Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3354/11.0TBLRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
OPOSIÇÃO
NÃO RECEBIMENTO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA 1º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 20.º N.º 4 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E ARTIGO 30.º N.º 2 DO CIRE
Sumário: I - É inconstitucional, por violação do direito a um processo equita­tivo estabelecido no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República, o artigo 30.º n.º 2 do CIRE, na interpretação segundo a qual não deve ser recebida a oposição do requerido que não contenha a lista dos cinco maiores credores, nos termos aí definidos, sem que antes não lhe seja facultada uma oportunidade para suprir tal falta.

II - Tendo "em conta a unidade do sistema jurídico" e presumindo que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas", como impõe do artigo 9.º n.os 1 e 3 do CC, o n.º 2 do artigo 30.º do CIRE deve ser interpretado, em consonância com o artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República, no sentido de que no caso de, ao deduzir a sua oposição, o requerido não apresentar a lista dos cinco maiores credores, este terá que nessa ocasião ser notificado para juntar aos autos tal lista. Só se após esta notificação não for apresentada a mencionada lista, é que, então, a oposição não é recebida.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... instaurou, na comarca de Leiria, a presente acção especial de insolvência, pedindo se declare insolvente a B... L.da.

Após a citação da requerida, foi proferido despacho em que se decidiu "o não recebimento da oposição, nos termos do citado nº 2 termos do citado nº 2 do art. 30º do CIRE", por se entender que na oposição apresentada não se deu cumprimento ao disposto nessa norma.

Seguidamente, considerando a "confissão da requerida (resultante do não recebimento da oposição – art. 30º, nºs 2 e 5 do CIRE)" e os documentos juntos aos autos, foram dados como provados vários factos que conduziram à declaração de insolvência daquela.

Inconformada com a decisão que não recebeu a sua oposição, a requerida dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

I – A apelante, identificou em concreto e correctamente os seus maiores credores, constando do seu articulado/oposição, os elementos necessários ao cumprimento do disposto no art. 30 nº 2 do CIRE.

II – A douta decisão recorrida padece de excessivo rigor formalista, com total desrespeito pelo conteúdo e matéria alegada pela recorrente;

III – A douta sentença “a quo” salvo o devido respeito, escamoteou à apelante o exercício pleno do seu direito ao contraditório, declarando liminarmente uma sentença de consequência tão funestas e gravosas quer para a apelante quer para os seus credores, que em nada saíram beneficiados com tal decisão.

IV – Face ao alegado supra, é manifesto que a douta decisão apelada optou por uma consequência procedimental perfeitamente absurda face ao teor e conteúdo da oposição, que deveria ter sido recebida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se deve ser recebida a oposição apresentada pela requerida. Mas, previamente, terá que averiguar se a interpretação feita pela Meritíssima Juíza a quo do n.º 2 do artigo 30.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1] afecta "o exercício pleno do (…) direito ao contraditório"[2] da requerida, o que implica indagar da constitucionalidade dessa norma na interpretação que lhe foi dada.


II

1.º


Para se decidir esta questão há que considerar os seguintes factos:

a) o requerente instaurou esta acção pedindo a declaração de insolvência da requerida.

b) a requerida foi citada, nomeadamente, com a advertência de que caso não deduzisse oposição seriam considerados confessados os factos alegados na petição inicial, podendo vir a ser decretada a insolvência, e de que deveria juntar com a oposição, sob pena de não recebimento desta, uma lista com os seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente.

c) a requerida apresentou oposição, dizendo, nomeadamente, no artigo 26.º que:

 "sendo certo que, a sua situação perante as entidades financeiras com quem trabalha é resumidamente a seguinte:

- Caixa Geral de Depósitos, S.A., com sede Av. João XXI, nº 63, Lisboa - € 7.297.300,00

- Montepio Geral, com sede na Rua Áurea, 219 a 241, Lisboa - € 5.254.406,00

- Banco Português de Negócios, com sede na Av. da França, 680 a 708, Porto - € 386.488,00

- Finibanco, S.A., com sede na Rua Júlio Dinis, 157, Porto - € 350.137,00."

d) e no artigo 32.º que:

"claramente se constata, até pela listagem de processos junta pela A. que as instituições financeiras que constituem 90% do passivo da requerida.


2.º

A Meritíssima Juíza a quo fundamentou o não recebimento da oposição dizendo que:

"Lida a oposição e analisados os documentos juntos com a mesma verifica-se que a Requerida não juntou lista dos seus cinco maiores credores.

Dispõe o n.º 2 do art. 30º do CIRE que “Sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respectivo domicílio” Citando o Ac. R.P. de 23/10/2007, proc. 0723408, in www.dgsi.pt “Com a inclusão da cominação prevista no art. 30º, n.º 2, o legislador pretendeu obviar a delongas na obtenção da informação sobre os cinco maiores credores da devedora, permitindo assim, no caso de proceder o pedido de insolvência, a rápida citação daqueles.”

Como dizem Luís A. Carvalho Fernandes e João labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Quid Júris, 2005, pág. 171, “trata-se de uma solução radical e dura que, todavia, é, de algum modo, coerente com a do indeferimento para o caso de o devedor apresentante não juntar à petição os documentos arrolados no art. 24º.”

No caso do art. 24º o juiz pode, nos termos do disposto no art. 27º, nº1, b) do CIRE, conceder ao requerente da insolvência, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de 5 dias para juntar documentos e outros elementos ali mencionados que hajam de ser juntos com a petição. No caso do art. 30º, nº2 do CIRE, aquando da citação o/a requerido/a é advertido/a, expressamente, de que, sob pena de não ser recebida a oposição, deve juntar com a oposição lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, podendo, ainda, parece-nos, dizer que não existem ou que são em número inferior a cinco, identificando-os. Ou seja, ao ser citado/a já é alertado/a para as consequências do não cumprimento do nº2 do art. 30º do CIRE, não havendo que voltar, após apresentação da oposição, à semelhança do art. 27º, nº1, b) do CIRE, a dar-lhe outra oportunidade para o fazer.

Como vimos a requerida não apresentou, como devia, tal lista, nem declarou que não tem credores ou que não tem outros credores para além do requerente, o que tem como consequência o não recebimento da oposição, nos termos do citado nº 2 do art. 30º do CIRE."

É, assim, claro que a Meritíssima Juíza entendeu que não havia lugar a um despacho que concedesse à requerida uma oportunidade de suprir o que, no que toca à lista dos seus cinco maiores credores, estava em falta.

Se bem se interpreta esta decisão, a ilustre magistrada considera que não foi apresentada, sequer, uma lista com (alguns) credores.

Nesta parte regista-se que com a documentação anexa à oposição não se encontra qualquer lista de credores. Porém, no artigo 26.º da oposição a requerida identifica quatro deles, referindo aí os respectivos créditos e domicílios. É certo que não se chega a afirmar expressamente que esses são os quatro maiores credores, mas isso parece poder retirar-se do que adiante se diz no artigo 32.º, quando se afirma que esses créditos "constituem 90% do passivo."

Ora, o n.º 2 do artigo 30.º dispõe que "sem prejuízo do disposto no número seguinte, o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores, com exclusão do requerente, com indicação do respectivo domicílio."

Tendo presente o teor dos artigos 26.º e 32.º da oposição, pode entender-se que a requerida indicou os seus quatro maiores credores e que, para além deles, há outro ou outros que representam 10% do seu (da requerida) passivo, o qual ou os quais não são identificados, e também não se diz que esses 10% são um crédito que pertence ao requerente.

Portanto, mesmo assim, há que concluir que a requerida não deu, efectivamente, cumprimento ao que lhe impunha o citado n.º 2, por não ter indicado os seus cinco maiores credores. E o constatar-se tal realidade não se traduz num "excessivo rigor formalista"[3]; é um mero facto objectivo.

O tribunal a quo considerou que, face a esta omissão, a requerida "ao ser citado/a já é alertado/a para as consequências do não cumprimento do nº2 do art. 30º do CIRE, não havendo que voltar, após apresentação da oposição, à semelhança do art. 27º, nº1, b) do CIRE, a dar-lhe outra oportunidade para o fazer."

Nesta matéria importa lembrar que o Tribunal Constitucional, no acórdão 556/2008[4], decidiu "julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo equita­tivo, consagrado no n.º 4, do artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 30.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual deve ser desentranhada a oposição que não se mostra acompanhada de informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido, sem que a este seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência."

Para o efeito, o Tribunal Constitucional considerou que

"O artigo 37.º, n.º 3, ao estabelecer um modo de citação privilegiada da sentença que venha a declarar a insolvência do requerido dos cinco maiores credores conhecidos, com exclusão do requerente – citação pessoal ou carta registada con­forme tenham residência habitual, sede ou domicílio em Portugal –, revela a finali­dade da exigência daquela informação.

(…)

A garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º, da C.R.P., conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange não só a atribuição do direito de acção judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo, conforme impõe o n.º 4, do referido artigo 20.º.

No domínio do processo civil, onde se insere o processo especial de insolvência, avulta a regra do contraditório e da proibição da indefesa que lhe está asso­ciada, donde resulta, na sua acepção primária, que não seja constitucionalmente legítima a actuação de uma norma que não conceda à parte demandada oportunidade de deduzir a sua defesa, acabando esta por se ver confrontada com uma decisão condenatória, cujos fundamentos de facto ou de direito não teve possibilidade de contraditar (vide, sobre o princípio do contraditório em processo civil, Lopes do Rego, em “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em “Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa”, pág. 836 e seg., Lebre de Freitas, em “Introdução ao processo civil”, pág. 96 e seg., da ed. de 1996, da Coimbra Editora, e Jorge Miranda, em “Constituição e processo civil”, em “Direito e Justiça”, vol. VIII, tomo 2, pág. 19 e seg.).

E, apesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adoptadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas à gravidade e relevân­cia da falta, nomeadamente pelo seu carácter irremediável ou definitivo, impossibi­litador de qualquer ulterior suprimento (vide, neste sentido, Lopes do Rego, na ob. cit., pág. 839 e seg.).

(…)

O não recebimento da oposição tem como consequência a confissão dos factos alegados na petição inicial, nos termos do n.º 5, do artigo 30.º, do CIRE (…), sendo a insolvência declarada se esses factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do n.º 1, do artigo 20.º, do CIRE (n.º 5, do artigo 30.º, do CIRE) (…).

Estamos perante a previsão duma pesada cominação para a falta de cumprimento do dever de indicar os cinco maiores credores de modo a permitir a sua posterior citação pessoal ou por carta registada para reclamação de créditos – o não recebimento da oposição apresentada pelo devedor requerido, com a consequente confissão dos factos alegados pelo requerente para fundamentar a declaração de insolvência do requerido. Esta cominação retira à parte demandada a possibilidade da sua defesa ser valorada, acabando esta por se ver confrontada com uma decisão, cujos fundamentos de facto e de direito não tiveram em consideração a oposição por ela manifestada.

(…)

Ora, não respeitando a falta assim sancionada aos elementos essenciais componentes da defesa apresentada, mas sim a dados úteis a uma eventual ulterior fase processual que o legislador, por razões de simplicidade e celeridade, entendeu deverem ser prestados conjuntamente com a oposição ao pedido de declaração de insolvência, a aplicação fulminante de tal cominação revela-se flagrantemente desproporcionada à falta cometida.

Na verdade, os motivos que conduziram o legislador a associar a prestação da informação sobre a identidade dos cinco maiores credores do requerido à apresentação da oposição por este são incapazes de justificar que as consequências do incumprimento daquela prestação incidam de forma tão drástica sobre o direito do requerido se defender.

A concordância prá­tica entre os valores da simplicidade e celeridade processual e o respeito pelo princípio da proibição da indefesa nesta situação tem de ser possível, sem necessidade de se chegar ao extremo de, em despropor­cionada homenagem àqueles valores, se sacrificar completamente este princípio fundamental do direito processual.

(…)

Tendo-se evidenciado que a cominação prevista no n.º 2, do artigo 30.º, do CIRE, para a falta de indicação dos cinco maiores credores conjuntamente com a oposição deduzida, é mani­festamente desproporcionada, sobretudo quando nem sequer se admite a possibilidade do suprimento dessa falta, deve consi­derar-se que a interpretação efectuada pela decisão recorrida viola a exigência cons­titucional do processo equitativo, constante do artigo 20.º, n.º 4, da CRP., julgando-se procedente o recurso."

Regista-se que no n.º 2 do artigo 30.º, ao dizer-se que "o devedor junta com a oposição, sob pena de não recebimento, lista dos seus cinco maiores credores (…)" não se afirma expressa e claramente que o não recebimento é imediato. Essa é uma das interpretações possíveis e foi aquela que a Meritíssima Juíza a quo considerou como adequada. Note-se que o legislador quando quer que o efeito ou a cominação se produza de imediato di-lo, como sucede no artigo 685.º-B n.º 2 do Código de Processo Civil onde consta que "(…) incumbe ao recorrente, sob pena de imediata[5] rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda (…)".

O artigo 9.º n.º 1 do Código Civil determina que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)". Com efeito, "a lei (…) está expressa em palavras escritas. Mas estas palavras têm por trás de si um espírito, uma alma, e só quando a lei é vista no conjunto dos dois aspectos é que pode ser perfeitamente conhecida."[6] Acrescenta o n.º 3 desse artigo que na interpretação dos textos legais "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". E, "não se sabendo ao certo qual tenha sido a vontade do legislador efectivo, é natural imaginar-se que ele entendeu a lei tal como a teria entendido um bom legislador."[7]

Acontece que no processo de insolvência o legislador entendeu por bem conceder ao requerente, na situação prevista no artigo 27.º n.º 1 b), uma oportunidade para "corrigir os vícios sanáveis da petição", de modo a poder aproveitá-la, o que permite concluir, para além do mais, que os cinco dias concedidos para esse efeito não comprometem a urgência e a celeridade subjacentes ao processo de insolvência. E convém não esquecer que se a lei não estabelecesse esta possibilidade de "corrigir os vícios sanáveis da petição" e se, em virtude deles, a consequência fosse o não recebimento da petição inicial, sempre o requerente poderia no dia seguinte instaurar nova acção, ficando, por essa via, salvaguardados na íntegra os seus legítimos interesses.[8]

Já o requerido ou réu, se não deduzir oposição ou contestar em conformidade com os pressupostos que lhe forem impostos, não poderá, dias depois, apresentar nova oposição ou contestação, pois, em princípio, esse seu direito já foi exercido e extinguiu-se. Só assim não será nos casos em que o legislador consagrar a possibilidade de, perante o vício ou insuficiência de que padece o acto processual, se poder repeti-lo ou completá-lo, de modo a suprir-se o que se encontrava em falta. Veja-se a este propósito, por exemplo, os artigos 486.º-A n.º 5, 508.º e 685.º-A n.º 3 do Código de Processo Civil.

Conclui-se assim, que, por regra, no que se refere à petição inicial e à contestação, a inexistência de uma segunda oportunidade para corrigir as respectivas insuficiências é bem mais gravosa para o réu do que para o autor. Pode, por isso, dizer-se que o disposto no artigo 27.º n.º 1 b) vai contra a corrente, nem tanto por dar uma oportunidade ao requerente de ultrapassar as insuficiências existentes na sua petição inicial, mas fundamentalmente por no artigo 30.º não se conceder expressa e inequivocamente igual faculdade ao requerido no que toca aos "vícios sanáveis" que possam encontra-se na sua oposição.

O artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República estabelece o princípio de que "todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo."

Emerge daqui um princípio constitucional que garante um processo equitativo, o qual "é densificado por vários subprincípios, entre os quais se conta o direito de defesa e direito ao contraditório, traduzido na possibilidade de cada uma das partes apresentar a sua versão e os seus argumentos, de facto e de direito, oferecer provas e pronunciar-se sobre os argumentos e material probatório carreado pela parte contrária, antes da prolação da decisão sobre o litígio. Corresponde, pois, tal direito a uma garantia de equilíbrio e de igualdade de armas entre os litigantes, que vêem constitucionalmente assegurada a possibilidade de exercerem influência efectiva no desenvolvimento do processo, que se pretende que conduza a uma decisão materialmente justa do litígio.

Não obstante a ampla liberdade reconhecida ao legislador, no âmbito da definição da tramitação processual, é inegável que a garantia do contraditório, de que decorre a proibição da indefesa, constitui um limite vinculativo incontornável.

Desde logo, e no segmento que aqui nos interessa, as cominações e preclusões, associadas ao incumprimento de determinado ónus processual, não podem revelar-se funcionalmente desajustadas

O princípio do contraditório, como componente do direito a um processo equitativo, terá de manter a sua função operante num conteúdo mínimo, seja qual for a estrutura processual em que se desenhe o acesso à tutela judiciária.

Apesar de se reconhecer a importância de uma estrutura processual deliberadamente simplificada e célere, vocacionada para os objectivos de política legislativa que presidiram ao regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, é imperioso garantir que o bem jurídico celeridade não comprometa, de forma desproporcional, o princípio do contraditório, sob pena de violação incomportável do acesso à tutela jurisdicional efectiva.

A propósito do equilíbrio necessário entre a celeridade processual e a justiça da decisão, em termos transponíveis para a presente situação, refere C. Lopes do Rego:

“As exigências de simplificação e celeridade – assentes na necessidade de dirimição do litígio em tempo útil – terão, pois, necessariamente que implicar um delicado balanceamento ou ponderação de interesses por parte do legislador infraconstitucional – podendo nelas fundadamente basear-se o estabelecimento de certos efeitos cominatórios ou preclusivos para as partes ou a adopção de “mecanismos que desencorajem as partes de adoptar comportamentos capazes de conduzir ao protelamento indevido do processo”, sem, todavia, aniquilar ou restringir desproporcionadamente o núcleo fundamental do direito de acesso à justiça e os princípios e garantias de um processo equitativo e contraditório que lhe estão subjacentes, como instrumentos indispensáveis à obtenção de uma decisão jurisdicional – não apenas célere - mas também justa, adequada e ponderada” (in “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, Estudos em homenagem  ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, 2003, p. 855).

Do exposto resulta que uma falha processual – maxime que não acarrete, de forma significativa, comprometimento da regularidade processual ou que não reflicta considerável grau de negligência - não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitectura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efectividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade a e relevância - e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes."[9] 

Com efeito, "para o processo civil, a jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pág. 415).

Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correcto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741). Como concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96)."[10]

À luz do que se deixa dito, realçando que, como bem se afirma no citado Ac. 556/2008, as soluções adoptadas pelo legislador não são "imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas à gravidade e relevân­cia da falta, nomeadamente pelo seu carácter irremediável ou definitivo, impossibi­litador de qualquer ulterior suprimento", não se encontra razão válida para que não se conceda ao requerido uma oportunidade para suprir as falhas sanáveis de que possa padecer a sua oposição, não obstante as advertências que lhe são feitas aquando da sua citação, mais a mais quando, pelo artigo 27.º, o requerente beneficia desse privilégio relativamente à petição inicial. E menos se compreende quando bem se sabe que se não for recebida a oposição, na ausência desta isso implica, nos termos do artigo 30.º n.º 5, a confissão dos factos alegados na petição inicial, o que só não conduzirá à declaração de insolvência se, por mero acaso, o pedido for infundado, por a realidade aí alegada, e considerada confessada, não preencher a previsão de qualquer uma das situações do artigo 20.º. Acresce que a exigência do n.º 2 do artigo 30.º tem (unicamente) por finalidade permitir posteriormente, no caso de ser declarada a insolvência, a citação pessoal dos cinco maiores credores[11]. Neste contexto, a consequência prevista no artigo 30.º n.º 2, se entendida como tendo de ser aplicada de imediato, é manifestamente desproporcionada ao fim que tem em vista e excessivamente gravosa ao nível do direito ao contraditório ou de defesa do requerido.

A situação dos autos tem bastantes semelhanças com a apreciada no Ac. Tribunal Constitucional 434/2011, que tinha por objecto o artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, que, ao regular o processo de injunção, dispõe que "na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, é desentranhada a respectiva peça processual." Nesse aresto o Tribunal Constitucional decidiu "julgar inconstitucional a interpretação normativa do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, (…) segundo a qual a falta de comprovação do pagamento da taxa de justiça devida pelo réu, nos dez dias subsequentes à distribuição do procedimento injuntivo como acção, acarreta o imediato desentranhamento da peça processual de defesa, que valeria como contestação no âmbito de tal acção, por tal interpretação violar o princípio do contraditório, integrante do direito a um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da CRP."

Uma vez que um processo equitativo implica "a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas"[12], não se vê como é que, no caso em apreço, se pode considerar estarmos num processo com tais características, fundamentalmente no que se reporta ao princípio da igualdade de armas, quando o artigo 27.º n.º 1 b) concede ao requerente uma oportunidade para suprir "vícios sanáveis da petição" e, na interpretação feita pelo tribunal a quo do n.º 2 do artigo 30.º, não se confere ao requerido igual oportunidade, no que diz respeito a "vícios sanáveis" de que possa padecer a sua oposição.

Se o legislador considerou que, face ao fim tido em vista, a urgência e a celeridade subjacentes ao processo de insolvência são compatíveis com a concessão dos cinco dias referidos no artigo 27.º n.º 1 b), então não serão mais cinco dias de que, por motivo similar, o requerido possa beneficiar que vão causar dano relevante a esse nível.

Hic et nunc, subscrevendo inteiramente a doutrina do Ac. do Tribunal Constitucional 556/2008, conclui-se que é inconstitucional, por violação do direito a um processo equita­tivo, estabelecido no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República, o artigo 30.º, n.º 2, na interpretação segundo a qual não deve ser recebida a oposição do requerido que não contenha a lista dos cinco maiores credores, nos termos aí definidos, sem que antes não lhe seja facultada uma oportunidade de suprir tal falta.

Tendo "em conta a unidade do sistema jurídico" e presumindo que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas", como impõe do artigo 9.º n.os 1 e 3 do Código Civil, esta norma deverá, portanto, ser interpretada, em consonância com aquele preceito constitucional, no sentido de que no caso de, ao deduzir a sua oposição, o requerido não apresentar a lista dos cinco maiores credores, este terá que nessa ocasião ser notificado para, em prazo a fixar, juntar aos autos tal lista. Só se após esta notificação não for apresentada a mencionada lista, é que, então, a oposição não é recebida. E o prazo a estabelecer para esse efeito deverá ser, por analogia, o de cinco dias, dado que é este o que figura no artigo 27.º n.º 1 b).


III

Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso e:

a) declara-se inconstitucional, por violação do direito a um processo equita­tivo, estabelecido no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República, o artigo 30.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na interpretação segundo a qual não deve ser recebida a oposição do requerido que não contenha a lista dos cinco maiores credores, nos termos aí definidos, sem que antes não lhe seja facultada uma oportunidade de suprir tal falta, pelo que, nos termos do artigo 204.º da Constituição da República não se aplica esta norma com tal sentido;

b) revoga-se a decisão recorrida;

c) determina-se que seja proferido despacho a convidar a requerida a, em cinco dias, juntar aos autos a lista dos seus cinco maiores credores, nos termos previstos no artigo 30.º n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sob pena de não recebimento da sua oposição.

Custa pelo requerente.

                                                           António Beça Pereira (Relator)

                                                               Nunes Ribeiro

                                                              Hélder Almeida


[1] São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
[2] Cfr. conclusão III.
[3] Cfr. conclusão II.
[4] De 19-11-2008.
[5] Sublinhado nosso.
[6] Inocêncio Galvão Teles, Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 11.ª Edição, pág. 235. Lex non est textus sed contextus.
[7] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 29 e 30.
[8] É a possibilidade de o autor poder, numa nova acção, apresentar outra petição inicial e a impossibilidade de o réu, à partida, ter a faculdade de apresentar segunda contestação que justifica a diferença de tratamento, em favor deste, que se encontra nos artigos 474.º f) e 486.º-A n.os 2 a 6 do Código de Processo Civil.
[9] Ac. do Tribunal Constitucional 434/2011.

[10] Ac. do Tribunal Constitucional 19/2010. Dentro desta linha pode ver-se os Ac. do Tribunal Constitucional 102/2010 e 359/2011.
[11] Cfr. artigo 37.º n.º 3 CIRE.
[12] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, pág. 439.