Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
232/20.5T9SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
COMPARTICIPANTES
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (SERTÃ – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 115.º DO CP
Sumário: I – O efeito jurídico do não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes – extinção do procedimento quanto aos restantes – apenas ocorre quando o respectivo titular os conseguiu identificar.

II – Se no decurso do julgamento foi referida a presença em determinando local de «duas miúdas» que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, também atiraram pedras, sem que decorra o conhecimento, por parte do assistente, de quem efectivamente se tratava – tão pouco fornecendo a investigação qualquer indicio nesse sentido – não é de configurar a situação prevista no n.º 3 do artigo 115.º do CP, afastada que resulta, no contexto, a razão de ser da norma em referência, ou seja, a escolha dos comparticipantes contra os quais haverá de ter lugar o processo penal.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum n.º 232/20.... do Tribunal Judicial da Comarca ..., ... – Juízo C. Genérica, mediante acusação pública e particular – esta deduzida pelo assistente AA - foram os arguidos BB e CC submetidos a julgamento, sendo-lhes então imputada a prática, em coautoria, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de dano, p. e p. respetivamente pelos artigos 143.º, n.º 1 e 212.º, n.º 1, ambos do Código Penal [acusação pública]; de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal [acusação particular].

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 21.04.2022, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:

a) Condenar a arguida BB pela prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa;

b) Condenar também a arguida, pela prática, em coautoria, de um crime de injúria, p. p. pelo artigo pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa;

c) Condenar também a arguida, pela prática, em coautoria, de um crime de dano, p.p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa;

d) Em cúmulo jurídico, condenar a arguida na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, num total de 720,00€ (setecentos e vinte euros);

e) Condenar o arguido CC, pela prática, em coautoria, de um crime de ofensa à integridade simples, p. p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 90 dias de multa;

f) Condenar também o arguido pela prática, em coautoria, de um crime de injúria, p.p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa;

g) Condenar também o arguido pela prática, em coautoria, de um crime de dano, p.p. pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa;

h) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, num total de 720,00€ (setecentos e vinte euros);

i) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, por provado, condenando os arguidos no pagamento solidário ao assistente de 1000,00€ (mil euros), acrescido de juros de mora vencidos desde a notificação do pedido de indemnização civil até à presente decisão e vincendos até efetivo e integral pagamento, absolvendo os arguidos do demais peticionado.

[…]”.

3. Inconformados com a decisão recorreram os arguidos, formulando as seguintes conclusões:

Arguida BB:

(…).

Arguido CC:

(…).

D) Em favor dos arguidos deveria ser valorado o facto de não existir identidade subjetiva entre a queixa/acusação e a prova produzida no julgamento, tendo sido em concreto inicialmente identificados somente os arguidos na queixa/acusação, para no julgamento se verificar que na altura dos factos se encontravam supostamente mais duas jovens que também interagiram e atiraram pedras, tendo sido violado, de forma ostensiva o princípio da indivisibilidade da queixa, constante no artigo 115º n.º 2 do C. Penal, de acordo com o alegado nos artigos 10º, 11º e 12º do presente recurso, os quais se dão por integralmente reproduzidos.

(…).

Termos em que e nos demais de Direito deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogada a sentença recorrida, tudo com as legais consequências, designadamente com a absolvição do arguido pela prática dos crimes de que vem acusado bem como do pedido cível oportunamente deduzido.

Fazendo-se a costumada Justiça Material, o que respeitosamente se requer a este Venerando Tribunal.

4. Os recursos foram admitidos.

5. Em resposta ao recurso interposto por BB, o assistente concluiu:

(…).

6. Respondendo ao recurso interposto por CC, o assistente concluiu:

(…).

7. O Ministério Público reagiu ao recurso interposto por BB, concluindo:

(…).

8. Respondendo ao recurso interposto por CC, o Ministério Público concluiu:

(…).

20. Invoca, ainda, o arguido e recorrente que teria o Tribunal a quo violado o princípio da indivisibilidade da queixa.

21. No caso presente, salvo o devido respeito, não assiste razão ao arguido e recorrente, porquanto tal princípio não se confunde com a ausência de identificação em concreto de coautores dos factos objeto dos autos, o que sucede no caso sub judice.

22. Com efeito, os assistentes reconheceram os arguidos e apresentaram queixa em conformidade, não tendo todavia conhecimento de quem seriam as pessoas que os acompanhavam, nem tampouco as testemunhas indicadas pelos mesmos tinham tal conhecimento.

23. Tal não obvia a que, havendo agentes do crime cuja identidade não se logra apurar, se não possa prosseguir criminalmente contra aqueles cuja concreta identificação é lograda.

(…)

9. O Senhor Procurador-Geral Adjunto proferiu parecer, pronunciando-se no sentido de os recursos não merecerem provimento.

10. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, os recorrentes pugnaram pela procedência do (s) recurso (s).

11. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foi o processo à conferência, cabendo decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto dos recursos

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, no caso em apreço importa decidir

Recurso de BB se (i) incorreu o tribunal em erro de julgamento; (ii) foi violado o in dubio pro reo.

Recurso de CC se (i) foi violado o princípio da indivisibilidade da queixa; (ii) incorreu o tribunal em erro de julgamento; (iii) enferma a sentença dos vícios do artigo 410.º do CPP (iv) foi violado o in dubio pro reo; (v) não se mostra perfetibilizado o elemento objetivo do crime de dano.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença em crise [transcrição parcial]:

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Resultaram provados, com interesse para a causa (e excluídos factos irrelevantes, meras conclusões e alegações de teor jurídico), os seguintes factos:

1) No dia 06 de Dezembro de 2020, cerca das 15h00, na Rua ..., na localidade de ..., ..., o assistente ouviu barulho proveniente do exterior da sua residência.

2) Aproximando-se, o assistente deparou-se com os arguidos, junto a um caminho perto do exterior da sua residência.

3) Os arguidos encontravam-se em tais circunstâncias a atirar pedras de diversos tamanhos e em número não concretamente apurado, que tinham sido colocadas pelo assistente naquele caminho para tapar buracos que ali existiam, na direção de umas chapas metálicas que estavam depositadas na propriedade do assistente e que eram de sua pertença, atingindo-as, e estragando as mesmas, que ficaram picadas.

4) Quando o assistente se aproximou, a arguida BB, dirigindo-se a este, pronunciou as expressões “oh meu cabrão, és um grande corno, um grande filho da puta, um cobarde de merda, se tens colhões chega-te mais para aqui que eu faço-te a folha”, expressões estas e similares que repetiu por diversas vezes, por forma a serem ouvidas por quem ali se encontrasse.

5) Por sua vez, o arguido CC, dirigindo-se ao assistente, pronunciou as expressões “és um grande filho da puta, a tua mãe era uma puta, andava por aí, era de todos os que a procuravam”, expressões estas e similares que repetiu por diversas vezes, por forma a serem ouvidas por quem ali se encontrasse.

6) Ato contínuo, os arguidos continuaram a atirar pedras, agora na direção do assistente, que o atingiram no seu corpo designadamente na zona da barriga e dos membros inferiores.

7) Com a conduta descrita em 6) os arguidos provocaram direta e necessariamente ao assistente subjetivos dolorosos.

8) Os arguidos previram, como efetivamente veio a suceder, molestar fisicamente o assistente, o que quiseram e conseguiram, em conjugação de esforços e intenções.

9) Os arguidos sabiam, ainda, que ao atuar da maneira descrita em 3), a sua conduta era idónea a danificar as chapas metálicas, como quiseram e conseguiram, e que sabiam não lhes pertencer e que atuavam contra a vontade e sem autorização do assistente.

10) Os arguidos proferiram as expressões referidas em 4) e 5) em voz alta, por forma a serem ouvidas por várias pessoas, como o foram, e com o propósito de ofender e atingir a honra e consideração devidas ao assistente.

11) Os arguidos sabiam que as expressões referidas em 4) e 5) eram idóneas a atingir o bom nome e consideração do assistente, querendo e desejando tal propósito que vieram a concretizar.

12) Em todas as descritas circunstâncias os arguidos agiram de forma livre, voluntária, deliberada e conscientemente, em conjugação de esforços e intenções, bem sabendo que aquelas condutas eram e são proibidas e punidas por lei penal.

13) Devido à atuação dos arguidos referida em 4), 5), 10) e 11), o assistente sentiu-se vexado e ofendido na sua honra e dignidade, com isso lhe causando desgosto, vergonha, mal-estar e perturbação.

14) Devido à atuação dos arguidos referida em 3) e 9), as chapas metálicas ficaram inutilizadas.

15) Com a atuação descrita em 6), 7), e 8), os arguidos provocaram ao assistente lesões na barriga e membros inferiores, que causaram dores e desconforto, especialmente nos primeiros três dias após os factos, assim como transtornos, incómodos, preocupação, alterações emocionais e ansiedade.

Mais se provou que

(…).


*

2. FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem, com interesse para a causa, quaisquer factos não provados.


*

3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

(…).

3. Apreciação
            Revelando as conclusões que parte das questões colocadas são comuns a ambos os recursos, por uma questão de economia processual, com vista a evitar repetições inúteis, serão as mesmas apreciadas em conjunto. As demais, privativas de cada um dos recursos, será analisada de per se, com primazia para aquelas que podem comprometer, no todo ou em parte, as que se sucedem.
           
            §1. Da violação do princípio da indivisibilidade da queixa [Recurso de CC]
            Vem a violação do artigo 115.º, n.º 3 [vindo, certamente por lapso, indicado o n.º 2] do Código Penal sustentada na circunstância de a queixa ter sido apresentada apenas contra ambos os arguidos, quando em sede de audiência de discussão e julgamento teria ficado “demonstrado” que na ocasião, para além, destes também se encontravam no local a arremessar pedras “duas jovens”.
Vejamos.
            Sob a epígrafe “Extinção do direito de queixa”, dispõe o artigo 115.º do Código Penal:
1 – O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.
2 – O direito de queixa revisto no n.º 6 do artigo 113.º extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos.
3 – O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.
(…)”.
            Reproduzindo as palavras de Figueiredo Dias [in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, AEQUITAS, 1993, pág. 674] o legislador considerou «inadmissível que fique no arbítrio do queixoso a escolha dos comparticipantes contra os quais haverá de ter lugar o processo penal: em caso de pluralidade de factos, ele pode escolher aqueles que quer ver processados; em caso de pluralidade de agentes, porém, vale o princípio contido no art. 113.º, segundo o qual «a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes». Se é certo que «a lei ter-se-á deixado conduzir pela consideração de que uma tal escolha dos agentes abriria a porta à intervenção, possível ou mesmo provável, de considerações absolutamente estranhas às razões político-criminais que dão fundamento ao instituto», também se nos afigura inequívoco que o efeito do não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes – extinção do procedimento - apenas ocorre quando o respetivo titular os conseguiu identificar, assim se justificando o termo inicial prevenido no n.º 1, do artigo 115.º do Código Penal, para o exercício do direito de queixa, reportado ao conhecimento do facto, mas também dos seus agentes.
            Ora, se dúvida não resta acerca da natureza semi-pública [ofensa à integridade física e dano, p. e p. respetivamente nos artigos 143.º, n.º 1 e 212.º, n.º 1 do Código Penal] e particular [injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do Código Penal] dos crimes pelos quais foi apresentada queixa e deduzida acusação, em ambos os casos contra os arguidos, ora recorrentes, também é facto que em momento algum do inquérito decorre a comparticipação de outros, que não destes, nos factos.
            E se é verdade que no decurso do julgamento foi referida a presença no local de «duas miúdas» que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, atiraram pedras, sem que decorra o conhecimento, por parte do assistente, de quem efetivamente se tratava – tão pouco fornecendo a investigação qualquer índico nesse sentido – não é de configurar a situação prevista no n.º 3, do artigo 115.º do Código Penal, afastada que resulta, no contexto, a razão de ser da norma em referência, isto é a escolha dos comparticipantes contra os quais haverá de ter lugar o processo penal.
            Soçobra, pois, nesta parte o recurso.
           
            §2. Da impugnação da matéria de facto [Recursos de BB e de CC]
(…)

            §3. Da violação do in dubio pro reo [Recursos de BB e CC]
(…).

*
            §4. Da subsunção dos factos ao crime de dano [Recurso de CC]
(…).

            III. Dispositivo
            Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedentes os recursos.
            Custas, com taxa de justiça [individual] que se fixa em [quatro] 4 UCs, a cargo dos recorrentes – [cf. artigos 513.º e 514.º do CPP; artigo 8.º do RCP, com referência à tabela III].
           

Coimbra, 11 de Janeiro de 2023
[Texto processado e revisto pela relatora]

Maria José Nogueira (relatora)

Isabel Valongo (adjunta)

Paulo Guerra (adjunto)