Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
124/15.0T9SPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
CRIME CONTINUADO
CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 02/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JCG DE S. PEDRO DO SUL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 358.º, 359.º E 379.º DO CPP
Sumário: I – Não se pode considerar validamente cumprido o preceituado no art. 358.º do CPP quando foi comunicado à arguida, em audiência de julgamento, uma alteração não substancial, da qualificação jurídica dos factos da acusação [um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. c) e 30.º, n.º 2, do CP], para um eventual crime de burla informática e nas comunicações, previsto no art.221.º, n.º 1, do CP, e vindo a arguida a ser condenada, pela prática, não de um crime, mas de quatro crimes de burla informática, p. e p. pelo art.221.º, n.º 1 do Código Penal.

II - Estando a arguida acusada pelo Ministério Público, da prática de um crime, sob a forma continuada, de burla qualificada, sendo-lhe comunicada em audiência de julgamento, nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, a possibilidade de ter cometido um crime de burla informática, não é configurável, num Estado de Direito, e num processo penal equitativo e justo, ser a arguida condenada, pela prática de quatro crimes, em quatro penas, sem que disso seja prevenida, em julgamento, para exercer o contraditório.

III – Verifica-se que, por tal motivo, a sentença recorrida é nula, nos termos do art.379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, nulidade de conhecimento oficioso.

IV - Impõe-se declarar a nulidade da sentença e devolver o processo à 1.ª instância, a fim de o mesmo Tribunal suprir a nulidade, procedendo previamente à reabertura da audiência e comunicação à arguida da alteração da qualificação jurídica em causa, para possibilitar o contraditório, nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 3, do mesmo Código.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de São Pedro do Sul, sob acusação do Ministério Público, foi submetida a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida

            A... , divorciada, funcionária administrativa, filha de (...) e de (...) , nascida em 22.2.71, natural da freguesia de (...) , concelho de (...) , residente na (...) , nesta cidade de (...) ,

imputando-se-lhe a prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. c) e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal.

           

A ofendida B... deduziu pedido indemnizatório contra a arguida/demandada, requerendo a condenação desta no pagamento dos montantes de que indevidamente se apropriara, bem como a compensação de danos não patrimoniais alegadamente sobrevindos por virtude da conduta imputada à demandada.

Realizada a audiência de julgamento – no decurso da qual se comunicou uma lateração não substancial dos factos , nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. –, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 14 de julho de 2017, decidiu:

- Condenar a arguida A... como autora material e em concurso real, de 4 crimes de burla informática, cada um p. e p. pelo art.221º, nº 1 do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, pelos factos ocorridos a 12.10.15; na pena de 75 dias de multa, pelos factos ocorridos a 26.10.15; na pena de 70 dias de multa, pelos factos ocorridos a 27.10.15; e na pena de 85 dias de multa, pelos factos ocorridos a 9.11.15;

- Operar o cúmulo jurídico destas penas e condenar a arguida A... na pena conjunta de 210 dias de multa, à taxa diária € 8,00, num total de € 1.680, com 140 dias de prisão subsidiária; e

- Condenar a arguida/demandada A... a pagar à demandante B... a importância global de € 2.798,59 euros, sendo € 2.298,59 a título de indemnização por danos patrimoniais e € 500,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, e absolver a demandada A... do remanescente do pedido contra si deduzido, ou seja, da importância de € 1.510,00.

           Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

17. Normas violadas: a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo violou, não a aplicando como deveria, designadamente, a norma contida no art.30.º, n.º 2, do CP.

18. Dispõe o art.30.º, n.º 2, do CP, que o âmbito normativo do crime continuado pressupõe que o agente aja “(...) no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.

19. O tribunal a quo concluiu não se ter verificado qualquer contexto ou dinâmica exterior ao tipo legal capaz de mitigar a culpa da arguida.

20. Porém, o crime continuado ocorrerá sempre que no conjunto de crimes repetidos se repita também a circunstância exterior que os facilita, circunstância essa que de alguma forma “convida” à prática do crime; esse “convite” será de tal forma que, cessando, levaria, com alguma probabilidade, à interrupção daquela sucessão de crimes.

21. A arguida teve sempre o cartão da ofendida ao seu alcance e dele se poderia apropriar sem que esta disso se apercebesse por não o utilizar por longos períodos de tempo.

22. A circunstância exterior, traduzida no facto de a arguida ter tido o cartão ao seu alcance, podendo dele se apropriar sem que a ofendida de tal se pudesse aperceber, constituiu um convite à prática do crime, apelo a que aquela não resistiu, atenta, até, a sua débil situação financeira.

23. Não fora esta circunstância, ou seja, se o referido cartão não estivesse ao alcance da arguida nem esta dele se pudesse apoderar sem que a ofendida de tal se apercebesse, com toda a probabilidade a sucessão de crimes teria sido interrompida.

24. Destarte, outra conclusão se não pode retirar que não a de que estamos na presença da prática de um crime continuado e não ante a prática de distintos crimes.

25. Consequentemente, deverão ser reduzidas substancialmente as medidas quer da pena de multa quer do montante indemnizatório fixados à arguida.

Nestes termos, e nos mais de direito que Vs. Ex.cias doutamente suprirão, deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-se esta por outra que conclua pela prática, por parte da arguida, de um crime continuado, com as devidas consequências quanto às medidas da pena de multa e indemnização fixadas – com o que se fará Justiça.

A assistente B... apresentou resposta ao recurso pugnando pela manutenção na íntegra da decisão recorrida.

O Ministério Público no Juízo de Competência Genérica de São Pedro do Sul respondeu também ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela total improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

            O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer  no sentido de que a sentença padece da nulidade a que alude o art.379.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal e que, no mais, se revê na solução encontrada quanto à qualificação jurídica dos factos.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo respondido a assistente renovado o entendimento de que a douta sentença deve manter-se na integra pois as nulidades previstas no art.379.º do C.P.P. têm de ser arguidas e a nulidade em causa não o foi, pelo que se mostra sanada.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

            A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:

            Factos provados

1 – A ofendida B... nasceu em 15.5.1924, e durante o ano de 2015 residia sozinha em casa sita nesta cidade de (...) .

2 – Não obstante tal vivência a só, a ofendida era/é acompanhada pelos seus familiares mais próximos, nomeadamente os netos, que a visitam.

3 – Por causas naturais relacionadas com a sua idade, a ofendida apresenta alguns sinais de senilidade, que se repercutem em falhas de memória e de conhecimento.

4 – A ofendida é titular da conta bancária com o nº (...) , do (...) , estando associada a tal conta um cartão de débito com o nº (...) .

5 – Atenta a idade da ofendida, e consequentes limitações físicas, a arguida foi contratada para efectuar serviços de índole doméstica na residência da primeira.

6 – Iniciou a prestação de tais serviços em Abril ou Maio de 2015.

7 – No dia 12.10.15 a arguida, que por modo não concretamente apurado tinha na sua posse o cartão de débito mencionado em 4, dirigiu-se a um terminal multibanco e, sem que para o efeito tivesse autorização da ofendida, utilizando aquele cartão, efectuou os seguintes pagamentos:
a) 96,75 euros referentes a duas facturas de consumos de telecomunicações, no âmbito de contrato celebrado com a (...) e do qual a arguida era titular;
b) 80 euros referente a prestação no âmbito de contrato de crédito ao consumo celebrado entre a arguida e a entidade (...) .

8 – Ainda nesse dia, na posse do referido cartão de débito, a arguida dirigiu-se ao centro comercial denominado (...) , sito na cidade de Viseu e, usando o dito cartão, sem autorização da ofendida, efectuou o pagamento das seguintes aquisições:
a) Pelas 20.56 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Fnac.) ’, de uma playstation 4, da marca Sony, e um seguro associado, no valor global de 483,99 euros;
b) Pelas 21.12 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Upstyle’, de duas calças da marca Denim, no valor global de 114,90 euros;
c) Pelas 21.14 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Upstyle’, de um blusão em pele, no valor de 280 euros;
d) Pelas 21.52 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Pereirinha Viriato’, de uma pulseira em prata, duas contas ‘Pandora’ em prata e um clip ‘Pandora’ em prata, no valor global de 142 euros.

9 - No dia 26.10.15 a arguida, que por modo não concretamente apurado tinha na sua posse o cartão de débito mencionado em 4, dirigiu-se ao centro comercial denominado (...) , sito na cidade de Viseu e, usando o dito cartão, sem autorização da ofendida, efectuou o pagamento das seguintes aquisições:
a) Pelas 21.40 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Bluebird’, de uma conta ‘Pandora’ em prata e um relógio da marca ‘Tommy Hilfinger’, no valor global de 248 euros;
b) Pelas 21.46 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Upstyle’, de umas calças da marca Denim, no valor de 99 euros.

10 - No dia 27.10.15 a arguida, que por modo não concretamente apurado tinha na sua posse o cartão de débito mencionado em 4, dirigiu-se a um terminal multibanco e, sem que para o efeito tivesse autorização da ofendida, utilizando aquele cartão, efectuou os seguintes pagamentos:
a) 59,05 euros referente a uma factura de consumos de telecomunicações, no âmbito de contrato celebrado com a (...) e do qual a arguida era titular;
b) 50 euros referente a prestação no âmbito de contrato de crédito ao consumo celebrado entre a arguida e a entidade (...) .

11 - No dia 9.11.15 a arguida, que por modo não concretamente apurado tinha na sua posse o cartão de débito mencionado em 4, dirigiu-se ao centro comercial denominado (...) , sito na cidade de Viseu e, usando o dito cartão, sem autorização da ofendida, efectuou o pagamento das seguintes aquisições:
a) Pelas 22.41 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Bluebird’, de uma conta em ouro, uma pulseira de prata, um pendente de prata e ouro e um relógio da marca ‘Citizen’, no valor global de 425 euros;
b) Pelas 22.49 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Upstyle’, de umas calças da marca Denim, bem como de um camiseiro, no valor global de 149,95 euros;
c) Pelas 22.56 horas a compra, no estabelecimento denominado ‘Upstyle’, de um blusão, no valor de 69,95 euros;

12 – Até à data a arguida não procedeu à devolução ou entrega à ofendida de qualquer das quantias apontadas supra em 7 a 11.

13 – Em todas as circunstâncias acima descritas a arguida agiu de forma livre e consciente, aproveitando-se da circunstância de ser empregada doméstica da ofendida, e por isso do acesso que podia ter aos documentos e elementos pessoais daquela.

14 – Mais agiu com intenção de auferir vantagens económicas a que sabia não ter direito, e que desse modo lesava o património da ofendida, como efectivamente lesou.

15 – Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

16 – A arguida é funcionária administrativa para a Câmara Municipal de (...) .

17 – Aufere a remuneração mensal líquida de cerca de 660 euros.

18 – Vive com um filho com 22 anos de idade, o qual presentemente também exerce funções para a Câmara Municipal de (...) .

19 – O agregado da arguida habita em casa tomada de arrendamento, para o que aquele despende a quantia mensal de 180 euros.

20 – A arguida possui veículo automóvel.

21 – Tem como habilitações o 6º ano de escolaridade.

22 – Não possui antecedentes criminais.

            Mais se apurou, com interesse sobretudo para o deduzido pedido civil, a seguinte factualidade:

23 – Em consequência da conduta da demandada a demandante andou nervosa e perturbada.

            Factos não provados

            Não se provaram quaisquer outros factos relevantes em contradição ou para além dos anteriores, designadamente:
a) que a situação retratada em 3 seja de fácil percepção para um qualquer terceiro.
b) Que a assunção das condutas descritas em 7, 8, 9, 10 e 11 tivesse sido levada a cabo num contexto de aproveitamento da debilidade mental da ofendida, e que a arguida tivesse pedido àquela para que lhe emprestasse dinheiro e bem assim que usasse – a ofendida - o cartão de débito a fim de efectuar pagamentos de serviços ou compras a seu favor (dela, arguida).
c) Que aquando da realização dos pagamentos apontados em 7, 8, 9, 10 e 11 estivessem presentes, conjuntamente, a arguida e a ofendida, e que tenha sido esta última a efectuar esses mesmos pagamentos, incapaz de resistir aos apelos da arguida, sabendo esta que a ofendida se esqueceria de tal situação.
d) Que a arguida se tenha aproveitado de qualquer ingenuidade, ou do estado apontado em 3 para fazer crer à ofendida que esta lhe estava a emprestar dinheiro, e que posteriormente o iria devolver.
e) Que em consequência da conduta da demandada a demandante tivesse pensado que ia ficar sem dinheiro, e que aquela tivesse marcado a sua vida, pois que tem medo de ter de ser internada ou sujeita a uma intervenção mais dispendiosa, e que por causa da conduta da demandada pudesse/possa não ter capacidade para suportar as despesas de saúde que porventura tenha de suportar.
f) Que em consequência da conduta da demandada a demandante tenha receado ou ficado receosa pelo seu futuro.
    Motivação do Tribunal

            Fundou-se a convicção do tribunal, desde logo, nos dados objectivos/documentais constantes dos autos, designadamente o documento de fl. 14 quanto ao número de conta da ofendida, e a cópia do respectivo cartão de débito, constante de fl. 15. De igual modo as facturas (ou respectivas cópias) e talões de multibanco (pagamentos) de fls. 16 (Fnac), 60/61 (Pereirinha Viriato), 82 a 87 (Upstyle) e 198/199 (Bluebird), dos quais se alcança o tipo de bens adquiridos nos correspondentes estabelecimentos, dias e horas das respectivas transacções.

            Ainda, quanto aos pagamentos aludidos em 7 e 10 da factualidade, as informações documentadas prestadas a fls. 50 e 89, ambas necessariamente em conjugação com as questões ou pedidos de esclarecimento que lhes subjaziam, e que se alcançam do expediente de fls. 11 (1º e 2º parágrafo) e despacho de fl. 29 (1º parágrafo).

            Mais foram relevantes as declarações da assistente/ofendida, que referiu nunca ter emprestado dinheiro à arguida, nem nunca lhe ter comprado qualquer bem do tipo daqueles constantes da acusação, mormente peças de roupa, com excepção de umas sandálias. Como outrossim referiu nunca ter pago, ou nunca lhe ter sido solicitado que pagasse, quaisquer facturas de serviços de que a arguida fosse beneficiária.

            Ora, aquelas suas declarações, no essencial, não nos mereceram reserva, que poderiam advir do teor do atestado médico de fl. 206, que refere que a ofendida padece de “alguma senilidade” e que tem alterações de memória e de conhecimento.

            De facto, sendo certo que tais circunstâncias não emergiram, ou não emergiram com particular acuidade, em sede das suas declarações, a própria arguida reconheceu que a ofendida, durante o tempo em que trabalhou para ela, não aparentava qualquer tipo de incapacidade (lato sensu) decorrente da sua muito respeitável idade. Como nenhuma situação desse tipo foi retratada pelas testemunhas C... e D... , netos da ofendida. Aliás, muito relevantemente a testemunha E... , bancário de profissão, e gestor da conta da titularidade da ofendida, como esclareceu, referiu que era com esta que tratava e lidava dos assuntos relacionados com tal conta, mormente quanto à gestão das aplicações financeiras, e não com qualquer dos demais titulares, familiares da ofendida.

            Por isso, de outra perspectiva, a ostracização para a factualidade não provada, da matéria atinente ou referente a uma alegada incapacidade volitiva e cognitiva da ofendida – respectivas alíneas a) a d).

            Tais declarações da ofendida foram ainda conjugadas com o teor dos documentos de fls. 16, 60/61, 82 a 87 e 198/199, bem como com as regras da normalidade e experiência comum, no contexto ou confronto com as declarações da arguida.

            Assim, no que tange aos pagamentos apontados em 7 e 10, a arguida alegou um completo desconhecimento das circunstâncias atinentes àqueles. Designadamente não apontou ter pedido à ofendida para que esta procedesse ao pagamento das facturas/débitos em causa. Ora, sendo tais facturas referentes a serviços de que a arguida é titular ( ... ), ou à amortização de créditos de que era beneficiária ( ... ), outra conclusão não resulta extraível, com razoabilidade, senão a de a arguida ter usado o cartão de débito da ofendida para efeitos de tais pagamentos. Não lhe tendo solicitado o pagamento das mesmas, a ofendida não iria ‘adivinhar’ a sua existência, e certamente que nenhum familiar daquela, munido do cartão de débito, iria proceder, de moto próprio, a tais pagamentos…

            Já quanto aos pagamentos discriminados nos pontos 8, 9 e 11, referiu a arguida que alguns desses bens foram-lhe oferecidos pela ofendida (incluindo a PS 4), e outros teriam sido adquiridos para presentear os seus próprios familiares (da ofendida).

            Ora, para além de as testemunhas C... e D... terem negado o recebimento, ou o conhecimento do recebimento, de prendas como aquelas adquiridas nos estabelecimentos referidos em 8, 9 e 11, o filme temporal das mencionadas aquisições é manifestamente inverosímil com a dinâmica retratada para o efeito pela arguida (que esta, sempre acompanhada da ofendida, efectuara tais compras). Atente-se, para o efeito, na curta ou muito curta diferença entre as diversas aquisições, de que se pode dar como exemplo o dia 26.10.15, no qual às 21.40 horas ocorre um pagamento na loja ‘Bluebird’, e volvidos 6 minutos ocorre um outro na loja ‘Upstyle’. Não é, salvo o devido respeito, minimamente crível que tais compras tenham sido feitas no contexto em que uma das pessoas alegadamente presente tinha cerca de 91 anos, com a inerente menor facilidade de locomoção, com a necessidade de deslocação de uma para outra loja e, como é natural, a observação dos produtos, confronto dos mesmos, auscultação de opiniões e pagamento.

            De resto, como a ofendida apontou, e a testemunha C... confirmou ou corroborou, o tipo de aquisições efectuada nos estabelecimentos em causa encontra-se longe do tipo de consumos ou gostos da ofendida, confortando desse modo a conclusão, que se extraiu, quanto a ter sido a arguida que, para si, adquiriu os bens em causa.

            Certo é que não se apurou de que modo pôde a arguida efectuar tais pagamentos, mormente como obteve acesso ao cartão de débito da ofendida, usado em todas aquelas operações. De todo o modo, enquanto empregada doméstica da ofendida, e à data dos factos já há cerca 5/6 meses, poderia ter acesso ao mesmo, sendo aliás plausível que a ofendida não desse sequer conta de que aquele lhe teria sido temporariamente retirado, pois que, como apontou a testemunha C... sua neta, a ofendida por norma levantava dinheiro de meio em meio ano, de cada vez em quantia elevada e, com esta, geria o seu dia-a-dia, efectuando pagamentos em dinheiro, ou disponibilizando a terceiros dinheiro para tais pagamentos.

            Mais conforta a convicção assim firmada e, de idêntica sorte, fundou essa mesma convicção, o depoimento da testemunha E... , o qual referiu ter sido chamado a uma espécie de reunião em casa da ofendida, na qual estavam presentes os netos da mesma e a arguida, tendo esta sido confrontada com as suspeitas de que indevidamente teria levantado dinheiro e efectuado compras, em seu benefício, sem autorização da ofendida. Apontou aquele E... que a arguida negou todos os factos que lhe eram imputados, esclarecendo que não referiu que alguns dos bens adquiridos lhe tivessem sido doados pela ofendida, alegação ou defesa essa que não deixaria de apresentar se, de facto, correspondesse à verdade, tanto mais que não se tratou de um ou outro bem isolado, de pouco valor mas, como a arguida referiu, ter-lhe-ia sido doado a playstation, as calças, a pulseira e as contas de prata adquiridas no dia 12.10, bem como o relógio adquirido a 26.10. E, acrescente-se, tais aquisições e alegadas doações não poderiam deixar de estar na sua memória, seja pelos valores envolvidos, seja pela natureza recente de tais compras (a dita reunião ocorreu a 13.11.15, último dia de trabalho na casa da ofendida, como a arguida esclareceu).

            Ainda o documento de fl. 202 (dados da ofendida constantes da base dos serviços de identificação civil), bem como o CRC de fl. 338.

            No que especificamente tange à factualidade atinente ao pedido civil, foram outrossim relevantes as regras da normalidade e experiência comum, posto que notoriamente o conhecimento de factos como os apurados não deixaria de produzir nos respectivos ofendidos a experimentação de sentimentos como aqueles apontados em 23 da factualidade, ou de todo o modo outros análogos ou compagináveis. Não se apuraram, todavia, as consequências ou efeitos ostracizados para as alíneas e) e f) da matéria não provada, já que, por si, as regras da experiência não permitem sustentá-los, e nenhuma prova foi produzida quanto a tais factos.

            Para a situação socio-familiar da arguida foram relevantes as suas próprias declarações.


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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

Tendo em consideração as conclusões da motivação do recurso interposto pela arguida A... a questão a decidir é a seguinte:

- se a arguida praticou apenas um crime burla informática, sob a forma continuada, pelo que, consequentemente, devem ser reduzidas, a pena de multa e a indemnização fixadas.

Embora seja esta a questão a decidir objeto de recurso, antes de a conhecer deparasse-nos uma questão prévia suscitada pelo Ex.mo Procurador Geral-adjunto no seu parecer, que é a da nulidade da sentença e que a proceder impedirá o conhecimento do recurso, ficando o mesmo prejudicado.


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            Questão prévia

O Ex.mo Procurador-geral adjunto neste Tribunal da Relação entende que a douta sentença recorrida padece da nulidade a que alude o art.379.º, n.º1, al. b) do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, o seguinte:

- A arguida A... vinha acusada pelo Ministério Público da prática de um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. c) e 30.º, n.º 2, todos do Código Penal;

- No decurso da audiência de julgamento, de 14-07-2017, a folhas 355, foi proferido despacho no sentido de que da prova produzida surgia a possibilidade dos factos integrarem um crime de burla informática e nas comunicações, previsto no art.221.º, n.º 1 do Código Penal, tendo sido ordenado o cumprimento do disposto no art.358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, por alteração da qualificação jurídica feita na acusação do Ministério Público;

- Nada tendo sido requerido pela arguida, foi proferida sentença e, sem que nada tivesse sido comunicado à arguida com vista ao exercício do contraditório e de defesa, foi a mesma condenada, em concurso de infrações, pela prática de quatro crimes de burla informática, cada um, p. e p. pelo art.221.º, n.º 1 do Código Penal;

- A arguida pretende, com o presente recurso, a aplicação do instituto do crime continuado tal como o Ministério Público  o equacionara na acusação, impugnando a sua condenação em concurso real;

- A condenação, por quatro crimes, constitui uma alteração da qualificação jurídica;

- Não tendo Tribunal a quo dado cumprimento ao disposto no art.358.º do C.P.P., no apontado despacho, dando a conhecer à arguida ainda que a factualidade poderia ser subsumida à prática de vários crimes em concurso real, para exercer o contraditório, a sentença padece da  nulidade prevista no art.379.º, n.º1, al. b), do mesmo Código.    

Apreciando.

O processo penal tem estrutura acusatória (art.32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) e é pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum).

Assim, a acusação deve conter, designadamente, a narração dos factos imputados ao arguido e as disposições legais aplicáveis aos mesmos factos (artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 285.º, n.º3, do Código de Processo Penal).

De acordo com o princípio da identidade do objeto do processo, este um corolário do princípio da acusação, o objeto da acusação deve manter-se idêntico, o mesmo, desde aquela até à sentença final.[4]

Pese embora este princípio, por razões de economia processual e no próprio interesse do arguido, a lei permite expressamente ao Juiz que este possa comunicar aos sujeitos processuais, mesmo no decurso da audiência de julgamento, quer uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, quer uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

É através do instituto denominado da alteração dos factos, instituto previsto nos artigos 358.º e 359.º, do Código de Processo Penal, que se estabelece e regula a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, bem como a alteração da sua qualificação jurídica.

Nos termos do art.358.º, n.º1, do Código de Processo Penal, «Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.». Acrescenta-se, no seu n.º 2: « Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.».

Na sequência de uma controvérsia surgida na versão originária do C.P.P. e que o Tribunal Constitucional resolveu por acórdão com força obrigatória geral, de 25 de Junho de 1997,[5] foi introduzido um n.º3 ao art.358.º do C.P.P., pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, com a seguinte redação:

«O disposto no n.º1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.».

Qualificar juridicamente os factos é subsumi-los ao direito constituído, ou seja, aplicar a lei aos factos, verificar se os mesmos possuem ou não relevância jurídica e em que termos devem ser integrados no respetivo ordenamento.

A alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação a efetuar na sentença é, portanto, processualmente equiparada a uma alteração não substancial dos factos.

O art.359.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, estabelece, por sua vez, como regra, que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, na audiência de julgamento, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância, valendo apenas como denúncia ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo. Como exceção à regra, o n.º4 deste preceito, estatui que o julgamento pode continuar pelos novos factos se para tal houver acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente e os novos factos não determinarem a incompetência do tribunal. 

O art.1.º, alínea f), do C.P.P. considera alteração substancial dos factos « aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis

A alteração substancial dos factos é, pois, uma alteração do pedaço da vida que consta da acusação ou da pronúncia, de que resulta a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Já a alteração não substancial dos factos, representando embora uma modificação dos “factos” que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Da alteração substancial ou não dos factos, distingue-se a alteração da qualificação jurídica dos factos, a que alude o art.358.º, n.º3 do Código de Processo Penal.

Uma alteração da qualificação jurídica dos factos, sem que haja qualquer modificação dos factos da acusação ou da pronúncia, não está submetida ao regime do art.359.º do Código de Processo Penal, mas sim ao do art.358.º, n.º3 do mesmo Código.  

Quer na situação de não alteração substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efetiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.

Ou seja, também relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos, o due process law ou processo justo e equitativo, impõe o cumprimento o princípio do contraditório quando implique encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido. Porém, como se anota no acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07P2596 , “ É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a comunicação ao arguido a que alude o art.358.º, n.º3, do CPP não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar ( v.g., convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o tipo simples.”[6].  

Por fim, importa aqui consignar que o art.379.º, n.º1, do Código de Processo Penal, estatui designadamente que, é nula a sentença:

   « b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.»

No caso em apreciação, existe identidade entre os factos que constavam da acusação do Ministério Público e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida.

Mas não existe identidade entre a qualificação jurídica dos factos que constam da acusação - um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, al. c) e 30.º, n.º 2, do Código Penal - e a condenação da arguida, mesmo após a comunicação da alteração da qualificação jurídica feita no decurso da audiência de julgamento, nos termos art.358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal.

Efetivamente, tendo sido comunicado à arguida, em audiência de julgamento, uma alteração não substancial, da qualificação jurídica dos factos da acusação, para um eventual crime de burla informática e nas comunicações, previsto no art.221.º, n.º 1 do Código Penal, a arguida foi condenada, pela prática, não de um crime, mas de quatro crimes de burla informática, p. e p. pelo art.221.º, n.º 1 do Código Penal.

Estando a arguida A... acusada pelo Ministério Público, da prática de um crime, sob a forma continuada, de burla qualificada , sendo-lhe comunicada em audiência de julgamento, nos termos do art.358.º, n.º 1 e 3 do C.P.P., a possibilidade de ter cometido um crime de burla informática, não é configurável, num Estado de direito, e num processo penal equitativo e justo, ser a arguida A... condenada, pela prática de quatro crimes, em quatro penas, sem que disso seja prevenida em julgamento, para exercer o contraditório.

O Tribunal a quo, no despacho proferido em audiência de julgamento, deveria ter comunicado  à arguida, nos termos do art.358.º, n.º1 e 3 do Código de Processo Penal, a possibilidade de os factos apurados poderem integrar, em concurso real, quatro crimes de burla informática, p. e p. pelo art.221.º, n.º 1 do Código Penal, e não apenas um crime, para poder condenar a mesma por quatro crimes.

Não o tendo feito e tendo condenado a arguida A... como autora material e em concurso real, de 4 crimes de burla informática, cada um, p. e p. pelo art.221.º, n.º 1 do Código Penal, sem proceder à comunicação prevista no art.358.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P., a douta sentença recorrida é nula, nos termos do art.379.º, n.º1, alínea b), do mesmo Código.

Impõe-se agora decidir se esta nulidade é de conhecimento oficioso ou não.

No entender da assistente B... , não estando as nulidades de sentença do art.379.º do Código de Processo Penal enumeradas no art.119.º, do mesmo Código, como nulidades insanáveis, são as mesmas sanáveis. Assim, e não tendo a nulidade da sentença apontada pelo Ex.mo Procurador Geral-adjunto sido arguida, em sede de recurso, a nulidade mostra-se sanada.

Vejamos.

O art.379.º do Código de Processo Penal, na redação original, estatuía:

« É nula a sentença:

       a) Que não contiver as menções referidas no artigo 374.º, n.ºs 2 e 3, alínea b); ou

       b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver fora dos casos e das condições previstas nos artigos. 358.º e 359.º.».

Na vigência desta redação, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ, de 6 de maio de 1992, fixou jurisprudência no sentido de que « Não é insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal de 1987, consistente na falta de indicação na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119.º daquele diploma legal.».[7]

Com a Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, o art.379.º do Código de Processo Penal foi alterado passando a incluir um n.º1, a que se aditou a alínea c), e um novo n.º 2, com a seguinte redação:

« As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.».

Passando este n.º2 a regular o regime do conhecimento e arguição das nulidades da sentença,  a jurisprudência largamente maioritária, designadamente do STJ, passou a decidir que as nulidades da sentença previstas no n.º1 do art.379.º do C.P.P. são de conhecimento oficioso.

Não desconhecendo que posição contrária é defendida, designadamente, pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-06-2015 - citado pela assistente - e pelos Prof.s Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, Verbo ed.2000, pág. 304) e Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE ed. 2007, pág. 947), continuamos a seguir a posição maioritária da jurisprudência quanto ao conhecimento e arguição das nulidades da sentença.

As razões do conhecimento oficioso das nulidades da sentença são as sucintamente explanadas pelo Conselheiro Oliveira Mendes, em obra coletiva de Conselheiros do STJ, que aqui se reproduzem, com a devida vénia:

   «Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do n.º 2, estabelece que « as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso» , o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: « as nulidades da sentença devem ser … conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2010, proferido no Processo n.º 70/07.0JBLSB1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119.º. do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379.º, n.º1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes atos processuais.    

Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior.»[8] .

No mesmo sentido, entre outros, decidiram os acórdãos do STJ, de 25 de novembro de 1999 (BMJ n.º 491, pág.200), de 14 de maio de 2003 (proc. n.º 518/03 - 3.ª Secção), de 23 de maio de 2007 (proc. n.º 1405/07 -3.ª), de 15-10-2008 (Proc. n.º 2864/08 -3.ª Secção), e de 27-10-2010 (proc. n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1), estes últimos consultáveis em www.dgsi/stj.pt.

Decidido que a douta sentença recorrida é nula nos termos do art.379.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal e que esta nulidade é de conhecimento oficioso, impõe-se declarar a nulidade da sentença e devolver o processo à 1.ª instância, a fim do mesmo Tribunal suprir a nulidade, procedendo previamente à reabertura da audiência e comunicação à arguida da alteração da alteração da qualificação jurídica em causa, para possibilitar o contraditório, nos termos do art.358.º, n.º1 e 3, do mesmo Código.

Procedendo a questão prévia, como procede, fica prejudicada a questão objeto de recurso.

     Decisão

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente a questão prévia suscitada pelo Ex.mo  Procurador Geral-adjunto e, declarando a nulidade da sentença, nos termos do art.379.º, n.º1, alínea b), do C.P.P., determina-se a devolução do processo à 1.ª instância e a reabertura da audiência de julgamento a fim de ser dado cumprimento, nos termos que se deixaram atrás expressos, ao disposto no art.358.º, n.º3, do Código de Processo Penal, com a subsequente prolação de nova sentença.

Fica prejudicado o conhecimento da questão objeto do recurso interposto pela arguida A... .

             Sem custas.


*

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).                                                 

*

                                                                       Coimbra, 07 de fevereiro de 2018

                                                                       Orlando Gonçalves – relator

                                                                       Inácio Monteiro - adjunto


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.

[4]  cfr. Cons. António Quirino Duarte Soares, “ Convolações”, in C.J. acórdãos do STJ, ano II, pág. 14.
[5] DR , I-A série, de 5 de Agosto.
[6] www.dgsi.pt/jstj, relatado pelo Cons. Pires da Graça.

[7] In DR-I Série-A, de 6.8.1992, com dois votos de vencido.
[8]Código de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar, José Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Ed. Almedina, 2014, pág.1183).