Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
14/23.2YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
MDE
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
CRITÉRIO DA DUPLA INCRIMINAÇÃO
RECUSA FACULTATIVA
RESERVA DE SOBERANIA
CRIME DE SUBTRACÇÃO DE MENOR
CONSUMAÇÃO DO CRIME
CRIME PERMANENTE
CRIME DE EXECUÇÃO REITERADA OU DURADOURA
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO DO MANDADO
Legislação Nacional: CONVENÇÃO DA HAIA DE 1980
ARTIGOS 1.º, 11.º, 12.º, 13.º E 21.º, N.º 4 E 5, DA LEI N.º 65/2003 DE 23 DE AGOSTO
ARTIGOS 56.º, N.º 1, E 74.º, N.º 1, DA LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO
ARTIGO 61.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E F), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária, feita directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados membros, visa a detenção e entrega por um Estado membro de pessoa procurada por outro Estado membro, que emite o mandado para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, nos termos do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto, e é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo, que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados membros da UE, em conformidade com o disposto naquela Lei e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06.

II – Em caso de oposição à execução do MDE o julgamento decorre perante o Tribunal da Relação, que funciona como tribunal de 1.ª instância, constituído pelo juiz relator e dois juízes adjuntos, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, ex vi artigo 74.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, decorrendo da aplicação subsidiária do artigo 61.º, n.º 1, alíneas a) e f), do Código de Processo Penal que a pessoa procurada tem o direito de estar presente em audiência assistida por defensor, cuja presença é obrigatória, nos termos do artigo 21.º, n.º 4 e 5, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

III – Tendo em conta que a execução de um MDE traduz uma restrição importante ao direito à liberdade, num horizonte territorial alargado, e o período de tempo em que a detenção potencialmente se pode manter sem que seja tomada a decisão final de entrega, a sua prossecução e a decisão que a montante é tomada quanto à sua emissão devem obedecer aos princípios da legalidade, da excepcionalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade lato sensu.

IV – No processo de execução de MDE a intervenção do tribunal do Estado de execução é exígua e a actividade judicial a exercer é limitada à verificação da regularidade do mandado, dos requisitos formais do mandado, à ocorrência de situação de recusa da sua execução e ao controle do respeito pelos direitos fundamentais, não tendo de se pronunciar sobre a bondade, utilidade, adequação ou oportunidade da emissão do MDE.

V – O MDE está sujeito a uma reserva de soberania que, nalguns casos, impõe à autoridade judiciária portuguesa a recusa de execução do mandado, noutros permite-lhe a recusa do mandado e que solicite ao Estado de emissão a prestação de garantias especiais para que o mandado possa ser executado, como decorre dos artigos 11.º, 12.º e 13.º da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto.

VI – As causas de recusa facultativa de execução, constantes do artigo 12.º, n.º 1, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

VII – O preenchimento de uma das causas de recusa facultativa não autoriza ou determina a imediata recusa de execução do MDE, antes exige a ponderação, face às circunstâncias concretas do caso, dos interesses de ordem pública na prossecução da justiça do Estado-membro de emissão e os correspondentes interesses do ordenamento jurídico do Estado-membro de execução.

VIII – O crime de subtracção de menor não se integra na alínea q) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, respeitando esta a crimes contra a liberdade pessoal, que em Portugal legitimam a existência dos artigos 161.º, 158.º e 162.º do Código Penal, ligados mais à violação dos valores vida, integridade física ou liberdade de um ser humano.

IX – A pendência de processo de promoção e protecção, instaurado em Portugal para colmatar o perigo em que se encontravam as crianças na sequência da detenção da mãe por força deste MDE, não tem qualquer influência processual substantiva sobre a decisão a proferir, mesmo que nele se tenha enxertado um pedido de entrega de crianças ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, não dependendo a sua execução do que vier a ser decidido sobre o destino das crianças, a menos que se considere existir grave risco para estas no retorno ao país da sua residência habitual.

X – A Convenção de Haia visa assegurar o retorno imediato das crianças ilicitamente transferidas para outro Estado ou neles retidas indevidamente, fazer respeitar, nos Estados contratantes, os direitos de guarda e de visita neles existentes e assenta nos postulados de que a subtracção ilícita gera uma ruptura negativa na vida da criança e que as autoridades do país da sua residência habitual são as que, em princípio, se encontram em condição mais favorável para decidir sobre a guarda e o local de residência da criança.

XI – O crime de subtracção de menor, do artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal é um crime permanente, de execução reiterada ou duradoura, que se consuma com a não entrega dos filhos ao progenitor para o espaço de convívio determinado por decisão judicial, mas cuja conduta ininterrupta ilegal gera consumação continuada ou consumação seguida de uma persistente violação do bem jurídico.

XII – Tendo a lesão do bem jurídico protegido, a consumação do crime, ocorrido no território do Estado de emissão do MDE, com a não entrega das crianças, mas continuando a compressão em Portugal, a situação enquadra-se no circunstancialismo legal previsto no artigo 12.º, n.º 1, alínea h), ponto i), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

XIII – Tendo o núcleo essencial dos acontecimentos relevantes para a investigação e o exercício do procedimento criminal decorrido no território do Estado de emissão do MDE, a perseguição e conhecimento da infracção deve prosseguir neste Estado, por o acesso aos elementos relevantes ser mais fácil e expedito, sem que daí derivem dificuldades para a defesa da requerida.

Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO

1. O Ministério Público veio, ao abrigo do artigo 16º, nº1, da lei 65/03, de 23/08, alterada pela Lei nº 115/2019, de 12/09, requerer a execução do Mandado de Detenção Europeu, doravante MDE, relativo a:

AA, de nacionalidade neerlandesa, nascida em .../.../1983, natural de ..., titular do documento de identificação holandês nº ..., válido até .../.../2024, com última residência conhecida, em Portugal, na Rua ..., ... ..., ..., ..., onde foi detida, e, nos Países Baixos, em ..., sendo também indicadas as moradas de ..., Bélgica, morada do actual companheiro e coarguido BB nesse país, e ..., ..., Espanha…

2. Após detenção da pessoa procurada na sua residência em Portugal, no dia 17/1/2023, foi a mesma ouvida em 19 de Janeiro de 2023, dentro do prazo legal para o efeito, tendo ela declarado não renunciar ao princípio da especialidade [1] e opor-se à sua entrega às autoridades neerlandesas, opondo-se, assim, à execução deste MDE.

Nessa data foi fixado o seguinte estatuto coactivo: TIR, obrigação de se apresentar diariamente no OPC mais perto da sua residência e proibição de se ausentar do país sem autorização.

3. A requerida requereu prazo para apresentação de defesa, tendo-lhe sido concedido 10 dias para o efeito.

4. Decorrido tal prazo, veio a requerida apresentar oposição escrita onde:

peticiona a suspensão do presente processo para resolução de uma questão prejudicial (a que está a ser discutida no Processo de Promoção e Protecção, pendente desde 17/1/2023 no Tribunal de Família e Menores, doravante TFM ...);

alega que a infracção que fundamenta o MDE não se encontra incluída no catálogo elencado no nº 2 do artigo 2º da Lei nº 65/2003, inexistindo a imperativa e necessária dupla incriminação;

alega que o crime (a ter sido praticado) foi total ou parcialmente cometido em Portugal [o que constitui uma causa de recusa de execução do MDE, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i) da Lei nº 65/2003];

alega que os factos que motivaram a emissão do MDE são do conhecimento do Ministério Público, não tendo ele instaurado o respectivo processo [o que constitui uma causa de recusa de execução do MDE, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea c) da Lei nº 65/2003];

alega que, dando-se deferimento a este MDE, podem estar-se a violar direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade e à segurança da requerida, o que obriga à recusa da sua execução.

A final, pede a recusa da execução do presente MDE.

5. A Exmª Procurador-Geral Adjunta … entendeu que não assiste razão à requerida quando pretende a recusa da execução do presente MDE …

6. Foi efectuado julgamento com um Colectivo de 3 juízes, o qual prosseguiu com o seu legal figurino.

De facto, à disciplina do processo de execução do MDE aplica-se o disposto no Código de Processo Penal (CPP), com as especialidades dos artigos 21º e 22º da Lei nº 65/2003, tendo em conta o objecto e a finalidade do processo, em particular no que diz respeito ao conhecimento das questões que sejam suscitadas na oposição, relativas aos motivos de recusa de execução.

Havendo oposição à execução do MDE, o julgamento do processo de execução do MDE, em que o Tribunal da Relação funciona como tribunal de 1.ª instância, tem lugar mediante audiência em tribunal constituído pelo juiz relator e dois juízes adjuntos (artigo 56º, nº 1, ex vi artigo 74º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), sendo aplicáveis, com as devidas adaptações, as disposições do CPP relativas ao julgamento.

Por aplicação subsidiária dos artigos 61º, nº 1, alíneas a) e f), do CPP, a pessoa procurada tem o direito de estar presente em audiência, assistida por defensor, cuja presença é obrigatória (artigo 21º, nºs 4 e 5, da Lei nº 65/2003).

Seguiu-se, assim, de perto, por se afigurar mais garantístico, o doutrinado pelos Acórdãos do STJ de 12-12-2018, proc. nº 94/18.2YRPRT.S2, e de 24-04-2018, proc. nº 39/18.0YREVR.S1.

7. Foram juntos documentos pela requerida, devidamente traduzidos, constando ainda dos autos, a nosso pedido, várias informações processuais (despachos e relatórios constantes do Processo de Promoção e Protecção nº 141/23...., a correr termos no Tribunal de Família e Menores ... – Juiz ...).

8. O tribunal é o competente e não ocorrem nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer, encontrando-se a requerida representada por defensor oficioso durante o julgamento, após renúncia do mandato por parte do seu anterior mandatário, renúncia essa que já produziu os seus efeitos.

9. Cumpre decidir, e dentro do prazo a que alude o artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Da diversa documentação junta aos autos – cfr. fls 7 a 21, 28 a 32, 63 a 74, 111 a 113, 141 a 145, 166 a 170, 173, 175 a 177, 190 a 202 e sentença proferida no TFM ... de 17/2/2023 - e da audição que se fez à requerida resulta, com interesse para a decisão do presente processo, que:

a. Pelas autoridades judiciárias neerlandesas competentes - juiz de instrução de ..., ... - foi, em 26/10/2022, emitido um mandado de detenção europeu com as referências constantes do expediente/documentação que se junta e inserida no Sistema de Informação Schengen …

b. Esse mandado e respectiva inserção foram emitidos pela circunstância de a requerida estar fortemente indiciada, pelas autoridades judiciárias neerlandesas competentes … da autoria de um crime consumado de rapto de menores da custódia legal, previsto no artigo 279º do Código Penal holandês e punível com pena de prisão, num limite máximo 9 (nove) anos.

c. Para a autoridade que emitiu este MDE, tal delito foi cometido em dia não determinado do mês de Outubro de 2022, em ..., e consistiu no facto de a requerida ser mãe de duas crianças CC, nascido a .../.../2012, e DD, nascida a .../.../2913, ambas nascidas do seu casamento com EE, de quem se divorciou em .../.../2021, «sendo que, não havendo decisão quanto ao exercício parental, e embora tenha ficado decidido no processo de divórcio que a residência principal das crianças seria com a mãe, ambos os progenitores detêm essas autoridade sobre os filhos, e a requerida saiu da Países Baixos e foi viver com os filhos para outros lugares, nomeadamente para Portugal, sem o consentimento do pai dos menores e sem que lhe fosse dado conhecimento do lugar onde se encontravam; daí que as crianças estejam a ser activamente procuradas e haja preocupação relativamente ao seu bem-estar, conforme consta do expediente junto».

d. A Polícia Judiciária, na execução deste mandado de detenção europeu, deteve a requerida, bem como o seu companheiro à ordem de outro mandado de detenção europeu, no dia 17/01/2023, pelas 13,30 horas, em ... - ..., tendo feito a comunicação a este Tribunal para consideração e validação da detenção no âmbito deste MDE.

e. A requerida e seu companheiro BB vieram viver para Portugal, aqui entrando em Novembro de 2022, acompanhados pelos dois filhos menores de idade da requerida e identificados em c.

f. Os filhos da requerida estão, desde 17 de Janeiro de 2023, acolhidos na Casa de Acolhimento ..., à qual foram confiados por decisão judicial cautelar datada de 18/1/2023 [medida de acolhimento residencial prevista no artigo 35º, nº 1, alínea f) da LPCJP], proferida no âmbito de processo de promoção e protecção nº 141/23.... – Juiz ... -, a correr os seus termos no Tribunal de Família e Menores ....

g. No processo referido em f. consta também um pedido de entrega das crianças CC e DD, apresentado perante a Autoridade Central Portuguesa pela Autoridade Central Neerlandesa, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, de 25 de Outubro, tendo tal foro proferido decisão, com data de 17/2/2023, na qual declarou ilícita a deslocação e retenção em Portugal das crianças CC e DD nascidos, respetivamente, em .../.../2012 e .../.../2013, nos Países Baixos, e filhos de AA e de FF, e ordenou o seu regresso imediato aos Países Baixos (Estado da sua residência habitual); e, consequentemente, ordenou a imediata entrega das referidas crianças ao seu progenitor FF, de forma a assegurar tal regresso, de imediato, declarando imediatamente exequível a presente decisão, independentemente de eventual recurso (conforme decisão junta aos autos, cujo teor é aqui dado por inteiramente reproduzido).

h. Ambos os progenitores têm visitado os filhos na CAR, os quais reagem bem às duas visitas (o pai das crianças encontra-se hospedado num Hotel na cidade das ...).

i. O projecto de vida da requerida passa pela fixação com os filhos e companheiro em Portugal, onde têm positivas condições habitacionais.

j. Dou aqui por inteiramente reproduzido o teor da sentença decretada na Países Baixos relativamente ao divórcio da requerida …

k. Dou aqui por inteiramente reproduzido o teor da documentação de fls 173 e 175 a 177.

l. Os filhos da requerida já se encontram na Holanda com o pai, na sequência da decisão mencionada em g.

m. A requerida e o seu actual companheiro iniciaram o seu relacionamento amoroso em 2019.

2. Tendo em conta estes factos, vejamos se é de deferir ou não a entrega da pessoa procurada.

O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária entre autoridades judiciárias dos Estados membros da UE que visa a detenção e entrega por um Estado membro de uma pessoa procurada por outro Estado membro, que emite o mandado, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (artº 1º da Lei nº 65/2003 de 23/8).

Trata-se de um procedimento em que a cooperação se faz directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados membros sem qualquer intervenção do poder executivo e que é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo que, por sua vez, assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados membros da UE, em conformidade com o disposto naquela Lei e na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13/06) – destina-se, enfim, a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, suprimindo o recurso à extradição.

A legislação portuguesa – Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, já duas vezes revista, que implementou na ordem jurídica nacional a dita Decisão-Quadro -, é aplicável a todos os pedidos recebidos após a sua entrada em vigor com origem em Estados-Membros da União Europeia que tenham implementado a referida Decisão-Quadro (cfr. artigo 40º, da citada lei), como é o caso dos PAÍSES BAIXOS.

Tem sido entendido que, traduzindo-se a execução de um mandado de detenção europeu uma restrição importante de um direito fundamental como o direito à liberdade, num horizonte territorial alargado, tendo em conta, igualmente, o período de tempo em que a detenção potencialmente se pode manter sem que seja tomada a decisão final de entrega, não só a sua prossecução, mas também a decisão que a montante é tomada quanto à sua emissão, deverão obedecer aos princípios da legalidade, da excepcionalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade lato sensu.

O Mandado de Detenção Europeu engancha teleologicamente na concepção de celeridade e de eficácia da cooperação judiciária europeia em matéria penal e ancora nos princípios do reconhecimento mútuo das decisões judiciárias penais e da confiança mútua e, ainda, é gerador de "desconfiança" e de precauções normativas e interpretativas na abolição (relativa) do princípio da dupla incriminação.

Deparamo-nos, assim, com a equação jurídico-criminal de os anseios estratégico-políticos europeus despirem o direito penal do seu magnânime princípio de ultima et extrema ratio e da sua função de equilíbrio entre a tutela dos bens jurídicos individuais e supra-individuais e a tutela dos interesses e direitos do delinquente.

Contudo, o Mandado de Detenção Europeu não pode sacrificar os direitos fundamentais, sob pena de se deificar a descoberta da verdade e a realização da justiça e de se niilificar a protecção dos direitos fundamentais - da pessoa procurada e de todos os outros. Este caminho pode, por um lado, distorcer o equilíbrio imposto pela "concordância prática" e, por outro, fomentar uma descoloração total da paz jurídica no espaço da União e desvirtuar o espaço de liberdade, de justiça e de segurança.

A Lei nº 65/03 é aplicável aos pedidos de detenção originados em qualquer dos Estados membros da União Europeia, e desde já aos que transpuseram a DQ, os mesmos são de aceitar, se formulados através da:

. transmissão, após 1/1/04, do original de um mandado de detenção emitido por uma sua autoridade competente, directamente ou através de contacto da Rede Judiciária Europeia, nos termos dos arts. 9º nº 1 da DQ, 4º nº 1 e 5º nºs 1 e 4, e 40º da Lei 65/03;

. indicação inserida, após a mesma data, no sistema de Informação de Schengen (SIS), após 1/1/04, da qual constem os elementos constantes do modelo anexo à referida DQ (semelhante ao que consta em anexo à Lei nº 65/2003).

Os sujeitos do mandado de detenção podem ser qualquer pessoa maior de 16 anos (art. 4º nº 6 da LQ, 11º al. c), 12º nº 1 al. g) da mesma Lei e 19º do C. Penal), com ou sem entrega de objectos, sejam eles:

. cidadão “nacional”;

. cidadão estrangeiro, “residente” no país;

. cidadão estrangeiro que se “encontre” no país.

O objecto do dito mandado de detenção é, em geral:

. procedimento penal, por crime punível com prisão não inferior a 12 meses; ou

. cumprimento de pena de prisão não inferior a 4 meses; ou

. cumprimento de medida de segurança não inferior a 4 meses.

Adiantam ainda os nºs 2 e 3 artigo 2º do diploma:

«…».

Ou seja, será concedida a extradição com origem num mandado de detenção europeu, sem controlo da dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as infracções, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, constantes do elenco previsto no artº 2º da dita Lei.

Ou seja:

Neste processo de execução de MDE, o grau de intervenção do tribunal do Estado de execução é exíguo, sendo muito limitada a actividade judicial a exercer, restrita à verificação da regularidade do mandado, dos requisitos formais do mandado (artigo 3º da Lei nº 65/2003) e à ocorrência de eventual situação de recusa da sua execução (artigos 11º e 12º), bem como ao controle do respeito pelos direitos fundamentais, não tendo de se pronunciar sobre a bondade, utilidade, adequação ou oportunidade da emissão do MDE.

E assim é, porque, como refere o acórdão do STJ de 9/5/2012, proferido no processo nº 27/12.0YRCBR.S1 - 3.ª Secção, «a decisão do Estado emitente do MDE, desde que seja tomada por autoridade judiciária competente à luz do direito interno daquele Estado e em conformidade com aquele direito, tem um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, produzindo a decisão judiciária do Estado emitente efeitos pelo menos equivalentes a uma decisão tomada pela autoridade judiciária nacional».

3. O objecto desta decisão é o MDE que consta dos autos.

No caso, o crime em causa não consta do elenco de catálogo do nº 2 do artigo 2º.

De facto, o crime de subtracção de menor não é um «crime de rapto, sequestro ou tomada de reféns» previsto na alínea q) do nº 2 do artigo 2º da Lei 65/2003.

No Código Penal neerlandês, o crime do artigo 279º está incluída na Parte XVIII que se refere a «Ofensas graves à liberdade pessoal das pessoas», não tendo qualquer epígrafe (embora pulule por aí a referência em inglês a «abduction of a minor from legal custody», traduzida literalmente para a nossa língua como «rapto de menor de custódia legal»).

Nele se estipula que:

«1. Qualquer pessoa que intencionalmente retirar menor de idade da guarda de quem sobre ele exerce o poder paternal, ou da tutela de pessoa legalmente investida da mesma, é punido com prisão até 6 anos ou multa de 4ª categoria.

2. É punido com pena de prisão até 9 anos ou com multa de 5ª categoria se houver estratagema, acto de violência ou se tratar de crianças com inferior a 12 anos».

Em Portugal, o crime do artigo 249º do Código Penal – intitulado em epígrafe como «subtracção de menor» - está incluído no capítulo dos crimes contra a família, regendo o seguinte:

«1 …

2 - …

3 - …».

Parece-nos que a alínea q) do nº 2 do artigo 2º se quer referir a crimes contra a liberdade pessoal, a mesma que em Portugal legitima a existência dos artigos 161º (rapto), 158º (sequestro) e 162º (tomada de reféns), existindo no CP neerlandês outros crimes específicos análogos a estes 3 referidos [2], sendo evidente, até na lógica de se colocarem, no elenco dos crimes de catálogo do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 65/2003, crimes com uma gravidade acrescida, ligados mais à violação dos valores vida, integridade física ou liberdade de um ser humano [3] (são frequentes as hipóteses de consunção pura entre o crime do 249º do CP português e outros tipos de crime - rapto, sequestro -, defendendo-se que, uma vez verificados os requisitos de um destes últimos crimes, nitidamente mais graves, é com base em um deles que se pune o agente).

Se assim é, há necessidade da verificação da dupla incriminação do artigo 2º, nº 3 da Lei nº 65/2003 (ou seja, este comportamento imputado à requerida tem de também constituir infracção punível em Portugal).

Veremos mais à frente esta questão.

Em ambos os casos, a pena cominada é sempre superior aos 12 meses referidos no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 65/2003 (sendo a moldura penal abstracta do Código Penal neerlandês, o que interessa nesse jaez, particularmente gravosa, ultrapassando também a pena de 3 anos de prisão à luz do nº 2 do artigo 2º, normativo que, já vimos, não é aqui aplicável).

Não obstante, o MDE está sujeito a uma reserva de soberania que, nalguns casos impõe à autoridade judiciária portuguesa a recusa de execução do mandado (artigo 11º), noutros permite-lhe a recusa do mandado (artigo 12º) e noutros ainda impõe a prestação de garantias especiais por parte do Estado membro de emissão para que o mandado possa ser executado (artigo 13º).

Nos termos do artigo 21º da Lei nº 65/2003, a pessoa procurada pode opor-se e não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão mas essa oposição só pode fundar-se no erro na identidade do detido ou na existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu (nº 2).

4. Não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do MDE em causa, que observa o disposto no artigo 3º, da citada Lei, foi recepcionado em boa e devida forma e está devidamente traduzido para português (artigos 39º e 3º, nº 2, da mencionada Lei).

Já o vimos - nos termos do artigo 21º, nº 2, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, a oposição pode ter por fundamento o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa do MDE.

No caso em apreço, não há dúvidas quanto à identidade da oponente.

São causas de recusa obrigatória as seguintes …

«a) A infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infracção;

b) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado membro onde foi proferida a decisão;

c) A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

f) [4] O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infração punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infração não incluída no nº 2 do artigo 2º» 

Por sua vez, constituem causas de recusa facultativa [5] (artigo 12º …):

b) Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;   

c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido arquivado o respectivo processo;

d) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro em condições que obstem ao ulterior exercício da acção penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11º;

e) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei portuguesa;

g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:

i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou

ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

As causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12°, nº 1, da Lei nº 65/2003, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.

Importa ainda reter, a propósito das causas de recusa facultativa de execução do MDE, que as causas previstas no artigo 12º não funcionam imperativamente, uma vez verificadas, como se alcança, aliás, pela própria natureza que lhes foi atribuída, causas facultativas, e pelo teor literal do proémio do nº 1 …

5. Analisemos então os termos da oposição da requerida.

5.1. Comecemos pela questão prévia.

A esse propósito apenas diremos sumariamente que a situação processual do processo de promoção e protecção pendente, desde 17/1/2023, no TFM ... apenas pretende colmatar o perigo em que se encontravam as duas crianças, filhas da requerida, na sequência da detenção da mãe por força deste MDE (por inexistir suporte familiar que as pudesse acolher) – só por isso se intentou o referido processo.

Mesmo que nele se tenha enxertado um pedido de entrega de crianças ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, nunca esse processo atinente à situação dos filhos menores de idade da requerida poderá ter qualquer tipo de influência processual ou substantiva no teor desta decisão.

Temos de ter como presente que, neste nosso processo, apenas compete à autoridade judiciária de emissão, à qual a pessoa deve ser entregue, assegurar a legalidade e a regularidade do MDE, limitando-se o controlo de execução, pela autoridade judiciária de execução, à verificação da regularidade do MDE e dos motivos de não execução.

Ora, a execução deste MDE não depende, nem de perto nem de longe, do que ali se vier a decidir sobre o destino das crianças, não fazendo assim qualquer sentido a invocação do artigo 7º, nº 2 do CPP (suficiência do processo penal).

Contesta-se a ideia veiculada pela defesa de que a decisão que vier a ser tomada pelo TFM ... se afigura imprescindível para que se verifique se o facto que motiva a emissão do MDE constitui ou não infracção, como veremos a seguir.

Para este Tribunal da Relação, existe infracção criminal latente se a causa fosse aqui julgada.

E explicaremos agora porquê, assente pois que só se pode indeferir a pretendida suspensão deste nosso processo até que seja proferida decisão no TFM ... (aliás, já tomada desde 17/2/2023, quanto à aplicação da Convenção da Haia de 1980).

5.2. E entremos, então, no âmago da questão mais profunda, em termos jurídicos, deste MDE.

Existe causa de recusa obrigatória pela circunstância de o facto que motiva a emissão deste MDE não constituir infracção punível em Portugal, assente que necessitamos, in casu, da dupla incriminação?

Já sabemos que o comportamento da requerida constitui crime nos Países Baixos.

E aqui?

Também.

Seguiremos de muito perto o iluminado artigo de Ana Teresa Leal, hoje Procuradora-Geral Adjunta, publicado na revista Data Vénia (Revista Jurídica Digital, Ano 2, nº 3, Fevereiro de 2015), sobre «Tutela penal nas Responsabilidades Parentais – o crime de subtração de menor».

Aí se deixa escrito o seguinte (com sublinhados nossos):

«(…) Subtrair menor, por contraposição à recusa de entrega significa retirá-lo da esfera de atuação de quem o tem a seu cargo naquele momento

Atualmente e por força das novas regras introduzidas pela Lei 61/2008 de 31 de outubro, as responsabilidades parentais são sempre exercidas em conjunto por ambos os progenitores no que respeita às questões de particular importância, só assim não o sendo quando, sempre por decisão judicial devidamente fundamentada, tal exercício for considerado contrário aos interesses do filho.

Temos, pois, que na lei atualmente em vigor o exercício das responsabilidades parentais em exclusivo apenas por um dos progenitores, só pode ter lugar quando exista uma decisão judicial que institua tal regime ou quando a filiação se encontra estabelecida apenas relativamente a um dos progenitores.

Para além destas situações há ainda que ter em conta todos os casos em que a respetiva fixação do regime tenha tido lugar no âmbito do normativo em vigor antes das alterações introduzidas pela Lei 61/2008, e em que a regra era, então, a atribuição do exercício do poder paternal a apenas um dos progenitores, o que alarga em muito o universo das situações em que o exercício das responsabilidades parentais cabe em exclusivo a apenas um dos progenitores.

Estando em causa o exercício unilateral das responsabilidades parentais se o menor for retirado da esfera de poder do progenitor que tem a sua guarda, pelo outro progenitor ou por terceiro, a conduta pode integrar a prática do crime de subtração de menor previsto na al. a) do artigo 249º do Código Penal.

O agente no tipo legal consagrado na alínea a) tem necessariamente que ser alguém que não exerce legalmente a guarda sobre o menor.

O progenitor com quem o menor reside habitualmente não pode incorrer na prática do crime consagrado na al. a) do preceito.

Nas situações em que o exercício das responsabilidades não se encontra fixado por qualquer decisão e apenas decorre nas normas legais consagradas na lei civil, porque a regra é o seu exercício por ambos os pais, nenhum deles pode incorrer na prática do ilícito em causa uma vez que a guarda, como uma das vertentes das responsabilidades parentais, não se encontra atribuída, por lei, a um deles em especial e não existe qualquer decisão legal definidora da situação [6].

Este nosso entendimento (…) assenta sobretudo na interpretação da vontade do legislador em face das alterações profundas que introduziu na lei civil e penal com a reforma da Lei 61/2008, mas também encontra apoio no caráter subsidiário e excecional da intervenção penal nas matérias da família e suas relações. Doutro modo, a própria natureza do direito penal impõe uma aplicação sempre parcimoniosa e restritiva dos conceitos contidos na norma.

Não podemos continuar a dar às normas reguladoras das responsabilidades parentais o mesmo sentido que elas tinham na sua anterior versão quando, manifestamente, não foi essa a vontade subjacente à sua alteração.

Qualquer supremacia de direitos sobre os filhos por parte de um dos progenitores foi completamente arredada pela nova lei e a profunda alteração do artigo 1911º do Código Civil é disso exemplo inequívoco e não deixa, a nosso ver, qualquer dúvida de interpretação sobre qual a vontade do legislador.

A atribuição do exercício do poder paternal ao progenitor que exercia a guarda e a presunção de guarda que anteriormente a lei conferia à mãe foram eliminadas da nova redação do artigo 1911º.

A regra é agora a de que ambos os progenitores têm iguais direitos sobre a criança. Se os mesmos não vivem em conjugalidade a situação tem, necessariamente, que ser definida por decisão a proferir em processo próprio, até lá aplicam-se as regras gerais e estas determinam que as responsabilidades parentais são exercidas em comum.

Como consequência lógica desta alteração não incorre na prática do ilícito de subtração de menor previsto na al. a) do artigo 249º se, não estando o regime de exercício das responsabilidades parentais definido por decisão legal proferida em processo próprio, um progenitor que leva o filho para viver consigo depois de o mesmo ter residido durante algum tempo com o outro progenitor.

Um caso com estes contornos poderá encontrar tutela penal noutros tipos legais de crime, como seja no crime de sequestro ou rapto mas não integrará o crime de subtração de menor, sendo que é no âmbito da lei civil que a resolução da questão pode encontrar uma resposta mais célere e eficaz.

Se em causa estiver uma deslocação da criança para o estrangeiro, o direito internacional convencional a que Portugal está vinculado oferece também mecanismos de resolução de uma situação como a descrita.

Se a deslocação ocorrer para um país que não integre a U.E., aplicar-se-ão as regras da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de outubro de 1980. Caso a deslocação ocorra para um país da U.E., regerá em primeira linha o Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro que, por seu turno, no seu Considerando 17, manda aplicar aquela Convenção

Ao contrário do que sucede na al. a), em que a tónica está centrada na pessoa que detém a guarda da criança, na previsão da al. c) do artigo 249º, do Código Penal, qualquer dos progenitores, tenha ou não a guarda do menor, pode incorrer na prática do ilícito.

Uma das questões a equacionar no âmbito desta vertente do preceito é a relacionada com a mudança de residência da criança.

Na hipótese de o progenitor a quem o menor se encontra confiado, o deslocar sem autorização para local que impossibilite a concretização do regime de visitas fixado, pode esta sua conduta integrar a previsão da al. c) do artigo 249º, do Código Penal, pois em causa está o afastamento da criança do convívio com ambos os progenitores.

Deslocar a criança para o estrangeiro ou para um lugar geograficamente muito distante constitui um ato que “dificulta significativamente” e pode mesmo ser impeditivo da entrega da criança no cumprimento do regime de visitas estabelecido pelo que a conduta pode, deste modo, integrar a previsão legal do preceito penal em apreço.

Só assim não acontecerá nos casos excecionalíssimos em que a decisão não tenha fixado qualquer regime de visitas do menor ao outro progenitor.

No que tange às situações de exercício conjunto das responsabilidades parentais, que, como vimos, constitui atualmente a regra, há que atender se a residência da criança foi fixada apenas com um dos progenitores ou se pelo contrário, numa realidade cada vez mais frequente, o regime fixado foi o de residência alternada, passando a criança períodos de tempo idênticos com cada um dos progenitores.

É comumente aceite que uma alteração de residência do menor que implique uma mudança geográfica para um local distante dentro do próprio país ou para o estrangeiro constitui uma questão de particular importância, a ser decidida por acordo de ambos os progenitores ou, na falta deste, por decisão judicial a proferir em processo próprio, regulado no artigo 184º, da OTM.

Temos, assim, que, por regra, o progenitor com que o menor reside habitualmente não pode unilateralmente decidir-se pela mudança de residência deste, desde que tal implique um grande afastamento geográfico do outro progenitor o que acontece, com especial acuidade, nos casos em que a mudança tem lugar para outro país.

Na vigência da norma, na sua anterior redação, era entendimento comum que para estar preenchido o crime de subtração de menor necessário se tornava que o agente não detivesse poderes relativamente à guarda do menor.

Julgamos, porém, que esta interpretação não encontra atualmente qualquer apoio legal em face da nova redação da al. c) do artigo 249º, fazendo apenas sentido no que respeita à situação de subtração de menor prevista na al. a).

A verificação do ilícito no que se refere à modalidade de comportamento prevista na mencionada al. a) e que se reporta à subtração de menor, implica que o agente do ilícito não seja o detentor dos poderes-deveres inerentes à guarda e cuidados da criança pois subtrair significa exatamente retirar a quem de direito.

Porém, o mesmo não acontece com a alínea c) na sua nova redação.

Aqui, qualquer dos progenitores, quer tenha ou não a guarda do filho menor, pode ser agente do crime pois o que está em causa é o incumprimento do regime fixado para o convívio da criança com os seus progenitores e a sua violação pode ser levada a cabo por qualquer deles, independentemente do facto de o filho viver ou não habitualmente consigo.

Aliás, nem o contrário faria sentido pois as questões que com maior frequência se levantam prendem-se exatamente com o incumprimento do regime de visitas por parte do progenitor guardião e foi esta realidade que levou o legislador a alterar o preceito legal em causa.

(…)

Analisemos agora quais os reflexos que uma decisão de deslocação da criança para o estrangeiro ou para local do país significativamente distante da anterior residência, tomada unilateralmente, pode ter em termos de vir a integrar a prática do crime de subtração de menor

Sendo a decisão tomada pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente, pode a sua conduta preencher o ilícito previsto na al. c) do artigo 249º.

Aqui não está em causa uma subtração no sentido mais restrito do termo, tal como prevista na al. a) do preceito, mas a conduta importa uma impossibilidade ou dificuldade significativa de convívio do filho com o outro progenitor, que caberá na previsão daquela al. c).

Se a deslocação da criança para outra cidade ou até para outro país for levada a cabo pelo progenitor com quem a mesma não reside habitualmente e se tal situação importar uma impossibilidade de o outro progenitor exercer sobre o menor as responsabilidades parentais inerentes à guarda que lhe está atribuída, pode mostrar-se preenchido ilícito previsto na al. a) do preceito pois a conduta configurará, por princípio, uma situação de subtração de menor.

Quando em causa está um regime de residência alternada, em que a guarda do filho é partilhada por ambos os progenitores, situação em que o convívio com os progenitores e a guarda se interligam, a conduta daquele que retira o menor da esfera de atuação do outro poderá constituir uma subtração de menor para efeitos do disposto na al. a), uma vez que as responsabilidades parentais e a guarda estão radicadas em cada um deles em medida idêntica e

a conduta impossibilita o exercício cabal por parte do outro progenitor das responsabilidades parentais que lhe cabem.

Na medida em que uma conduta destas impede ou torna particularmente difícil a relação da criança com o outro progenitor, pode, de igual modo, estar preenchida a previsão da al. c).

(…)

A redação atual da al. c) contém uma previsão inovadora, cujo alcance se centra agora no convívio da criança com ambos os progenitores e não já nos poderes conferidos a quem detém a sua guarda.

(…)

Concluímos, assim, que no âmbito de proteção da norma penal contida no artigo 249º al. a), do Código Penal, cabem as situações em que a subtração do menor ocorre quando o mesmo se encontra entregue aos progenitores, quer tal decorra diretamente da lei civil ou de decisão proferida em processo de regulação das responsabilidades parentais ou de divórcio;

. A um terceiro nos termos dos artigos 1907º e 1918º, do Código Civil;

. A um curador provisório nomeado na sequência de uma confiança administrativa com vista à adoção;

. A um curador provisório no âmbito de uma confiança judicial com vista à adoção ou de uma medida de promoção e proteção de confiança judicial a pessoa ou instituição com vista à adoção.

(…)

Resultante da necessidade de dar nova dimensão à proteção de situações da vida familiar decorrentes do exercício abusivo da autoridade parental por parte de um dos progenitores em detrimento do outro e como salvaguarda dos interesses do próprio filho, surge a nova redação da al. c) do crime de subtração de menor.

Esta nova incriminação encontra cobertura constitucional nos artigos 69º nºs 1 e 2, 67º nº 2 al.d), da Lei Fundamental e emerge da necessidade de proteger a criança nos seus direitos contra abusos da autoridade familiar, sendo que é papel do Estado a proteção da família em todas as suas vertentes.

Doutro modo, a igualdade entre os cônjuges no que se refere à manutenção e educação dos filhos e a garantia de que os filhos apenas são separados dos pais quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais e sempre por decisão judicial, consagradas no artigo 36º da CRP são, de igual modo, direitos constitucionais que a nova redação do preceito penal tem por objetivo salvaguardar.

O desenvolvimento harmonioso de uma criança está interligado com diversas vertentes, sendo que o convívio efetivo, salutar e sem obstáculos com os seus progenitores, mesmo que a separação de ambos determine que o tempo de permanência com um deles seja superior ao do outro, é um direito que lhe assiste

As ruturas familiares entre pessoas que partilham uma vida em comum, cada vez mais frequentes, geram muitas vezes conflitos graves entre progenitores que se repercutem de forma muito negativa na vida das crianças.

Estas são, não raras vezes, utlizadas como “moeda de troca” ou “arma de arremesso” nas disputas entre os pais.

O convívio regular das crianças com ambos os progenitores, a par do cumprimento da prestação alimentícia são os segmentos das responsabilidades parentais que mais incumprimentos geram.

O afastamento da criança de um dos seus progenitores pode provocar sequelas graves e irreversíveis no seu desenvolvimento harmonioso.

A presença efetiva e afetiva dos pais na vida da criança é um dos seus direitos

fundamentais e impõe ao Estado a tomada de medidas para a tornar uma realidade.

A nova redação dada à al. c) do artigo 249º, do C.Penal surge, assim como uma resposta que visa proteger a criança dos conflitos parentais e impedir que tais conflitos se projetem negativamente na sua vida e no seu bem-estar. Para tanto, a relação de ambos os progenitores com o filho de uma forma salutar, gratificante e regular deve ser salvaguardada e acautelada».

Também António Miguel Veiga [7] é peremptório em escrever:

«O que significa, entre outras coisas, que também o titular do direito de guarda (residência) da criança poderá incorrer na prática do crime em questão, se a sua conduta preencher o conjunto de pressupostos típicos acima analisados, maxime o incumprimento do regime estabelecido quanto à convivência da criança em sede de regulação do exercício das

responsabilidades parentais.

A atitude (já focada, e que amiúde se verifica na prática) do progenitor que, tendo a criança a seu cargo, decide, por si próprio, impedir a convivência desta com o outro progenitor (a quem apenas assiste o direito de visita) não está, agora – e logo ab initio (como estava na redacção legal anterior a 2008) –, imune a uma possível responsabilização criminal».

A lei terminou, assim, com uma restrição distintiva (porventura pouco sustentável mesmo ao nível de essenciais princípios constitucionais) entre a posição do progenitor titular da guarda e o progenitor que apenas pode exercer o direito de convívio».

(…)

Diversamente (…) pensamos que a nova redacção do art. 249º/nº 1-c) do CP adoptou a protecção de algo bem mais abrangente e substantivamente rico. Desde logo, a possibilidade de exercício das responsabilidades parentais (não só do poder de guarda ou residência) sem entraves ilícitos alheios, acabando por desta forma se satisfazer o interesse da criança na consecução e na manutenção de uma convivência próxima com ambos os progenitores, nos moldes contidos na concreta decisão reguladora, e segundo as obrigações daí decorrentes, em igual medida, para os respectivos vinculados.

Logo, não nos parece continuar sustentável a ideia de que, para efeitos penais (e perdoe-se-nos a expressão), um dos progenitores (o titular da guarda) possa incumprir mais do que o outro..., apesar de o regime regulador do exercício das responsabilidades parentais, como se perceberá, não vincular um progenitor em medida superior ao outro...».

Ora, como vimos, e dando nós a nossa completa concordância a estas posições, o nosso caso, em Portugal, seria subsumível à letra do artigo 249º, nº 1, alínea c) do CP, sem qualquer dúvida.

E nem perturba o facto de não ter existido uma formal decisão – em processo especificamente intentado para esse efeito - sobre a divisão do exercício das responsabilidades parentais nos Países Baixos.

O que temos nos autos é a sentença de divórcio que já estabelece um plano de divisão parental do espaço de convívio dos filhos com ambos os pais, lá se escrevendo, à evidência (pontos 3.4. e 3.5.), que «a residência primária dos menores será com a esposa» e que «a divisão de cuidados e responsabilidades parentais será provisoriamente estabelecida no parágrafo 2.6.2. supramencionado» (aí se estipula uma divisão dos tempos da criança com ambos os pais, logo, também com o pai).

Note-se que resulta da própria alegação da requerida, a fls 141 destes autos, em peça processual apresentada no TFM ..., que «correu termos no Tribunal de Família ... acção de regulação das responsabilidades parentais, da qual resultou a atribuição das responsabilidades parentais exclusivas à Progenitora, tendo o tribunal fixado períodos determinados para o Progenitor estar com os Menores, mantendo, contudo, a residência com a progenitora».

E mais se diz aí:

«O progenitor recorreu desta decisão que foi mantida por decisão das Instâncias superiores».

Portanto, não se pode dizer, como conclui a defesa, que «não houve fixação efectiva do exercício das responsabilidades parentais».

A redacção actual da alínea c) do artigo 249º, do CP estabelece que “…”.

Um dos elementos típicos do crime previsto na al. c) é, pois, a violação do regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, seja feita essa regulação onde for (há necessidade de regulação prévia, mas não de uma decisão tutelar de incumprimento).

Tem é de ser, em todo o caso, uma decisão emanada por quem esteja dotado de autoridade para a produzir ou a homologar, e poder desencadear tais efeitos (é o nosso caso e da sentença de divórcio proferida por um tribunal neerlandês).

É, assim, pressuposto da verificação do crime a fixação do exercício das responsabilidades parentais em qualquer das modalidades previstas na lei.

Tal pode ter lugar em acção própria de regulação das responsabilidades parentais, que corre termos no tribunal, ou no âmbito de uma ação de divórcio que, consoante as situações, será intentada por aqui no tribunal ou na Conservatória do Registo Civil.

E, como também defende Ana Teresa Leal, no mesmo artigo:

«De notar que a decisão a fixar o regime de regulação das responsabilidades parentais não tem que ser, obrigatoriamente, uma decisão definitiva e transitada em julgado.

O incumprimento de uma decisão provisória proferida ao abrigo do artigo 157º, da OTM que comtemple um regime de convívio entre a criança e os seus progenitores pode fazer incorrer o progenitor inadimplente na prática do ilícito em análise.

É que não faz qualquer sentido tratar de forma diferente as duas realidades.

Quer o regime fixado seja provisório ou definitivo o que se visa é assegurar o regular convívio da criança com ambos os progenitores, que constitui precisamente o desiderato da norma penal, com a incriminação da conduta violadora deste aspeto concreto da relação entre pais e filhos».

E a decisão neerlandesa foi provisória mas teve força exequível imediata.

Também não constitui, a nosso ver, obstáculo à verificação do crime o facto de ter sido interposto recurso da decisão, seja ela provisória ou não, já que, por força do preceituado no actual artigo 32º, nº 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro), os recursos interpostos de decisões de regulação do exercício das responsabilidades parentais têm sempre efeito meramente devolutivo.

O elemento do tipo poderá igualmente mostrar-se preenchido se o regime de visitas tiver sido regulado em processo tutelar comum, como por exemplo nas situações previstas nos artigos 1918º e 1919º,do Código Civil, ou até numa acção de divórcio, como no presente caso.

Ou seja, e tal como se decidiu no Tribunal da Relação de Coimbra de 18/5/2010 (processo em que foi relator Alberto Mira, proferido no proc. 35/09.8TACTB.C1, consultável em www.dgsi.pt):

«I. Tanto no texto da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, como no da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, a previsão da alínea a) do artigo 249º do Código Penal pressupõe necessariamente um agente que não detenha poderes (e deveres) relativos à custódia do menor; quem detiver a guarda do menor não poderá, por exclusão típica, ser agente do crime, precisamente porque a incriminação se destina a proteger e a garantir os direitos e os poderes que cabem a quem aquele seja confiado.

II. Com respeito à alínea c) do nº 1 do artigo 249º do CP, face à anterior redação do tipo legal, não constituía «subtração de menor» a recusa, pelo progenitor guardião, do direito de visita ao outro progenitor ou progenitores.

III. Todavia, perante a nova configuração típica daquela alínea, conferida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, estão atualmente abrangidos no tipo incriminador quer os comportamentos do progenitor guardião que não entrega a criança ao outro para que este exerça o seu regime de convívio, quer as do progenitor não guardião que não entrega o filho ao guardião na pós-visita [8]».

A situação dos autos caberia, pois, à partida, na letra da actual alínea c) do nº 1 do artigo 249º do nosso CP [9], não cabendo a este tribunal aferir se este incumprimento por parte da requerida foi repetido e injustificado, pois tal caberá à justiça neerlandesa, aquando do procedimento criminal que se pretende instaurar contra esta mãe.

Ali será o local para se atender à sua alegação de que foi justificada a sua vinda para Portugal, privando assim o pai das crianças do convívio com os seus filhos (podendo também aferir-se aí, caso o tipo legal neerlandês fosse idêntico ao nosso, se a atitude da requerida dificultou significativamente a entrega do filhos ao pai).

Nunca aqui nesta sede de execução de um MDE.

E, por isso, não faz qualquer sentido esperar pela decisão do TFM ... que não nos vai trazer nada de novo – mesmo que sejam entregues as crianças à mãe, nem por esse facto isso apaga a sua denunciada ilicitude passada de trazer os filhos para longe da vista do pai, coarctando o seu natural direito de contacto com elas.

Repetimos – não tem este tribunal que aferir se a existência das crianças sofria algum perigo pelo contacto com este Pai.

Compete tal aferir e analisar à justiça dos Países Baixos, muito embora não se deixe de referir que a sentença de divórcio «desmonta» algumas das suspeitas lançadas sobre o pai, sendo essas considerações apostas na sentença de 13/9/2021, posterior à data dos relatos de fls 154 e 155 e 175-176.

Este tribunal, a deferir a execução deste MDE, não dá qualquer ordem de entrega dos filhos ao Pai, seja ele ou não um agressor.

Apenas faz a entrega de uma Mãe à justiça neerlandesa para que ali se prossiga um procedimento criminal contra ela.

Nada mais…

O destino das crianças será outra causa e alvo de outro processo, a correr nos Países Baixos, caso seja deferido este MDE (não nos esqueçamos ainda que o TFM ... já decidiu, com data de 17/2/2023, a entrega das crianças, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980).

Como tal, existe dupla incriminação, só havendo que fazer improceder esta invocada causa de recusa obrigatória.

5.3. E quanto às invocadas causas de recusa facultativa?

5.3.1. Comecemos pela da alínea h), ponto i).

Tem este MDE por objecto infracção que, segundo a lei portuguesa, foi cometida, em todo ou em parte, em território Português?

Em causa está um crime permanente, de execução reiterada ou duradoura - a sua consumação prolonga-se ao longo do tempo e apenas termina com a cessação da situação

Havendo indícios da prática pela requerida de um crime de subtracção de menor que se consumou com a não entrega dos filhos ao pai para o espaço de convívio determinado por decisão judicial, existindo conduta ininterrupta ilegal, verifica-se uma consumação continuada ou uma consumação seguida de uma persistente violação do bem jurídico.

Aqui, na linha do decidido pelo STJ de 18/4/2018, no Pº 29/18.2YRPRT.S1, superiormente redigido pelo Juiz Conselheiro Raul Borges, em quadro factual muito semelhante ao nosso, «sempre teria de ser afastada a possibilidade de intervenção dos tribunais portugueses, pois os factos tiveram a sua génese em França e dentro de um quadro regulador cujos parâmetros foram traçados pelo tribunal francês, não se verificando a causa de recusa facultativa prevista no art. 12º, nº 1, als. h) e i) da Lei 65/2003».

Fazemos nossas as considerações do aresto do STJ acima mencionado [10], pois tem plena aplicação ao nosso caso.

São estas considerações que aqui reproduzimos:

«Afirma o recorrente que a infracção foi praticada em parte em território português.

 A averiguação do preenchimento desta causa de recusa remete-nos para a questão da determinação do lugar da prática do crime imputado, ou seja, a questão da sede do crime.

De igual modo a aplicação do princípio da territorialidade da lei penal pressupõe resolvida a questão da sede do crime (locus ou sedes delicti).

A nossa lei - artigo 4º do Código Penal - consagra como primordial o princípio da territorialidade, princípio determinativo da competência para o julgamento dos factos ilícitos, o qual só é derrogado em casos excepcionais.

Sobre aplicação da lei penal no espaço dispõe o artigo 4º do Código Penal …

Em termos absolutamente paralelos, de todo concêntricos/sobreponíveis, a este artigo 4º do Código Penal, sobre aplicação da lei fiscal no espaço, o Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) … no Artigo 4º versa a «Aplicação no espaço», estabelecendo:

«…».

Da mesma forma ainda ao nível da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, publicado no Diário da República, I Série-A, nº 290, de 17 de Dezembro de 1998, sucessivamente actualizado, no artigo 13º.

Estas disposições consagram o princípio da territorialidade na aplicação da lei penal no espaço ….

Segundo este princípio-regra basilar, que continua a dominar a aplicação da lei penal no espaço, a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território (conceito definido no artigo 5º da Constituição da República Portuguesa), cometidas por qualquer cidadão, entendendo-se território nacional com a extensão conferida pelo princípio corolário daquele, o chamado princípio da bandeira ou do pavilhão, podendo ver-se o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contra-ordenacional portuguesas, a casos de ilícitos cometidos a bordo de aeronaves civis em voos comerciais, constante do Decreto-Lei nº 254/2003, de 18 de Outubro – artigos 4º e 5º, relativos a actos de “passageiros desordeiros”.

Ainda neste domínio, veja-se a Lei nº 109/2009, de 15 de Setembro (Diário da República, 1.ª série, nº 179, de 15-09-2009) que aprova a Lei do Cibercrime e que estabelece disposições relativas a cooperação internacional em matéria penal, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico.

O artigo 27º versa sobre “Aplicação no espaço da lei penal portuguesa e competência dos tribunais portugueses”.

O princípio - regra da territorialidade, por não assegurar, só por si, eficaz protecção visada pelo ordenamento penal, é complementado por outros princípios que funcionam subsidiariamente, concretamente, pelos princípios da protecção dos interesses nacionais, da nacionalidade - da personalidade activa e da personalidade passiva - e da plurilateralidade da prática do crime, também designado de princípio da competência ou da aplicação universal da lei penal ou princípio do direito mundial (segundo este último princípio, o Estado pune todos os crimes cometidos segundo o seu próprio direito, independentemente do lugar onde tenham sido praticados, de quem os cometeu, ou de quem é o ofendido).

Estes princípios mostram-se consagrados no artigo 5º do Código Penal, prevendo-se os casos em que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, com as restrições previstas no artigo 6º …

Estabelece o artigo 5º do Código Penal, com a epígrafe “Factos praticados fora do território português” (Texto actual, incluindo alteração introduzida na alínea c) do nº 1, pela Lei nº 83/2015, de 5 de Agosto – 38.ª alteração ao Código Penal, in Diário da República, 1.ª série, nº 151, de 5-08-2015):

1. …

2. …

A propósito da determinação do lugar da prática da infracção debatem-se as doutrinas da actividade ou execução e do evento.

A aceitação cumulativa das duas doutrinas, resultante de premências da vida moderna e da facilidade e frequência de prática de crimes à distância, deu origem à chamada solução plurilateral … a que Hans-Heinrich Jescheck chama teoria da ubiquidade.

No Tratado de Derecho Penal, Parte General, I … no capítulo IV da 1.ª Parte, fls. 239 a 241, a propósito do lugar de comissão, expende este …

“O lugar de comissão de um facto é decisivo para a questão de saber se o poder punitivo de determinado Estado se deve basear no princípio da territorialidade ou deve buscar-se outro ponto de conexão.

A questão de saber quais são os elementos que servem para determinar o lugar de comissão foi durante muito tempo objecto de discussão técnica. A teoria da actividade atende ao lugar em que o autor actuou, ou em caso de omissão, devia ter actuado. A teoria do resultado atende, pelo contrário, ao lugar onde se produziu o resultado típico.

Actualmente é dominante a teoria da ubiquidade. Esta teoria considera como lugar de comissão tanto o lugar da acção como o do resultado típico. Invoca-se para tanto a equivalência da acção e resultado para o conteúdo criminal do facto e a necessidade de colmatar as lacunas que surgem com a aplicação do princípio da territorialidade.

No que se refere à acção como ponto de conexão, o lugar da comissão nos crimes de simples actividade determina-se unicamente pela acção típica, da qual é necessário que se cometa só uma parte em território nacional e, nos crimes de resultado, pela acção e pelo resultado.

Os actos preparatórios podem servir de base ao lugar da comissão do facto quando se apresentam como contributo ao facto de um co-autor”.

A teoria da ubiquidade foi defendida entre nós pelo Professor Figueiredo Dias …

Manuel de Cavaleiro Ferreira … expendia:

“As posições que têm sido sustentadas acerca da determinação do lugar do delito são as mesmas que foram apresentadas quanto ao tempo do delito.

Segundo a doutrina da actividade, todo o delito é cometido no lugar em que se exerce a acção criminosa do delinquente.

Segundo a teoria do evento, o delito deve considerar-se cometido no lugar onde se verificou o resultado danoso.

Finalmente, a doutrina da ubiquidade afirma que o delito se poderá considerar cometido tanto num como no outro lugar”.

Adiantava o Autor que, no que respeitava à competência internacional da lei portuguesa, havia sido seguida a doutrina da ubiquidade no artigo 46º e §§ do Código de Processo Penal. Desde que qualquer elemento do crime fosse praticado em Portugal, toda a infracção se devia considerar cometida em território português.

E finalizava: “Com a adopção da doutrina da ubiquidade, o direito penal português é aplicável aos factos que se realizem só parcialmente em território nacional. Ainda que só a actividade, ou só o evento, ou só uma parte do evento, se tenha realizado em território nacional, a lei penal será sempre aplicável porque todo o crime se considera cometido em território nacional”.

O mesmo Professor retoma o tema nas Lições de Direito Penal … dizendo: «O C. Penal de 1886 era omisso sobre a determinação do lugar do delito …

A questão foi resolvida pelo Cód. de Proc. Penal com base na opinião dominante e que foi a dos dois últimos autores citados, ou seja a chamada doutrina da “ubiquidade”».

E adiantava que “a solução legislativa do art. 46º do CPP (de 1929) está fundamentalmente recolhida pelo art. 7º do (então) novo Cód. Penal”.

Na jurisprudência, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Dezembro de 1983, in BMJ nº 332, pág. 341, dizia-se: «O actual Código Penal no seu artigo 7º consagra a teoria da ubiquidade quanto ao lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio».

Em anotação a este acórdão do STJ, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 118º, pág. 17, escrevia o Professor Figueiredo Dias: «O art. 7º do CP consagra a chamada solução plurilateral ou da ubiquidade, em termos particularmente amplos e consonantes com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional. Basta, por isso, que a infracção tenha com o território português qualquer dos elementos de conexão mencionados com aquele preceito - acção, nos crimes respectivos; a acção esperada nos casos de omissão; ou o resultado típico - para que deva concluir-se ter sido o crime praticado em Portugal…».

O Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, procurou resolver a questão no artigo 7º, cujo texto inicial era, sob a epígrafe “Lugar da prática do facto”, o seguinte:

«O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tenha produzido».

Redacção praticamente simétrica encontra-se na definição do lugar da prática do facto no artigo 6º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro …

O texto teve uma alteração (ligeira) em 1995 … sendo a seguinte a redacção actual, introduzida pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro – 4.ª alteração do Código Penal – entrada em vigor em 7 de Setembro de 1998 e intocada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro e alterações subsequentes:

Retomando o caso concreto.

Em causa está o desrespeito ou violação do determinado por tribunal francês em sede de regulação das obrigações parentais estabelecidas a propósito do menor GG, sendo que o pai, ora requerido, em vez de o entregar à mãe como lhe competia, não o fez, trazendo-o para Portugal onde se encontra, frequentando inclusive a escola.

Em causa a prática de um crime de subtracção de menor.   

De acordo com o artigo 3º do Código Penal “O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”.

É o momento da prática do primeiro acto de execução que conta para este efeito.

O crime consumou-se com a não entrega do menor à mãe e desde então e em todo o ciclo, há conduta ininterrupta ilegal, verificando-se uma consumação continuada …

Crime duradouro ou permanente.

Na definição de Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1968, págs. 309-310, Tipos de crimes permanentes “são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo”, sendo exemplo de escola o sequestro. “Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma que se analisa na produção de um estado antijurídico e que não tem aliás nada de característico em relação a qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que corresponde à permanência, ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento”.

Nos crimes permanentes “o primeiro momento do processo executivo compreende todos os actos praticados pelo agente até ao aparecimento do evento [...], isto é, até à consumação inicial da infracção; a segunda fase é constituída por aquilo a que certos autores fazem corresponder a uma omissão, que ininterruptamente se escoa no tempo, de cumprir o dever […] de fazer cessar o estado antijurídico causado, donde resulta, ou a que corresponde, o protrair-se da consumação do delito, ou em outra construção, pela manutenção, ininterrupta, da «compressão», por vontade do agente, do bem jurídico afectado”.

Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I - A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982, Editorial Verbo, 4.ª edição, 1992, reimpressão 1997, define os crimes permanentes por distinção dos crimes instantâneos.

Ao abordar os elementos essenciais do facto ilícito no ponto “50. O evento jurídico e o evento material”, referia a págs. 139:

“c) O momento da produção do evento tem interesse para fixar o momento consumativo do crime. O evento, como consequência, é posterior à execução e, portanto, será com a sua verificação que se consuma o crime.

Há, porém, eventos que perduram e em que a consumação não é instantânea.

A este respeito se distinguem os crimes instantâneos dos crimes permanentes.

O carácter instantâneo ou permanente refere-se à própria consumação, à lesão do bem jurídico. Ora, há bens jurídicos que, pela sua natureza, só são susceptíveis de ofensa mediante a sua destruição; assim, o crime de homicídio consuma-se no momento em que a vítima, perdeu a vida como resultado da acção causal. E há bens jurídicos de natureza imaterial que não podem ser destruídos e são apenas susceptíveis de compressão, como a honra ou a liberdade, e estes são ofendidos enquanto se mantiver em execução a actividade lesiva.

Relativamente aos bens imateriais, a lei penal pode tomar em atenção a possibilidade e impor o dever de o agente pôr termo à compressão do bem jurídico lesado, ou pode, não atribuindo a lei ao agente do crime o dever de pôr termo à ofensa, o crime consumar-se no momento em que a acção ofensiva agride o bem jurídico. Exemplo clássico de crime permanente é o crime de sequestro (no Código Penal de 1982. cf. artº 16º)

A execução nos crimes permanentes toma necessariamente uma dupla feição: é uma acção seguida de uma omissão continuada. A acção agride o bem jurídico, e a omissão ofende o dever de pôr termo à situação criada. No crime de sequestro, a execução inicia-se privando de liberdade a vítima e continuar-se-á enquanto durar a detenção da vítima. A imposição do dever positivo de restituição da liberdade é violada pela omissão do dever de pôr termo à privação de liberdade”.

O Autor defende, pois, uma concepção bifásica sobre a construção do crime permanente: acção e subsequente omissão do dever de fazer cessar o estado antijurídico provocado.

No Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 54/98, relatado por Henriques Gaspar … a propósito do crime de deserção previsto no artigo 142º e seguintes do Código de Justiça Militar, convocando Roberto Rampioni, Contributo alla Teoria del Reato Permanente, ed. Cedam, 1988, p. 20, afirma-se: “O crime permanente pode definir-se como aquele que, podendo ser constituído por uma única conduta (aquela que o realiza), se revela, ao menos numa primeira aproximação, estruturalmente unitário. A lesão do bem objecto de tutela é única e o facto perdura, protraindo-se no tempo a conduta ofensiva, apenas cessando a consumação (o crime é exaurido) no momento em que cessa o comportamento antijurídico (acção ou omissão ou acção e omissão) por vontade do agente ou por qualquer outra causa”.

Segundo Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, no § 54, pág. 314, “Quando a consumação de um crime se traduza na realização de um acto ou na produção de um evento cuja duração seja instantânea, isto é, não se prolongue no tempo, esgotando-se num único momento, diz-se que o crime é instantâneo. Por exemplo, o homicídio consuma-se no momento em que se dá a morte da vítima, o furto no momento em que se dá a subtracção da coisa. O crime não será instantâneo, mas antes duradouro (também chamado, embora com menor correcção, permanente) quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor. Assim, se um estado antijurídico típico tiver uma certa duração e se protrair no tempo enquanto tal for a vontade do agente, que tem a faculdade de pôr termo a esse estado de coisas, o crime será duradouro. Nestes crimes a consumação, anote-se, ocorre logo que se crie o estado antijurídico; só que ela persiste (ou dura) até que um tal estado tenha cessado. O sequestro (art. 158º) e a violação do domicílio (art. 190º-1) são exemplos desta espécie de crimes.» (Realces do texto).

Segundo Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, pág. 3, crime permanente é “aquele em que consumação é uma situação duradoura, que se arrasta no tempo e que só termina com a prática de novo facto que restitua a situação anterior à prática do crime”.

Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, 3.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, nota 22, pág. 115, afirma: “O crime  de execução instantânea é aquele cuja consumação é imediata. O crime permanente ou duradouro é aquele cuja consumação se prolonga no tempo. Esta distinção é muito relevante em termos práticos, quer ao nível penal quer processual. O crime permanente, de que o sequestro é o exemplo paradigmático, admite a coautoria e a cumplicidade sucessiva, isto é, aquela que se verifica já iniciada a consumação do crime. Por outro lado, o crime permanente admite a detenção dentro de flagrante delito enquanto a consumação não cessar”.

Na pág. 95 afirma: “no crime permanente o agente cria uma situação antijurídica cuja manutenção depende da sua vontade” …

M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal Parte geral e especial, Almedina, 2014, em anotação ao artigo 3º, pág. 37, estabelecem as diferenças entre crimes instantâneos e outros, como os de características permanentes, considerando as consequências da acção.

Naqueles em que não se encontra um lapso de tempo entre a acção e o resultado, não oferecendo dúvidas, enquanto nos crimes duradouros, de permanência, a comissão do facto dura enquanto dura a acção. No crime de sequestro (artº 158º) o facto prolonga-se no tempo, perdurando do mesmo modo a conduta ofensiva (privação da liberdade).

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Julho de 1987, BMJ nº 369, pág. 398, refere-se, nestes termos, a propósito dos elementos do conceito de crime permanente:

“Na lição dos Professores Eduardo Correia e Cavaleiro de Ferreira, são crimes permanentes aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo, contrariamente ao que acontece nos crimes instantâneos.

Com a prática de qualquer deles verifica-se um estado antijurídico, mas no crime permanente perduram ao mesmo, tempo a execução e a consumação.

A explicação para esta particularidade é fácil e encontra-se na especial natureza dos interesses jurídicos ofendidos.

Com efeito, há bens ou interesses jurídicos que só podem ser destruídos com a prática do crime. São disso exemplo os interesses patrimoniais, o interesse à vida. Da violação deles resultam crimes instantâneos, como o homicídio, etc.

Há outros bens ou interesses jurídicos que não podem destruir e apenas podem ser objecto de compressão. São interesses ordem moral como a honra, a liberdade, pudor.

Nos primeiros crimes, os instantâneos, verificado o evento, verificada está a prática definitiva dos mesmos.

Nos segundos, os permanentes, o processo executivo compreende toda a conduta do agente até ao aparecimento do evento, isto é, até à consumação inicial da infracção; segue-se uma segunda fase que perdura no tempo até que o agente cumpra o dever de fazer cessar o estado antijurídico causado.”

Como se extrai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2012, processo nº 687/10.6TAABF.S1 - 3.ª Secção: “Na nova formulação, o tipo legal do artigo 249º, nº 1, alínea a), do CP pode, deste modo, ser integrado «por intermédio de um facere ou de um omittere: a recusa e, em princípio, o atraso na entrega do menor serão, por via de regra, concretizados através de uma omissão (…) «Enquanto se mantiver a recusa na entrega, o crime diz-se permanente, como já sucedia com a anterior redacção do art. 249º, nº 1, alínea c)»”.

Em causa decisão instrutória, relativa a incumprimento do regime de regulação das responsabilidades parentais, sendo afastado o crime por falta de incumprimento repetido, nestes termos: “A actual redacção do art. 249º, nº 1, al. c), do CP, interpretada logo pela construção da tipicidade, visa acorrer às situações em que a recusa, atraso ou criação de dificuldades sensíveis na entrega ou acolhimento do menor, se faz, por exemplo, através da fuga para o estrangeiro de um dos vinculados pelo regime de regulação das responsabilidades parentais, ou através de comportamentos ou abstenções de semelhante dimensão, com graves prejuízos para a estabilidade e os direitos dos menores; é em tais circunstâncias que se impõe, não uma exigência de abstenção dos Estados face às relações jurídico-familiares, mas também deveres de conteúdo positivo, fazendo impender sobre os Estados o dever de criar mecanismos legais expeditos para o cumprimento.

Nesta perspectiva de leitura e interpretação dos elementos do tipo do art. 249º, nº 1, al. c), do CP, os factos indiciados não integram, nem se aproximam do limiar de tipicidade descrito na norma penal, independentemente de circunstâncias afloradas e que poderiam ser consideradas no plano da justificação, o comportamento da denunciada não foi «repetido», com o sentido com que a tipicidade acolhe a noção; estando em causa apenas um intervalo de tempo entre 06-05-2010 e 01-06-2010, em que teve lugar nova conferência no processo de regulação das responsabilidades parentais suscitadas para a resolução da divergência, não existe reiteração, recorrência, contumácia ou persistência determinada no não cumprimento, que a norma penal necessariamente pressupõe e impõe. Não estão, assim, indiciariamente integrados os elementos do tipo”.

Afastando a possibilidade de comissão do crime, no todo ou em parte, em território nacional, na apreciação em sede de MDE, face a situação de facto de contornos idênticos ao caso concreto – subtracção de menor em França – entendeu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2012, proferido no processo nº 27/12.0YRCBR.S1, da 3.ª Secção:

“De acordo com a lei penal portuguesa, o factualismo em causa no MDE é susceptível de integrar o crime de subtracção de menor p. e p. no art. 249.°, do CP (al. c) do nº 1). Nos crimes de omissão própria é irrelevante a ocorrência, ou não, do resultado para efeitos de consumação do tipo de ilícito (que se verifica com a simples omissão da acção), sendo certo que o crime de omissão própria se considera praticado no lugar onde o agente deveria ter actuado – nº 1 do art. 7.° do CP. Por outro lado, certo é que todo o facto típico se considera praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido – art. 5.° do CP.

Deste modo, os crimes de omissão própria têm-se por praticados no momento e no local onde o agente deveria ter actuado, consabido que o lugar do facto é só o lugar em que o agente deveria ter actuado. Uma vez que o (indiciado) comportamento omissivo do recorrente se verificou no momento em que devia ter entregue o seu filho à respectiva mãe … e que esse acto deveria ter ocorrido em França, há que concluir que, segundo a lei portuguesa, o crime que subjaz ao MDE … não foi cometido, no todo ou em parte, em território nacional, o que significa não se verificar a situação de recusa facultativa constante do art. 12.°, nº 1, als. h) e i), da LMDE …

No caso presente a conduta do requerido deverá ser analisada à luz da violação da decisão reguladora das obrigações parentais, a qual foi tomada por tribunal francês, apetrechado para dirimir o conflito por estar dentro do contexto situacional até porque as alegadas agressões invocadas pelo requerido como justificativas do seu comportamento terão sido cometidas em território francês.

A lesão do bem jurídico protegido verificou-se em território francês, com a não entrega do menor à mãe como havia sido estabelecido pelo tribunal de Nîmes.  

Damião da Cunha, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 614/5, assinala o bem jurídico protegido pelo tipo legal em causa: O artigo 249º visa a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor.

A subtracção consiste em retirar um menor do domínio de quem legitimamente o tenha a cargo.

O crime consumou-se em França, continuando a compressão em Portugal.

Aceitando-se que parte dos factos foram, estão/continuam a ser praticados em Portugal, na fase da compressão do bem jurídico afectado, na omissão de posição que faça cessar a situação lesiva, estando-se numa fase complementar, sempre teria de ser afastada a possibilidade de intervenção dos tribunais portugueses, pois os factos tiveram a sua génese em França e dentro de um quadro regulador cujos parâmetros foram traçados pelo tribunal francês.

O acórdão recorrido aborda, aliás, este ponto, de forma certeira e devidamente fundamentada, da forma que segue e se aplaude.

Diz o acórdão a fls. 16 a 19 (fls. 195 a 198 dos autos):         

“Propugna, ainda, o requerido pelo preenchimento da causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea h), sob o ponto i), do nº 1, do citado artigo 2º, da Lei nº 65/2003 de 23-08, alegando que a infração teria sido cometida em território nacional uma vez que se deslocou para Portugal com o filho e não o entregou à progenitora.

Analisados os factos descritos no MDE e tendo em conta que AA foi detido em território português, permanecendo consigo o filho menor … deve admitir-se indiciariamente o cometimento, em parte, dos factos em Portugal.

Na verdade … verifica-se que a consumação do crime perdura para além do dia 08-10-2017 (data em que HH deveria ter procedido à entrega do menor), mantendo-se por vontade do requerido após a sua entrada e permanência em Portugal, e enquanto não for restabelecida a situação anterior à prática do crime, pelo que, à face do disposto no artigo 7º, do Código Penal Português, os factos indiciariamente ocorreram, em parte, no território nacional.

Deste modo, considera-se que a situação dos autos pode enquadrar-se no circunstancialismo legal previsto no artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i), da Lei nº 65/2003 de 23-08.

No entanto … o preenchimento de uma das situações descritas como causas de recusa facultativa não autoriza ou determina a imediata recusa de execução do MDE, mas antes exige a ponderação, face às circunstâncias concretas do caso, dos interesses de ordem pública na prossecução da justiça do Estado-membro de emissão e os correspondentes interesses do ordenamento jurídico do Estado-membro de execução.

Assim, a recusa facultativa de execução do MDE tem de «assentar em argumentos e elementos de facto adicionais aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado requerente.».

A propósito da específica causa de recusa facultativa em análise, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de que «a recusa terá que ser justificada nas concretas vantagens que a prevalência da jurisdição nacional sobre a do estado emissor envolva para a investigação e conhecimento das infrações constantes do MDE».

Ora, no caso concreto, inexistem no processo elementos relevantes que possam fundar a decisão de recusa de cumprimento do mandado, por virtude de, em parte, a infração ter tido lugar em território nacional.

Na verdade, a conexão estabelecida com o ordenamento jurídico português resulta, ao nível dos factos, de ter sido em Portugal que o requerido veio a fixar residência com o menor.

Contudo, o núcleo essencial dos acontecimentos relevantes para a investigação e o exercício do procedimento criminal decorreu em território do Estado-membro de emissão do MDE, pois está em causa o cumprimento de uma decisão judicial que regulamentou as responsabilidades parentais relativa ao menor GG, no âmbito de processo judicial que decorreu em França, país onde ambos os pais do menor viveram, pelo menos, até Agosto de 2017, e onde o menor sempre residiu até ao momento em indiciariamente ocorreram os factos.

Assim, o contexto factual que decorre da matéria apurada aponta no sentido de a perseguição e conhecimento da infração dever prosseguir em França, posto que o acesso aos elementos relevantes será mais fácil e expedito, sem que daí derivem dificuldades para a defesa do requerido, mas antes também para o mesmo será mais fácil o acesso aos meios de prova e elementos que considere pertinentes ao exercício do contraditório e da sua defesa.

Ademais, não se extrai da oposição deduzida à execução do MDE quaisquer fatores que demonstrem a existência de vantagem ou utilidade na concretização da recusa.

Assim sendo, não se verificam, no caso presente, concretas vantagens na prossecução do procedimento criminal por parte do Estado Português, ou seja, não se mostra justificada a prevalência da jurisdição nacional sobre a do estado emissor na investigação e conhecimento da infração constante do MDE.

Nestes termos, conclui-se que não deve ser recusada a execução do MDE.

Como se extrai do acórdão de 9-05-2012, processo nº 27/12.0YRCBR.S1-3.ª Secção – “Como a própria denominação indica, a recusa facultativa permite que o Estado membro da execução do mandado recuse o seu cumprimento. Esta possibilidade, evidentemente, só deve ser implementada na base de argumentos e elementos de facto susceptíveis de adequada ponderação que, devidamente equacionados, levem a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o Estado requerente … O acto de recusa de execução do MDE não pode nem deve tratar-se de um acto meramente voluntarista, capaz de pôr em causa os sãos princípios de cooperação internacional a que a LMDE quis dar corpo e os valores que com essa cooperação se visam prosseguir, com destaque para a correcta administração da justiça penal.

Convém ter bem presente que a LMDE é um instrumento que visa salvaguardar a boa administração da justiça penal na UE, em benefício de todos os Estados membros e de todos os cidadãos que neles vivem, impedindo que a existência de fronteiras no espaço europeu em matéria de Justiça constitua um entrave à obtenção daquele desiderato ou seja utilizada em benefício dos infractores. O acto de recusa não deve nem pode constituir acto que ponha em causa, entrave ou dificulte a perseguição criminal, sem embargo evidentemente da salvaguarda de outros valores, com destaque para os direitos fundamentais da pessoa procurada, maxime as garantias de defesa».

Transportando para o nosso caso, temos:

No caso presente a conduta da requerida deverá ser analisada à luz da violação da decisão reguladora das obrigações parentais, a qual foi tomada por tribunal neerlandês, melhor apetrechado para dirimir o conflito por estar dentro do contexto situacional até porque os alegados comportamentos lesivos deste pai para com os filhos invocados pela requerida como justificativos da sua decisão de vir para Portugal terão sido cometidas em território neerlandês.

A lesão do bem jurídico protegido verificou-se em território neerlandês, com a não entrega das crianças ao pai para o exercício regular do espaço de convívio com eles.

O crime consumou-se nos Países Baixos, continuando a compressão em Portugal.

Aceitando-se que parte dos factos foram, estão/continuam a ser praticados em Portugal, na fase da compressão do bem jurídico afectado, na omissão de posição que faça cessar a situação lesiva, estando-se numa fase complementar, sempre teria de ser afastada a possibilidade de intervenção dos tribunais portugueses, pois os factos tiveram a sua génese nos Países Baixos.

Deste modo, considera-se que a situação dos autos pode, à partida, enquadrar-se no circunstancialismo legal previsto no artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i), da Lei nº 65/2003 de 23-08.

No entanto, o preenchimento de uma das situações descritas como causas de recusa facultativa não autoriza ou determina a imediata recusa de execução do MDE, mas antes exige a ponderação, face às circunstâncias concretas do caso, dos interesses de ordem pública na prossecução da justiça do Estado-membro de emissão e os correspondentes interesses do ordenamento jurídico do Estado-membro de execução.

Ora, no caso concreto, inexistem no processo elementos relevantes que possam fundar a decisão de recusa de cumprimento do mandado, por virtude de, em parte, a infração ter tido lugar em território nacional.

Na verdade, a conexão estabelecida com o ordenamento jurídico português resulta, ao nível dos factos, de ter sido em Portugal que a requerida veio a fixar residência com os filhos.

Contudo, o núcleo essencial dos acontecimentos relevantes para a investigação e o exercício do procedimento criminal decorreu em território do Estado-membro de emissão do MDE, pois está em causa o cumprimento de uma decisão judicial que regulamentou as responsabilidades parentais relativa a estas duas crianças, no âmbito de processo judicial que decorreu nos Países Baixos, país onde ambos os pais das crianças viveram, pelo menos, até Novembro de 2022, e onde as crianças sempre residiram até ao momento em que indiciariamente ocorreram os factos.

Assim, o contexto factual que decorre da matéria apurada aponta no sentido de a perseguição e conhecimento da infracção dever prosseguir nos Países Baixos, posto que o acesso aos elementos relevantes será mais fácil e expedito, sem que daí derivem dificuldades para a defesa da requerida, não havendo dúvidas de que, nesse foro nacional, para a mesma será mais fácil o acesso aos meios de prova e elementos que considere pertinentes ao exercício do contraditório e da sua defesa.

Ademais, não se extrai da oposição deduzida à execução do MDE quaisquer factores que demonstrem a existência de vantagem ou utilidade na concretização da recusa.

Assim sendo, não se verificam, no caso presente, concretas vantagens na prossecução do procedimento criminal por parte do Estado Português, ou seja, não se mostra justificada a prevalência da jurisdição nacional sobre a do estado emissor na investigação e conhecimento da infração constante do MDE.

Nestes termos, conclui-se que não deve ser recusada a execução do MDE, com base nessa causa facultativa.

5.3.2. E a causa de recusa facultativa aposta na alínea c) do nº 1 do artigo 12º?

Entende a defesa que, sendo os factos que motivam a emissão do MDE do conhecimento do MP, não foi aqui em Portugal instaurado qualquer processo.

Sem qualquer sentido a alusão a esta alínea.

De facto, este delito, entre nós, tem natureza semi-pública, não podendo agir o MP sem o impulso processual da parte tida por ofendida.

O Ministério Público da protecção, logo que teve conhecimento da existência deste MDE, accionou o processo de promoção e protecção em favor das duas crianças, filhas da requerida, não tendo antes disso qualquer conhecimento desta situação para poder accionar penalmente esta mãe, o que já se sabe, sempre implicaria uma prévia e legitimante queixa formal por parte do pai das crianças, inexistente a esse nível.

Improcede, assim, esta causa de recusa facultativa.

5.3.3. Finalmente, entende a defesa que a execução deste MDE colocará em causa os direitos à integridade física, à segurança e à liberdade da requerida, bem como das duas crianças, direitos fundamentais constitucionalmente protegidos.

Invocam-se as suspeitas que recaem sobre o pai de que teria comportamentos sexuais perante as crianças, de forma algo indefinida (e que continuaram a ser verbalizadas pela requerida em julgamento) – refira-se, contudo, que o TFM ... desvalorizou tais suspeitas decretando a decisão de imediato regresso das crianças para a Holanda, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980.

Ora, a execução deste MDE não coloca em causa, com toda a evidência e de forma directa, esses direitos fundamentais da requerida ou de seus filhos pois apenas manda entregar aos Países Baixos uma pessoa para efeitos de correr aí os seus devidos termos o procedimento criminal pela prática de um crime tido como praticado por ela, não decretando qualquer entrega das crianças às mãos do pai, tido como ser agressor.

Temos como certa a asserção segundo a qual a qual a execução de um MDE nunca pode prescindir do respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, pois em caso algum os cidadãos podem ver os seus direitos fundamentais postergados.

Mas tudo o que se alega na oposição serão factores a serem considerados no âmbito do processo que corre termos no TFM ... (ao abrigo da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de Haia, de 25 de Outubro de 1980, visando o regresso imediato das crianças à Países Baixos) e no processo criminal a correr termos nos Países Baixos.

E não aqui.

Aplicando a Convenção da Haia de 1980, o imperativo da ordem de regresso ao país da residência habitual nas situações de retenção ilícita terá de ceder sempre que se considere existir grave risco de a criança, no retorno ao país da sua residência habitual, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

A Convenção, que tem como objectivos assegurar o retorno imediato das crianças ilicitamente transferidas para outro Estado ou neles retidas indevidamente, e fazer respeitar, nos Estados contratantes, os direitos de guarda e de visita neles existentes – cfr. alíneas a) e b) do artigo 1º -, tem por subjacente dois postulados:

. a subtração ilícita gera uma ruptura negativa na vida da criança;

. as autoridades do país da residência habitual da criança são as que, em princípio, se encontram em condição mais favorável para decidir sobre a guarda e o local de residência da criança.

Nesse sentido, considera ilícita a deslocação ou retenção do menor (artigo 3º) nas situações em que:

a)- tenha havido violação a direito de guarda atribuído a pessoa ou a instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção;

b)- esse direito estivesse a ser exercido de maneira efectiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.

Decorre do preceituado nos artigos 12º e 13º, alínea b), da Convenção, que, nas situações em que seja verificada a ilicitude da deslocação ou retenção e tenha decorrido um prazo inferior a um ano entre tal deslocação ou retenção e o início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante, deverá ordenar-se o regresso imediato da criança, excepto nos casos em que se considere existir grave risco de a criança, no retorno ao país da sua residência habitual, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.

Acresce que constitui igualmente condição para travar o regresso imediato a oposição da criança a tal, desde que tenha atingido idade e o grau de maturidade necessários para avaliar e emitir opinião sobre a questão.

Esta excepção ao imperativo da ordem de regresso exige que seja feito um juízo avaliativo de conformidade entre o regresso da criança e o seu interesse, ou mesmo com a sua vontade (desde que a sua idade e maturidade justifique que se tenha em conta a sua opinião), sendo que esta se terá de fundamentar na salvaguarda do seu interesse que, como vimos, constitui “a trave mestra” da Convenção.

Ora, esta alegação será lícita e pertinente no processo que quer ver regressar as crianças aos Países Baixos e não neste em que apenas se pretende a entrega da requerida à Justiça neerlandesa para efeitos de procedimento criminal.

Nos Países Baixos terá toda a oportunidade para se defender, explicando a razão pela qual quis retirar os filhos da convivência com o pai das mesmas, não sendo também significativo a actual boa integração das crianças em Portugal, assente até que estão, neste momento, contra toda a naturalidade, acolhidos em meio institucional, longe do contacto permanente com a mãe, estando em Portugal apenas desde Novembro de 2022, o que não chega para qualquer solidificação da vinculação a este país e a um novo meio residencial [11].

E acredita-se que nos Países Baixos, a ser deferido este MDE, a requerida continuará a viver com os filhos, não havendo, à partida, quaisquer razões para considerar que não tem ela as melhores condições pessoais e sociais para tomar deles conta.

Deferido este MDE, poderá o pai ver ressuscitada a possibilidade de convivência com os filhos (note-se o seu cuidado em se ter deslocado para Portugal a fim de os ver), a não ser que, nos Países Baixos, a Justiça das Crianças venha a decidir que ele não tem condições para esse convívio.

Como se vê, a execução deste MDE em nada contende com direitos fundamentais da requerida e dos seus filhos pois através dele não se vai fazer a entrega das crianças a um possível pai abusador, como é bem de ver.

Não se deixa é de estranhar, como o nota o MP, o facto de, perante a gravidade dos factos imputados ao pai dos seus filhos, a requerida tenha saído dos Países Baixos sem ter denunciado essa situação às instâncias próprias, só o fazendo agora, ao que parece, como resposta a este MDE.

Repete-se:

A apreciação dos pressupostos do crime, o grau de participação da requerida e a existência de eventuais causas de exclusão da sua ilicitude ou culpa não pode ser feita nestes nossos autos que têm um espectro muito restrito e definido, constituindo antes elementos que se poderão – e deverão – invocar no exercício do seu direito de defesa perante o Estado emitente, no processo que ali corre os seus termos.

E ainda o seguinte:

A execução de um MDE não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor, no qual convirá proceder a instrução e julgamento conjunto, onde se pondere a actividade imputada em toda a sua amplitude, de forma a ter uma panorâmica geral da conduta desenvolvida pela requerida e seu companheiro, a permitir um julgamento que tenha em consideração o pleno de todas essas condutas, a imagem global do facto, evitando-se procedimentos penais múltiplos e sobrepostos com todos os inconvenientes que daí normalmente advêm.

Ao Estado de execução, apenas incumbe indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução, agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo (Lei 65/2003, de 23-08, e Decisão Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06).

6. Como tal, e sem necessidade de acrescida fundamentação, só há que deferir a execução deste Mandado de Detenção Europeu, tendo esta nossa decisão sido proferida dentro do prazo legal previsto no nº 2 do artigo 26º da Lei nº 65/2003, num processo em que foi garantido o direito de defesa da requerida.

III. DECISÃO

1. Pelo exposto, e nos termos do artigo 22º/2 da Lei nº 65/2003 de 23/8, acordam os Juízes da 5ª secção - criminal - deste Tribunal da Relação em, julgando improcedente toda a oposição à execução deste Mandado de Detenção Europeu, deferir ao requerido, determinando a execução definitiva do MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU (com a referência ...1, emitido pelo Juiz de Instrução de ..., ..., Países Baixos, contra AA, ordenando a entrega da mesma, de nacionalidade neerlandesa, às autoridades dos Países Baixos para os efeitos nele previstos.

A entrega à autoridade de emissão será efectuada, APÓS TR NSITO, tendo em atenção que a requerida não renunciou ao benefício da regra da especialidade.

2. Sem taxa de justiça (artigo 35º, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto), correndo as despesas ocasionadas pela execução em território nacional a cargo do Estado Português.

3. Notifique a requerida e seu ilustre defensor e comunique à PJ, ao TFM ... (Pº 141/23....), à DGRSP, ao Gabinete Nacional do SIRENE, ao Gabinete Nacional da INTERPOL, à PGR, à Embaixada dos Países Baixos em Lisboa, e à entidade emissora do MDE (cfr. ainda fls 184) – a qual deverá ser informada que a requerida não renunciou à regra da especialidade -, com observância do disposto nos artigos 28º e 29º da Lei nº 65/2003 de 23/8.

4. A requerida manter-se-á no regime de medida de coacção fixada, até trânsito em julgado da decisão, salvo alteração superveniente justificada dos respectivos pressupostos.

Coimbra, 8 de Março de 2023

Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09)

Paulo Guerra

Alcina da Costa Ribeiro

Cristina Pêgo Branco





[1] O princípio da especialidade – inato ao instituto tradicional da extradição, que traduz a limitação do âmbito penal substantivo do pedido, cuja abrangência se encontrava vedada e circunscrita aos factos motivadores do pedido de extradição – surge como uma garantia da pessoa procurada e como limite da acção penal ou da execução da pena ou da medida de segurança e representa uma segurança jurídica de que não será julgada por crime diverso do que fundamenta o Mandado de Detenção Europeu (MDE), ou que não cumprirá sanção diversa da que consta do MDE.
[2] Sobre este delito do artigo 259º do CP português, doutrina Damião da Cunha no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, p. 613, o seguinte:
«É certo que a experiência prática demonstra que a “subtracção” de menores em regra está associada à realização de outros crimes – com especial incidência nos crimes de rapto, sequestro ou outros crimes contra a liberdade (…); e que, (…), a aplicação efectiva deste tipo legal tem sobretudo um carácter subsidiário, isto é, uma aplicação justificada por dificuldades probatórias quanto á verificação daqueles outros crimes. Deve, no entanto, notar-se que as condutas descritas neste tipo legal não se sobrepõem, necessariamente, às dos restantes tipos legais (em especial, ás do crime de rapto), na medida em que – a despeito de uma mais correcta autonomização face àqueles tipos legais – pode ser praticado mesmo com o consentimento do menor e as exigências típicas não são tão estritas como naqueles crimes (…). Além disso, é notório que há, hoje, áreas em que o tipo legal ganha autonomia, como são os casos (…), estes muito mais frequentes, de subtracção associadas a conflitos familiares».
[3] Damião da Cunha expressa, aliás, o entendimento, no artigo citado na nota anterior, que este tipo legal de crime do artigo 249º - muito paralelo ao 279º holandês -, tem grande aplicação nos casos de ruptura da vida familiar, sendo também esse espaço de conflitualidade o que mais problemas causa, «pois afigura-se muito duvidoso que o direito penal possa, ou mesmo deva,intervir com eficácia no âmbito dos conflitos familiares».
Portanto, não nos parece curial defender que este crime de «subtracção de menor» possa estar incluído na epígrafe mais ampla dos «crimes de rapto, sequestro e toma de reféns», referidos no catálogo do artigo 2º, nº 2 – alínea q) - da Lei nº 65/2003, assente ainda que não está presente em mais nenhuma alínea desse normativo.
[4] As alíneas d) e e) estão hoje revogadas por força da aplicação directa do artigo 5º da Lei nº 35/2015, de 4 de Maio.
[5] As causas de recusa a que alude o invocado artigo 12º da Lei nº.65/2003 são motivos que não desencadeiam obrigatoriamente a recusa, mas sim que podem facultativamente implicá-la. Dependem como tal de uma apreciação do Estado de execução, “in casu” do Tribunal da Relação competente – v.art.15º da Lei nº 65/2003 -, de modo a perpetrar um juízo de hermenêutica e de ponderação da tutela de interesses juridicamente protegidos em conflito.
[6] Refira-se aqui a alusão (nota nossa e não da autora citada no texto do aresto) ao Acórdão da Relação de Lisboa de 7/2/2017 (Pº 866/15.0PELSB.L1-5) que defendeu – em situação muito diversa da nossa, diga-se, pois aí não havia sequer qualquer regulamentação heterocompositiva do exercício das responsabilidades parentais) que:
«I-Ainda que a razão da protecção concedida pela incriminação constante do crime de subtracção de menor previsto pelo art. 249º do Cód. Penal estivesse pensada para o bem-estar daquele (“que, de resto, é a justificação para a existência daqueles poderes-deveres”), e não para a protecção dos titulares de tais poderes, entendia-se na Doutrina, que o bem jurídico acautelado por tal normal era “a protecção dos poderes que cabem a quem esteja encarregado de menor …
II-… considera-se hoje em dia, que protege “o direito ao exercício sem entraves ilícitos dos conteúdos ínsitos às responsabilidades parentais e, de modo reflexo, o interesse do próprio menor no adimplemento de uma decisão que, nos termos da lei, surge - ou deve surgir - como aquela que melhor acautela esses interesses.
III-Para que se verifique o crime previsto na al. c) do respectivo nº 1, não basta que o incumprimento que aí se menciona corresponda a uma simples auto-regulamentação … antes pressupõe a fixação do exercício das responsabilidades parentais através de uma decisão judicial ou acordo homologado.
IV-Já para a modalidade tipificada na sua al. a), subtrair, consiste em “retirar o menor do lugar, do espaço e do círculo da pessoa (ou da instituição) a quem está confiado. Donde, a consumação do delito pressupor que o menor fique submetido ou à disposição da pessoa que o retirou ou reteve, ou seja, que permaneça fora do controle da pessoa a cuja guarda ou direcção se encontrava legitimamente.
V-O progenitor com quem o menor reside habitualmente não pode incorrer na prática do crime consagrado em tal preceito.
VI-A interpretação do nº 1 do art. 249º do Cód. Penal, ao advogar a sua não aplicabilidade ao progenitor do menor subtraído “quando não haja regulação de responsabilidades parentais”, por violação do art. 36º, nºs 5 e 6 da CRP, não se nos afigura inconstitucional, ainda que importe distinguir, para este efeito, a situação prevista na al. a) da prevista na al. c) do respectivo nº 1».
[7] In «O novo crime de subtracção de menor previsto no art. 249º/nº 1-c) do Código Penal Português (após a Lei nº 61/2008, de 31/10): a criminalização dos afectos (Dissertação apresentada no âmbito do 2º Ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Área de Especialização: Ciências Jurídico-Criminais - Orientador: Doutor Manuel da Costa Andrade. Coimbra 2013).
[8] Refere António Miguel Veiga, aludindo à anterior versão do artigo 249º, nº 1:
«O referido art. 249º do CP não cobria os casos em que o titular da guarda decidia, pura e simplesmente, não “permitir” que o outro progenitor (não guardião) exercesse o seu normal e legítimo direito de visita em relação à criança. Ou seja, mesmo que desse exercício do ius de visita não resultasse perigo algum para o interesse do menor (e antes correspondesse a um importante plus para o seu bem-estar psicossomático e melhor
desenvolvimento da sua personalidade), a referida atitude de impedimento injustificado não poderia merecer qualquer valoração de índole penal, mas tão-somente civil.
As sanções de índole civil reconduziam-se, no essencial, ao pedido – pelo progenitor não guardião – de cumprimento coercivo do regime estabelecido ou de condenação do inadimplente na sanção pecuniária e indemnização previstas no art. 181º da OTM; mas também à acção de alteração da regulação do exercício do poder paternal contida no art. 182º do mesmo diploma, ou ao pedido de inibição daquele exercício ou de confiança do menor a estabelecimento adequado em caso de perigo para a sua segurança, saúde, formação moral ou educação (arts. 1915º e 1918º do CC, na sua anterior redacção). Por outro lado, assistiria igualmente ao progenitor não convivente (e estando preenchidos os respectivos pressupostos) a acção de responsabilidade civil extracontratual tendente à compensação dos danos (maxime de cariz não patrimonial) a si causados pela atitude culposa e ilícita do titular da guarda».
[9] Atente-se no teor do Acórdão da Relação de Lisboa de 13/7/2016 (Pº 941/14.8TAFUN.L1-3) que decidiu, em situação análoga à nossa, o seguinte:
«O interesse da criança deve constituir o núcleo central dos interesses que a norma visa tutelar pois, a criança é o centro e a destinatária primordial do regime legal em vigor e para garantir esse interesse é imprescindível que o exercício das responsabilidades parentais possa ser levado cabo de forma plena e sem manobras interesseiras de um dos progenitores sobre o outro com desrespeito pela criança e pelo que fora acordado.
O crime de subtração de menores insere-se, assim, num contexto melindroso em que a atuação do Estado deve ser moderada e ponderada, devendo todos os intervenientes prosseguir o interesse superior da criança, sem esquecer que isso passa, salvo algumas exceções, pela presença na sua vida de ambos os progenitores.
Na nova redacção, um dos elementos típicos do crime previsto na al. c) do artigo 249º do cód. penal é a violação do regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais. Exige-se no entanto uma conduta repetida e injustificada com reflexos na vida e interesse do menor, o que parece ser o caso ao privar totalmente a criança do convívio e visitas com o pai, com os reflexos graves que isso possa ter na vida futura da criança.
Deslocar uma criança para o estrangeiro, (para país desconhecido) sem autorização do pai, nem seu conhecimento prévio, constitui um acto que torna impossível a entrega da criança e o cumprimento do regime de visitas estabelecido, não servindo aqui o argumento de que foi procurar melhores condições de vida, para obstar à imputação e indício do crime em causa. Seria diferente, caso tivesse colocado a questão ao assistente ou informado o tribunal e pedido previamente a alteração do poder paternal, mas tal não foi feito, bem pelo contrário, indicia-se que simplesmente quis erradicar o progenitor da vida da filha».
[10] Curiosamente também citado pela defesa da requerida mas só até certo ponto [naquilo que é da conveniência da defesa, olvidando a referência à decisão final do aresto quanto à causa de recusa do artigo 12º, nº 1, alínea h) ii da Lei nº 65/2003, de 23/8, nitidamente desfavorável à sua tese].
[11] Para que possamos afirmar que um cidadão tem residência em Portugal (cfr. causa facultativa da alínea g) do nº 1 do artigo 12º da Lei nº 65/2003), é necessário que exista alguma conexão que a torne em algo com carácter físico permanente, familiar, uma vivência idêntica a um nacional, que justifique a prestação da garantia.
Note-se que a referida alínea g) não se refere a uma exigência mínima no prazo de residência.
Porém, para a definição do conceito de residência, para efeitos comunitários, cumpre fazer apelo ao acórdão Kozowski do Tribunal de Justiça da EU (Grande Secção) de 17 de Julho de 2008 (processo C-66/08) que afirmou - a propósito do artigo 4°, n° 6, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros - que “- uma pessoa procurada é «residente» no Estado-Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real nesse Estado-Membro e «[encontra-se]» aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado-Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência; – para determinar se entre a pessoa procurada e o Estado-Membro de execução existem laços que permitam considerar que essa pessoa está abrangida pela expressão «se encontrar», na aceção do referido artigo 4°, n° 6, cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objetivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado-Membro de execução” – ver, neste sentido, o Acórdão do TRE, datado de 1/12/2014, Processo nº 115/14.8YREVR …
Em resumo, há que apreciar se estamos perante uma permanência estável e com laços com o Estado de execução que excluam o provisório, o ocasional.
Ora, para termos a referência do que deve ser sinónimo dessa estabilidade, devemos ter presente o artigo 10º, nº 1, da Lei nº 37/2006, de 9 de Agosto, que dispõe o seguinte: “1 – Têm direito a residência permanente os cidadãos da União que tenham residido legalmente no território nacional por um período de cinco anos consecutivos.”
Saliente-se que a referida lei regula o exercício do direito de livre circulação e residência dos cidadãos da EU e dos membros das suas famílias no território nacional e transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2004/38/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril.
Pois bem, no caso presente, a requerida só vive em Portugal, com carácter de permanência, desde Novembro de 2022, isto é, há muito pouco tempo.
Logo, estamos perante um curto período que não permite aquilatar da estabilidade da sua permanência no nosso território – não estão, de facto, ainda, enraizados laços sociais e laborais que confiram a necessária estabilidade ao vínculo com Portugal.
Diga-se ainda «encontrar-se em Portugal» também é facto previsto na al. g), do nº 1, do artigo 12º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, como causa de recusa facultativa.
Contudo, a alínea ora em causa apenas opera para os casos de cumprimento de pena, que não para os casos, como o do presente procedimento, de possível uso da pretensão punitiva ainda não concretizada por decisão judicial transitada.