Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3248/13.4TBVIS-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
DETERMINAÇÃO DO VALOR
INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 4º JUÍZO CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 239º, Nº 3, B) I) DO CIRE
Sumário: I – Atendendo à letra da lei e ao espírito do legislador, o valor que se deve considerar excluído do rendimento disponível do devedor, para efeitos do disposto no art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE, é o valor que, atendendo às concretas necessidades do devedor e respectivo agregado familiar, seja considerado adequado e razoável para prover ao seu sustento minimamente digno e que, ressalvando situações excepcionais, não poderá exceder o valor equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.

II – Para o apuramento desse valor não relevam as concretas despesas que o devedor alega suportar, mas sim aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento – e do agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo – com o mínimo de dignidade, sem prejuízo de deverem ser consideradas as concretas despesas que, razoavelmente, se devam ter como indispensáveis para fazer face a quaisquer necessidades específicas do agregado familiar.

III – Não estando demonstrado que o devedor tenha qualquer pessoa a seu cargo e não existindo quaisquer outras circunstâncias relevantes que indiciem a existência de quaisquer necessidades especificas ou anormais, o valor equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida é suficiente e razoável para prover ao seu sustento minimamente digno.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na Rua (...), Viseu, requereu a sua declaração de insolvência, bem como a exoneração do passivo restante.

No que respeita à exoneração do passivo alegou, em suma, que: reúne todos os requisitos para beneficiar da exoneração do passivo; aufere um rendimento mensal de 698,35€; paga uma renda mensal de 263,40€; gasta em luz, gás e água as quantias médias mensais de 47,00€, 25,00€ e 15,00€, respectivamente; gasta em telefone e televisão uma quantia mensal de 50,00€; gasta com transportes a quantia mensal de 50,00€ e com seguros a quantia média de 60,00€, despendendo com a alimentação o valor médio mensal de 190,00€.  

Declarada a insolvência, a Srª Administradora apresentou o seu relatório onde declara nada ter a opor à exoneração do passivo.

Por decisão proferida em 23/12/2013, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art. 235º do CIRE, determinando-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, se considera cedido ao fiduciário o rendimento disponível que a devedora venha a auferir, mais se acrescentando que integram esse rendimento disponível todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com exclusão dos créditos a que se refere o art. 115º do CIRE, cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz e com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, não excedendo esse rendimento o correspondente a uma vez o salário mínimo nacional.

 

Discordando dessa decisão, a Insolvente veio interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1º - O despacho ora recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE e artigo 1.º da Constituição da Republica Portuguesa.

2º - O valor fixado pelo tribunal “a quo” para garantir o sustento mínimo da devedora e do seu agregado familiar é nitidamente diminuto, tendo em consideração a composição do agregado familiar da devedora, as despesas a que a mesmo tem de fazer face.

3º - O agregado familiar da devedora é composto por 2 pessoas: 1 filha menor e a ora aqui Apelante, conforme ficou demonstrado nos autos.

4º - Determina o artigo 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE, que deverão integrar o rendimento disponível para cessão, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com excepção daqueles que sejam razoavelmente necessários para o sustento digno do devedor e do seu agregado familiar, bem como os necessários para o exercício da sua actividade profissional.

5º - Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, que o mesmo diploma: «(…) conjuga o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica».

6º - A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender esmagadoramente que o mínimo considerado necessário para que uma pessoa possa obter um sustento condigno se traduz na atribuição ao insolvente de um montante corresponde ao salário mínimo nacional.

7º - O despacho ora posto em crise coarcta a possibilidade de o devedor se reabilitar economicamente, pondo inclusivamente em causa o seu sustento e do seu agregado familiar.

8º - A fixação do valor excluído do rendimento objecto de cessão nos moldes em que foi decretado, sem ter em conta a base de vida familiar e profissional da devedora, é passível de violar o direito dos mesmos a uma subsistência condigna, bem como a proverem à sua reabilitação económica.

9º - No caso sub judice, o valor excluído do rendimento objecto de cessão é manifestamente diminuto, consubstanciando uma medida inconstitucional, por grave violação do Principio da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.

10º - Efectivamente, o Tribunal a quo ao fixar o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar a uma vez o salário mínimo nacional, ou seja, em 485,00€, bem sabendo que a devedora só a título de renda da casa paga a quantia de 263,40, impõe que a devedora (e a sua filha) sobreviva de forma indigna com a quantia mensal de 221,60€.

11º - A atribuição de um montante inferior ao ora propugnado (725,50€) faria com que a economia da Recorrente se tornasse insustentável, e poderia colocar a Recorrente a sua filha abaixo de um padrão mínimo de dignidade social.

12º - Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja revogado o despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo, substituindo-se o mesmo por outro que fixe o valor excluído do rendimento objecto de cessão, em um salário mínimo e meio, que em cada momento vigorar, actualmente o montante de € 727,50.

13º - Foram violados, entre outros, os artigos 1º da CRP, 239º, nº 3, alínea do CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações.

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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber qual é o valor que, razoavelmente, é necessário para o sustento minimamente digno da devedora/Apelante e do seu agregado familiar e que, como tal, se deve considerar excluído do rendimento disponível em conformidade com o disposto no art. 239º, nº 3, b), i), do CIRE.

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III.

Apreciemos, pois, essa questão, começando por enunciar os factos que, com alguma relevância, resultam e estão comprovados por documentos juntos aos autos (sendo certo que a decisão proferida em 1ª instância não enunciou a matéria de facto que considerava provada).

Tais factos serão os seguintes:

1. A Apelante/Insolvente nasceu 15/03/1957 e encontra-se divorciada por força de sentença proferida em 10/10/1989 (doc. de fls. 15 e 16).

2. A Insolvente exerce a actividade de assistente operacional no Centro Hospitalar de (...)Viseu EPE, auferindo o vencimento líquido de 698,35€ (doc. de fls. 17).

3. A Insolvente paga de renda de casa a quantia de 263,40€ mensais (doc. de fls. 19).

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Segundo dispõe o nº 2 do art. 239º do CIRE, o despacho inicial sobre o pedido de exoneração do passivo “…determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.

De acordo com o disposto no nº 3 da mesma disposição legal, “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

(…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

(…)”.

Como decorre da leitura da citada norma, o legislador pretendeu reservar para o devedor a quantia que seja razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar (quantia essa que variará, naturalmente, em função das concretas necessidades do agregado familiar), dispondo, todavia, que esse valor não poderá – salvo casos excepcionais e devidamente fundamentados – exceder a quantia equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.

Tal como se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.

Mas, embora ponderando o interesse e princípio fundamental do ressarcimento dos credores, o legislador não deixou de atender ao princípio, igualmente fundamental, da sobrevivência condigna do devedor e respectivo agregado familiar e, conciliando esses interesses e atribuindo prevalência a este último princípio (como não poderia deixar de ser), determinou que o património do devedor ficaria afectado à satisfação daqueles créditos, com ressalva da quantia necessária ao sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado.

Atendendo ao disposto na norma em questão e atendendo ao espírito do legislador e aos objectivos que pretendeu atingir, afigura-se-nos claro que a quantia a reservar para o devedor – e, como tal, excluída do rendimento disponível – há-de ser determinada, casuisticamente, em função das necessidades concretas do devedor e respectivo agregado, de forma a que, sendo assegurada a sua sobrevivência condigna, todo o rendimento que não seja necessário para esse efeito possa reverter em benefício dos credores.

Determinou-se, porém, que, salvo em casos excepcionais e devidamente fundamentados, o valor a reservar para o devedor (com aquela finalidade) não poderá exceder o valor correspondente a três salários mínimos nacionais, considerando o legislador que, para lá desse valor e sem prejuízo de situações excepcionais, já não está em causa a satisfação de quaisquer necessidades que devam merecer especial protecção e que devam sobrepor-se ao interesse dos credores na satisfação dos seus créditos.

Tendo em atenção os limites estabelecidos (por regra e sem prejuízo de situações excepcionais) pelo legislador, resta-nos apurar qual é, em concreto, o rendimento necessário para o sustento minimamente digno da Apelante.

A decisão recorrida entendeu que esse rendimento equivale a uma vez a retribuição mínima mensal garantida (actualmente fixada em 485,00€), sendo que, na fixação desse valor, se atendeu – como se refere na decisão – “…à composição do agregado familiar, sendo este composto pela requerente e uma filha menor, rendimentos mensais (na ordem dos 698,00€) e, bem assim às despesas comummente associadas a um agregado familiar com esta dimensão[1].

Considera, porém, a Apelante que esse valor é insuficiente e, apelando ao facto de o agregado familiar ser composto por duas pessoas (a Apelante e a sua filha menor) e às despesas a que alega ter que fazer face e onde se inclui a renda de casa, no valor de 263,40€, sustenta que o valor a excluir ao rendimento disponível deve ser fixado no valor correspondente a um salário e meio (equivalente, neste momento, a 727,50€.

Cabe referir, em primeiro lugar, que não há a mínima prova de que o agregado familiar da Apelante seja composto por duas pessoas, porquanto não há qualquer prova de que a Apelante tenha a seu cargo qualquer filha menor.

Não obstante invocar agora esse facto (referido e considerado na decisão recorrida), a verdade é que a Apelante não o alegou na petição inicial. De facto, se lermos o requerimento inicial com alguma atenção constatamos que a Apelante não alega, em momento algum, que, nesse momento, tem a seu cargo uma filha menor. O que a Apelante alegou é que teve necessidade de contrair os empréstimos bancários que terão dado origem à insolvência porque ainda tinha uma filha menor e porque o pai da sua filha pouco contribuiu a título de alimentos. Ou seja, a Apelante diz que tinha uma filha menor; não diz que tem uma filha menor; diz que o pai da sua filha pouco contribuiu a título de alimentos; não diz que o pai da filha pouco contribui a título de alimentos. A Apelante reporta-se, portanto, nessas alegações, a um tempo passado e não ao presente, nunca alegando ter (no momento da apresentação do requerimento inicial) uma filha menor a seu cargo, não alegando, sequer, a sua idade e a sua actividade (se é estudante ou se trabalha) e não fazendo qualquer alusão a despesas especificas da filha, como seria normal, se a tivesse a seu cargo. Importa notar, aliás, que no ponto II do requerimento – onde alega os factos referentes à exoneração do passivo – não é feita qualquer referência ao seu agregado familiar e a qualquer filha que dele fizesse parte (menor ou não).

Além do mais, a Apelante nem sequer juntou aos autos a certidão de nascimento da sua filha e, como tal, não poderemos ter como demonstrado que tenha uma filha menor a seu cargo (facto que, como referimos, nem sequer foi alegado).

Assim sendo, não poderemos considerar a existência de agregado familiar do qual faça parte qualquer outra pessoa que não a Apelante e, portanto, o que interessa apurar é o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da Apelante (uma pessoa, portanto).

A Apelante invocou oportunamente e continua a invocar no presente recurso as suas despesas mensais, ou seja, aquilo que gasta em renda de casa, água, luz, gás, televisão, telefone, seguros, transportes e alimentação, para concluir que gasta mensalmente cerca de 700,00€ mensais e que, como tal, o valor necessário para prover ao seu sustento deve ser fixado em 727,50€.

Mas, salvo o devido respeito, não releva aqui aquilo que a Apelante gasta mensalmente; a Apelante gasta mensalmente 700,00€, como poderia gastar 1.000,00€, 2.000,00€ ou mais, se os seus rendimentos assim o permitissem. O que releva para a questão que estamos a analisar é aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que apenas isso lhe pode e deve ser garantido, dada a situação de insolvência em que se encontra.

De facto, o que está aqui em causa não é assegurar ao devedor o padrão de vida que tinha antes da insolvência, mas apenas garantir que disponha da quantia necessária para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que, como é evidente, não seria admissível que o devedor – que incorreu em situação de insolvência – pudesse beneficiar da exoneração do passivo restante e, ao mesmo tempo, ver assegurado, à custa dos credores, o padrão de vida que tinha antes. A satisfação dos direitos dos credores por via do património do devedor apenas pode e deve ceder perante a necessidade de satisfação das necessidades básicas do devedor, não sendo legítimo pretender que os credores devam sofrer o prejuízo inerente à impossibilidade de satisfação dos créditos (por não ser possível utilizar, para esse efeito, uma larga fatia do rendimento do devedor), apenas para que o devedor pudesse continuar a usufruir de um determinado padrão de vida que tinha antes da insolvência (que até poderia ser muito elevado e que, eventualmente, até poderia corresponder a um padrão de vida muito acima das reais possibilidades do devedor).

Assim, a quantia a reservar para a Apelante – em conformidade com a norma acima citada – não tem que tomar em consideração as concretas despesas que efectuava antes da insolvência, devendo apenas incluir aquilo que, razoavelmente, é necessário para o seu sustento minimamente digno.

Ora, nestas circunstâncias, temos como certo que o valor equivalente à retribuição mensal mínima garantida é, por regra, suficiente para assegurar o sustento em condições dignas de apenas uma pessoa.

É certo que, no caso sub judice, a Apelante suporta uma renda de casa no valor de 263,40€ (como decorre do recibo de renda que juntou aos autos) e, no actual contexto sócio económico, admite-se que não seja fácil encontrar outra casa que satisfaça a sua necessidade de habitação por renda inferior, embora a Apelante possa e deva ponderar essa possibilidade. Mas, mesmo considerando essa despesa como efectivamente necessária (como forma de garantir o seu direito à habitação constitucionalmente garantido), restaria ainda (do valor equivalente à retribuição mínima garantida) a quantia de 221,60€. É, evidentemente, um valor diminuto e não desconhecemos as dificuldades, os sacrifícios e a contenção que será necessária para, com esse valor, fazer face a todas as demais despesas que são necessárias ao sustento da Apelante. Mas, a verdade é que a Apelante está em situação de insolvência e, portanto, não está em condições de poder usufruir de uma vida desafogada e sem preocupações de carácter económico; a Apelante pode e deve suportar alguns sacrifícios e privações, desde que ressalvada a sua subsistência com um mínimo de dignidade e, como tal, terá que reduzir os seus gastos até ao patamar do mínimo indispensável à sua sobrevivência em condições mínimas de dignidade.

Ora, nada autoriza a afirmação de que o valor equivalente à retribuição mínima mensal garantida – valor que é fixado pelo legislador, ponderando, naturalmente, aquilo que considera razoável para fazer face às necessidades do trabalhador – não seja suficiente para assegurar a sobrevivência condigna de uma única pessoa que não tenha quaisquer necessidades específicas que, por alguma razão, imponham determinadas despesas que extravasam aquilo que é normal e usual.

Importa notar, aliás, que a Apelante, nas suas alegações, aceita esse princípio (o de que, por regra, o valor equivalente ao salário mínimo nacional é adequado ao sustento condigno de uma pessoa), apenas solicitando um valor superior por estar em causa um agregado familiar composto por duas pessoas (a Apelante e a sua filha). Todavia, apesar de se basear nesta circunstância, a verdade é que, como referimos supra, não alegou, de facto, no requerimento inicial, ter uma filha menor a seu cargo e não juntou sequer qualquer prova (certidão de nascimento) da existência de uma filha menor.

Nestes termos, não estando demonstrado que a Apelante tenha qualquer outra pessoa a seu cargo e não tendo sido alegada a existência de qualquer necessidade específica ou anormal, nada justificará a afirmação de que o valor equivalente à retribuição mínima mensal garantida não é suficiente para prover ao seu sustento condigno.

E ainda que se considerasse que a decisão de 1ª instância havia considerado provado que o agregado familiar da Apelante também era composto por uma filha menor (o que, na nossa perspectiva, não aconteceu, já que, como se referiu supra, a decisão de 1ª instância não enunciou a matéria de facto que considerada provada) e que, como tal, este Tribunal estava vinculado a essa matéria de facto, a verdade é que não existiriam elementos bastantes para concluir que o valor equivalente à retribuição mínima mensal garantida não seria bastante para assegurar a sua sobrevivência condigna, sendo certo que nada foi alegado no que toca às necessidades dessa menor: não foi alegada a sua idade, não foi alegado se estuda ou se trabalha e não foi alegado se tem ou não qualquer rendimento, designadamente, pensão de alimentos paga pelo outro progenitor e em que valor.

Acrescente-se, por último, que, em face do exposto e ao contrário do que sustenta a Apelante, a fixação do valor supra mencionado não configura qualquer violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana; esse valor é o bastante para assegurar o seu sustento em condições de dignidade, respeitando, portanto, os princípios e normas constitucionais sobre essa matéria.

Confirma-se, portanto, a decisão recorrida.

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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Atendendo à letra da lei e ao espírito do legislador, o valor que se deve considerar excluído do rendimento disponível do devedor, para efeitos do disposto no art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE, é o valor que, atendendo às concretas necessidades do devedor e respectivo agregado familiar, seja considerado adequado e razoável para prover ao seu sustento minimamente digno e que, ressalvando situações excepcionais, não poderá exceder o valor equivalente a três vezes o salário mínimo nacional.

II – Para o apuramento desse valor não relevam as concretas despesas que o devedor alega suportar, mas sim aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento – e do agregado familiar que, eventualmente, tenha a seu cargo – com o mínimo de dignidade, sem prejuízo de deverem ser consideradas as concretas despesas que, razoavelmente, se devam ter como indispensáveis para fazer face a quaisquer necessidades específicas do agregado familiar.

 III – Não estando demonstrado que o devedor tenha qualquer pessoa a seu cargo e não existindo quaisquer outras circunstâncias relevantes que indiciem a existência de quaisquer necessidades especificas ou anormais, o valor equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida é suficiente e razoável para prover ao seu sustento minimamente digno.

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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Refira-se, no entanto, que a alusão a estes factos foi feita em nota de rodapé, sem que tenha existido decisão expressa (e fundamentada) no sentido de os considerar como demonstrados, até porque não existe, efectivamente, qualquer prova de que a Apelante tenha uma filha menor.