Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1507/11.0TBPBL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
SENTENÇA
DESPACHO
Data do Acordão: 02/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 201.º/2 E 666.º/1 DO CPC
Sumário: 1 - A máxima tradicional que diz e ensina que “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se” vale irrestritamente apenas em relação à sentença final.
2 - Em relação aos despachos, vale se no despacho o juiz expressamente se houver pronunciado sobre a infracção processual e haja considerado como regular o acto respectivo.
3 – Ademais, proferida sentença e ocorrendo uma nulidade de acto processual que, nos termos do art. 201.º/2, deve acarretar a nulidade da sentença, não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666.º/1), o qual só ocorre quanto ao objecto da decisão, para se entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida ou que esta se sana pelo facto de contra a decisão final não haver sido interposto recurso.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... e outros, com os sinais dos autos, intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra B... e outra, também identificadas nos autos.

Tendo sido enviada carta registada com A/R para citação da ré “ B... ”, veio esta arguir a nulidade da respectiva citação, alegando que tal acto não respeitou as regras da citação de actos judiciais nos Estados membros da U.E., constantes do Regulamento (CE) n.º 1348/2000, do Conselho, de 29 de Maio de 2000 – mais exactamente, as condições expressas pelo Estado Alemão – já que a citação directamente por correio só é permitida por carta registada com aviso de recepção e sob a condição de estar acompanhada de uma tradução em alemão ou numa das línguas oficiais do Estado membro de origem se o destinatário for nacional desse Estado membro, o que não aconteceu no caso. Concluiu pois que deve ser considerada como não citada, atenta a nulidade da sua citação e, em consequência, ser declarado nulo todo o processado depois da citação.

Em consequência, foi proferido despacho que reconheceu a verificação da nulidade invocada, que julgou nula citação da ré “ B... ” e que ordenou que a mesma fosse repetida, com observância das formalidades legais, remetendo-se cópia da petição inicial e documentos que a acompanham, em língua alemã.

Veio então o A. A... dizer que não havia sido, antes de tal despacho, notificado para se pronunciar sobre o requerimento da ré B... a invocar a nulidade da sua própria citação; razão porque diz ter-se verificado a nulidade do art. 201º do CPC e requer a sua notificação para exercer o seu direito de resposta (à nulidade invocada pela ré B... ).

Notificadas as RR, veio a ré “ B... ” pronunciar-se sobre a nulidade arguida pelo A. A..., pugnando pela sua inadmissibilidade, por se encontrar esgotado o poder jurisdicional, sendo o meio processual adequado para reagir a tal despacho a interposição de recurso; mais alegou que tal requerimento é inútil porquanto a irregularidade invocada não configura qualquer nulidade processual, por não se encontrar legalmente tipificada, nem ter influência na decisão do incidente de nulidade da citação.

Em consequência, foi proferido o seguinte despacho:

Nos termos do artigo 201º, n.º 1 do C.P.C., a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva produz a sua nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da causa. Decorre dos autos que, mediante despacho proferido a 13/09/2011, foi determinada a notificação dos autores para, querendo, se pronunciarem sobre a nulidade da citação invocada pela ré “ B... ” em 10 dias (sendo certo que a alusão ao disposto no artigo 229º-A do C.P.C. constante do despacho de 28/10/2011, que efectivamente não foi aplicado nos autos, configura mero lapso de escrita resultante de processamento informático).

Contudo, a secção, ao cumprir o ordenado, notificou somente o autor D... (cfr. fls. 109), omitindo a notificação aos autores A... e C..., que se encontram representados por patronos diferentes (cfr. fls. 87 e 88).

Entendemos que a irregularidade praticada (omissão de notificação dos demais autores para, querendo, se pronunciarem sobre a nulidade da citação arguida) para além de redundar no incumprimento do disposto no artigo 3º, n.º 3 do C.P.C., pode influir na decisão proferida, pois contende com o exercício do direito ao contraditório, princípio básico que rege o nosso processo civil, do qual poderiam, em abstracto, vir a resultar argumentos não ponderados pelo tribunal.

Por outro lado, considerando que o despacho com refª 2819459 foi notificado ao autor A... através de notificação expedida em 09/11/2011 (cfr. refªs electrónicas 2834455 e 2834456) que se presume efectuada em 12/11/2011, e que o requerimento de arguição da nulidade deu entrada em tribunal a 22/11/2011, o mesmo é tempestivo (artigo 153º do C.P.C.).

Pelo exposto, declaro a nulidade do despacho proferido em 28/10/2011 na parte em que conheceu da nulidade da citação da ré “ B... ”.

Inconformada com tal decisão, interpôs a ré B... o presente recurso, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que “indefira o requerimento de arguição de nulidade do despacho com a ref. 2819459, apresentado pelo recorrido A..., anulando-se, em consequência, todo o processado posterior que dele dependa”.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª. Não pode a ora Recorrente conformar-se com o despacho proferido a fls. (ref. 3238288), que julgou procedente a arguição de nulidade do despacho de fls. (ref. 2819459), por o mesmo – para além de ser manifestamente nulo – assentar numa errada interpretação e aplicação do Direito à factualidade apurada.

2ª. O requerimento de arguição de nulidade apresentado pelo Recorrido A.. .é manifestamente inadmissível, pois que, atento o disposto no art. 666º do CPC, o meio adequado de reacção de que aquele deveria ter lançado mão era a interposição de recurso de apelação nos termos do disposto na alínea j) do n.º 2 do art. 691º do CPC.

3ª. Devendo a suposta nulidade do despacho de fls. (ref. 2819459) ser invocada nas alegações do recurso

4ª. O Recorrido não interpôs recurso do despacho com a ref. 2819459, tendo apresentado mero requerimento de arguição de nulidade, pelo que o referido despacho transitou em julgado a 2 de Dezembro de 2011. Em consequência,

5ª. O despacho sub judice é nulo por violação do caso julgado formal (art. 652º do CPC), devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outro que julgue inadmissível o requerimento de arguição de nulidade apresentado pelo Recorrido Henrique dos Santos.

Caso assim se não entenda, sem conceder,

6ª. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, a irregularidade invocada – omissão de notificação do requerimento apresentado pela Recorrente – não configura qualquer nulidade processual.

7ª. Conforme determina o n.º 1 do art. 201º do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

8ª. A irregularidade invocada não só não constitui nulidade tipificada na Lei, como não teve, nem poderia ter - ao contrário do que pretende o Tribunal a quo -, qualquer influência na decisão da questão suscitada no incidente de nulidade de citação.

9ª. A Recorrente arguiu a nulidade da sua citação por a mesma não ter respeitado as formalidades prescritas no Regulamento n.º 1393/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, o que resulta evidente da mera análise dos presentes autos, pois não se encontra junta aos mesmos qualquer tradução para língua alemã da petição inicial e documentos.

10ª. Nada do que os Recorridos pudessem vir dizer poderia ter qualquer influência na decisão proferida pelo douto Tribunal, porquanto a nulidade invocada resulta, necessariamente, dos elementos juntos aos presentes autos.

11ª. Não tendo a irregularidade cometida – como não poderia ter – qualquer influência no exame ou na decisão da arguida nulidade da citação, o despacho de fls. (ref. 2819459) não padece de qualquer nulidade, tendo o douto Tribunal a quo, ao decidir em contrário, feito errada interpretação e aplicação do disposto no art. 201º do CPC.

O A. A... respondeu, sustentando, em síntese, que o despacho recorrida não violou qualquer norma, designadamente, as referidas pela R/recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação

A – A facticidade pertinente é a constante do relatório inicial.

B – Quanto ao direito:

Na origem da presente apelação, como resulta do relatório, está o facto do A/recorrido A... não haver sido notificado do requerimento da R/recorrente B... a arguir a nulidade da sua citação; e de, em consequência, o despacho que reconheceu a verificação de tal nulidade (e que julgou nula a citação da ré “ B... ”) ter sido proferido sem o A/recorrido A... ter tido a possibilidade se pronunciar sobre o requerimento da R/recorrente B... (a arguir a nulidade da sua citação).

E é justamente neste ponto que se situa uma das duas questões suscitadas na apelação.

Diz a R/recorrente B... que a irregularidade invocada – omissão da notificação do requerimento por si apresentado – não configura uma nulidade processual; que não há nada que o aqui A/recorrido possa dizer que possa mudar/influenciar a decisão proferida, pelo que a irregularidade cometida não teve – não podia ter – qualquer influência no exame ou na decisão sobre a arguida nulidade da citação, não padecendo o despacho, que a declarou, de qualquer nulidade, designadamente, da declarada no despacho aqui sob censura.

Compreende-se a argumentação da R/recorrente; mas não se pode acolher.

Também não vislumbramos – admitimo-lo – o que possa eventualmente ser dito pelo A/recorrido que possa alterar a decisão que reconheceu e declarou a nulidade da citação da R/recorrente.

Porém, ainda assim, ainda que estejamos “cheio de certezas”, não podemos decidir sem ouvir e sem dar à outra parte a possibilidade de se pronunciar; efectivamente, há que admiti-lo, há no mundo do direito muito mais coisas que aquelas que cada um tem como certas e seguras, pelo que – manda o legislador – nenhuma questão pode/deve ser decidida sem as partes/interessados terem a possibilidade de dar o seu contributo.

Concorda-se pois por inteiro com a decisão recorrida, quando na mesma se diz que se entente “(…) que a irregularidade praticada (omissão de notificação dos demais autores para, querendo, se pronunciarem sobre a nulidade da citação arguida) para além de redundar no incumprimento do disposto no artigo 3º, n.º 3 do C.P.C., pode influir na decisão proferida, pois contende com o exercício do direito ao contraditório, princípio básico que rege o nosso processo civil, do qual poderiam, em abstracto, vir a resultar argumentos não ponderados pelo tribunal.”

É isto mesmo.

A prolação do despacho que reconheceu a verificação da nulidade (da citação da ré “ B... ”), sem ao A/recorrido A... ter sido dada a prévia possibilidade se pronunciar sobre tal nulidade, violou o princípio do contraditório e o disposto no art. 3.º/3 do CPC, incorporando a omissão dum acto ou formalidade com possível influência na decisão da questão da nulidade da citação, ou seja, a prolação do despacho que reconheceu a verificação da nulidade encerra, ele mesmo, uma nulidade do art. 201.º do CPC.

O que, isto dito, nos remete para a outra questão suscitada na apelação.

Diz a R/recorrente que a arguição de nulidade, apresentada pelo A/recorrido e que gerou o despacho de que se recorre, é manifestamente inadmissível, uma vez que, atento o disposto no art. 666º do CPC, o meio adequado de reacção de que devia ter lançado mão era a interposição de recurso de apelação, onde a suposta nulidade seria invocada nas alegações do recurso; pelo que, ao não recorrer, ao deixar transitar o despacho que declarou a nulidade de citação, é o despacho, ora sob recurso, nulo por violação do caso julgado formal (formado pelo despacho anterior de que não recorreu).

Não tem razão a R/recorrente; embora, à primeira vista, até possa parecer que lhe assiste razão.

Vejamos:

Costuma dizer-se que duma sentença que esteja “errada” – quer por arrancar de pressupostos “errados”, quer por conter um silogismo jurídico “errado”, quer por qualquer outro motivo – duma sentença com que não se concorde, seja qual for o motivo da discordância, se tem que recorrer[1].

Efectivamente, proferida a sentença, diz o art. 666.º/1 do CPC (613.º do NCPC), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa; esgotamento do poder jurisdicional do juiz que, quanto à matéria da causa, significa, lavrada e incorporada nos autos a sentença, que o juiz não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos da mesma, ou seja, não é útil e/ou eficaz pedir ao juiz que, proferida a sentença, a dê sem efeito por causa duma nulidade antes cometida; o que se pode/deve pedir é que, em recurso, o tribunal superior a revogue e substituta (ou que, em vez da substituição, anule e mande repetir determinado processado).

E o que se diz sobre a sentença vale, via de regra, para os despachos (cfr. 666.º/3 = 613.º/3 do NCPC), pelo que teríamos, seguindo esta linha de raciocínio, que a decisão recorrida – que deferiu a verificação da nulidade incorporada no anterior despacho – não estaria correcta; uma vez que o aqui A/recorrido devia era ter recorrido do anterior despacho, sendo a alegação de tal recurso o lugar e o momento próprios para suscitar a nulidade que invocou.

No fundo e numa frase, é a aplicação daquela máxima tradicional que diz e ensina que “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se”; que significa, entre outras coisas, que quando há um despacho – maxime, uma sentença final – que contenha, encerre ou pressuponha um acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é arguição ou reclamação da nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso; que diz que a arguição duma nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ainda indirecta ou implicitamente coberta por qualquer decisão judicial.

Sucede, porém, é o ponto que altera o desfecho da questão, que a aplicação do art. 666.º do CPC aos despachos – diferentemente, do que acontece em relação às sentenças – se apresenta com cambiantes que levam, em certos casos, a colocar de lado a referida máxima “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se”.

Referia Anselmo de Castro[2], a propósito duma aplicação “pura e dura” de tal máxima aos despachos, que “tal construção, porém, parte antes de mais de uma petição de princípio, visto restar demonstrar que o art. 666.º, formulado apenas com relação à sentença final, é extensivo a todas e quaisquer decisões. E não tem sequer sentido quanto àquelas nulidades de que o juiz não pode conhecer oficiosamente (…).

A observância daquela máxima tradicional – dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se – tem como consequência tornar-se o processo escusadamente oneroso para as partes, por as sujeitar a recursos dispensáveis (…).

A ter aplicação aos despachos a regra do art. 666.º, deverá ela restringir-se, portanto, às hipóteses em que por despacho subsequente o juiz expressamente haja considerado como regular o acto respectivo, ou na hipótese do art. 205.º/2, isto é, quando o juiz estiver presente à prática do acto, por lhe ser então imposto obstar à actuação ilegal.”

Refere Lebre de Freitas[3], identicamente, “(…) que se deve ter em conta “que não basta que um despacho judicial pressuponha o conhecimento do vício para que esta se possa considerar por ele implicitamente coberto”; acrescentando – mesmo a propósito da sentença (e não apenas dos despachos) – que “ocorrida uma nulidade de acto processual que, nos termos do art. 201.º/2, deve acarretar a nulidade da sentença, não é invocável o esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666.º/1), o qual só ocorre quanto ao objecto da decisão, nem o trânsito em julgado da sentença (art. 677.º), que não se dá enquanto a arguição estiver pendente, para entender que o juiz deixa de poder conhecer da nulidade oportunamente arguida ou que esta se sana pelo facto de contra a decisão final não ser interposto recurso, não podendo a sentença subsistir.

E do que se acaba de transcrever resulta, em síntese, que sempre que um despacho não se pronuncia expressamente sobre uma infracção processual anterior não se pode/deve dizer que considerou indirecta e implicitamente que não existia tal infracção processual; mas antes e apenas, pura e simplesmente, que não se pronunciou sobre tal questão e objecto processual, pelo que, em conclusão, até ao trânsito do despacho – que “parece” cobrir a infracção processual – pode a infracção ser suscitada e conhecida, não estando o seu conhecimento, nestes estritos termos, vedado pelo esgotamento do poder jurisdicional, nem representando uma violação de caso julgado formal anterior (lembra-se, a infracção/nulidade tem que ser suscitada até ao trânsito do despacho que “parece” cobrir a infracção processual).

É justamente o caso dos autos: a nulidade, respeitante a uma infracção processual anterior não expressamente apreciada no despacho, foi invocada antes do trânsito do despacho que “parece” cobrir (na medida em que não a aprecia) a infracção processual

*

Improcede pois “in totum” o que a R/apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o completo naufrágio da apelação e a confirmação do decidido, que não merece os reparos que se lhe apontam.
*
III – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela R./apelante ( B... ).

Coimbra, 25/02/2014

 (Barateiro Martins - Relator)

(Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)

[1] Caso, evidentemente, o processo admita recurso.
[2] In Direito Processual, Vol. III, pág. 134/5.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, pág. 350/1.