu interesse (ponto n.º 30.º da BI).

26. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas em 1., o veículo “RV” tinha sido confiado à Ré “ G..., Lda.” para reparação (ponto n.º 31.º da BI).

27. O veículo “RV” tinha sido colocado nas instalações da Ré “ G..., Lda.” na data referida em 1., no período da manhã (ponto n.º 32.º da BI).

28. Aquando do referido em 1., o veículo “RV” já se encontrava reparado (ponto n.º 33.º da BI).

29. I... solicitou à Ré “ G..., L.da” o favor de entregar o “RV” nas suas instalações, por não ter possibilidades de o ir buscar às oficinas daquela (ponto n.º 35.º da BI).

30. Em consequência do acidente referido em 1., a condutora do “XD” sofreu ferimentos (ponto n.º 36.º da BI).

31. E teve que ser conduzida ao Hospital São Teotónio, em Viseu, onde recebeu tratamento médico (ponto n.º 37.º da BI).

32. O acidente referido em 1. ocorreu quando a condutora do XD se dirigia para o seu local de trabalho para iniciar a sua jornada de trabalho (ponto n.º 38.º da BI).

33. Correram termos pelo 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Viseu os autos de Processo n.º 22/08.3TTTVIS, em que foi Autora E... e Ré a “ M... – Companhia de Seguros, S.A.”, e nos quais foi proferida sentença a considerar a Autora afectada de uma incapacidade permanente parcial de 8% e a condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 60,00€, relativa a despesas de transporte, e a uma pensão anual e vitalícia de 427,75€, nos termos constantes de fls. 38 a 40, cujo teor, no mais, se tem por integralmente reproduzido (al. B) da MA).

34. A sentença referida em 33. foi proferida na sequência da ocorrência do acidente referido em 1. e do referido em 32. (ponto n.º 39.º da BI).

35. No âmbito dos referidos autos a “ M... – Companhia de Seguros, S.A.” pagou à condutora do “XD” a quantia de 10.750,71€ (ponto n.º 40.º da BI).

36. Em consequência da ocorrência do acidente referido em 1., o Autor reembolsou a “ M... – Companhia de Seguros, SA” do valor referido em 35. (ponto n.º 41.º da BI).

37. O Réu B...é sócio e gerente da Ré “ G..., Lda.” (cfr. certidão do registo comercial de fls. 138 a 140 cujo teor, no mais, se tem aqui por integralmente reproduzido) (al. C) da MA).

38. Aquando da ocorrência do embate referido em 1., a Ré “ G..., Lda.” não era titular de qualquer contrato de seguro na qualidade de garagista (al. D) da MA).

39. Aquando da ocorrência do embate referido em 1., o Réu B...não era titular de qualquer contrato de seguro na qualidade de automobilista (al. E) da MA).

40. O Autor remeteu ao Réu B..., na data de 27 de Fevereiro de 2009, o escrito com o teor constante de fls. 58, que se tem aqui por integralmente reproduzido (ponto n.º 43.º da BI).

41. E na data de 08 de Outubro de 2009, o escrito com o teor constante de fls. 59, que se tem aqui por integralmente reproduzido (ponto n.º 44.º da BI).

42. Por escrito constante da apólice com o número 0001558025, datado de 02 de Março de 2007, C... declarou transferir para a titularidade da Ré “Companhia de Seguros A..., S.A.”, a qual declarou assumir as obrigações decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula “ (...)RV”, conforme documento de fls. 97 a 100, cujo teor se tem aqui por integralmente reproduzido (al. F)) da MA).

*

De Direito

ii. dos pressupostos da responsabilidade civil: da culpa.

Estando-se perante uma acção assente na responsabilidade civil emergente de acidente de viação, mister se torna indagar da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, tal como resultam do preceituado no art.º 483.º do Código Civil,[2] a saber: o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao agente, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No caso dos autos, e conforme se ponderou na decisão apelada, sendo incontroversa a existência do facto ilícito consubstanciado no acidente, enquanto ocorrência resultante da acção humana lesiva de bens jurídicos de carácter patrimonial, aqui traduzido na violação de direitos absolutos, o pressuposto em discussão é o nexo de imputação do facto ao lesante -que pode revestir as modalidades de culpa ou risco, havendo ainda a considerar, neste contexto, quanto dispõe o n.º 1 do art.º 506.º, ao determinar que se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade deve ser repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos.

O A., dizendo-se sub-rogado nos direitos da lesada condutora do veículo “XD”, imputou a responsabilidade pelo acidente ao condutor do veículo seguro na 1.ª R., o “RV”, invocando que o mesmo não respeitou o sinal B1 e invadiu a faixa de rodagem por onde seguia o “XD”, infracção que teria sido causal do embate. Contrapõem os RR que o acidente se ficou a dever a culpa da condutora do XD, por circular com excesso de velocidade, tendo ainda revelado desconsideração e imperícia, assim dando causa à colisão.

Apelando à factualidade relevante, não há dúvida ter-se apurado que o condutor do RV, o réu B..., parou na entrada do entroncamento, aí tendo sido avistado pela condutora do XD. Desta circunstância extraem os apelantes a conclusão de que a dita condutora tinha tempo e espaço para imobilizar a viatura que conduzia e assim evitar o embate, o que não fez, sendo por isso de lhe imputar em exclusivo a culpa pela sua ocorrência. Tal ilação, todavia, não a validamos. Com efeito, circulando na via prioritária e vendo que o veículo conduzido pelo réu se encontrava imobilizado à entrada do entroncamento, a testemunha confiou muito naturalmente que aquele condutor aguardaria pela sua passagem, no pressuposto de que, conforme o avistava, também por ele estaria a ser avistada.

No que respeita ao condutor do RV, impunha-lhe o sinal B1 então implantado no local que cedesse a passagem a todos os veículos que transitassem na via de que se aproximava (cf. art.º 21.º do Dec Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro). Este sinal, conforme dispõe o art.º 22.º n.º 1 deste diploma, deve ser colocado na proximidade imediata da intersecção, tanto quanto possível na posição correspondente ao local onde os condutores devem parar e aguardar a passagem dos veículos na via com prioridade.

No caso, resultou demonstrado que o condutor do RV, seguramente conhecedor da reduzida visibilidade daquele concreto entroncamento, imobilizou a viatura à entrada do mesmo, posição em que foi avistado pela condutora do XD. No entanto, resultou igualmente provado que só penetrando na via prioritária tinha visibilidade para o lado esquerdo, de onde provinha esta viatura. Se assim era, teria o R. B... que avançar com toda a precaução, a fim de perscrutar a via prioritária, assegurando-se que não se aproximava nenhum veículo. Claro que poderá sempre objectar-se que se o veículo XD circulasse a grande velocidade, dada a escassa visibilidade que aquele condutor detinha para o lado esquerdo, tomasse as precauções que tomasse e o embate seria sempre inevitável. Mas não terá sido o caso, não tendo os RR logrado fazer prova de que após ter penetrado na via prioritária o 2.º R, ao volante do RV, tenha voltado a assegurar-se de que não se aproximava nenhum veículo, antes tendo avançado na realização da manobra de mudança de direcção à esquerda que pretendia fazer, vindo a ser embatido em plena hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de marcha do XD, já próximo do eixo da via. Face à dinâmica do embate que emerge da factualidade ora destacada, tendemos a considerar ter ocorrido infracção do dito sinal B2 que, não impondo a paragem, impõe todavia que se ceda passagem a todo o veículo que circule na via prioritária.

Todavia, analisada a conduta da condutora da viatura XD, entendemos que também esta contribuiu para a colisão devido à velocidade a que seguia e que não poderá deixar de se considerar excessiva. Com efeito, gozando embora do direito de passagem (ou prioridade de passagem), o que implica a faculdade de prosseguir a sua marcha sem alteração da velocidade ou direcção (cfr. n.º 1 do art.º 29.º do Código da Estrada), a verdade é que, conforme há muito se tem por assente, este direito não é absoluto, não isentando o seu titular de “observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito”, para utilizar as palavras da lei, assim reiterando a consagração de um dever geral de cuidado, acentuando os méritos de uma condução defensiva/preventiva. Deste modo, não sendo embora de impor ao condutor cauteloso que conte com a imprevidência alheia, exige-se-lhe no entanto a adopção de uma condução cautelosa e atenta, de modo a salvaguardar, em cada momento, a sua própria segurança e a dos demais utentes da via.

Por outro lado, impõe o art.º 24.º do referido diploma que o condutor regule a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, condições meteorológicas e ambientais e quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, velocidade que, acrescenta o preceito imediato, deve ser especialmente reduzida nos entroncamentos (cf. al. f) do art.º 25.º). Tais comandos, atento o elenco dos factos apurados -via com a largura de apenas 5,20 mt, piso escorregadio devido à chuva e aproximação de entroncamento de reduzida visibilidade onde, para além do mais, avistou um veículo, e bem assim a extensão dos rastos de travagem- temo-los por violados pela condutora do XD, infracções que foram, também elas, causais do embate.

Atento quanto se expôs, e em conclusão, atenta a factualidade apurada atinente à dinâmica da colisão, tendemos a considerar que a mesma eclodiu por culpa de ambos os condutores, havendo que fixar o contributo de cada um em partes iguais, atento o disposto no n.º 2 do citado art.º 506.º (disposição legal que dispõe também para as colisões culposas), assim se afastando o juízo da 1.ª instância no sentido da culpa ser de atribuir, em exclusivo, ao réu B....

    *

iii. da responsabilidade da Seguradora 1.ª Ré e, subsidiariamente, dos 2.º e 3.ª RR.

No caso em apreço está provado que por escrito constante da apólice com o número 0001558025, datado de 02 de Março de 2007, C..., na qualidade de proprietário da viatura RV, havia transferido para a Ré Companhia de Seguros A..., S.A. as obrigações decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula “ (...)RV”, conforme documento de fls. 97 a 100 dos autos.

Todavia, na ocasião do acidente, a viatura era conduzida pelo réu Réu B..., tendo a 1.ª Ré seguradora declinado qualquer responsabilidade na regularização do sinistro por entender que aquele o conduzia na qualidade de mecânico da oficina de automóveis explorada pela 3.ª Ré, a quem o veículo tinha sido confiado para ser reparado, de modo que não era o titular do contrato de seguro quem na ocasião detinha a sua direcção efectiva.

Previamente, há que referir ser aplicável o DL 522/85, de 31 de Dezembro, ainda em vigor à data em que eclodiu o acidente ajuizado.

Tal como se afirmou na decisão apelada, o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel configura-se efectivamente como um contrato forçado, excepcional em face do princípio da liberdade contratual consagrado no art.º 405.º do CC. Assim, e nos termos do preceituado no art.º 1.º do dito DL 522/85 “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade”.

Harmonizando-se com o carácter obrigatório deste seguro, o art.º 29.º dispõe no sentido das acções destinadas à efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação deverem ser deduzidas obrigatoriamente contra a seguradora, quando o pedido formulado se contenha dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, respondendo esta na medida da responsabilidade do seu segurado.

Epigrafado de “Sujeitos da obrigação de segurar”, o art.º 2.º faz recair esta obrigação ainda sobre os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exerçam a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento de veículos, quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito das referidas actividades profissionais (cf. o n.º 3). Nos termos do n.º 4 podem ainda ser celebrados seguros de automobilista.

Dispõe, por seu turno, o art.º 15.º do mesmo diploma que “No caso de, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros ao abrigo do art.º 2.º responde, para todos os efeitos legais, o seguro referido no n.º 3 ou, em caso de inexistência deste, o referido no n.º 4 ou, em caso de inexistência destes dois, o referido no n.º 2 do mesmo artigo”.

Face aos convocados normativos colocava-se fundadamente a questão de saber -e aqui mais uma vez se colocou- se no caso de ocorrência de sinistro com veículo confiado a garagista ou equiparado, sendo este sujeito da obrigação de segurar que a não haja cumprido, o responsável pela indemnização deverá ser a seguradora, por força de contrato celebrado pelo detentor ou proprietário, em obediência ao disposto no n.º 1 do art.º 2.º, ou antes o FGA, nos termos previstos no art.º 21.º daquele diploma.

“Prima facie”, há que referi-lo, à luz dos factos apurados com relevância para a dilucidação da questão que nos ocupa, não suscita dúvida a conclusão a que chegou o Mm.º juiz “a quo” no sentido de, aquando do acidente, o réu B... conduzir a viatura RV segundo as instruções e no interesse da ré sociedade que representava, circulando assim no interesse desta, que detinha a efectiva direcção do veículo, subtraída que estava ao seu proprietário.

Dúvida não há também que, explorando a ré sociedade uma oficina de reparação de veículos automóveis, era sujeito abrangido pela obrigação de segurar nos termos prescritos pelo n.º 3 do art.º 2.º do dito DL 522/85, de 31/12, obrigação que não cumprira.

É certo que o art.º 8.º do diploma em referência, epigrafado de “Pessoas cuja responsabilidade é garantida”, dispunha no sentido do contrato de seguro garantir a responsabilidade civil do tomador do seguro, dos sujeitos da obrigação de indemnizar nos termos do art.º 2 (sem distinção) e dos legítimos detentores e condutores do veículo (cf. o n.º 1 do preceito). Não obstante o assim estipulado, afigura-se que tal normativo não comportava nenhum desvio à regra constante do art.º 503.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos da qual a obrigação de indemnizar recai sobre aquele que detém a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu interesse, aí encontrando o seu fundamento. Assim sendo, como nos parece que é, se a direcção efectiva é exercida pelo garagista -por si ou por intermédio de um seu comissário- sendo também ele sujeito da obrigação de indemnizar, não tendo celebrado contrato de seguro recaímos no âmbito da previsão do art.º 21.º do DL 522/85, competindo ao FGA a satisfação da indemnização que for devida, por inexistência de seguro válido.[3] Acresce que na hierarquia estabelecida pelo já citado art.º 15.º era omitida referência ao seguro celebrado pelas pessoas a que aludia o n.º 1 do art.º 2.º, daqui resultando, parece-nos, a exclusão do contrato de seguro que o proprietário (usufrutuário, adquirente ou locatário) houvesse celebrado,[4] solução que não foi seguida pelo DL 291/2007, de 21 de Agosto[5] que, todavia, e conforme se deixou consignado, não é aplicável ao caso dos autos.

Assim sendo, competindo ao FGA satisfazer, nos termos prevenidos pelo art.º 21.º do DL 522/85, de 31/12, a indemnização correspondente, fica sub-rogado nos direitos do lesado (cf. art.º 25.º), conferindo-lhe ainda a lei direito a reclamar o juro de mora legal e o reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança. Todavia, considerando a medida do contributo do condutor do RV para a produção dos danos, os 2.º e 3.ª RR serão responsáveis apenas por 50% da indemnização que for devida.

*

iv. da obrigação de indemnizar a cargo do FGA e da sub-rogação legal

Finalmente, pretendem os apelantes que, não tendo sido intervenientes na acção que correu termos no Tribunal de Trabalho e no âmbito da qual foi fixada a indemnização à lesada E... que o apelado FGA acabou por satisfazer, não tendo este logrado fazer prova nos autos dos danos por aquela sofridos -factualidade que nem sequer alegou- não pode exigir aqui o reembolso da quantia paga.

Não parece suscitar dúvida o entendimento de que o FGA só se encontra subrogado nos valores que haja pago mediante a demonstração de que correspondem à indemnização devida.

Está em causa o montante de € 10 750,71, que se apurou ter sido arbitrado à sinistrada E... em acção que correu termos no Tribunal de Trabalho, no âmbito da qual se apurou ter sofrido as lesões ali discriminadas e que implicaram ficasse portadora de uma IPP. Tais factos, de resto invocados pelo autor na presente acção, deram origem ao arbitramento da aludida indemnização que, por ter sido judicialmente fixada, podia naturalmente ser coercivamente cobrada, caso os obrigados não tivessem procedido ao seu pagamento voluntário. Estamos assim perante danos inequivocamente originados pelo acidente dos autos, pelo que o FGA, ao satisfazer tal montante indemnizatório, pagou bem, tendo direito ao respectivo reembolso.

Já quanto às reclamadas “despesas com a instrução e regularização do sinistro”, não as concretizou o autor minimamente, tendo-se limitado a reproduzir no artigo 53.º da petição inicial as palavras da lei, afigurando-se que tal ausência de concretização não permite o reconhecimento de uma obrigação futura, mas determinável, que desde já impenda sobre os demandados[6]. Não obstante, e como se vê das conclusões que se deixaram transcritas, os apelantes não puseram directamente em causa este segmento decisório, donde manter-se, nesta parte, a sentença apelada.

      *

III Decisão

Em face a todo o exposto e na parcial procedência do recurso, acordam os juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em revogar em parte a sentença recorrida, condenando solidariamente os RR B...e G... L.da a entregarem ao autor FGA a quantia de € 5 375,35 (cinco mil, trezentos e setenta e cinco euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos desde a data da citação e vincendos até integral pagamento, contados à taxa supletiva legal de 4%, no mais se absolvendo.

Custas nesta e na primeira instância a cargo do autor e dos RR condenados, na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo da isenção de que o primeiro beneficia.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida

[1] cf., neste preciso sentido, o aresto do STJ de 21 de Abril de 2009, processo n.º 1550/06.0 TBMTJ.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[2] Diploma ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.

[3] Cf., neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 3 de Novembro de 2009, processo n.º 3542/08.6 TBSTS.P1, acessível em www.dgsi.pt., no qual a questão é tratada de forma desenvolvida, com abundantes referências jurisprudenciais, e da Relação de Lisboa de 14/6/2012, CJ ano xxxvii, tomo 3.º, págs. 114 a 117.

[4] Neste sentido, acórdão desta Relação de Coimbra de 29/11/2005, processo n.º 3359/05, também disponível em www.dgsi.pt.

[5] Tal é o que resulta do disposto no art.º 23.º, dispondo que no caso da existência de pluralidade de seguros o seguro do proprietário também responde subsidiariamente, assim divergindo do disposto no art.º 15.º do DL 522/85, prevendo ainda, harmonicamente, que a seguradora do proprietário ou demais pessoas referidas no artº 6.º (sucessor do art.º 2º D.-L. nº 522/85) possa ver satisfeito o seu direito de regresso contra o responsável pelo acidente (garagista) que tenha incumprido a obrigação de seguro de garagista (cf. art.º 27.º, n.º 1, al. f).

[6] Neste preciso sentido acórdão da Relação do Porto de 3/9/2009 já citado.