Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
727/14.0TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
NOVO REGIME
NRAU
ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ÓNUS DO SENHORIO
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DEVISEU – VISEU – INST. LOCAL – SEC. CÍVEL – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 91º DO NRAU.
Sumário: I) No domínio dos contratos de arrendamento anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, não cabe ao senhorio, em sede de ação de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

II) Nos casos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em ações de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada em função do valor tributário constante da caderneta predial, uma qualquer possibilidade, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

III) A competência dos tribunais comuns para os efeitos de sindicarem o valor tributário referido em II) na base de uma apreciação de todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

Os autores propuseram contra o réu a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que se declare a resolução do contrato de arrendamento celebrado com o réu, com fundamento em falta do pagamento de rendas devidas na sequência de um procedimento de actualização das mesmas e de transição para o NRAU, que seja decretado o despejo imediato do local arrendado, por forma a que o mesmo lhes seja entregue completamente livre e devoluto de pessoas e coisas, e que seja o réu condenado a pagar-lhe as rendas vencidas e parcialmente não pagas até à propositura da acção e as vincendas até à efectiva entrega do locado.

Citado, o réu deduziu contestação, pugnando pela improcedência da acção, e reconvenção, peticionando a condenação dos autores a reconhecerem que o réu realizou no locado obras e benfeitorias no valor de 25% do valor actualizado do mesmo, condenando-se os autores no seu pagamento aos réus, sem o que o réu não deve ser obrigado a desocupar o locado.

Alegou, em resumo, que a renda exigida pelos autores excede o valor máximo da renda que os mesmos poderiam exigir do réu e que este lhes ofereceu no procedimento de actualização de renda, tendo em conta que o valor patrimonial tributário do imóvel locado foi determinado em termos de exceder aquele que realmente lhe asiste de acordo com os critérios legais aplicáveis; realizou no local obras e benfeitorias que representam pelo menos 25% do valor actual do imóvel locado, devendo os autores ser condenados a pagar ao réu o valor de tais benfeitorias, sem o que o réu se propõe exercer o direito de retenção sobre tal imóvel até ao momento da satisfação desse seu crédito.

Replicaram os autores para, em resumo, impugnarem os fundamentos da reconvenção e concluírem como já tinham feito na petição.

O processo seguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta o seguinte:

Nestes termos, decide-se :

1. Julgar a ação procedente, por provada e, em consequência:

A) Declaro resolvido o contrato de arrendamento que se encontra em vigor entre os Autores e o Réu, relativo ao prédio mencionado no artigo primeiro da petição inicial e, em consequência, condeno o Réu a entregar aos Autores aquele prédio, devoluto de pessoas e bens.

B) Condeno o Réu a pagar aos Autores a quantia de €8.079,57 relativa às rendas já vencidas e parcialmente não pagas (desde Julho de 2013 até Março de 2014 inclusive), bem como aquelas que, na pendência da ação se vencerem à razão mensal de €1.014,83 até à efetiva entrega do locado.

2. Julgo improcedente, por não provado, o pedido reconvencional de que absolvo os Autores.

3. Condeno o Réu nas custas da ação e nas custas do pedido reconvencional (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

4. Fixo o valor da causa na importância de €38.524,47 (trinta e oito mil quinhentos e vinte e quatro euros e quarenta e sete cêntimos).

5. Registe e notifique.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o réu, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

Contra-alegaram os autores, pugnando pela improcedência da apelação.

II - Principais questões a decidir
I.
I.

II.1 Nas alegações de recurso, o réu suscita a questão de saber se o procedimento de transição para o NRAU e de actualização da renda não foi levado a efeito por todos aqueles que nele deveriam ter participado, tendo em conta que nele não participaram pessoas a quem assiste a qualidade de senhorio.

No decurso do processo até às alegações, em especial na contestação onde o deveria ter feito, tendo em conta o princípio da concentração consagrado no art. 573º do NCPC, o réu jamais suscitou a questão acabada de ser referenciada.

A única questão que neste âmbito suscitou (art. 1º a 3º da contestação) foi a de não estar comprovada nos autos a qualidade de proprietários do imóvel locado, qualidade essa que veio a ser dada como provada no ponto 1º) dos factos dados como provados.

Não se trata de matéria que seja do conhecimento oficioso.

Acresce que o recurso ordinário assume a natureza de recurso de reapreciação visando a modificação das decisões, a significar que tais recursos não se destinam a conhecer de questões novas não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas, sim, a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso[1].

Assim, o objecto do recurso deve circunscrever-se à matéria sobre a qual a decisão recorrida se tenha pronunciado em termos que mereçam a discordância do recorrente, com a consequente impossibilidade do tribunal superior decidir pela primeira vez sobre matéria não apreciada pelo tribunal a quo, ressalvas, como dito, situações em que estejam em causa matérias de conhecimento oficioso, entre as quais se não integra a da legitimidade para desencadear o procedimento de transição para o NRAU e de actualização da renda.

De tudo flui que este tribunal não deve conhecer da questão atinente à supra indicada temática.

II.2 Em face do exposto, sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 - NCPC), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são apenas as seguintes as questões a decidir:

1ª) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;

2ª) se no domínio dos contratos de arrendamento anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução;

3ª) se foi indevidamente fixado em 182.670 euros o valor patrimonial tributário do imóvel locado calculado na avaliação a que esse imóvel foi sujeito em Novembro de 2008 e se, por isso, a renda exigida ao réu de 1.014,83 euros era superior à permitida legalmente;

4ª) se o réu realizou no locado benfeitorias com fundamento nas quais deva ser-lhe reconhecido qualquer direito de retenção do locado até à compensação do valor daquelas.

III – Fundamentação

A) De facto

Os factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

1.Os AA. adquiriram, por via sucessória, a qualidade de proprietários do prédio urbano sito na ..., a descrição constante da caderneta predial urbana que se junta a fls. 13 a 14 - sucedendo como senhorios do Réu, na relação locatícia (não habitacional), que dura há mais de 3 dezenas de anos, não possuindo nem os Autores nem o R. cópia do contrato escrito então celebrado.

2. Em Março de 2013, a renda mensal era de 117,10€ pagando o Réu, normalmente, por depósito em conta bancária dos AA.

3. Em virtude da publicação da Lei 31/2012, de 14 de Agosto, em 19 de Março de 2013, os Autores, por carta registada, promoveram a transição deste contrato para o NRAU, propondo que a duração do contrato passasse para 5 anos, renovável por períodos de 2 anos, e com a nova renda mensal de €1.014,83.

4. O Réu recebeu essa carta em 20/03/2013, respondendo por carta datada de 17 de Abril de 2013 contrapropondo uma renda de €351,00 mensais.

5. A esta comunicação do Réu, responderam os Autores, através de carta registada datada de 30 de Abril de 2013 - recebida pelo Réu em 3 de Maio de 2013 – na qual mantiveram a proposta de renda inicial - €1.014,83 por mês, nos termos do disposto nos artigos 54.º, n.º 2 e 35.º, n.º 2 a) e b) do NRAU.

6. De igual modo, com essa carta, e porque o Réu não comprovou estar em qualquer das situações definidas no n.º 4 do artigo 51.º do NRAU, comunicaram os Autores ao Réu a imediata transformação do contrato de arrendamento para contrato com termo certo, por um período de 5 anos.

7. O Réu nada mais comunicou aos Autores, sendo certo que, embora mantendo a ocupação do prédio, nunca pagou a renda legalmente atualizada, pagando sempre apenas a renda vigente até à atualização - 117,10€ - tendo o último pagamento de rendas ocorrido em inícios do mês de Março de 2014 relativo a esse mesmo mês.

8. Desde que assumiram as suas posições de senhorios, os AA não efetuaram obras no locado.

9. No imóvel descrito no art. 1.º da p.i. a rede de água e rede de esgotos estão ligadas a rede pública, sendo o valor para os trabalhos de tal ligação, estimado em €1.000,00.

10. No imóvel descrito no art. 1.º da p.i. são visíveis duas redes elétricas distintas: uma antiga que pelo tipo de materiais e características que apresenta corresponderá a instalação primária do edifício, e outra mais recente, que substitui parcialmente a rede primária nos vários pisos do edifício rés-do-chão, piso 1, piso 2 e piso 3, sendo o valor para tal instalação, estimado em €3.285,00.

11. Na fachada principal do imóvel descrito no art. 1.º da p.i., voltada para a Rua D (...), encontra-se aplicada caixilharia em alumínio com vidro duplo que apresenta sinais de ter sido aplicada recentemente e na fachada tardoz voltada para o logradouro encontram-se aplicados mais do que um tipo de caixilharia, evidenciando substituições pontuais e localizadas, sendo o valor para tal substituição, com materiais e mão-de-obra, estimado em €8.850,00.

12. No imóvel descrito no art. 1.º da p.i. estão instalados três aparelhos de ar condicionado, dois no Piso 1 e o terceiro no Piso 2, sendo o valor para tal instalação, com materiais e mão-de-obra, estimado em €4.500,00.

13. O imóvel descrito no art. 1.º da p.i. está equipado por uma instalação sanitária comum no rés-do-chão e uma instalação sanitária no Piso 1, sendo o valor para tais instalações, com materiais e mão-de-obra, estimado em €7.200,00.

14. A cobertura do imóvel descrito no art. 1.º da p.i. mostra reparações pontuais e localizadas e apresenta urna área global de 200.00 m2, sendo o valor para tais trabalhos e mão-de-obra, estimados em €12.800,00.”.

B) De direito

Primeira questão: se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada.

Pretende o réu que seja reconhecido como autor das intervenções no locado que estão dadas como provadas nos pontos 9º) a 14º) dos factos provados e, nessa medida, como sujeito passivo os encargos inerentes a tais intervenções.

As intervenções aqui descritas são aquelas que o réu tinha alegado como sendo da sua autoria nos artigos 21º a 26º da contestação.

No art. 10º da réplica, os autores referiram que “Desconhecem os AA. se qualquer das obras a que aludem foram sequer executadas, quando e por que forma.”, o que também equivale, a nosso ver, a uma impugnação da autoria das obras em questão, pois que se não se sabe se as obras foram executadas, necessariamente não pode saber-se quem supostamente as executou

Como quer que seja, a matéria constante desses artigos da contestação foi expressamente impugnada pelos autores no artigo 13º da réplica.

Não acompanhamos o recorrente, pois, quando o mesmo afirma que os autores aceitaram a autoria por parte do réu daquelas intervenções, caso a materialidade da sua execução viesse a dar-se como provada.

Nenhuma prova documental ou testemunhal se produziu relativamente à autoria de tais intervenções, sendo que o ónus de alegação e prova no âmbito da temática em discussão impedia exclusivamente sobre o réu (art. 342º/1 do CC), por estar em causa matéria constitutiva do direito à compensação por benfeitorias a que se arroga.

Neste contexto, o simples facto demonstrado de não terem sido os autores a realizar tais intervenções (ponto 8º dos factos provados) não é, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, suficiente para dar como demonstrado que foi o réu quem as levou a efeito e, muito menos, que foi o réu quem suportou os correspondentes encargos pecuniários – as obras poderiam ter sido realizadas por terceiros, total ou parcialmente, do mesmo modo que a terem sido executadas pelo réu poderiam ter sido custeadas por terceiros, total ou parcialmente.

Soçobra, pois, a pretensão recursiva fáctica do apelante.

Segunda questão: se no domínio dos contratos de arrendamento anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

Como é sabido, a Lei 6/2006, de 27/2, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 31/2012, de 14/8, em vigor à data em que se iniciou o procedimento de transição e actualização despoletado pela comunicação de 19/3/2013 identificada no ponto 3º) dos factos descritos como provados, permitiu a transição para o regime do NRAU dos arrendamentos anteriores ao RAU e do tipo do que nos autos está em consideração, bem assim como a actualização das correspondentes rendas.

Prescrevia o artigo 30º do NRAU em vigor a essa data que “A transição para o NRAU e a actualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando:

a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;

b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;

c) Cópia da caderneta predial urbana.”.

Flui da norma acabada de transcrever que numa primeira linha e na ausência de divergências a esse respeito entre locador e locatário, o valor do locado relevante para os efeitos em análise é o que constar da caderneta predial urbana em resultado da sua avaliação a efectuar nos termos do CIMI.

Importa dizer, também, que a avaliação tributária é efectuada segundo critérios legalmente enunciados nos arts. 38º a 46º do CIMI, em primeira linha de competência por peritos avaliadores locais a operar nos serviços de finanças locais (arts. 63º e 64º do CIMI), com eventuais segunda avaliação e impugnação judicial para os Tribunais Tributários (arts. 76º e 77º do CIMI).

A significar, em última análise, que embora o dono do imóvel possa despoletar o procedimento de primeira avaliação tributária (art. 37º/1 do CIMI) ou de subsequentes avaliações da mesma natureza (art. 130º/3/4 do CIMI), possa desencadear a segunda avaliação ou a impugnação judicial da segunda avaliação (arts. 76º e 77º do CIMI), o certo é que o resultado final da avaliação tributária nunca é por si definido, assistindo a terceiros (serviços tributários ou tribunais tributários) a competência exclusiva para com a força própria do caso administrativo decidido, que se forma em torno das decisões administrativas que se consolidaram definitivamente por já não serem juridicamente susceptíveis de impugnação contenciosa, ou do caso julgado judicial, que se forma em torno das decisões judiciais que transitaram em julgado, determinar o valor patrimonial tributário do imóvel locado.

Neste enquadramento, em que o valor patrimonial tributário do imóvel se encontra já definitivamente fixado, ainda por cima por entidade terceira em relação ao locador, dificilmente pode conceber-se que este esteja onerado com o ónus de alegação e prova da factualidade relevante que esteve subjacente à quantificação daquele valor.

Aliás, para que dúvidas não subsistissem sobre a matéria, o próprio legislador veio cometer ao inquilino, através da nova redacção que a Lei 79/2014, de 19/12 (RNRAU), conferiu ao NRAU, o ónus de impugnação do valor patrimonial tributário constante da caderneta predial do imóvel locado (cfr. art. 31º/6 do RNRAU e a disposição transitória do art. 6º da Lei 79/2014), competindo-lhe por isso o correspondente ónus de alegação e prova.

No entanto, em casos como o dos autos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da Lei 79/2014, de 19/12, não estava reconhecida ao inquilino a faculdade de impugnação acabada de ser enunciada, a significar que o inquilino estava absolutamente impedido de suscitar no âmbito tributário qualquer incidente ou mecanismo processual tendente a alterar o valor patrimonial do locado constante da caderneta predial, por mais errado e contra legem que o mesmo se apresentasse.

Daí resultaria, directa e consequencialmente, uma impossibilidade absoluta do locatário poder impugnar a renda que o locador passasse a exigir-lhe com base naquele valor tributário e da qual discordasse por igualmente discordar deste último, mesmo em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento da renda actualizada unilateralmente pelo locador em função desse valor tributário não aceite pelo locatário.

Ora, como é sabido, a nossa CRP garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legí­timos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).

Como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 243/2013: “O direito de acesso aos tribunais, enquanto fundamento do direito geral à protecção jurídica, traduz-se na possibilidade de deduzir junto de um órgão independente e imparcial com poderes decisórios uma dada pretensão (o pedido de tutela jurisdicional para um direito ou interesse legalmente protegido), pelo que implica uma série de interacções entre quem pede (autor), quem é afectado pelo pedido (réu) e quem decide (juiz), a que corresponde o processo. E a disciplina deste último – o processo em sentido normativo – encontra-se submetida à exigência do processo equitativo: o procedimento de conformação normativa deve ser justo e a própria conformação deve resultar num “processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. XVI ao artigo 20.º, p. 415). Se tal exigência não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, a mesma “impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo (Ac. n.º 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” (cfr. Rui Medeiros in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. XVIII ao artigo 20.º, p. 441). […]”.

Por outro lado, o mesmo Tribunal deixou escrito a este mesmo respeito, no seu acórdão n.º 778/2014, o seguinte: “O artigo 20.º da Constituição, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva», garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legí­timos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais implica a ga­rantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de acção, no sen­tido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao pro­cesso, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão funda­mentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a deci­são haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumarie­dade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).

Acresce ainda que o direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.

A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Ano­tada, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, Volume I, págs. 415 e 416).

Importa ainda salientar que a exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. No entanto, no seu núcleo essencial, tal exigência impõe que os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efectiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.» (v., também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 235/2011, 350/2012, 839/2013, 204/2015 ou 569/2015).” – sobre esta temática do direito de acesso aos tribunais e a um processo justo e equitativo, nas diferentes valências em que os mesmos devem concretizar-se, podem consultar-se, a título exemplificativo, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 100/1999, 353/2008, 163/2016, 193/2016, 240/2016, 462/2016 e 609/2016.

Assim sendo, no âmbito de vigência do NRAU anterior à entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo[2] e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em acções de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada unilateralmente pelo senhorio em função do valor tributário constante da caderneta predial e em desacordo com o locatário, uma qualquer possibilidade processual, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada unilateralmente e com a oposição do locatário a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

Por outro lado, não se diga que a competência nessa matéria cabe exclusivamente às autoridades administrativas e judiciais tributárias, com o consequente impedimento dos tribunais comuns sindicarem o valor tributário por aquelas fixado.

Essa competência dos tribunais comuns em que decorram acções daquele tipo para discutir e decidir sobre todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.

Porém, o reconhecimento ao locatário e ao tribunal comum daquelas faculdade e competência não podem ter como efeito deslocar-se para o senhorio o ónus de alegação e prova que ora está em apreciação, o qual deve recair sobre o inquilino, por estarem em causa, em relação aos efeitos decorrentes do valor patrimonial tributário do locado para a fixação de nova renda, factos impeditivos do direito a que o senhorio se arroga a cobrar a nova renda fixada a partir do valor tributário fixado com força de caso decidido ou de caso julgado, mas que o inquilino não aceita e pretende impugnar (art. 342º/2 do CC).

Tudo para concluir, pois, que não compete ao senhorio, no caso aos aqui autores, o ónus de alegação e prova que está em apreço, competindo antes aos inquilinos, ora réu, o ónus de alegação e prova em relação aos factos relevantes para se poder concluir pelo desacerto do valor patrimonial tributário fixado pelas autoridades administrativas ou judiciais tributárias.

Terceira questão: se foi indevidamente fixado em 182.670 euros o valor patrimonial tributário do imóvel locado calculado na avaliação a que esse imóvel foi sujeito em Novembro de 2008 e se, por isso, a renda exigida ao réu de 1.014,83 euros era superior à permitida legalmente.

Comece por dizer-se que o valor tributário relevante para os efeitos em análise é o que constar da caderneta predial à data do início do procedimento de transição e de actualização de renda, o qual se iniciou no caso dos autos em 19/3/2013 (ponto 3º dos factos provados).

Em segundo lugar, importa ter em conta que o valor patrimonial tributário de um prédio urbano deve ser calculado de acordo com a fórmula enunciada no art. 38º/1 do CIMI, ou seja, Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv, em que: Vt = valor patrimonial tributário; Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização; Cq = coeficiente de qualidade e conforto; Cv = coeficiente de vetustez.

Por aplicação desse critério legal ao imóvel locado, a administração tributária determinou para o mesmo o valor tributário patrimonial de 182.670 euros, decorrente do seguinte cálculo: Vt (182.670 euros) = Vc (615) x A (382,6722) x Ca (1,10) x Cl (1,80) x Cq (0,980) x Cv (0,40) – cfr. caderneta predial urbana documentada a fls. 13 e 14.

Relativamente a esse cálculo, insurge-se o réu contra o facto de em relação ao valor do locado ter sido ponderada uma permilagem de 823/1000 de um prédio constituído em propriedade horizontal do qual fazem parte integrante 3 fracções autónomas.

Porém, como acabou de se demonstrar, a permilagem não é legalmente e não foi no caso concreto factor relevante para efeitos de quantificação do valor patrimonial tributário.

Ademais, como emerge da certidão da Conservatória do Registo Predial de Viseu que está documentada a fls. 61 a 64, a permilagem 823/1000 é a que está inscrita naquela Conservatória por referência ao imóvel locado.

Invoca o réu, também, a circunstância de o locado fazer parte integrante de um prédio com mais de três pisos, não tendo sido ponderada a circunstância de o mesmo não estar dotado de elevador.

Está em causa, a respeito desta divergência do réu, o coeficiente de qualidade e conforto, que a autoridade tributária fixou em 0,98.

Esse coeficiente é calculado a partir da unidade, podendo ser majorado até 1,7 e minorado até 0,5, adicionando-se à unidade os coeficientes majorativos e subtraindo-se os minorativos que constam da Tabela I anexa ao art. 43º do CIMI.

No caso em apreço, não se vislumbra matéria de facto que permita efectuar qualquer espécie de majoração.

No que concerne a minorações, a única que foi invocada pelo réu reporta-se ao de “inexistência de elevador em edifícios com mais de três pisos”, a que corresponde o coeficiente minorativo de 0,02.

Não tendo sido invocado nenhum coeficiente majorativo e deduzindo à unidade o único coeficiente minorativo invocado pelo réu, temos um coeficiente de qualidade e conforto de 0,98, justamente o que foi utilizado pela autoridade tributária na fixação no valor patrimonial tributário do locado.

A outra crítica que o réu dirige ao valor patrimonial tributário com base no qual foi determinada a nova renda reporta-se à circunstância de não ter sido ponderada a circunstância de estar em causa um imóvel com mais de 120 anos de idade.

Para efeitos deste coeficiente a autoridade tributária utilizou o valor de 0,40, sendo este, justamente, o coeficiente que o comando normativo do art. 44º do CIMI impõe para os imóveis com mais de 60 anos.

Também não se vislumbra matéria de facto relevante para colocar em causa os valores utilizados pela autoridade tributária para efeitos do Vc = valor base dos prédios edificados; A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação; Ca = coeficiente de afectação; Cl = coeficiente de localização.

Finalmente, o réu não fez o mínimo esforço de desmonstração dos critérios por si utilizados para efeitos de determinação o valor patrimonial de 147.550 euros que refere no art. 16º da contestação.

Assente, pois, que não se mostra indevidamente fixado pela administração tributária o valor patrimonial tributário com base no qual foi calculada a nova renda exigida pelos autores ao réu.

Ora, partindo do valor patrimonial tributário fixado pela autoridade tributária, considerando que não está em causa nenhuma das situações previstas no art. 51º/4 do NRAU aplicável, bem assim como o estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 54º/1 e 35º/2/a/b do NRAU aplicável, logo se verifica que a nova renda de 1.014,83 euros exigida pelos autores obedece aos critérios legais de actualização decorrentes dos normativos legais acabados de enunciar.

Como assim, nenhuma censura deve ser dirigida à sentença recorrida pelo facto de ter acolhido tal renda como sendo aquela que o réu estava obrigado a satisfazer, e que não satisfez, aos autores.

Quarta questão: se o réu realizou no locado benfeitorias com fundamento nas quais deva ser-lhe reconhecido qualquer direito de retenção do locado até à compensação do valor daquelas.

A resposta positiva a esta questão só seria possível se tivesse procedido a pretensão recursiva fáctica do réu no sentido do reconhecimento de que tinha sido autor de intervenções no locado passíveis de ser qualificadas como benfeitorias, em especial daquelas que estão enunciadas nos pontos 9º a 14º dos factos descritos como provados.

Tendo improcedido aquela pretensão recursiva fáctica, a resposta negativa à presente questão é mera consequência daquela improcedência, sem carecer de qualquer justificação adicional.

IV- DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelada.

Coimbra, 24/01/2017


(Jorge Manuel Loureiro)

(Maria Domingas Simões)

(Jaime Carlos Ferreira)


Sumário:

I) No domínio dos contratos de arrendamento anteriores ao RAU e a respeito da respectiva transição para o NRAU, com actualização da renda, não cabe ao senhorio, em sede de acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em não pagamento da renda actualizada, o ónus de alegação e prova da autenticidade de todos os factos com base nos quais os serviços tributários avaliaram o imóvel locado e determinaram o correspondente valor patrimonial tributário para efeitos de IMI, com base no qual passou a exigir-se a nova renda cujo não pagamento fundamenta o pedido de resolução.

II) Nos casos em que o procedimento de transição e actualização se completou ainda antes da entrada em vigor da Lei 79/2014, de 19/12, e sob pena de violação do direito a um processo equitativo e do direito ao contraditório que o integra, não pode deixar de reconhecer-se aos inquilinos demandados em acções de resolução do contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento da renda actualizada em função do valor tributário constante da caderneta predial, uma qualquer possibilidade, ainda que por mera via de defesa por excepção peremptória, de contraditarem todos e cada um dos pressupostos fácticos e jurídicos em que assentou a decisão administrativa ou judicial que fixou o valor patrimonial tributário do locado e em função do qual foi calculada a renda cujo não pagamento se invoca como fundamento da resolução.

III) A competência dos tribunais comuns para os efeitos de sindicarem o valor tributário referido em II) na base de uma apreciação de todos aqueles pressupostos fácticos e jurídicos, concluindo por um valor patrimonial tributário igual ou diferente daquele que foi fixado administrativamente ou em sede de contencioso tributário, advém-lhes do art. 91º do NCPC, nos seus precisos termos e limites.


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[1] José Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, p. 141, Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3ª edição, p. 212, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 395, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2ª ed., Revista e Actualizada, p. 94, acórdãos do STJ de 6/6/02, proferido no âmbito do processo 1874/02, de 30/10/03, proferido no âmbito do processo 3281/03, de 10/10/2007, proferido no âmbito do processo 3634/07, de 4/12/2008, proferido no âmbito do processo 2507/08, de 23/9/2009, proferido no âmbito do processo 5953/03.4TDLSB.S1, e de 26/6/2015, proferido no âmbito do processo 373/10.7TTPRT.P1.S1.
[2] Enquanto direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, sujeito ao regime jurídico material e orgânico dos direitos, liberdades e garantias – cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., 2010, p. 304, acórdãos do TC nºs 237/1990 e 653/2016.