Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
83/19.0T8OHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM MOTOR
CARTA POR PONTOS
AUTONOMIA
NATUREZA
PRINCÍPIOS DA ADEQUAÇÃO E DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Data do Acordão: 10/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 148.º DO CÓDIGO DA ESTRADA; ART.ºS 30.º, N.º 4, E 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: I – Do regime de cassação do título de condução decorrente do art.º 148.º do Código da Estrada não decorre qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e proporcionalidade resultantes do art.º 30.º, n.º 4, da Constituição.

II - A cassação não constitui uma dupla punição pelo mesmo facto ou pela mesma realidade dotada de unidade de sentido, mas antes por uma nova realidade, subsequente e da não satisfação, in casu, da condição de aprovação no exame tórico em que reprovou.

Decisão Texto Integral:













Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO 

Nos autos de contra-ordenação, a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária decidiu: - aplicar ao arguido HM, por reprovação na prova teórica de exame de condução, a cassação do respetivo título de condução Nº ....


*

Inconformado com a referida decisão da autoridade administrativa, o arguido interpôs recurso de impugnação da mesma para o tribunal de comarca.

No tribunal de comarca, com vista à apreciação do recurso, constatando que não fora impugnada a matéria de facto, o Mº juiz procedeu à notificação dos sujeitos processuais nos termos e para efeito do disposto no art.º 64º, nº 2 do RGCC.

O arguido/recorrente manifestou a sua oposição à decisão por mero despacho, pelo que foi designada data para a audiência.

Na audiência, não havendo prova a produzir, foram produzidas alegações, após o que foi determinada a abertura de conclusão para sentença.

Na sentença, depois de proceder à definição da matéria de facto provada e respectivo enquadramento jurídico, o tribunal decidiu: - julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão da autoridade administrativa.


*

Inconformado com a aludida sentença, dela recorre o arguido formulando as seguintes CONCLUSÕES:

I. O Arguido foi julgado e condenado nos autos em epígrafe na cassação do título de condução n.º ..., por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148º, nºs 4, 10 a 12 do Código da Estrada.

II. Viola o ne bis in idem (previsto no art.º 29º, nº 5, da CRP e consagrado no art.º 54º da CAAS como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais) a presente sentença.

III. O arguido cumpriu as penas aplicadas no âmbito dos processos citados na sentença a quo.

IV. Ora, o Tribunal a quo ao aplicar a norma do art.º 148º do Código da Estrada, viola a Constituição da República Portuguesa.

V. Nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), deveria antes tê-la desaplicado, revogando o despacho da Autoridade Administrativa, por a sua aplicação determinar a violação da CRP e portanto, há uma irregularidade prevista no 123º nº 1 do Código Processo Penal, não podendo por isso manter-se a decisão recorrida.

VI. Quer assim dizer-se que caso se entendesse que a lei processual estaria cumprida, a norma que determina a cassação do título de condução deverá ser considerada inconstitucional designadamente por violação de caso julgado e por inconstitucionalidade das normas 148º e 149ºo do Código da Estrada.

VII. E, assim teria de julgar, de acordo com o artigo 204º da CRP que refere “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”.

Devemos entender que nesta norma da CRP se prevê a competência exclusiva dos Tribunais para o conhecimento de questões de constitucionalidade colocadas nos processos judiciais.

VIII. O Tribunal Constitucional apenas conhecerá da inconstitucionalidade das normas em segunda instância, isto é, depois de devidamente suscitadas no Tribunal Recorrido.

IX. Como tem referido o Tribunal Constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

X. Materialmente, à sua conduta já se fizera corresponder uma “punição” (em sentido amplo).

XI. No caso sub judice, o arguido não incumpriu as injunções aplicadas.

XII. O art. 29º, no 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

XIII. Do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

XIV. Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.

XV. Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.

XVI. Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

XVII. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que “proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo”, “impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista” (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167).

XVIII. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria uma violação do princípio da necessidade, consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP. Constituição que o juiz de julgamento não pode deixar de aplicar. A sentença recorrida, ao condenar o arguido numa pena, não só manteve a violação do ne bis in idem, como afrontou o princípio constitucional da necessidade (da pena).

XIX. O despacho de recebimento da acusação, o julgamento e a sentença são, por tudo, nulos.

XX. Apresentam-se como constitucionalmente insustentáveis e o primeiro (o despacho de recebimento da acusação) deverá ser substituído por outro que, fazendo aplicação do ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXI. Sem conceder, sempre se defende que se deve ter por excessiva a pena de … aplicada, uma vez que o Arguido não tem antecedentes criminais, é pessoa bem-educada, bem considerada e com estima dos familiares, amigos e colegas, pacífica e completamente cumpridora dos seus deveres em sociedade, pelo que atendendo à factualidade resultante da produção de prova, às circunstâncias e o facto de ser trabalhador e precisar do veículo para exercer a sua atividade profissional.

XXII. Por todo o exposto deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que pela não aplicação da sanção de cassação da carta de condução.

XXIII. Sempre teremos que reconhecer que, em nenhuma das duas vezes o agente atuou com intenção de violar normas jurídicas, resultando em ambas as situações o não preenchimento de um pressuposto, absolutamente essencial, para toda e qualquer responsabilidade, o elemento subjetivo.

XXIV. Ora, em ambos os acontecimentos, verifica-se a omissão do elemento subjetivo, isto é, inexistiu qualquer intenção do respondente de agir dolosamente, em violação das disposições penais.

XXV. Pelo que se considera como proporcional e adequado a imposição de obrigação de frequência de ações de formação ou tão-somente a obtenção de novo título de condução mas de forma imediata, pressupondo sempre que o respondente é um excelente condutor, tanto mais que o faz profissionalmente, e do seu título de condução tem necessidade para o exercício da sua atividade profissional.

NORMAS VIOLADAS

XXVI. O Tribunal fez incorreta interpretação e aplicação do que vem disposto nos artigos 18º, 29º, 204º da CRP e 123º do CPP.

PEDIDO

XXVII. Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente recurso vir a ser julgado procedente por provado e a douta sentença revogada, decidindo-se que: O ora arguido/recorrente cumpriu as injunções que lhe foram cometidas, sendo que o processo deveria existindo uma clara violação do princípio ne bis in idem, artigo 29.º, n.º 5 e 18.º, n.º 2 da CRP, anulando-se o despacho de recebimento da acusação e, consequentemente, o julgamento e a sentença, devendo aquele despacho ser substituído por outro que, aplicando o ne bis in idem, rejeite a acusação do Ministério Público.

XXVIII. Se assim não se considerar, sempre se deverá considerar que:

XXIX. Deverá ao Arguido, aqui Recorrente, ser aplicada a oportunidade de frequência de formação sobre as regras estradais, ou ainda a retirada de título de condução com possibilidade imediata de obter novo título de condução.

NESTES TERMOS, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que se coadune com a pretensão exposta.


*

Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido alegando, em síntese conclusiva:

Não existe violação do princípio ne bis in idem porquanto não existiu novo julgamento sobre os mesmos factos, sendo que o sistema legal de subtracção de pontos ao condutor possui mero efeito administrativo automático, em decorrência da prática de determinados ilícitos rodoviários, não assumindo a natureza de pena.

Por outro lado, a cassação do título de condução do arguido foi consequência da sua reprovação em exame teórico de condução, após apenas lhe restar 1 ponto, não valendo o argumento aduzido pelo arguido de que se mostrava nervoso no dia da realização de tal exame, ademais quando se trata de um motorista de profissão.

A M.ma Juiz a quo procedeu a uma correcta e criteriosa subsunção jurídica dos factos dados como provados, tendo-se limitado a aplicar o regime vigente do Código da Estrada, em especial no seu art. 148o, assim mantendo a decisão administrativa.

Assim sendo, a presente pretensão recursiva terá, em nosso entender, que naufragar, atendendo à carência de qualquer fundamento legal que a suporte.

A sentença recorrida encontra-se exaustivamente fundamentada, não se encontra ferida de qualquer nulidade processual e não merece qualquer censura, pelo que deve ser integralmente mantida.


*

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se pronuncia no mesmo sentido da resposta, invocando, sobre a invocada inconstitucionalidade, o Ac. TRC de 08.05.2019, processo 797/18.1T8VIS.C1, disponível em www.dgsi.pt.

Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP.

Corridos vistos, cumpre decidir.


***

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Síntese das questões a decidir

Na motivação, sumariada nas conclusões, invoca a inconstitucionalidade do art. 148º do C. da Estrada, na aplicação dele efectuada pela decisão recorrida, com fundamento: - na violação do princípio constitucional do “ne bis in idem”, alegando que, em face da cassação do seu título de condução, o recorrente sofreu uma dupla sanção pelos mesmos factos, uma vez que já tinha cumprido a pena e sanção acessória de inibição de conduzir; - em que a medida de cassação do título de condução aplicada é excessiva e desproporcional.

Questões a decidir em função da matéria de facto provada.

2. A matéria de facto provada é a seguinte:

Ao condutor HM, titular da carta de condução n.º ..., foram subtraídos onze pontos no seguimento do trânsito em julgado de sentença e definitividade da decisão administrativa nos processos:

- Processo de contra-ordenação n.º 287251675: foram retirados 5 pontos pela prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista no artigo 81º, n.º 1 do Código da Estrada: o condutor apresentou uma TAS de, pelo menos, 1,04 g/l.

- Processo Sumário n.º 220/16.6GAOHP: foram retirados 6 pontos, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, porquanto foi punido com pena acessória de inibição de conduzir.

Em 25.06.2018, o condutor foi notificado da decisão da obrigatoriedade de realizar a prova teórica do exame de condução.

Em 29.08.2018, o condutor submetido á prova teórica, reprovou.


***

3. Apreciação

Na versão consolidada após as alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de28/08, dispõe o artigo 148.º do C. da Estrada:

Sistema de pontos e cassação do título de condução

1 - A prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contra-ordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves;
b) A prática de contra-ordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contra-ordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contra-ordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contra-ordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações.
O reproduzido artigo 148º do Código da Estrada estabeleceu, assim, o sistema de pontos associado ao título de condução e cassação do título.

A prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina assim a subtração de pontos ao condutor na data em que assume caráter definitivo a decisão condenatória.

A prática de contra-ordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves. E a prática de contra-ordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.

Por outro lado a subtração de pontos tem como efeitos, além do mais: - a obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, quando o condutor tenha três ou menos pontos.

No caso dos autos, ao recorrente foram subtraídos onze pontos, no seguimento do trânsito em julgado de sentença e da decisão administrativa nos processos: - de contra-ordenação n.º 287251675, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista no artigo 81º, n.1 do Código da Estrada: o condutor apresentou uma TAS de, pelo menos, 1,04 g/l., retirados 5 pontos; - no processo sumário n.º 220/16.6GAOHP, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, porquanto foi punido com pena acessória de inibição de conduzir, retirados 6 pontos.

Daí que, tendo perdido um total de 11 pontos, tenha realizado prova teórica do exame de condução e, por não ter obtido aprovação nessa prova teórica, tenha sido decretada a cassação do respetivo título de condução, em processo próprio, em conformidade com as normas regulamentares aplicáveis.

Alega o recorrente que reprovou “porque estava nervoso”. No entanto a situação de nervosismo não resultou provada. Aliás nem o recorrente invoca nem se descortina norma legal que preveja a situação e/ou qualquer consequência para o efeito.

Invoca a violação dos princípios constitucionais da necessidade, da proibição do excesso, alegando que o instituto de subtracção dos pontos aplica-se de forma automática, não há valoração da graduação da culpa. Invocando ainda a violação do princípio ne bis in idem, com fundamento de que o regime da cassação constitui uma dupla punição.

Estas questões foram analisadas recentemente designadamente: pelo Ac. TRP de 09 de maio de 2018, recurso n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, in www.dgsi.pt; no Acórdão do TRP de 30-04-2019, no âmbito do recurso nº 316/18.0T8CPV.P1, acessível em www.dgsi.pt; pelo Acórdão deste TRC de 08.05.2019, processo 797/18.1T8VIS.C1, disponível em www.dgsi.pt. Arestos cuja argumentação seguimos de perto.

A compatibilidade da sanção de inibição de conduzir e da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição foi analisada em múltiplas ocasiões pelo Tribunal Constitucional (ver, entre muitos outros, os acórdãos n.ºs 522/1995, 202/2000 e 563/2003, in www.tribunalconstitucional.pt). Concluindo que não se verifica a automaticidade vedada por tal princípio se a aplicação dessas sanções depender de uma operação judicial de mediação que pondere em concreto a sua adequação e proporcionalidade.

Poderia sustentar-se que a cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada não depende dessa operação de mediação judicial perante a situação concreta, uma vez que ela decorre da subtração de pontos que são consequência necessária de determinadas condenações.

Apreciando a compatibilidade entre o regime da caducidade do título de condução provisória em caso de condenação na sanção acessória de inibição de conduzir, ou de condenação pela prática de crimes e contra-ordenações rodoviárias (hoje decorrente do artigo 130.º, n.º 3, a), do Código da Estrada) – regime que também não depende de uma operação de mediação judicial - com o princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão n. 461/2000 (in www.tribunalconstitucional.pt):

«(…) A resposta negativa impõe-se por duas razões fundamentais: o direito a conduzir decorre de uma licença, que no caso é apenas provisória, e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter uma licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento.

Por outro lado, prevê-se um período experimental e de licenciamento provisório, em que o condutor terá de confirmar as condições pessoais adequadas para lhe ser conferida uma licença definitiva.

A obtenção da carta ou licença de condução é, assim, um processo com várias fases, que exige o preenchimento de vários requisitos positivos e negativos, o que é justificado pelos potenciais riscos dessa actividade para bens jurídicos essenciais.

Com efeito, a lei apenas prevê que requisito da obtenção de licença definitiva seja a não instauração de procedimento por infracção de trânsito, tratando-se, portanto, de um verdadeiro requisito negativo da extinção do carácter provisório da licença. Por outro lado, ao determinar a caducidade da licença provisória, no caso da condenação em proibição de conduzir ou de inibição de conduzir, a lei apenas consagra um requisito negativo da obtenção da carta.

Assim sendo, não se verifica sequer um efeito sobre direitos adquiridos, mas apenas a valoração de uma pena relacionada com a condução automóvel nas condições de obtenção da licença de condução.

Ora, que a não condenação numa pena de inibição de conduzir possa ser um requisito de uma licença relacionada com a verificação de requisitos adequados para obter uma licença de condução é algo de natureza absolutamente diferente do efeito automático de uma condenação sobre direitos existentes anteriormente, pois, como se referiu, situa-se no plano da formulação dos requisitos para a obtenção de licença em que a condenação na pena pode ser reveladora da inexistência das condições necessárias à obtenção da licença. Por outro lado, não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.

Aliás, a ausência de possibilidade de não conversão da licença provisória em definitiva faria perder todo o sentido à existência de período provisório no processo de obtenção de carta ou da licença de condução – o qual constitui, materialmente, uma espécie de período probatório. (…)»

Este entendimento foi reafirmado pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs 574/2000, 45/2001 e 472/2007 (também acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt).

A atribuição de licença de condução não é um direito absoluto e incondicional, sendo legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a sua atribuição. Não sendo o direito em causa incondicional, não pode dizer-se que estamos perante a perda de um direito adquirido (perda a que se reporta o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição) quando se retiram as consequências da verificação de uma sua condição negativa.

Ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos – por efeito de condenações, concretas e sucessivas, em processos próprios, por crimes ou contra-ordenações rodoviárias - o legislador limitou-se a estabelecer uma condição para a atribuição / manutenção do título de condução, cuja manutenção tinha sido previamente posta em causa pela prática da contra-ordenação muito greve e do crime cometidos no exercício da condução automóvel.

Não estamos, assim, perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”.

Como refere Damião da Cunha (in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687), «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto (…)»

Ora, no caso em apreço, o condicionamento da cassação da licença de condução resulta da repetição de infracções no exercício da condução – a prática, sucessiva, de um crime rodoviário e uma contra-ordenação muito grave no exercício da condução de que resultou a perda da 11 pontos, depois de a aptidão para o exercício da condução ter sido posta em causa, pelo próprio condutor, com a prática do crime e da contra-ordenação muito grave, demonstradas nos respectivos processos, com exercício amplo do direito de defesa e do contraditório. Mais, depois de o recorrente ter sido reprovado em exame a que, por efeito da perda de pontos, foi submetido, mais uma vez com possibilidade de impugnação da reprovação pelos meios legais.

Não se verifica, pois, qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e da proporcionalidade, o mesmo é dizer incompatibilidade entre o regime de cassação do título de condução decorrente do artigo 148.º do Código da Estrada e o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.

No que toca à invocada violação do princípio ne bis in idem com o fundamento de que o recorrente já havia sido condenado em penas de proibição de conduzir veículos automóveis, repete-se que o que está na origem da cassação não é uma ou outra das condenações, mas antes a soma de perda de pontos por factos relativos ao exercício da condução automóvel, praticados durante um determinado período. Do mesmo modo que não se verifica uma dupla condenação quando uma determinada pena é agravada pelo facto de haver sucessão de condenações, como no caso de reincidência, por exemplo.

A cassação surge perante a verificação de uma condição negativa de atribuição do título de condução – a reprovação no exame. A decisão recorrida ao aplicar a norma 148º do Código da Estrada, não viola a Constituição da República pois que a cassação questionada surge, depois da prática, sucessiva, de uma contra-ordenação muito grave e de um crime de condução em estado de embriaguez, com perda, consecutiva, de pontos, obrigando à realização de exame no sentido de apurar se - apesar daquelas condenações. Exame no qual o condenado, reprovado, não revelou a aptidão necessária ao exercício da condução automóvel.

 Diga-se até que o arguido, reprovado no exame, não impugnou os fundamentos nem a decisão de reprovação.

A cassação não constitui uma dupla punição pelo mesmo facto ou pela mesma realidade dotada de unidade de sentido, mas antes por uma nova realidade, subsequente e da não satisfação da condição de aprovação no exame tórico em que reprovou.

Em suma, depois de ter perdido os “créditos” da pontuação, o recorrente foi submetido a exame para averiguação da sua aptidão. E, tendo reprovado no exame, sem impugnar sequer a reprovação, a cassação do título tem como suporte numa nova realidade, subsequente, qual seja o incumprimento da nova condição imposta pela aprovação no exame.

Por último, nem o recorrente invoca nem se descortina fundamento legal para permitir que o recorrente obtenha novo título antes de decorrido o prazo de dois anos sobre a efetivação da cassação.

Não padece, pois, a interpretação do art. 148º do C. da Estrada na dimensão aplicada pela decisão recorrida de qualquer das inconstitucionalidades invocadas.

Impondo-se assim a improcedência do recurso.

III – DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Custas pelo recorrente (artigo 513º do CPP, nº1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça, nos termos da Tabela III anexa ao RCP, em 3 (três) UC.

Coimbra, 23 de Outubro de 2019

Belmiro Andrade (relator)

Luís Ramos (adjunto)