Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3/14.8TBPCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INDEMNIZAÇÃO
DANOS
RESPONSABILIDADE
ESTRADAS DE PORTUGAL
ÁRVORE
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – PENACOVA – SEC. COMP. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 4º Nº 1 AL. G) DO ETAF E DL Nº 133/2013 DE 03/10
Sumário: É da competência da jurisdição administrativa e não dos Tribunais judiciais a apreciação de pedido de condenação da “EP - Estradas de Portugal, SA.” para ressarcimento de danos sofridos em acidente de viação ocorrido no IP3, responsabilidade essa que se alicerça, entre outros fundamentos, em ilícito extracontratual desta Ré, a quem se imputa, como causal do acidente, a omissão do seu dever de detectar e suprimir os perigos para a segurança rodoviária nessa via, designadamente, os advindos da queda nessa via de árvores marginais pertencentes a terceiros.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) – A… e marido, C…, residentes em …, intentaram, em 02/01/2014, no Tribunal Judicial da Comarca de Penacova, contra a “Estradas de Portugal, S.A.” (1ª Ré) J… e mulher G… (2ºs RR.), residentes em …, acção declarativa, com processo comum, para efectivação da responsabilidade civil pelos danos que tiveram e que resultaram do acidente de viação em que teve intervenção o seu veículo automóvel de matrícula …-XS, acidente esse ocorrido no IP3 (junto à povoação de Porto da Raiva) e que foi originado pela queda de um eucalipto nessa via.

Pediram a condenação dos RR a pagar-lhes, “individualmente ou solidariamente” a quantia de € 1.107,00, sendo esse o montante global resultante da adição do custo do arranjo dos estragos causado no seu veículo e de 36,00 € do custo de certidão do relatório do acidente.

Quando à responsabilidade da Ré “Estradas de Portugal, S.A.” sustentaram que a mesma resultava:

- Por um lado, da circunstância de a Ré (antiga Junta autónoma das Estradas), quando construiu a via rodoviária IP3, em 1992, cortando o acesso que existia à propriedade dos 2ºs RR e demais proprietários confinantes, não ter criado “nenhum caminho alternativo para os mesmos”;

- Por outro lado, da circunstância de a Ré ter omitido, o “dever excepcional de detectar e suprimir os perigos óbvios e alarmantes para a segurança rodoviária no IP3, designadamente, os advindos de árvores marginais às estradas, mesmo que pertencentes a terceiros.”.

A responsabilidade dos 2ºs RR imputam-na à circunstância de, sendo proprietários do referido eucalipto, que se encontrava num terreno seu, não terem demandado judicialmente as E.P. (anterior JAE) para a obrigarem a construir um acesso alternativo” ao IP3 para a propriedade.

2) - Na contestação que apresentou, a Ré “Estradas de Portugal, S.A.”, invocou, entre o mais, a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, por entender serem os tribunais administrativos os materialmente competentes para a apreciação do pedido indemnizatório formulado contra si.

3) - Os AA. responderam à mencionada excepção, alegando, em síntese, que estando no âmbito de uma questão de direito privado, para conhecer do pedido formulado pelos AA. é de reconhecer a competência material ao tribunal comum e não ao tribunal administrativo.

4) - A Mma. Juiz da Instância Local de Penacova – Secção de Competência Genérica (J1), da Comarca de Coimbra, por despacho de 06/02/2015, entendendo que, para a apreciação do pedido que os AA. formulavam contra a Ré “Estradas de Portugal, S.A.”, eram materialmente competentes os Tribunais Administrativos, invocando o disposto nos art°s 577°, alínea a), 578° e 278°, n° 1, alínea a), todos do novo Código de Processo Civil, declarou esse tribunal como incompetente, em razão da matéria, quanto ao pedido formulado relativamente à Ré “EP - Estradas de Portugal, S.A.”, demandada esta que, em consequência, absolveu da instância, ordenando o prosseguimento do processo quanto os demais RR.

B) - Inconformados com tal decisão, dela vieram apelar os Autores, que, a findar a respectiva alegação recursiva, ofereceram as seguintes conclusões:

...

Terminaram requerendo que se revogasse a decisão recorrida, substituindo-se esta por uma outra decisão que declarasse “a competência em razão da matéria do tribunal (instância local) de Penacova quanto ao pedido formulado relativamente à Ré “EP- Estradas de Portugal S.A” e em consequência”  se ordenasse o prosseguimento dos presentes autos contra a presente Ré.

II - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[2]).

Assim, a questão a resolver resume-se a saber se é aos Tribunais Judiciais que compete a apreciação da matéria a que os presentes autos respeitam no que concerne à Ré “EP - Estradas de Portugal”, S.A., ou se, ao invés, essa competência deve ter-se como atribuída, como entendeu a 1ª Instância, aos Tribunais Administrativos.

III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.

B) - Como se sabe, de acordo com o entendimento expendido, entre outros autores, por Manuel de Andrade ("in" Noções Elementares de Processo Civil, I, reedição de 1979, pág. 91) e seguido em numerosos Acórdãos do STJ (v.g., Ac. do STJ, de 20/02/90, no BMJ n.º 394, pág. 453, Ac. do STJ, de 27/06/89, no BMJ n.º 388, pág. 464, e Ac. do STJ, de 06/06/78, no BMJ n.º 278, pág. 122), a competência do tribunal afere-se pelos termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos).

De facto, no que respeita aos pressupostos processuais, v.g., o da competência material, aplica-se a lei em vigor à data da instauração da acção. Efectivamente, de acordo com o artº 22º n.ºs 1 e 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro[3] (com correspondência no artº 38º, n.ºs 1 e 2, da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário-, inaplicável ao caso, como se refere “infra, em nota), a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes, até, as modificações de facto e de direito posteriores, excepto, quanto a estas últimas, se for suprimido o órgão a que estava afecto ou lhe for atribuída competência de que antes carecia (cfr. t.b. artº 60º do NCPC).

A incompetência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artº 96º, a)), excepção dilatória que, podendo ser arguida pelas partes, deve, salvaguardadas as excepções legais previstas, ser suscitada oficiosamente em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (artº 97, nº 1), e que implica a absolvição do réu da instância ou, se detectada no despacho liminar, o indeferimento da petição (artº 99º, nº 1), do NCPC).

A competência dos tribunais da ordem judicial é residual. Efectivamente, os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (art.º 64º do NCPC e 18º, n.º 1, da LOFTJ).

De harmonia com o disposto no artº 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, (CRP) compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 02/01/2014, a aferição da competência material, no que aos Tribunais Administrativos respeita, faz-se tendo em conta o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro e alterado por sucessivos diplomas, entre os quais, a Lei n.º 20/2012, de 14/05.

Também nesse Estatuto se preceitua (art. 59º, nº 1) que a “competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.

Uma vez que os Recorrentes invocam o princípio da adequação formal (artº 547º do NCPC), para sustentar a utilização do mesmo com o escopo de “assegurar a continuidade de todos os RR no mesmo processo”, começa-se por dizer que um tal princípio (o mesmo se dirá quanto ao dever de gestão processual – artº 6º, do NCPC) é naturalmente inábil a, directa ou indirectamente, postergar normas imperativas por via das quais a apreciação do pedido contra determinado Réu, demandado no Tribunal Judicial, seja da competência da jurisdição administrativa.[4]

Diz-se no Acórdão do STJ de 16/10/2012 (Revista nº 950/10.6TBFAF-A.G1.S1), citado, aliás, na decisão recorrida e que expressa entendimento que perfilhamos[5]:

«(...)Concretizando o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, exemplificativamente[3] estabelece o art. 4º nº 1 do ETAF que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto…”, procedendo depois à enunciação de diversas situações, dentre as quais, para o caso dos autos, salientaremos as alíneas g) “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público” e i) “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”. Isto é, o art. 4º nº 1 als. g) e i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Significa isto, para o que aqui importa, que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual daqueles sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas.

Existiu, segundo cremos, por banda do legislador, o propósito de estender a competência dos tribunais administrativos e fiscais a áreas de jurisdição que antes não eram suas[4]. O regime introduzido atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais a todas as questões de responsabilidade civil envolvendo pessoas colectivas de direito público (vide alíneas g) e h) do referido art. 4º nº 1), independentemente de se saber se as mesmas eram regidas por normas de direito público ou por normas de direito privado [5], indo ainda mais além ao aplicar essa competência à responsabilidade civil extracontratual dos próprios privados desde que lhes deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Face a estas circunstâncias parece-nos que, para efeitos de competência dos tribunais administrativos e fiscais, deixa de ter relevância a distinção, que antes do actual ETAF entrar em vigor, se fazia entre actividade de gestão privada e a de direito público, atribuindo-se a competência a esses tribunais apenas nesta hipótese. A este propósito escreveu-se adequadamente no acórdão do STJ de 10-4-2008 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf)[6] que tal distinção “não releva para determinação da competência jurisdicional, certo que a lei seguiu critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública[7], em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente do direito substantivo aplicável”. Este entendimento encontrou igualmente acolhimento no acórdão deste STJ de 12-2-2007 (in www.dgsi.pt/jstj.nsf)[8] onde se afirmou, em sumário, que “1- O âmbito de jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado. 2. Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa”.

A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, como se viu, está dependente de a estes dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Estabelece o art. 1º nº 5 da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”. 

Quer dizer esta disposição, mesmo em relação às entidades privadas, faz aplicar-lhes o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, no que toca a acções ou omissões levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público» ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo». Ou seja, desde que as pessoas colectivas de direito privado (e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares) actuem em moldes de direito público, desenvolvam uma actividade administrativa, deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.

Como diz Carlos Alberto Cadilha “…tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas”[9].

Concretiza este art. 1º nº 5 da Lei 67/2007, na prática, o princípio delineado no art. 4º nº 1 al. i) do ETAF que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público[10]. Indica, pois, aquela disposição as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4º nº 1 al. i) do ETAF.

A R., E.P. Estradas de Portugal S.A., foi criada pelo Dec-Lei 374/2007 de 7 de Novembro, tendo-se expressamente estabelecido no art. 1º nº 1 deste diploma que “a EP - Estradas de Portugal, E. P. E., criada pelo Decreto -Lei nº 239/2004, de 21 de Dezembro, é transformada em sociedade anónima de capitais públicos, com a denominação de EP - Estradas de Portugal, S. A.[11]”.

O art. 3º deste diploma refere que “a EP - Estradas de Portugal, S. A., rege-se pelo presente decreto-lei, pelos seus estatutos, pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, consagrado no Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, pelos princípios de bom governo das empresas do sector empresarial do Estado constantes da Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, de 28 de Março, pelo Código das Sociedades Comerciais e pelos seus regulamentos internos, bem como pelas normas especiais que lhe sejam aplicáveis”.

Como funções a desempenhar pela EP - Estradas de Portugal, S. A. estabelece o art. 4º nº 1 do mesmo diploma que “a EP - Estradas de Portugal, S. A., tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é celebrado pelo Estado”.

Por sua vez o art. 10º nº 1 sempre do Dec-Lei 374/2007 no que se refere ao estatuto da R. estipula que “compete à EP - Estradas de Portugal, S. A., relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integrem o objecto da concessão a que se refere o n.º 1 do artigo 4.º, zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação”. Acrescenta o nº 2 da disposição que “para o desenvolvimento da sua actividade, a EP - Estradas de Portugal, S. A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita: … h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública”.

Por outro lado, determina o art. 8º nº 1 do mesmo diploma que “as infra -estruturas rodoviárias nacionais que integram o domínio público rodoviário do Estado e que estejam em regime de afectação ao trânsito público ficam nesse regime sob administração da EP - Estradas de Portugal, S. A.”, donde decorre, que pertence a esta a representação do Estado no que toca às infra-estruturas rodoviárias.

Quer dizer, estes dispositivos, dentro das funções atribuídas à R. (quanto às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integrem o objecto da sua concessão), concedem à mesma poderes de autoridade próprios do Estado. Neste sentido são atribuídos à R., EP - Estradas de Portugal, S. A., nos termos do nº 3 do dito art. 10º, os poderes de autoridade necessários a garantir a livre e segura circulação [12].

Como apropriadamente diz Salvador da Costa (in A Responsabilidade Civil por Defeitos de Concepção, Conservação e Construção de Estradas – Separata da Revista do CEJ, 2º Semestre, nº 10, pág. 56) a EP - Estradas de Portugal, S. A. “para o desenvolvimento da sua actividade detém poderes prerrogativas e obrigações conferidas pelo Estado, por via de disposições legais no que respeita, designadamente, ao uso público dos serviços e à sua fiscalização, à regulamentação e fiscalização dos serviços prestados no âmbito das suas actividades e aplicação das correspondentes sanções, nos termos da lei, e à responsabilidade civil extracontratual no domínio dos actos de gestão pública (artigos 10º nº 2, alíneas e), g) e h) do Dec-Lei 374/2007 de 7 de Novembro). E mais adiante, em jeito de síntese, “trata-se, pois, de uma sociedade anónima, de capitais exclusivamente públicos, sujeito de um contrato de concessão celebrado com o Estado relativo às estradas nacionais, com algumas prerrogativas de direito público”.

Também o art. 14º nº 1 do Dec-Lei 558/99 de 17 de Dezembro [13] (para onde remete expressamente o dito art. 3º do Dec-Lei 374/2007) estabelece que “poderão as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a: … b) Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público”.

Destas normas é possível inferir-se que a responsabilidade extracontratual por que a R. é demandada, derivada das suas legais atribuições (designadamente conservação e requalificação da rede rodoviária nacional) [14], se desenvolve num quadro de índole pública. A R. é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública, tarefa a que, como se viu, a lei atribui expressamente poderes de autoridade do Estado.

Assim, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação das disposições supra-indicadas e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes em razão da matéria para conhecer do pleito (art. 4º nº 1 al. g) do ETAF).»[6].[7]

Ora, o DL nº 558/99 de 17.12, que estabelecia o regime jurídico do sector empresarial do Estado (diploma este que veio a ser revogado pelo DL nº 133/2013 de 03/10, mas com normas correspondentes às supra referidas, nos arts. 22º, nº 1, al. b) e 23º deste novo diploma) previa poderem as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, nomeadamente quanto à “Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público;” (nº 1, alínea b), do artº 14), do citado DL 558/99, com correspondência no arts. 22º, nº 1, al. b), DL nº 133/2013), sendo que, de harmonia com o estatuído no artº 18º, nº 1, do referido DL 558/99 (com correspondência no artº 23º do DL nº 133/2013) “Para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos contenciosos, respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14.º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades administrativas.”.

Deste modo, vale, no presente caso, “mutatis mutandis”, o que assim se concluiu no referido Acórdão do STJ, de 16/10/2012: «Destas normas é possível inferir-se que a responsabilidade extracontratual por que a R. é demandada, derivada das suas legais atribuições (designadamente conservação e requalificação da rede rodoviária nacional) [14], se desenvolve num quadro de índole pública. A R. é notoriamente chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública, tarefa a que, como se viu, a lei atribui expressamente poderes de autoridade do Estado.

Assim, lícito é concluir que a sua eventual responsabilização por actos e omissões decorrentes dessa sua actividade, se insere no âmbito de aplicação das disposições supra-indicadas e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes em razão da matéria para conhecer do pleito (art. 4º nº 1 al. g) do ETAF).).».[8]

Não perturba esta conclusão a demanda de co-réus particulares – os 2ºs RR -, cuja eventual condenação solidária (com a Ré “EP - Estradas de Portugal, SA.”) se peticiona, bem como a circunstância de se ter entendido, ainda que tacitamente, que, para a apreciação do pedido formulado contra aqueles são competentes os Tribunais comuns (cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 11/28/2007, Processo nº 06/07).

Concluindo, dir-se-á, pois, que os Tribunais Judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para apreciar o pedido formulado contra a Ré “EP - Estradas de Portugal, SA.”, competência essa que pertence aos Tribunais Administrativos, pelo que - sem que violação se vislumbre do disposto nos artºs 2.º, 4.º e 6.º do NCPC, 209º e 212º, ambos da CRP -, bem andou o Tribunal “a quo” ao assim entender e, por via disso, absolver essa Ré da instância.

Do exposto afigura-se ser de sumariar o seguinte: “É da competência da jurisdição administrativa e não dos Tribunais judiciais a apreciação de pedido de condenação da “EP - Estradas de Portugal, SA.” para ressarcimento de danos sofridos em acidente de viação ocorrido no IP3, responsabilidade essa que se alicerça, entre outros fundamentos, em ilícito extracontratual desta Ré, a quem se imputa, como causal do acidente, a omissão do seu dever de detectar e suprimir os perigos para a segurança rodoviária nessa via, designadamente, os advindos da queda nessa via de árvores marginais pertencentes a terceiros.”.

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.

Coimbra, 05/05/2015

(Luiz José Falcão de Magalhães)

   (Sílvia Maria Pereira Pires)

(Henrique Antunes)


***


[1] Código este que é o aplicável, uma vez que a decisão recorrida foi proferida já na sua vigência.
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
[3] Porque a Lei n.º 62/2013, de 26/08, só entrou em vigor em 01/09/2014, é a Lei n.º 3/99 que se aplica ao presente caso, fazendo-se notar, para afastar a aplicabilidade da Lei nº 52/2008, de 28/8, que se perfilha o entendimento expresso no Acórdão do STJ de 30/03/2011 (processo nº 492/09.2TTPRT.P1.S1, da 4ª Secção), onde, em nota, se escreveu: «1)- É esta a LOFTJ que está actualmente em vigor, apesar da publicação da Lei 52/2008, de 28 de Agosto.
Na verdade, esta pretendeu consagrar uma nova LOFTJ, resultando no entanto do seu artigo 187º/1 e 2 que apenas será aplicável, a título experimental, nas comarcas piloto indicadas no artigo 171º nº 1 (Alentejo Litoral, Baixo -Vouga e Grande Lisboa Noroeste), e cujo período de experiência terminaria em 31 de Agosto de 2010 (nº 2 do artigo 187º).
Como o artigo 162º da Lei 3-B/2010 de 28/4 (Lei do Orçamento do Estado de 2008) deu nova redacção ao artigo 187º da LOFTJ, alargando o período experimental de vigência da nova LOFTJ nas comarcas piloto até 1/9/2014, o alargamento da Lei 52/2008 a todo o território nacional ainda não se concretizou.
Pelo exposto, entendemos que esta nova lei vigora apenas nas comarcas piloto, já referidas. E nas outras, como é o caso dos autos, vigorará a Lei 3/99.».
[4] Como resulta claro do pedido que formularam no termo da sua alegação de recurso, os Apelantes não colocaram em causa a decisão de, quanto aos 2ºs RR, ordenar o prosseguimento do processo no Tribunal “a quo”, contestando apenas o decidido relativamente à competência material no que concerne à Ré “EP- Estradas de Portugal S.A”.
[5] Embora se assinalem na transcrição que fazemos do texto do Acórdão, não se reproduzirão as notas de rodapé.
[6] Os sublinhados são nossos.
[7] O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PÚBLICAS, anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e alterado pela Lei n.º 31/2008, de 17/07, foi alterada pela Lei nº 31/2008, de 17 de Julho, mas o referido artº 1º, nº 5, permaneceu com a sua redacção original.
[8] Cfr., no mesmo sentido e versando situação com notórias semelhanças relativamente àquela de que os presentes autos tratam, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 29/01/2015, processo nº 050/14, consultável, tal como os restantes que desse Tribunal vierem a ser citados sem referência de publicação, em “http://www.dgsi.pt/jcon.nsf?OpenDatabase”.