Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
281/09.4TBMLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.212 CRP, 1º ETAF ( LEI Nº 13/2002 DE 19/2 )
Sumário: 1. - Para a repartição de competências entre os Tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais é determinante o conceito de “relação jurídica administrativa”.

2. Na relação jurídica administrativa, um dos sujeitos há-de ser uma entidade pública ou sendo privada, deve actuar legalmente como se fosse pública, e os direitos e deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo.

3. Se após uma operação de loteamento surge um litígio acerca dos limites entre o prédio primitivo, que foi amputado da área relativa ao loteamento, protagonizado entre os novos donos do prédio sobrante e o município, que afirma ter sido cedida para o domínio público certa parcela desse prédio primitivo, os tribunais judiciais são materialmente competentes para conhecerem da causa quando o direito invocado pelos autores não só não se funda no loteamento, já que lhe era preexistente, como não tem como causa de pedir factos geradores de relações jurídicas administrativas.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente….Município da ....

Recorrido   A (…), e sua esposa C (…)

  A (…) e sua esposa M (…)

  P (…) .. e sua esposa M (…)

  H (…).., e esposa M (…)


*

I. Relatório:

a) Os Autores instauraram no tribunal Judicial da Comarca da Mealhada uma acção declarativa de condenação na qual pedem, no confronto com o Município da ...:

Que se declare (1) que eles Autores são comproprietários do prédio rústico sito na ..., freguesia de ..., composto de terra de semeadura, com a área de 10002 m2, a confrontar do Norte com Vala, do Sul com a parcela destacada para loteamento urbano, do nascente com o Município da ... e do Poente com Vala, descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .../19931119; (2) que a parcela com a área de 781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento, denominada na planta de síntese como «domínio hídrico – zona non aedificandi», faz parte deste prédio e, em consequência (3), que o Réu seja condenado a reconhecer estes direitos e a abster-se da prática de quaisquer actos ofensivos dos mesmos, designadamente de, por intermédio dos seus órgãos, agentes ou alguém a seu mando, entrar, demolir ou remover terreno e reabrir qualquer vala.

Como fundamento para estes pedidos invocam actos de posse e sustentam que são comproprietários do aludido prédio, onde se compreende fisicamente a parcela de 781 m2, prédio que é composto fisicamente pela parte que sobrou do primitivo prédio inscrito na matriz sob o artigo ...do freguesia da ..., com a área de 74 320 m2, e descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .../19931119, o qual foi objecto de um loteamento.

Alegam que o Município sustenta que a parcela de 781 m2 integra área destinada a espaços verdes e de utilização colectiva e pretende que os autores reponham terrenos que aí foram mobilizados e que reponham uma vala que aí existia e que o loteador do restante terreno mudou de curso, sob pena de ser o Município a proceder a tais obras a expensas dos Autores. 

O Município contestou e sustenta, a abrir a contestação, a incompetência absoluta do tribunal da comarca da Mealhada para conhecer dos pedidos.

Baseia a excepção, em síntese, nos seguintes argumentos:

A parcela com a área de 781 m2 pertence ao Município da ... devido ao facto de lhe ter sido cedida para integrar o domínio público no âmbito da operação de loteamento n.º 2/2000, que teve como objecto o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .../19931119 e, daí, que o Município réu tenha interpelado os autores para colocarem o terreno da parcela no estado em que se encontrava antes dos autores o terem alterado.

Este diferendo coloca frente a frente a pretensão dos Autores baseada em normas de direito privado que cobrem a sua pretensão de proprietários e a defesa e reconvenção do Réu que se estriba em normas de direito público para fundamentar a dominialidade pública sobre a mesma parcela física de terreno.

Ora, a resolução deste tipo de diferendos está reservada aos tribunais administrativos, nos termos do artigo 1.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, al. h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa.

Sendo assim, o Tribunal Judicial da Mealhada não tem competência material para decidir o pleito, o que implica a absolvição do Réu da instância, nos termos dos artigos 101.º e 288.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil.

b) Esta excepção foi julgada improcedente com base no argumento de que a causa de pedir e o pedido dos Autores se baseia nas normas do Código Civil relativas ao direito de propriedade, pelo que, o pedido da acção respeita a uma relação de natureza jurídico privada.

Por conseguinte, embora o Município da ... argumente tratar-se de domínio público, e a parte contrária seja uma entidade de direito público, o pedido dos Autores respeita a direitos privados, pelo que, tratando-se de conhecer na acção de uma relação jurídico-privada, o tribunal comum tem competência para a causa.

c) O Município discordou e recorreu desta decisão, formulando as seguintes conclusões:

« (…) B) Contrariamente ao que refere o despacho recorrido, a causa de pedir da presente acção, tal como surge desenhada pelos AA. na petição inicial não é uma relação jurídica material meramente de natureza jurídico-privada em que se traduziria a reivindicação de um prédio e de uma faixa de terreno nele incluída, de uma mera demanda contra outrem por violação, em qualquer das formas em que possa apresentar-se, da propriedade privada afirmada em facto idóneos para aquisição desse direito. Ao invés,

C) Os AA. alegaram na petição inicial que:

- o prédio que os AA. adquiriram corresponde à parcela sobrante do primitivo prédio rústico descrito na CRP da ... sob o n.º 0 .../191193 da freguesia da ... e inscrito na respectiva matriz sob o art. ...que foi objecto da operação de loteamento, com divisão em lotes e obras de urbanização, titulada pelo alvará de licença de loteamento n.º 2/2000 da Câmara Municipal da ... - cfr. art, 7.º da p.i.;

- consta do Alvará de Loteamento e obras de Urbanização que a Câmara Municipal de ... autorizou e licenciou a constituição de «92 e dois lotes para construção urbana», definindo que «o número total de fogos a edificar é de 178», que «as construções a edificar nos lotes serão implantadas respeitando os polígonos - base definidos na planta síntese», que «o loteador cederá gratuitamente à Câmara Municipal, para integração no domínio público» as ali especificadas áreas «para arruamentos, passeios e estacionamento», bem como «para equipamentos de utilização colectiva» e ainda «para espaços verdes e de utilização colectiva»- cfr., art. 13.º da p.i.;

- a faixa denominada «domínio hídrico - zona non aedificandi», com a área de 781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento, faz parte integrante do prédio acima invocado de que os Autores são comproprietários - art, 14.º da p.i.;

- pois no citado Alvará n.º 2/2000 não vem especificada a cedência da referida parcela denominada «domínio hídrico - zona non aedificandi», com a área de 781m2, contígua ao muro de suporte do loteamento, e que integra a «parcela sobrante» do loteamento e das obras de urbanização – art. 17.º da p.i.;

- nem se específica que a mesma integra a área destinada a espaços verdes e de utilidade colectiva, situando-se estas parcelas na zona urbanizada - art. 18.º da p.i.;

- a Câmara Municipal de ..., sem qualquer título que a legitime, alega que a denominada parcela «domínio hídrico - zona non aedificandi», com a área de 781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento, pertence ao domínio público municipal, que integra área destinada a espaços verdes e de utilização colectiva e que não podia ter sido objecto de negócio jurídico - art. 20.º da p.i.;

- e, por isso, em clara violação do seus direitos de propriedade, pretende obrigar os Autores à reposição dos terrenos mobilizados, nas condições em que se encontravam antes da sua exploração agrícola e a repor a vala que o loteador mudara de curso, antes da venda do prédio, tendo já deliberado nesse sentido - art. 21.º da p.i.;

- e a mesma Câmara Municipal propõe-se realizar ela própria a intervenção, se os Autores não o fizerem, a expensas destes - art. 22.º da p.i.; E,

D) Os AA. concluíram no petitório da petição inicial formulando os seguintes pedidos:

a) Declarar-se, para todos os devidos e legais efeitos, os autores legítimos comproprietários, na alegadas proporções para cada parte, do invocado prédio rústico, sito em ..., freguesia de ..., composto de terra de semeadura, com a área de 10 002 m2, a confrontar do Norte com Vala, do Sul com a parcela destacada para o Loteamento Urbano, do Nascente Município de ... e do Poente com Vala, descrito na Conservatória do Registo Predial de sob o n.º .../19931119, dita freguesia, e inscrito na respectiva matriz pelo artigo ..., identificado em 10 desta petição inicial;

b) Declarar-se que faz parte integrante deste prédio a dita parcela de terreno, com a área de781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento e denominada, na planta de síntese, «domínio hídrico - zona non aedificandi»;

c) Condenar-se o Réu a reconhecer estes declarados direitos de compropriedade dos Autores e a abster-se da prática de quaisquer actos violadores dos mesmos e, designadamente, proibir os seus Órgãos e Agentes, ou alguém a seu mando, de entrarem na parcela, procederem a qualquer demolição ou remoção de terreno e de reabrirem qualquer vala (...)».

E) É antes evidente que os factos controvertidos que integram a relação jurídica material trazida a juízo pelo próprios AA. se reportam, mais além, à afirmação mesmo na negativa - conforme alegado na petição inicial - de que a parcela de terreno, com a área de 781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento e denominada, na planta de síntese (do loteamento, claro está), «domínio hídrico - zona non aedificandi», não vem especificada no alvará de loteamento n.º 2/2000 da Câmara Municipal da ... como área de cedência e não integra a área destinada a espaços verdes e de utilidade colectiva especificada no referido alvará como área de cedência, daí derivando, consoante a resolução da controvérsia factual - trazida a juízo pelos próprios AA. - e jurídica à luz das normas dispostas nos art. 77.º, n.º 1, al. f) e 3 (que os próprios AA. invocam no seu art. da p.i.) e 44.º, n.º 1 e 3 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, 16 de Dezembro, a consequência jurídica normativa de que tal faixa de terreno se integrou ou não se integrou no domínio público municipal com a emissão do alvará de licença de loteamento, permanecendo ao invés incluída e parte integrante da parcela sobrante do primitivo prédio sujeito a loteamento, daí dependendo a sorte dos pedidos formulados pelos AA. sob as als. b) e c) - que é o que fundamentalmente está em causa. Assim,

F) É a própria relação jurídica material litigiosa desenhada e formulada pelos AA. na petição inicial que põe em confronto a propriedade privada (sobre o prédio sobrante do primitivo prédio sujeito a loteamento) e a dominialidade pública autárquica municipal (sobre as áreas cedidas para infra-estruturas, equipamentos e utilização colectiva), na definição da sua constituição e da sua delimitação com bens de outra natureza, em face da operação de loteamento titulada por alvará de licença de loteamento, que, nos termos das referidas normas dos art. 77.º, n.º 1, ai. f) e 3 e 44.º, n.º 1 e 3 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, 16 de Dezembro, é o acto constitutivo e qualificativo de bens de domínio público e de sua delimitação de bens do domínio privado (mormente os lotes e a parcela sobrante do prédio não sujeita a loteamento). Ora,

G) A apreciação de actos administrativos constitutivos e qualificativos do domínio público e de sua delimitação de bens do domínio privado - que é o alvará de licença de loteamento - e as normas legais reguladoras pertinentes dos arts. 77.º, n.º 1, al. f) e 3 e 44.º, n.º 1 e 3 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, 16 de Dezembro, configura claramente matéria de direito público administrativo. Como assim,

H) A matéria em causa nos autos, em que se traduz a relação material controvertida desenhada pelos próprios AA. na petição inicial, a causa de pedir da presente acção, está reservada por lei e pela Constituição (já que desapareceu o desaforamento legislativo estabelecido no art. 4.º, n.º 1, e) do anterior ETAF) à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos do art. 1.º n.º 1 do ETAF e do art. 212.º n.º 3 da CRP, sendo os Tribunais Judiciais materialmente incompetentes para dela conhecer, nos termos do disposto no art. 66.º do Código de Processo Civil - Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos,  Almedina, Coimbra - 2004, p. 36. Pelo que,

I) Em obediência às referidas normas legais e constitucionais impõe-se - como deve agora obter remédio e ao invés do que se decidiu no despacho recorrido - que seja julgada procedente a invocada excepção dilatória de incompetência material absoluta e, abstendo-se de conhecer do mérito da causa, se absolva o réu da instância, nos termos do disposto no art. 288.º, n.º 1, a) e 494.°, a), do Código de Processo Civil».

c) Não houve contra-alegações.

d) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, em saber se a matéria em litígio na presente acção integra a competência material dos tribunais judiciais ou dos tribunais administrativos.

II. Fundamentação.

1. A matéria provada relevante para a questão a decidir é a que já consta do relatório que antecede e outra mais que será retirada dos articulados e irá sendo indicada.

2 – Passando, então, à análise da questão objecto do recurso.

Nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa, «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

Nas palavras de Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» ([1]).

O n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) repete a mesma ideia, isto é, «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

E no artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, dispondo:

«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração; ´

c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;

b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;

d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».

Acerca da noção de relação jurídica de direito administrativo, o Prof. Freitas do Amaral definiu-a como sendo «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» ([2]).

Por sua vez, o Tribunal de Conflitos no seu acórdão de 8 de Dezembro de 2010 referiu-se a esta problemática nos seguintes termos:

«…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor – se o Judicial se o Administrativo – importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito» ([3]).

Sobre o conceito de ralação jurídica administrativa o mesmo tribunal, no seu acórdão de 25-11-2010, considerou que, «Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido» ([4]).

Sintetizando o que fica exposto, para podermos reconhecer e afirmar que estamos face a uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos: por um lado, um dos sujeitos há-se ser uma entidade pública ou se for privada deve actuar legalmente, no caso, como se fosse pública e, por outro, os direitos e deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo.

Vejamos então.

Os autores pedem, no confronto com o Município, que se declare, em primeiro lugar, que eles são comproprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º .../19931119 e, em segundo lugar, que a parcela com a área de 781 m2, contígua ao muro de suporte do loteamento, e que aparece, segundo eles, denominada na planta de síntese como «domínio hídrico – zona non aedificandi», faz parte deste prédio ou, dito de outra forma, que o terreno do seu prédio vai até esse muro.

Baseiam estes pedidos no facto de terem adquirido por usucapião (artigo 2.º e 3.º da petição) um direito de compropriedade sobre o prédio e também na circunstância de se encontrar registada no registo predial, em nome deles, a titularidade desse direito de compropriedade (artigo 4.º da petição).

Ora, como é sabido, para se inscrever no registo predial a titularidade do direito de propriedade sobre um prédio, o interessado tem de apresentar um título, como se vê pelo disposto no n.º 1 do artigo 43.º do Código do Registo Predial (Decreto-Lei n.º 224/84, de 06 de Julho), onde se dispõe que «Só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem».

Titulo este que há-de comprovar a aquisição do direito, seja a título originário (através da usucapião), seja de forma derivada (como, v.g., por compra, permuta, doação, sucessão hereditária ou expropriação).

Porém, se quem invoca o direito de propriedade goza da presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial, onde se declara que «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define», então fica dispensado de provar a base da presunção, isto é, os factos concretos que geraram o direito ([5]).

Os autores mostram que o direito de compropriedade que invocam sobre o prédio está registado a seu favor no registo predial, não carecendo de fazer a prova da aquisição originária, embora também tenham alegado a aquisição da propriedade por usucapião.

É este direito que os autores pretendem ver declarado perante o réu Município.

Ora, este primeiro aspecto da questão, pois há outro, isto é, o que tem a ver com os limites do prédio (seu perímetro) é um aspecto que não resulta de qualquer relação administrativa, pois é inequívoco que não existe qualquer relação administrativa na génese da constituição do direito de compropriedade que recai sobre ele e está na titularidade dos autores.

Por conseguinte, quanto a esta parte do pedido não há dúvida de que a competência é dos tribunais comuns.

Chegados aqui já se afigura algo ilógico que para este pedido o tribunal judicial da Mealhada seja competente em razão da matéria e já o não seja quanto ao resto do pedido.

Vejamos agora a parte relativa à determinação física dos limites do prédio.

Os autores sustentam que o seu prédio corresponde à «parcela sobrante» do primitivo prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da ..., sob o n.º .../19931119, após a outra parte do prédio primitivo ter sido objecto de um loteamento.

A parte que os autores identificam como sendo a linha de separação entre a parcela objecto de loteamento e a parcela sobrante é feita, segundo eles, por um muro divisório integrado no aludido loteamento, construído pelo loteador, o qual também serve de suporte de terras.

No artigo 11.º da petição os autores alegam que têm praticado os actos de posse invocados, sobre o prédio, precisamente até esse muro (artigo 11.º da petição).

Por sua vez, o réu Município sustenta que esta parcela de 781 m2 foi cedida ao domínio público pelo antigo proprietário, no âmbito do mencionado loteamento, como «domínio hídrico – zona non aedificandi».

E argumenta que o muro a que aludem os autores serve apenas para delimitar os lotes 87 a 92 e esta parcela ( cfr. artigo 19.º a 31.º da contestação).

Por conseguinte, na perspectiva do réu, os autores adquiriram a parte sobrante do prédio primitivo já amputada desta parcela, pelo que, os actos possessórios alegados são irrelevantes e ineficazes face ao domínio público, porque, a terem sido executados, foram-no sobre um bem que está fora do comércio jurídico.

Entende o réu que a questão de saber se a dita faixa pertence ou não aos autores ou integra o domínio público, passa por analisar e interpretar a operação de loteamento efectuada pelo anterior proprietário do prédio, sendo inequívoco que a operação de loteamento é uma relação administrativa na medida em que um dos seus sujeitos é uma entidade de direito público, isto é, o Município e as normas legais são de direito público.

É esta, em síntese, a posição das partes.


*

Afigura-se inevitável que a decisão sobre se a parcela, com 781 m2 de área, integra ou não integra a parte sobrante do prédio, ou se, invés, fez parte da operação de loteamento e, nos termos desta operação, foi cedida ao domínio público, passará pela análise e interpretação da mencionada operação de loteamento.

E passa pela análise deste documento porque ambas as partes se referem a ele como elemento que definirá se a dita parcela faz parte do loteamento ou não faz.

Isto é, a documentação sobre a operação de loteamento servirá do ponto de vista dos autores e réu como meio de prova para deslindar a questão.

Efectivamente só se poderá concluir se a parcela de 781 m2 fez ou não fez parte do loteamento, analisando a respectiva documentação.

Apesar da relevância desta problemática, ainda é questionável saber se será ela suficiente para concluir que o núcleo desta acção é constituído por uma relação jurídica de direito administrativo.

A resposta deve ser negativa pelas seguintes razões:

Primeiro - Os Autores, como acima já se assinalou, não fundam, de facto, o seu pedido de reconhecimento do direito de propriedade numa relação jurídica de direito administrativo.

Não se afigura que haja alguma dúvida sobre isto.

Ou seja, o loteamento não faz parte da causa de pedir de onde emerge o direito de propriedade dos autores sobre o prédio.

Segundo – Quanto aos limites do prédio, no sentido de irem até ao muro a que ambas as partes se referem, os autores só aparentemente fundam o seu pedido no loteamento.

Objectar-se-á que os autores necessitam de invocar o loteamento para fundamentarem que os limites do prédio vão até esse muro.

Isso não corresponde à realidade.

Tal alegação só se torna necessária para tornar inteligível o pedido, isto é, para se saber por que razão os autores dizem que o prédio termina ali e não mais além como sucedia antes do loteamento.

É que antes do loteamento o prédio dos autores ia não só até esse muro, como prosseguia para além dele, não havendo qualquer controvérsia no sentido de que esta era efectivamente a realidade anterior ao loteamento.

Sendo assim, se se reparar com atenção, os Autores, não tinham de alegar na petição mais do que os limites do prédio, isto é, que o prédio vai até ao tal muro, muito embora, como se disse, devessem aludir ao facto de ter existido um loteamento, mas apenas para se compreender por que motivo indicavam esse limite, uma vez que, como se disse, os limites primitivos iam além dos agora indicados.

E a prova de que os autores não tinham que alegar mais que isso quanto aos limites do prédio retira-se da seguinte hipótese:

Se o réu Município não contestasse tais limites ([6]), os autores nada mais necessitavam de alegar para obter, em abstracto, a procedência do pedido.

Por aqui se vê que a questão do loteamento, tal como a acção é instaurada pelos autores, não faz parte da causa de pedir que eles invocam, incluindo quanto aos limites do prédio.

Mas anota-se que os autores ainda alegaram que os actos de posse de onde emergiu o direito de propriedade sobre o terreno foram exercidos e continuaram a ser exercidos na porção de terra que vai até esse muro (artigo 11.º da petição inicial).

O réu Município é que carece de invocar o loteamento para provar que a parcela em litígio foi cedida pelo antigo proprietário ao domínio público e carece, igualmente, de basear o pedido reconvencional nesse mesmo loteamento.

Para o pedido reconvencional sem dúvida que a operação de loteamento é essencial, pois a integração da parcela no domínio público depende de tal parcela ter sido cedida (ou não) no âmbito do loteamento para o domínio público do Município.

Mas o direito de propriedade invocado pelos autores e a respectiva causa de pedir não foram gerados pela operação de loteamento, pois já existiam antes dela, muito embora, como se referiu, os autores tenham de se referir a ela para tornarem o pedido inteligível, isto é, para se perceber a razão pela qual não pedem o reconhecimento do direito de propriedade sobre a totalidade da área do prédio primitivo.

Os limites do prédio sobrante projectam-se sempre em direcção à amplitude máxima da área primitiva, podendo, por isso, ser alegados sem os autores terem de se socorrer do loteamento para os provarem.

O loteamento é que constitui uma limitação aos limites primitivos do prédio e como tal, só o réu tem interesse em servir-se dele como eventual facto impeditivo do direito invocado pelos autores, se porventura os autores atribuem ao seu prédio uma extensão que teve, mas já não tem.

No caso concreto dos autos, não faria qualquer sentido os autores basearem o seu direito de propriedade (sobre a «parte sobrante» ou, digamos sobre o «prédio-mãe») numa operação de loteamento, pois é sabido que a operação de loteamento, existindo apenas um prédio envolvido, respeita à divisão desse prédio, pelo que, se se alegam direitos sobre a parte do prédio não abrangida pelo loteamento, direitos que já existiam antes do loteamento, é evidente que não é possível basear o respectivo direito de propriedade sobre a parte sobrante na operação de loteamento.

O loteamento poderá sim comportar-se como facto impeditivo relativamente aos limites do prédio assinalados pelos autores, se porventura estes indicaram limites que se compreendem dentro da área do loteamento.

Recapitulando:

O pedido feito pelos autores consiste, em primeiro lugar, em serem declarados comproprietários do prédio e, em segundo lugar, em estabelecer-se que os limites físicos do prédio vão até ao muro situado nos limites dos lotes n.º 87 a 92, que ambas as partes identificam.

Os autores não fundam este pedido, nem invocam como causa de pedir, a operação de loteamento a que ambas as partes se referem.

Do ponto de vista dos autores a operação e loteamento tem de ser invocada para tornar o pedido inteligível e serve também de meio de prova, na medida em que esperam através dela mostrar que a parcela em causa não se encontra abrangida pela dita operação de loteamento.

A contestação e a reconvenção do réu é que se fundam na operação de loteamento, quer para mostrar que os autores não têm razão quanto ao pedido da acção, quer, quanto à reconvenção, para mostrar que a dita parcela pertence ao domínio público do município ([7]), por ter sido cedida pelo anterior proprietário no âmbito do loteamento.


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Depois de analisados estes aspectos resta concluir.

Já acima se frisou que a determinação da competência material do tribunal faz-se face ao pedido e à causa de pedir exarados na petição inicial.

Ora, como acabou de se ver, nem o pedido nem a causa de pedir da acção assentam numa relação de direito administrativo, isto é, o direito de propriedade invocado pelos autores não emerge de uma relação de direito administrativo.

Porém, é certo que a operação de loteamento identificada pelas partes será analisada no âmbito da acção como meio de prova ou como facto impeditivo, dependendo dos pontos de vista, e que tal operação integra, sem dúvida, um complexo de relações de natureza administrativa.

Por outro lado, os autores sendo comproprietários da parte sobrante do prédio amputado pelo loteamento não têm de basear necessariamente os limites físicos do seu prédio na operação de loteamento, na medida em que o loteamento funciona como facto limitativo desses limites, mas não como facto constitutivo.

Para se compreender esta ideia tem de se ter em consideração que o prédio primitivo abrangia a parte loteada, pelo que o loteamento não gerou isto é, não constituiu o prédio primitivo, nem a parte que dele restou, apenas limitou o prédio primitivo.

Daí que se tenha afirmado acima que em certa hipótese, os autores para obterem a procedência do pedido nem careceriam sequer de invocar o loteamento, mas apenas os limites do prédio, claro está, na hipótese, pouco provável e em face ao que é conhecido, inexistente, de não haver impugnação desse limites.

Quanto à reconvenção sim, a causa de pedir baseia-se na operação de loteamento, cuja natureza é administrativa, e o pedido, no sentido de que a parcela em disputa pertence ao domínio público do Município, emerge também, indubitavelmente de uma relação jurídica administrativa.


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Nos termos do n.º 1 do artigo 98.º do Código de Processo Civil, «O tribunal da acção é competente para as questões deduzidas por via de reconvenção, desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia; se a não tiver, é o reconvindo absolvido da instância».
Sucede, porém, que o tribunal de 1.ª instância se pronunciou no sentido da admissão da reconvenção e não houve recurso de tal despacho, pelo que a decisão tem de ser respeitada.
Sendo certo que a decisão no sentido de considerar o tribunal judicial da comarca da Mealhada materialmente competente para a acção, não é incompatível, mas sim compatível, na prática, com a apreciação e julgamento do pedido reconvencional já admitido.
Concluindo, como resulta do exposto, o tribunal judicial da comarca da Mealhada é o tribunal competente para conhecer da acção.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente.

Custas pelo recorrente.


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Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil

[1] Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 815, 3.ª edição.

[2] Direito Administrativo, Vol. III, pág. 439/440 (Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89), Lisboa/1989.
[3] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 020/10.

[4] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 021/10.

[5] «A ideia de que na aquisição derivada não basta para provar a existência do direito do reivindicante a alegação do negócio de aquisição (da compra e venda, da doação, da permuta, etc.) nem o registo deste negócio, porque pode faltar o direito do transmitente, é perfeitamente compreensível e justificada.

Mas já não assim quando o transmitente seja o último titular (do direito) inscrito no registo – facto que, naturalmente, necessita de ser provado.

Quando assim suceda, mesmo que o último inscrito no registo não esteja apoiado numa cadeia ininterrupta de transmissões desde a descrição e a primeira inscrição do imóvel no registo (por falta ou por não aplicação do princípio do trato sucessivo), a prova do direito do adquirrente beneficia já da presunção de existência do direito do transmitente, que resulta do registo.

Seria um absurdo exigir, mesmo nesse caso, a prova da cadeia ininterrupta de transmissões do imóvel até se encontrar um título de aquisição originária» - Prof. Antunes Varela, RLJ, ano 120, pág. 221.

[6] Compete ao presidente da câmara municipal «Instaurar pleitos e defender-se neles, podendo confessar, desistir ou transigir, se não houver ofensa de direitos de terceiros» - artigo 68.º, n.º 2, al. g) da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias (alterada  - 1.ª alteração - pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro).

[7] É o que resulta dos n.º 1, 2 e 3 do artigo 16.º, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, em vigor à data do loteamento aqui invocado, onde se dizia:

«1- O proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente à câmara municipal parcelas de terreno para espaços verdes públicos e de utilização colectiva, infra-estruturas, designadamente arruamentos viários e pedonais, e equipamentos públicos, que, de acordo com a operação de loteamento, devam integrar o domínio público.

3 - As parcelas de terreno cedidas à câmara municipal integram-se automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará e não podem ser afectas a fim distinto do previsto no mesmo, valendo este para se proceder aos respectivos registos e averbamentos».
2 - O dimensionamento das referidas parcelas é efectuado em conformidade com o disposto no artigo anterior.