Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2004/10.6TBPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: INVENTÁRIO
CREDORES
FALTA DE CITAÇÃO
NULIDADE
PROCESSO EQUITATIVO
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. CENTRAL - 2ª SECÇÃO DE EXECUÇÃO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 825, 194, 1341, 1342, 1343 CPC
Sumário: 1.Não pode a falta de citação dos credores em processo de inventário, independentemente de poder ser considerada como nulidade (cf. art. 1342º, nº2 do C.P.Civil aplicável), ser equiparada a falta de citação do réu (cf. art. 194º do C.P.Civil aplicável).
2. No conceito jurídico-constitucional do processo equitativo engloba-se o direito por parte do credor exequente de um dos cônjuges, que requereu a citação do cônjuge desse executado para requerer a separação de bens (cf. art. 825º do C.P.Civil aplicável), de tendo sido esta apresentada, e processado o correspondente inventário, dispor da efectiva possibilidade de sindicar a relação de bens e a partilha que aí venha a ter lugar.

3. Contudo, “sibi imputet” à Exequente ora Recorrente se, por lapso seu ou desatenção na contagem dos prazos, tendo podido fazê-lo, não manifestou tempestivamente a sua posição processual nos autos, ou cuidou de que os seus direitos fossem reconhecidos e pudessem ser operados.

Decisão Texto Integral:           
  Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

            Em autos de Partilha de Bens em Casos Especiais/Inventário para Separação de Meações em que era Requerente J (…) e Requerido o Executado V (…) a Exequente nos autos principais de execução n.º2004/10.6TBPBL apensos, L (…), alegando que havia “tido conhecimento de que pendia inventário para a separação de meações”, veio requerer, em 31.07.2013, que seja ordenada a “citação da exequente para os termos do presente inventário, nos termos e ao abrigo do art.º 1.342.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, uma vez que tal citação nunca ocorreu, como deveria, nos termos dos art.ºs 1341.º, nº 1 do 1342.º, 1343.º e n.º 3 do 1327.º todos do Código de Processo Civil” (cf. fls. 113).

                                                                       *

            Facultado o exercício do contraditório sobre tal questão, quer pelo Requerido, quer pela Requerente, foi sustentado que devia ter lugar o indeferimento de uma tal pretensão (cf. fls. 119-120 e 123-126, respectivamente).

                                                                       *

            Na sequência processual, a Exma. Juíza titular dos autos decidiu sem mais a questão suscitada, sustentando o entendimento de que já tendo sido proferida sentença homologatória da partilha (a qual se mostra transitada em julgado), apesar de efectivamente não ter sido dado cumprimento ao disposto nos artigos 1341.º, nº 1 do 1342.º, 1343.º e n.º 3 do 1327.º todos do Código de Processo Civil (ou seja, a citação dos credores para os termos do presente inventário), na medida em que resultava da consulta dos autos principais apensos que pela Exequente foi requerida a consulta dos autos no dia 12.02.2012 (cfr. fls. 539 dos autos de execução), no seu escritório por dois dias, o que mereceu deferimento, sendo que a essa data já havia dado entrada em juízo o presente apenso de inventário para separação de meações (03.03.2011), caberia ao exequente/credor invocar, no prazo de dez dias após o conhecimento da pendência dos presentes autos, a falta de citação ora arguida nos termos do disposto no artigo 201º, n.º1 do C.P.Civil, pelo que, não o tendo feito, a mesma deverá considerar-se sanada, donde se ter em consequência julgado improcedente a falta de citação em causa, assim se indeferindo o requerido.

                                                                       *

            Inconformada com uma tal decisão, dela interpôs recurso de apelação a dita Exequente, dizendo ainda que também recorria da sentença final proferida nos autos, termos em que finalizou a minuta alegatória através das seguintes conclusões:

(…)

            Apresentou por sua vez a Requerente/recorrida Joaquina as suas contra-alegações, a fls. 831-839, relativamente ao que extraiu a seguinte síntese:

«Não é possível requerer a realização da citação para os termos de um processo já findo por sentença transitada em julgado.

No caso vertente, sempre estaria precludida a hipótese de arguição da falta de citação, mostrando-se sanado o vício correspondente.

No caso vertente, transitada em julgado a sentença homologatória da partilha, não é possível interpor recurso de apelação de tal sentença.

Consequentemente,

Deverá ser negado provimento aos recursos sob resposta.»

                                                                       *

            E por sua vez apresentou o Requerido/recorrido Vicente as suas contra-alegações, a fls. 847-855, das quais extraiu as seguintes conclusões:

(…)

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR[2], tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine”, do mesmo n.C.P.Civil):

            quanto ao despacho de indeferimento da arguição de nulidade por falta de citação

- da falta de citação do credor em autos de inventário para separação de meações configurar a nulidade principal da “falta de citação” do art. 194º do C.P.Civil aplicável, ao invés de constituir mera irregularidade (como qualificado pelo despacho recorrido)?;

quanto à sentença homologatória da partilha

- da sua prolação desconsiderar a omissão de citação da credora/exequente ora recorrente, e bem assim a falta de notificação da mesma para os actos processuais (designadamente na conferência de interessados)?;

            - da violação por tal decisão do art. 20º da Constituição da República Portuguesa (que define o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva)?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Como factos a ter presentes na decisão, para além dos constantes do relatório supra, importa considerar que:

- Pela Exequente foi requerida a consulta no seu escritório, por dois dias, dos autos principais (executivos) apensos aos presentes, no dia 12.02.2012, o que obteve deferimento;

- A essa data já havia dado entrada em juízo o presente apenso de inventário para separação de meações (foi este apresentado em 03.03.2011), encontrando-se o mesmo com a instância suspensa em deferimento de requerimento apresentado pelos interessados, despacho que igualmente deu sem efeito a conferência de interessados que se encontrava agendada;

- Nos presentes autos de separação de meações, em 11 de Janeiro de 2013, foi proferida sentença homologatória da partilha, a qual transitou em julgado, na imediata sequência legal, em 20.02.2013 (cf. fls. 107-111);

- A Exequente ora recorrente veio requerer, em 31.07.2013, que seja ordenada a “citação da exequente para os termos do presente inventário, nos termos e ao abrigo do art.º 1.342.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, uma vez que tal citação nunca ocorreu, como deveria, nos termos dos art.ºs 1341.º, nº 1 do 1342.º, 1343.º e n.º 3 do 1327.º todos do Código de Processo Civil”, o que tendo sido indeferido foi objecto do recurso em apreciação.

                                                                       *                   

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – questão da falta de citação do credor em autos de inventário para separação de meações configurar a nulidade principal da “falta de citação” do art. 194º do C.P.Civil aplicável, ao invés de constituir mera irregularidade (como qualificado pelo despacho recorrido)

Cumpre começar por vincar que efectivamente foi este último o sentido do despacho recorrido, em apreciação da nulidade arguida pela Exequente ora recorrente, a qual invocou para tanto que não havia sido citada nos autos.

Mas preliminarmente à decisão de uma tal questão, vamos desde já sublinhar e deixar esclarecido que é esse e apenas esse o objecto nuclear do recurso nesta parte, isto é, a situação da Exequente aqui recorrente, que não a da co-Exequente Herança, pois que não compete a este tribunal de recurso apreciar questões novas – exceptuadas as que sejam de conhecimento oficioso – as quais não foram oportunamente colocadas no tribunal recorrido nem o despacho sob recurso sobre elas se tenha pronunciado (cf. art. 635º, nº2 do n.C.P.Civil).

Para além de que sempre careceria a Exequente ora recorrente de legitimidade para suscitar uma tal questão em nome de outrem, por só poder ser invocada pelo próprio interessado na observância da formalidade…

Pelo que só pela via do conhecimento oficioso de uma tal questão – a da falta de citação da co-Exequente Herança – a mesma poderá vir a ser apreciada no âmbito deste recurso,… o que não deixará de ser apreciado infra!

Dito isto, apreciemos então directamente o que aqui existe como tal.

E fazendo-o, não podemos deixar de inequivocamente concluir – e releve-se este juízo antecipatório! – pela sem razão da Exequente ora recorrente, na medida em que claramente o regime aplicável à arguição da aqui invocada “falta de citação”, não é o previsto como se a mesma fosse uma nulidade principal.

Aliás, só se compreende que a Exequente ora recorrente tivesse intentado esse enquadramento para poder obter ganho de causa – em termos de ser tempestiva a arguição de nulidade, da falta de citação – na perspectiva do regime da arguição que decorre do art. 204º, nº2 do C.P.Civil (cf. “podem ser arguidas em qualquer estado do processo”) conferir tutela a tal meio processual. 

Acontece que tendo-o vindo suscitar quando nos autos já tinha sido proferida sentença homologatória da partilha devidamente transitada em julgado, o único meio processual virtualmente adequado para o efeito até seria apenas o recurso de revisão (cf. art. 771º, al.e) do C.P.Civil)...

Mas – e liminarmente! – a nulidade em causa, a existir, nunca seria uma nulidade principal.

Na verdade, no § 1º do art. 1371º do C.P.Civil de 1939, chegou a equiparar-se a falta de citação dos herdeiros, dos seus cônjuges e do MºPº à falta de citação do Réu, o que implicava ser ela causal de anulação de todo o processado depois do acto anterior a ela (cf. art. 194º do mesmo normativo).

Sucede que logo ao tempo desse regime se veio a considerar o mesmo demasiado severo e até incoerente[3], alterando-se oportunamente para um regime que se mantém até ao presente, e aplicável a qualquer “interessado”[4], a saber, o de que “verificada em qualquer altura a falta de citação de algum interessado, é este citado com a cominação de que, se nada requerer no prazo de 10 dias, o processado se considera ratificado. Dentro desse prazo, é o citado admitido a exercer os direitos que lhe competiam, anulando-se o que for indispensável” (cf. art. 1329º, nº4 do mesmo C.P.Civil).

Este regime mantém-se, no essencial[5], no quadro normativo que é o vigente para a situação ajuizada, como flui do disposto no art. 1342º, nº2 do C.P.Civil na redacção aplicável (decorrente do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

Neste conspecto, que dizer?

Que à falta em causa não associa a lei o regime de uma nulidade principal – essas apenas são as quatro a que expressamente se refere o art. 202º do mesmo C.P.Civil, a saber, a ineptidão da petição inicial, a falta de citação, seja do Réu, seja do MºPº quando deva intervir como parte principal, o erro na forma de processo e a falta de vista ou de exame ao MºPº quando deva intervir como parte acessória (e a falta não tenha sido devidamente sanada).

Assim sendo, corresponderia ela a uma nulidade dita secundária (cf. art. 201º, nº1 do C.P.Civil aplicável), donde ter ela que ser arguida, nos termos gerais, no prazo previsto no art. 205º, nº1 do C.P.Civil aplicável, in casu, no prazo de 10 dias após o conhecimento da pendência dos presentes autos.

Este mesmo entendimento já foi sufragado na jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, quando se sustentou que “Não pode a falta de citação dos credores em processo de inventário, independentemente de poder ser considerada como nulidade, ser equiparada a falta de citação do réu”.[6]

Ora, o que resulta de inequívoco e insofismável na presente situação, é que a Exequente ora recorrente requereu e viu deferida a consulta dos autos no dia 12.02.2012, data em que já se encontrava pendente este apenso de inventário para separação de meações, na qual efectivamente não tinha tido lugar a sua citação, mas apesar disso, só veio arguir a nulidade dessa falta quase 1 ano e meio depois…                 

Sem embargo de se tratar de uma nulidade que podia ser conhecida oficiosamente (cf. redacção literal do já referenciado art. 1342º, nº2 do C.P.Civil) – isto é, a lei permite o seu conhecimento oficioso – o que é certo é que tal não corresponde a um poder vinculado, correspondente a um dever, donde, a inércia do Juiz não se reconduz a qualquer nulidade, face ao que, obviamente, se encontra liminarmente arredada a possibilidade ou oportunidade de conhecer a questão paralela da falta de citação da co-Exequente Herança, que o mesmo é dizer, não é nem nunca seria caso de omissão conducente a uma nulidade processual determinante do conhecimento oficioso de uma tal questão em sede deste recurso…

O que tudo serve para dizer que não vislumbramos mínima razão substantiva ou processual para discordar da decisão recorrida que considerou extemporânea a arguição – devendo “considerar-se sanada” – da falta de citação em causa!

Acrescendo – e decisivamente! – a impropriedade do meio processual de arguição da nulidade quando já tinha sido proferida sentença final nos autos, com trânsito em julgado, face ao que o único meio processual de eventualmente[7] suscitar a questão seria o recurso de revisão.

Improcede assim a alegação recursiva nesta parte.

                                                           *

 4.2 – questão da prolação da sentença homologatória da partilha desconsiderar a omissão de citação da credora/exequente ora recorrente, e bem assim a falta de notificação da mesma para os actos processuais (designadamente na conferência de interessados):

Esta questão já obteve resposta na decisão da anterior, na medida em que muito claramente se sustentou aí o entendimento de que podia ter sido conhecido o vício pelo Tribunal – e tomadas as providências necessárias para que a irregularidade fosse suprida – desde que o Tribunal do mesmo se tivesse apercebido.

Mas, se como sucedeu no caso vertente, o Tribunal não se apercebeu oportunamente da falta, na medida em que está em causa uma irregularidade processual, “sibi imputet” à Exequente ora recorrente se com a não arguição tempestiva da nulidade da falta da sua citação, veio ela própria a dar causa a outras “nulidades” do processo, como sejam as conexionadas com a sua falta de notificação para os actos processuais subsequentes, designadamente a conferência de interessados (cf. art. 203º, nº2 do mesmo C.P.Civil).

Para além de que constituindo esta última falha ela própria um fundamento de arguição de nulidade, devia a mesma ter sido arguida – e tempestivamente! – perante o Tribunal recorrido, na medida em que, as nulidades devem ser arguidas perante o Juiz da causa (de cuja decisão cabe recurso nos termos gerais).[8]    

Pelo que, brevitatis causa, também improcede este argumento recursivo.

                                                           *

4.3 – questão da violação pela decisão recorrida do art. 20º da Constituição da República Portuguesa (que define o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva):

Salvo o devido respeito, a Exequente/recorrente não sustenta convincente e fundadamente a verificação de inconstitucionalidade com e por força da prolação da sentença recorrida.

De que normativo processual é que decorre que a decisão recorrida não deveria homologar o acordo dos cônjuges sem ter sido assegurado o direito da ora recorrente aos actos processuais praticados no processo?

Ou dito de outra forma: de que normativo processual é que decorre que o acto homologatório do acordo dos cônjuges exige a verificação da legalidade dos actos processuais e/ou das omissões cometidas ao longo do processo?

Então a homologação que teve lugar das operações de partilha constantes do mapa de partilha não é compatível com os princípios de defesa e do contraditório e da igualdade, constituindo uma violação do acesso à justiça garantido no art. 20º da Constituição da República Portuguesa?

Em nosso entender, sustentar-se como o faz a Exequente/recorrente constitui uma forma enviesada de colocar os termos da questão e bem assim de aplicação dos citados princípios constitucionais ao que estava efectivamente em causa na situação ajuizada – a sentença recorrida.

É que, como doutamente já foi sublinhado, “a sentença em inventário (…) é usualmente revestida da maior simplicidade”, podendo dizer-se que “constitui uma verdadeira chancela do que se deliberou, e o próprio art. 1382º a considera mais como uma homologação das partilhas do que como acto final de julgamento delas. Breve, concisa, a sentença limita-se a homologá-las, fazendo expressa referência aos nomes do inventariado e inventariante e condenando os interessados nas custas; destina-se a autenticar as partilhas.[9]

Ora se assim é, compulsando a sentença recorrida não pode deixar de se constatar que foi isso precisamente que, com singeleza e assertividade, foi feito.

Temos presente que se entende decorrer um inventário como o ajuizado (para separação de meações, requerido nos termos do art. 825º do C.P.Civil) apenas entre os cônjuges, mas que “Não obstante isso o exequente é interessado na partilha dos bens, devendo por isso ser citado, para poder exercer o poder de verificação e satisfação dos seus direitos[10], e bem assim que “O exequente deve, sob pena de nulidade, ser chamado ao inventário para separação de meações originado na respectiva execução, logo ab initio, através de citação, e deve ser ser-lhe dado conhecimento de todos os factos relevantes nesse processo através de notificação (…)”.[11]

É também certo fluir do nº1 do art. 3º do C.P.Civil aplicável, que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.

Sendo certo que o nº2 deste último preceito prescreve que só em casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.

Configura isto a afirmação do princípio do contraditório – que, nos termos do nº3, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo.

Tal princípio também expressamente consagrado no art. 32º, nº5, “in fine”, da Constituição da República Portuguesa, tal como o princípio da igualdade das partes, imposto pelo art. 3º-A, consagra o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º daquele diploma, na vertente em que todos têm direito a que uma causa em que intervenham decorra mediante um processo equitativo (parte final do nº4).

É, afinal, o direito fundamental de qualquer pessoa a um processo justo, a um processo que apresente garantias de justiça, no que concerne à sua estrutura, e que o art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagra, ao consignar que “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.

Este direito a um processo equitativo - ou nas expressões inglesas due process of law ou fair trial - fair hearing - também se encontra consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art. 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos.[12]

O que tudo serve para dizer que o acto da citação do exequente no inventário para separação de meações originado na respectiva execução, bem como os de subsequente notificação ao mesmo dos factos relevantes nesse processo, devem sempre ser operados, tendo em vista garantir um efectivo e eficaz conhecimento dos termos do processo e do seu acompanhamento nos momentos processuais relevantes, sem o que acaba postergado o direito fundamental de qualquer credor a um processo equitativo, in casu, deve a tramitação processual fornecer garantias de efectiva salvaguarda dos seus interesses (“verificação e satisfação dos seus direitos”).

Deste modo, é efectivamente de afirmar e reconhecer que no conceito jurídico-constitucional do processo equitativo se engloba o direito por parte do credor exequente de um dos cônjuges, que requereu a citação do cônjuge desse executado para requerer a separação de bens, de tendo sido esta apresentada, e processado o correspondente inventário, dispor da efectiva possibilidade de sindicar a relação de bens e a partilha que aí venha a ter lugar.

Donde, concomitantemente, do direito de face à escolha de formação da meação por parte do cônjuge do executado, que podia resultar em manifesto prejuízo dele credor exequente, reclamar contra ela (cf. art. 1406º, nº1, al.c) do mesmo C.P.Civil aplicável)…  

Só que tudo isto se tem que passar a “montante” da sentença de partilha e em fase sempre anterior a ela, estando a sentença a “juzante” de todo esse percurso e sendo proferida após essas fases processuais.

Face ao que, na prática e efectivamente, se limita a sentença a chancelar o que foi deliberado em termos de partilhas pelas partes, sem oposição conhecida de qualquer interessado

Dito de outra forma: na interpretação por nós perfilhada e com base na qual se decidiram as questões anteriores, a Exequente ora recorrente teve conhecimento da pendência dos autos e do seu estado numa fase ainda muito inicial dele e em que lhe teria sido possível a plena salvaguarda dos seus interesses e direitos, nada requerendo tempestivamente em ordem a que fosse admitida a intervir e operar os seus direitos processuais, o que idem se diga quando de novo veio aos autos e nele já tinha sido proferida a sentença homologatória da partilha.

A esta luz, não fica questionada a existência de um processo justo e equitativo.

Antes, e em contraposição, também se perfila outro princípio constitucional e valor que deve presidir à administração da justiça, a saber, o da celeridade processual, ao qual importa dar acolhimento e tutela.[13]

Sendo, aliás, deste adequado equilíbrio e harmonização de princípios, direitos e interesses processuais contrapostos, que se encontra fundado o nosso Estado de Direito e, dentro dele, do processo civil, designadamente quando neste se estabeleceram prazos peremptórios para o exercício de direitos.

Sendo certo que o entendimento por nós perfilhado não ofende desproporcionadamente os direitos e interesses da Exequente ora Recorrente, de salvaguarda da garantia patrimonial do seu crédito, a quem “sibi imputet”, se por lapso seu ou desatenção na contagem dos prazos, tendo podido fazê-lo, não manifestou tempestivamente a sua posição processual nos autos, ou cuidou de que os seus direitos fossem reconhecidos e pudessem ser operados.

Improcede assim igualmente o alegado neste particular.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – Não pode a falta de citação dos credores em processo de inventário, independentemente de poder ser considerada como nulidade (cf. art. 1342º, nº2 do C.P.Civil aplicável), ser equiparada a falta de citação do réu (cf. art. 194º do C.P.Civil aplicável).

II – No conceito jurídico-constitucional do processo equitativo engloba-se o direito por parte do credor exequente de um dos cônjuges, que requereu a citação do cônjuge desse executado para requerer a separação de bens (cf. art. 825º do C.P.Civil aplicável), de tendo sido esta apresentada, e processado o correspondente inventário, dispor da efectiva possibilidade de sindicar a relação de bens e a partilha que aí venha a ter lugar.

III – Contudo, “sibi imputet” à Exequente ora Recorrente se, por lapso seu ou desatenção na contagem dos prazos, tendo podido fazê-lo, não manifestou tempestivamente a sua posição processual nos autos, ou cuidou de que os seus direitos fossem reconhecidos e pudessem ser operados.  

                                                                       *

6 – DISPOSITIVO

            Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela Exequente/recorrente.

                                                                       *

Coimbra, 14 de Abril de 2015

Luís Filipe Cravo (Relator)                                             

António Carvalho Martins

Carlos Moreira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carvalho Martins
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] De referir que tendo sido constatado no autos que a apresentação do recurso tinha tido lugar no 2º dia útil subsequente ao termo do prazo, foi notificada a Exequente/recorrente para pagar a multa por tal devida, o que foi oportunamente satisfeito pela mesma (cf. fls. 868-871).  
[3] Neste sentido e mais aprofundadamente sobre esta questão, vide J. A. LOPES CARDOSO, in “Partilhas Judiciais”, Vol. I, Liv Almedina, 4ª ed., Coimbra, 1990, a págs. 409-411.
[4] Isto é, também legatários, donatários e credores!
[5] Com excepção do prazo concedido para exercício dos direitos por parte do interessado, que passou a ser de “15 dias” (em vez dos “10 dias” do regime anterior).
[6] Assim no acórdão do STJ de 03/02/2009, no proc. nº08A3950, acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[7] A colocação desta possibilidade como hipotética reside na circunstância de haver um limite temporal também nesta sede, a saber, o previsto no art. 772º, nº2 e al.d) do mesmo C.P.Civil, acrescendo que já foi doutamente entendido que “Não pode a falta de citação dos credores em processo de inventário, independentemente de poder ser considerada como nulidade, ser equiparada a falta de citação de réu, o que impede se considere preenchida a hipótese prevista na al. e) do art.º 771º do Cód. Proc. Civil.” (cf. acórdão do STJ de 03.02.2009, no proc nº 08A3950, acabado de citar na nota antecedente).
[8] De referir que a Exequente ora recorrente igualmente arguiu a nulidade dos actos processuais praticados no presente inventário após o dia 13 de Abril de 2013 – por não ter sido notificada dos mesmos – , nomeadamente do despacho que determinou o prosseguimento da execução e que designou data para a conferência de interessados, arguição essa que foi apreciada pelo despacho que consta de fls. 872-873 dos autos, através do qual se decidiu indeferir ao requerido, porque intempestivo, não se declarando as nulidades invocadas, despacho este que não foi objecto de recurso autónomo, não estando por isso em causa na sede da presente decisão.
[9] Citámos J. A. LOPES CARDOSO, in “Partilhas Judiciais”, Vol. II, Liv Almedina, 4ª ed., Coimbra, 1990, a págs. 519-520.
[10] Assim no acórdão do T.Rel. do Porto de 08.05.2000, in CJ, 2000, Tomo III, a págs. 177.
[11] Assim no acórdão do T.Rel. de Coimbra de 03.07.2001, in CJ, 2001, Tomo V, a págs. 7.
[12] Na lição de GOMES CANOTILHO, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, a págs. 274, do princípio do Estado de Direito, previsto no art. 2º da Lei Fundamental, “deduz-se sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo”.
[13] Cf. art. 20º, nº4 da mesma Constituição da República Portuguesa.