Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6435/18.5T8CBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PROCESSO DE EXECUÇÃO
CONCURSO DE CREDORES
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHORA DE EXPECTATIVAS DE AQUISIÇÃO DE UM DIREITO
Data do Acordão: 02/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 822.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 778.º E 788.º DO CPC
Sumário: I- Existindo, como no caso dos autos um contrato de locação financeira imobiliária em que a executada é parte como locatária, a penhora da expectativa de aquisição do bem locado por esta como decorre do art.º 778º do C. P. Civil é permitida.

II - indiferentemente da posição que se perfilhe na referida polémica, quando o art.º 788º do C. P. Civil   exige a titularidade de um direito real de garantia para se poder reclamar um crédito, não poderá deixar de se entender que no mesmo está incluída a penhora.

III - O facto do objeto da penhora que garante o crédito reclamado ser constituído por uma expetativa de aquisição não impede a sua reclamação de créditos, pois apesar de não se ter ainda convertido em direito de propriedade sobre o prédio, não impede a sua venda como tal, como se verifica na execução de que estes autos são apenso.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Sílvia Pires
1.º Adjunto: Henrique Antunes
2.º Adjunto: Mário Rodrigues da Silva




Exequente: A..., Lda.
Executados: AA e
         B..., Lda.
Reclamantes: BB
 CC

 *
   Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
Nos autos de execução que foram movidos aos Executados, foi em 20.3.2019 efetuada a penhora da expectativa do direito real de aquisição do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...23, inscrito na matriz predial competente sob o art. ...55, que a executada detém na qualidade de locatária do contrato de locação financeira imobiliária n.º ...89 em que é locador Banco 1..., S.A.
 Tal penhora foi registada pela apresentação ...98 com data de 28.2.2019.
No processo executivo n.º 4859/21.... do Juízo de Execução ... – Juiz ..., em que figuram como Exequentes os agora Reclamantes   foi penhorado o direito real de aquisição do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...23, inscrito na matriz predial competente sob o art. ...55, que a executada detém na qualidade de locatária do contrato de locação financeira imobiliária n.º ...89 em que é locador Banco 1..., S.A”
Esta penhora foi registada pela AP. ...58 de 15.6.2022.
Devido a existência de penhoras anteriores foi, por despacho de 01.07.2022 esta execução sustada nos termos do art.º 794º do C. P. Civil.
Os ali Exequentes em 5.7.2022 vieram reclamar o seu crédito no processo executivo de que esta reclamação constitui apenso.

Com data de 4.11.2022 foi proferida decisão com o seguinte teor:
Ora, o bem que se mostra penhorado: uma “expectativa de aquisição de um direito” de propriedade pela sociedade executada, parece-nos, não poder ser alvo de reclamação no âmbito do concurso de credores.
Ou seja, no caso estamos perante uma expectativa de aquisição, decorrente do contrato de locação financeira celebrado entre o “Banco 1...” e a sociedade executada “C..., Ldª.”, tendo por objeto o referido prédio.
A penhora de expectativas de aquisição vem prevista no art.º 778, do CPC, que estabelece:
“1 - À penhora de direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados pelo executado aplica-se, com as adaptações necessárias, o preceituado nos artigos antecedentes acerca da penhora de créditos.
2 - Quando o objeto a adquirir for uma coisa que esteja na posse ou detenção do executado, cumprir-se-á ainda o previsto nos artigos referentes à penhora de imóveis ou de móveis, conforme o caso.
3 - Consumada a aquisição, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido”.
Deste modo, somente com a consumação da aquisição pelo locatário, a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido: “…o objeto da penhora passa automaticamente, uma vez consumada a aquisição, a incidir sobre o bem transmitido…” – cfr LEBRE DE FREITAS in CPC Anotado, 3º, 462, e in “A Acção Executiva”, p. 254.
Isto para evitar “qualquer vazio por desaparecimento do objeto inicial da penhora” e que passa, automaticamente, a incidir, já não sobre uma expectativa jurídica, que desapareceu com a aquisição, mas sobre um direito real: o bem adquirido.
Aliás, só são citados para a execução, em primeiro lugar, os credores que sejam titulares de direito real de garantia sobre os bens penhorados (cfr. Art.º 786, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Uma vez que a expectativa de aquisição futura de um direito de propriedade ainda não se converteu em direito de propriedade sobre o prédio – não se encontra registado -, entendo, desde já e por força do princípio da economia processual e do dever de gestão processual, que o presente apenso, não tendo autonomia, deverá ser extinto, desde já, por inutilidade/impossibilidade superveniente da lide.
No Apenso D – Reclamação de créditos -, já foi proferida decisão no mesmo sentido e que transitou em julgado.
Nestes termos, de harmonia com o disposto no artigo 277, al. e), do CPC:
- julgo extintos os presentes autos de reclamação de créditos por impossibilidade/inutilidade superveniente da lide.

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Os reclamantes interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:
i. Os ora Recorrentes são credores da quantia de 14.537,24 €, tendo título executivo contra os aqui Executados, que se formou nos termos do artigo 777º, nº 3 do CPC, no âmbito da ação para execução de sentença nos próprios autos, que corre termos no Juiz ... do Juízo de Execução ..., sob o n.º de processo n.º 4859/21.....
ii. Processo no âmbito do qual foi penhorada a expectativa de aquisição do direito real de propriedade de um imóvel, emergente de contrato de locação financeira (já integralmente cumprido) melhor identificado nos autos, inscrito no registo pela AP ...58 de 2022/06/15.
iii. Naqueles autos foi determinada a Sustação da Execução, nos termos do art. 794.º do CPC, atenta a existência de penhoras anteriores, tendo os Recorrentes vindo reclamar o seu crédito aos presentes autos.
iv. Contudo a decisão recorrida julgou a reclamação de créditos extinta por impossibilidade / inutilidade superveniente da lide, porquanto entendeu que apenas havia sido penhorada uma expectativa de aquisição futura de um direito de propriedade, que ainda não se converteu em direito de propriedade sobre o prédio, e que, por tal motivo, «não poder ser alvo de reclamação no âmbito do concurso de credores. (…) // Aliás, só são citados para a execução, em primeiro lugar, os credores que sejam titulares de direito real de garantia sobre os bens penhorados (cfr. Art.º 786, n.º 1, do Código de Processo Civil).»
v. É sobre esta conclusão constante da decisão que incide a discordância dos Recorrentes, porquanto resulta da harmonização da legislação civil, material e processual que a reclamação de crédito e o concurso de credores não se aplica apenas à penhora de direitos reais, mas sim à penhora de quaisquer direitos.
vi. Resulta da leitura do n.º 4 do art. 788.º do CPC, que o legislador se preocupou em excluir a possibilidade de ser efetuada reclamação de créditos em variadas situações, não tendo elencado entre essas exceções a do credor com penhora sobre o direito ou expectativa de aquisição de um bem – sendo que se fosse essa a intenção o teria feito - pelo que, a contrario, deve ser admitida a reclamação de créditos efetuada pelos ora Recorrentes.
vii. No caso sub judice estamos perante a penhora de uma expectativa de aquisição de direito real de propriedade plena decorrente de contrato de locação financeira sobre prédio urbano, à qual, nos termos do art. 778.º, n.º 1 do CPC se aplica o regime da penhora de créditos.
viii. O art. 773.º regula a penhora de crédito e no seu n.º 6 dispõe que “O exequente, o executado e os credores reclamantes podem requerer ao juiz a prática, ou a autorização para a prática, dos atos que se afigurem indispensáveis à conservação do direito de crédito penhorado”, pelo que tal possibilidade – a reclamação de créditos e concurso de credores no âmbito de direitos de crédito – está legal e expressamente prevista, não resultando da lei nem da finalidade desta qualquer motivo para entender o contrário.
ix. O facto de serem citados em primeiro lugar os credores que sejam titulares de direito real de garantia sobre os bens penhorados, por um lado deve-se à questão prática de, em regra, apenas estes poderem ser conhecidos em função da publicidade adveniente dos registos, mormente predial,
x. Por outro, daí não se retira que não possam outro tipo de credores, como sejam os titulares de penhora sobre o mesmo bem ou direito, de mote próprio virem reclamar os seus créditos quando tenham garantia real sobre o mesmo bem ou direito, como decorre da norma expressa do artigo 788º, nº 1 e 3º do CPC.
xi. Do n.º 3 do art. 778.º do CPC, e da epígrafe da norma, retira-se que o legislador pretende proteger os credores com penhora sobre a expectativa de aquisição de um bem, mesmo que não citados para o concurso de credores.
xii. Se é certo que a penhora passará a incidir sobre o próprio bem transmitido quando consumada a aquisição do mesmo, não deve entender-se por menos certo que a penhora sobre a expectativa de aquisição não deve ser alvo –  legalmente não é - de menos cautelas do que a penhora do direito real de propriedade sobre que virá a incidir.
xiii. O princípio da economia processual e do dever de gestão processual, não podem ser interpretados de forma que tenha por consequência julgar extinto o apenso da reclamação de créditos, à custa da preterição do direito dos Recorrentes, que, assim confrontar-se-ão, a final, com decisão que não os contempla, por não ser admitido e graduado o seu crédito nesta sede.
xiv. Não sendo admitida aqui a reclamação, a consequência seria que cada credor que penhora a expetativa de aquisição de bem imóvel decorrente de locação financeira aos aqui Executados, iria prosseguir com as suas execuções onde procederam à penhora, e se não se admite a possibilidade de concurso de credores, então cada credor prosseguindo a sua execução, poderá proceder à venda do direito correspondente à expetativa de aquisição em causa.
xv. Tendo por consequência que o credor que consiga proceder primeiro à venda da expetativa de aquisição sobre o imóvel é pago pelo produto dessa venda – seja a sua penhora a mais antiga ou não - e nos termos do artigo 824º, nº 2 do CC, as demais penhoras caducam – mesmo que mais antigas – sem que os respetivos credores sejam pagos.
xvi. É este desfecho totalmente injusto que a lei, ao prever o concurso de credores, pretende evitar – precisamente porque o bem ou direito é vendido na execução livre de quaisquer ónus ou encargos.
xvii. Se assim se admitisse, então a prioridade decorrente da antiguidade da penhora seria letra morta.
Concluem pela procedência do recurso.

A Exequente apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas a questão a apreciar é a seguinte:
O crédito dos reclamantes garantido pela penhora da expetativa de aquisição – registada em data anterior à do exequente - não pode ser objeto de reclamação de créditos?

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2. Os factos.
Os factos relevantes para a decisão são os acima enumerados.

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3. O direito aplicável

Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou extinta por inutilidade/impossibilidade superveniente da lide a presente reclamação de créditos, com o fundamento de que a expetativa de aquisição de um direito de propriedade pela sociedade executada, parece-nos, não poder ser alvo de reclamação no âmbito do concurso de credores.
Existindo, como no caso dos autos um contrato de locação financeira imobiliária em que a executada é parte como locatária, a penhora da expectativa de aquisição do bem locado por esta como decorre do art.º 778º do C. P. Civil é permitida.
O objecto desta penhora são prima facie, situações jurídicas activas que, afectando em termos reais um bem, permitem que o titular possa no futuro adquiri-lo para si, já não o próprio direito de propriedade, ou outro direito real de gozo, pois este está na titularidade de terceiro, contraparte no contrato. [1]
Só com a aquisição do bem objeto de locação pela executada é que a penhora passa a incidir sobre o bem transmitido. Esta realidade não colide, no entanto, com a possibilidade daquela expetativa de aquisição já penhorada – com penhora posterior – poder ser objeto de reclamação do crédito que garante no processo onde foi efetuada a penhora mais antiga.
O concurso de credores tem por finalidade assegurar o chamamento à execução de todos os credores do executado, para que estes reclamem os seus créditos e obtenham a satisfação dos mesmos através do produto da venda dos bens penhorados.
A penhora tem por efeito a afetação de uma coisa à satisfação de um crédito ou conjunto de créditos, consubstanciando um direito real de garantia, que tem inerente a preferência de pagamento sobre outros credores que não disponham de melhor garantia, como resulta do art.º 822º do C. Civil.[2]
A penhora tem as caraterísticas da sequela e da preferência, que são próprias dos direitos reais de garantia.
A qualificação da penhora como direito real de garantia não tem sido unívoca na doutrina, sendo no entanto dominante a posição que a qualifica  desse modo.[3]
 Aqueles que defendem que a penhora não constitui um direito real de garantia[4], caracterizando-a como uma figura processual admitem  que produz efeitos semelhantes aos das garantias reais – sequela e preferência.
Assim, indiferentemente da posição que se perfilhe na referida polémica, quando o art.º 788º do C. P. Civil   exige a titularidade de um direito real de garantia para se poder reclamar um crédito, não poderá deixar de se entender que no mesmo está incluída a penhora.
Como acimo adiantámos, o facto do objeto da penhora que garante o crédito reclamado ser constituído por uma expetativa de aquisição não impede a sua reclamação de créditos, pois apesar de não se ter ainda convertido em direito de propriedade sobre o prédio, não impede a sua venda como tal, como se verifica na execução de que estes autos são apenso.
Assim, não ocorrendo qualquer facto justificativo do fundamento da decisão, e determinante da inutilidade ou impossibilidade da lide procede o recurso.

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Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se procedente o recurso revoga-se a decisão recorrida determinando-se o prosseguimento da reclamação de créditos.

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Custas pelos executados.

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                                                                     28.2.2023







[1]  Rui Pinto in Penhora e Alienação de Outros Direitos, publicado na Revista Themis, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, IV.7 – Ano de 2003 -, pág. 150.

[2] Neste sentido, entre outros:
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil X, Direito das Obrigações, Garantias, ed. 2015, pág. 408, Almedina.
Menezes Leitão, in Garanti das Obrigações, ed. 2006, pág. 249, Almedina.
Rui Januário e outros, Direito Civil, Direito das Coisas, ed. 2018, pág. 1132, Petrony.
Salvador da Costa, in O Concurso de Credores, ed. 1998, pág. 29, Almedina.
 
[3] Pestana de Vasconcelos, in Direito das Garantias, ed. 2019, pág. 356 e segs., Almedina.

[4]
Entre eles:
Pestana de Vasconcelos, ob. citada, pág. 357.
Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, ed. 1998, pág.250.
Almeida e Costa, Direito das Obrigações, ed. 2009, pág. 983-986, Almedina.