Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
487/09.6TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
CONTAGEM DOS PRAZOS
ANULABILIDADE
CONTRATO DE SEGURO
FALSIDADE
IDENTIFICAÇÃO
CONDUTOR HABITUAL
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 498º, Nº 2 DO C.CIVIL; 25º, Nº 1 DO DL Nº 522/85; 54º, Nº 6 DO DL Nº 291/2007, DE 21/08; 25º, Nº 1 DA LEI DO CONTRATO DE SEGURO (DECRETO-LEI Nº 72/2008, DE 16 DE ABRIL (LCS)).
Sumário: I – A questão da prescrição do exercício do direito de recuperação pelo Fundo de Garantia do que satisfez aos lesados no quadro da respectiva intervenção deve ser equacionado no quadro do nº 2 do artigo 498º do CC, sendo a partir dessa referenciação que a razão de ser do instituto da prescrição – a definição da situação latente pela inércia do titular do direito na concretização desta – actua verdadeiramente.

II - Vale como argumento a este respeito – para quem considerasse a questão duvidosa face ao enquadramento propiciado pelo artigo 25º, nº 1 do DL 522/85 – a opção expressa assumida pelo legislador no Diploma sucessor deste, ou seja no artigo 54º, nº 6 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel): “[a]os direitos do Fundo de Garantia Automóvel previstos nos números anteriores é aplicável o nº 2 do artigo 498º do Código Civil, sendo relevante para o efeito, em caso de pagamentos fraccionados por lesado ou mais do que um lesado, a data do último pagamento efectuado pelo Fundo de Garantia Automóvel”.

III - Esta questão de sucessão de regimes legais é relevante – estando em causa um contrato celebrado na vigência do DL 522/85 e um acidente ocorrido nesse enquadramento, mas tratando-se de um efeito (a intervenção do Fundo de Garantia) já produzido no domínio do DL 291/2007 –, a sucessão de leis é relevante, dizíamos, no sentido em que o artigo 54º, nº 6 do lei nova (DL 291/2007) assumiu um pendor objectivamente interpretativo, projectando o seu sentido na lei interpretada (o artigo 25º, nº 1 do DL 522/85), como resulta do artigo 13º, nº 1 do CC: “[a] lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza”.

IV - No quadro legal emergente do Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (LCS), a afirmação do tomador do seguro no preenchimento da proposta de ser ele, como condutor encartado há mais de 20 anos, o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual (o filho do tomador) havia obtido licença de conduzir poucos meses antes da celebração do contrato, este comportamento gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS.

V – Essa incidência (a falsa declaração quanto ao condutor habitual) refere-se a um elemento muito significativo para a apreciação do risco assumido pela seguradora no contrato, com incidência na quantificação do prémio;

VI – A referida anulabilidade actua, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS, mediante declaração da seguradora ao tomador do seguro, sendo que isso, descobrindo a seguradora a fraude apenas posteriormente à ocorrência do sinistro, actuará, no quadro de um processo judicial instaurado contra essa seguradora, por via de excepção (invocação pela seguradora na contestação da extinção do contrato por anulabilidade nesse contexto declarada);

VII – O disposto no artigo 22º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) não impede a oponibilidade da referida anulabilidade do contrato pela seguradora aos lesados pelo acidente e, reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel, quando esta entidade exerce a sub-rogação decorrente de ter assumido, perante esses lesados, a responsabilidade indemnizatória emergente do referido acidente.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. O Fundo de Garantia Automóvel (A. e aqui Apelado) demandou, em 07/09/2009, a seguradora M…, S.A. (1ª R. e a Apelante no contexto do presente recurso) e P… (2º R.). Através desta acção, pretende o Fundo de Garantia realizar o valor que satisfez a M…, vítima de um acidente de viação causado pelo 2º R. (conduzindo este o veículo …-BM), acidente ocorrido em 05/08/2005, cujo ressarcimento indemnizatório a esse lesado a seguradora 1ª R. declinou, considerando inválido o seguro que celebrara quanto aos riscos resultantes da condução dessa viatura (por falsa indicação do proprietário e condutor habitual). Ora, o A. Fundo de Garantia, ao abrigo do nº 5 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, assumiu o ressarcimento indemnizatório do referido lesado, pagando €213.691,38 que ora pretende recuperar da seguradora ou, alternativamente, do 2º R.[1]

            1.1. Contestou a 1ª R. (a M…), excepcionando a prescrição do direito à sub-rogação pretendido exercer pelo A. – atentas as datas do acidente (05/08/2005) e da propositura da acção (07/09/2009), em vista do prazo de três anos estabelecido no artigo 498º, nº 1 do Código Civil (CC). Adicionalmente, também a título de excepção, invocou a 1ª R. a nulidade do contrato de seguro apresentado como base da respectiva imputação, por falsa indicação, aquando da celebração desse contrato, do tomador e da pessoa indicada como condutor habitual (visou o 2º R., assim, usufruir de melhores condições quanto ao prémio, através de um seu cunhado encartado há mais tempo e que se prestou a assumir o papel de testa-de-ferro em tal contrato de seguro). Finalmente, impugnou a 1ª R. os elementos atinentes à mecânica do acidente e a quantificação dos danos indemnizados pelo A.

            1.1.1. Contestou igualmente o 2º R., excepcionando a respectiva ilegitimidade – e só isso excepcionou na contestação apresentada – por entender válido o contrato de seguro celebrado com a 1ª R., nos exactos termos constantes da apólice nº ...

            1.2. Foi o processo julgado em primeira instância pela Sentença de fls. 449/477esta constitui a decisão objecto do presente recurso – através do seguinte pronunciamento decisório:
“[…]

I.
Absolver o R. P… do pedido contra ele deduzido.
II.
Condenar a R. ‘M…, S.A.’ a pagar ao A. ‘Fundo de Garantia Automóvel’ a quantia de €68.343,45 (sessenta e oito mil trezentos quarenta e três euros quarenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação até integral pagamento.
[…]”.

            No percurso expositivo que conduziu a esta decisão – além da fixação dos factos provados e não provados –, desatendeu a primeira instância a invocação da prescrição pela 1ª R.[2] e, quanto à invalidade (anulabilidade) do seguro, entendeu-se ser tal desvalor inoponível ao A.[3]. E, enfim, fixou-se no montante indicado o valor indemnizatório devido por um acidente cuja responsabilidade foi totalmente referenciada ao 2º R.

            1.3. Inconformada, reagiu a seguradora 1ª R. apelando a esta instância, concluindo o seguinte a rematar a motivação do recurso:
[…]


II – Fundamentação

2. Caracterizámos sucintamente o desenvolvimento do processo que conduziu à presente instância de recurso. Importa agora apreciar a impugnação da seguradora Apelante, sendo que o âmbito objectivo desta se mostra delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente [v., a propósito da referenciação dos fundamentos do recurso às conclusões, os artigos 635º, nº 4 e 639º do Código Processo Civil (CPC)[4]]. Assim, fora das conclusões, só constituem objecto temático de um recurso questões que se configurem como de conhecimento oficioso – embora aqui nenhuma questão relevante se apresente com esse estatuto. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição no recurso sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àquelas (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

No ponto 5 das conclusões transcritas acima neste texto destacámos a correspondência nas conclusões dos três fundamentos do presente recurso enunciados pela Apelante: primeiramente a [a] impugnação da matéria de facto quanto às asserções positivamente fixadas nos itens 68º e 71º do elenco abaixo transcrito e quanto às asserções presentes nos itens 10º e 17º do rol dos factos considerados não provados, que também será transcrito infra (conclusões 7 a 15 do recurso); seguidamente (conclusões 17 a 26) a [b] questão da prescrição do direito de sub-rogação exercido pelo A. aqui Apelado (a decisão recorrida afastou, como vimos, essa incidência suscitada pela 1ª R. a título de excepção); e, finalmente [c], pretende a Apelante a reapreciação da questão da nulidade do contrato de seguro, enquanto incidência invocável pela Seguradora relativamente à sub-rogação exercida pelo Fundo de Garantia Automóvel (conclusões 27 a 45).

2.1. São os seguintes os factos considerados provados na primeira instância:
[…]

            2.2. [a] O primeiro fundamento do recurso visa, como acima dissemos, a alteração de determinados trechos da matéria de facto e pressupõe a actuação – suscita a actuação – deste Tribunal no quadro previsto no nº 1 do artigo 662º do CPC[5], tendo como objecto os factos considerados provados, correspondentes aos itens 68 e 71 (pretende a Apelante que estes sejam eliminados dos factos) e os trechos considerados não provados referenciados pelos números 10 e 17 (deviam estes ser considerados provados).

            O novo acervo de factos resultante do julgamento do recurso conduziria – conduzirá, como veremos no final – a um pronunciamento decisório distinto nesta instância, com absolvição do pedido quanto à 1ª R. e condenação do 2º R. Todavia, por não configurarem questões prejudicadas, sempre teremos de apreciar os outros dois fundamentos (prescrição e inoponibilidade ao A. da anulação do contrato), sendo certo que o atendimento de qualquer deles sempre conduziria à inoperância da alteração dos factos antes empreendida por esta instância.

            2.3. [b] Interessa-nos aqui, pois, pelas razões acabadas de referir, o fundamento do recurso correspondente à invocação da prescrição do direito do A. Fundo de Garantia Automóvel a receber o que satisfez indemnizatoriamente ao lesado, em função do preenchimento do pressuposto legal da sua intervenção, e do estabelecimento de um “direito à recuperação do que pagou”, tomando como base argumentativa, à partida, o enquadramento legal propiciado pelo Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, no caso dessa “recuperação” através do respectivo artigo 25º, nº 1[6].

            Assenta este argumento do Apelante na circunstância de a presente acção ter sido proposta mais de três anos após a data da ocorrência do acidente gerador da responsabilidade civil aqui em causa (o acidente ocorreu em 05/08/2005 e a acção foi intentada em 07/09/2009), definindo-se neste caso o prazo prescricional pelo nº 1 do artigo 498º do CC. Como vimos no relatório constante do item 1., a decisão apelada afastou este argumento reconduzindo a situação ao nº 3 da mesma disposição, considerando o prazo de prescrição atinente ao crime a que correspondeu o evento base da imputação delitual (prazo que seria de cinco anos).

            Mais decisivo que este argumento esgrimido pela Sentença apelada, parece-nos a consideração da especial posição do Fundo de Garantia em vista do exercício de um direito de regresso (ou correspondente a uma situação a este assimilável por identidade de razão), cujo prazo de prescrição deve ser contado nos termos do nº 2 do artigo 498º CC[7], a partir do terminus da satisfação das indemnizações pelo Fundo de Garantia. Este realizou aqui pagamentos ao lesado cerca de um ano antes da propositura desta acção, em 05/08/2008 (v. ponto 57 dos factos).

            Deve, no entendimento desta Relação, a questão da prescrição do exercício do direito de recuperação pelo Fundo de Garantia do que satisfez aos lesados no quadro da respectiva intervenção ser equacionado no quadro do nº 2 do artigo 498º do CC, sendo a partir dessa referenciação que a razão de ser do instituto da prescrição – a definição da situação latente pela inércia do titular do direito na concretização desta[8] – actua verdadeiramente.

            Vale como argumento a este respeito – para quem considerasse a questão duvidosa face ao enquadramento propiciado pelo artigo 25º, nº 1 do DL 522/85 – a opção expressa assumida pelo legislador no Diploma sucessor deste, ou seja no artigo 54º, nº 6 do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel): “[a]os direitos do Fundo de Garantia Automóvel previstos nos números anteriores é aplicável o nº 2 do artigo 498º do Código Civil, sendo relevante para o efeito, em caso de pagamentos fraccionados por lesado ou mais do que um lesado, a data do último pagamento efectuado pelo Fundo de Garantia Automóvel”.

            Esta questão de sucessão de regimes legais é aqui relevante – estando em causa um contrato celebrado na vigência do DL 522/85 e um acidente ocorrido nesse enquadramento, mas tratando-se de um efeito (a intervenção do Fundo de Garantia) já produzido no domínio do DL 291/2007 –, a sucessão de leis é relevante, dizíamos, no sentido em que o artigo 54º, nº 6 do lei nova (DL 291/2007) assumiu um pendor objectivamente interpretativo, projectando o seu sentido na lei interpretada (o artigo 25º, nº 1 do DL 522/85), como resulta do artigo 13º, nº 1 do CC: “[a] lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza”.

            Com efeito, tendo presente o debate judicial pretérito à edição do DL 291/2007 relativo à prescrição do direito à sub-rogação exercido pelo Fundo de Garantia Automóvel, quanto à aplicação do nº 1 ou do nº 2 do artigo 498º do CC[9], verificamos a presença no caso dos elementos que configuram a opção expressa assumida pelo legislador no texto do actual artigo 54º, nº 6. como claramente assente no propósito (interpretativo) de consagrar uma das correntes interpretativas em confronto face à lei anterior, resolvendo em determinado sentido a dissensão que ao abrigo da lei anterior se verificava[10].

            É com este sentido, pois, sem necessidade de recorrer ao regime de alargamento do prazo previsto no nº 3 do artigo 498º do CC que consideramos não extinto por prescrição o direito à sub-rogação aqui exercido pelo A. Fundo de Garantia Automóvel. Vale isto pelo não atendimento deste fundamento do recurso invocado pela seguradora Apelante.   

            2.4. [c] Resta-nos apreciar a questão da afirmada – afirmada pela Sentença recorrida[11] – inoponibilidade ao Fundo de Garantia Automóvel da anulação do contrato de seguro, obtida pela 1ª R. noutra acção na qual o Fundo não foi parte.

            A este respeito, atalhando aqui argumentos que já foram desenvolvidos por esta exacta formação deste Tribunal em anterior pronunciamento[12], enxertando aqui uma estrutura argumentativa formalmente próxima de uma decisão sumária, remetemos para o Acórdão desta Relação de 03/12/2013, proferido pelo ora relator no processo nº 372/11.1TBACB.C1[13], cujo sumário aqui transcrevemos:
“[…]
I – No quadro legal emergente do Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (LCS), a afirmação do tomador do seguro no preenchimento da proposta de ser ele, como condutor encartado há mais de 20 anos, o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual (o filho do tomador) havia obtido licença de conduzir poucos meses antes da celebração do contrato, este comportamento gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS.
II – Essa incidência (a falsa declaração quanto ao condutor habitual) refere-se a um elemento muito significativo para a apreciação do risco assumido pela seguradora no contrato, com incidência na quantificação do prémio;
III – A referida anulabilidade actua, nos termos do artigo 25º, nº 1 da LCS, mediante declaração da seguradora ao tomador do seguro, sendo que isso, descobrindo a seguradora a fraude apenas posteriormente à ocorrência do sinistro, actuará, no quadro de um processo judicial instaurado contra essa seguradora, por via de excepção (invocação pela seguradora na contestação da extinção do contrato por anulabilidade nesse contexto declarada);
IV – O disposto no artigo 22º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) não impede a oponibilidade da referida anulabilidade do contrato pela seguradora aos lesados pelo acidente e, reflexamente, ao Fundo de Garantia Automóvel, quando esta entidade exerce a sub-rogação decorrente de ter assumido, perante esses lesados, a responsabilidade indemnizatória emergente do referido acidente.
[…]”.

            Note-se que não constitui óbice ao uso deste Acórdão como precedente no contexto da presente situação, a circunstância de ter estado em causa, aí nessa outra situação, a Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo Decreto-Lei nº 72/2008 e não o regime do contrato de seguro (o regime aqui em causa) decorrente dos artigos 425º a 462º do Código Comercial (e o mesmo se diga do DL 522/85 e do DL 291/2007). De facto, e este ponto é tratado no texto desse anterior Acórdão[14], em qualquer dos enquadramentos legais do contrato de seguro chegaríamos ao mesmo resultado a respeito da oponibilidade ao Fundo de Garantia Automóvel da anulação do contrato por inexactidão dolosa quanto à identidade do condutor habitual.

            Valem aqui, assim, os argumentos constantes dessa outra decisão, propiciando eles – e é o que aqui interessa sublinhar – a solução da questão da oponibilidade da anulação do contrato de seguro obtida pela 1ª R. ao aqui A., Fundo de Garantia Automóvel. Aliás, se nessa outra acção a anulação foi exercida por via de excepção deduzida pela seguradora no próprio processo, não se colocam as coisas em termos distintos quando essa anulação foi declarada em anterior pronunciamento judicial.

            O significado da incidência afirmada no presente caso afasta a responsabilidade da seguradora 1ª R., ora Apelante, quanto ao ressarcimento do Fundo de Garantia, referenciando antes essa responsabilidade ao 2º R., como causador exclusivo do sinistro gerador da responsabilidade delitual aqui em causa. Este, o 2º R., P… terá de satisfazer ao A. o montante indemnizatório apurado na primeira instância: €68.343,45. Na satisfação deste à A. haverá que condenar o 2º R. no quadro desta apelação.

            Entretanto, corresponde este resultado à procedência integral do recurso da 2ª R.


III – Decisão

            3. Por tudo o que antes se expôs, na procedência do recurso, com a consequente revogação da Sentença apelada na parte aqui em causa, vai a R./Apelante M…, S.A. absolvida do pedido, condenando-se o R. P… a satisfazer ao A./Apelado Fundo de Garantia Automóvel o valor de €68.343,45, com juros à taxa legal, contados desde a citação deste R. até integral pagamento.

            Custas em primeira instância a cargo do 2º R., pagando ele a percentagem correspondente ao vencimento do Fundo aí fixada (31,98%). Custas desta instância de recurso a cargo do mesmo 2º R. (o A. está isento, em qualquer dos casos, nos termos do artigo 4º, nº 1, alínea o) do Regulamento das Custas Processuais).
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 10/02/2015 

(J. A. Teles Pereira .- Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Formula a A. nestes termos o respectivo pedido:
“[…]

Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, julgando-se o contrato de seguro titulado pela apólice nº … e celebrado com a 1ª Ré válido e eficaz, e aplicável ao caso concreto e condenando-se a Ré seguradora a pagar ao A a quantia de €213,691,38, a que acresce a quantia de despesas de gestão que se apurarem até final do processo e que se relegam para liquidação em execução de sentença, bem como ainda em juros de mora vincendos a contar desde a citação e até ao integral pagamento.

Subsidiariamente, caso não se venha a julgar o seguro em causa válido e eficaz, bem como aplicável ao caso sub judice, deverá ser condenado no pedido acima descrito, o 2ºRéu.
[…]”.
[2] Considerou aplicável, nos termos do artigo 498º, nº 3 do CC, o prazo prescricional de cinco anos respeitante ao crime.
[3] A este respeito, interessa, resumidamente, o seguinte trecho da Sentença:
“[…]
[I]ndependentemente da questão de saber se a ré ‘M…, S.A.’ podia efetivamente anular o contrato de seguro – questão que foi resolvida em ação intentada pela ora ré ‘M…, S.A.’ contra o tomador do seguro, sem que, todavia, vincule o ora réu P… e o autor –, sempre se deverá concluir pela inoponibilidade do vício em relação ao lesado e, por efeito da sub-rogação de que goza o autor, também em relação a este.
[…]”.
[4] Interessa aqui como precedente, com contínua relevância no CPC actual, o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[5] Consideramos aqui ter a Apelante, algo tangencialmente ao limiar legal, dado cumprimento aos ónus argumentativos impostos ao impugnante pelo artigo 640º, nºs 1 e 2. 
[6]Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança.”.
[7] “Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.”.
[8] V. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4ª ed., Lisboa, 2007, pp. 686/687.
[9] Sem a preocupação de sermos exaustivos, indicamos por ordem cronológica, expressando as duas soluções, as seguintes decisões:
* Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/06/2007 (Pereira da Rocha), proferido no processo nº 473/07-1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/175bd96f581bb1bb80257379002eae3.
“[…]
O direito de sub-rogação legal, a favor do Fundo de Garantia Automóvel, nos direitos do lesado, por lhe haver satisfeito a indemnização, previsto no art.º 25.º, n.º 1, do DL 522/85 de 31/12, na redacção do DL 122-A/86 de 30/6, por a sub-rogação legal constituir a transmissão legal do direito do lesado a favor de quem, em substituição do devedor, cumpre a obrigação a que este estava adstrito (art.ºs 592.º, n.ºs 1 e 2, e 593.º, n.º 1, do Código Civil), está sujeito ao mesmo regime de prescrição do direito do lesado à indemnização (art.º 308.º, n.º 1, do CC), nomeadamente ao prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe assistia, em princípio da data do acidente, previsto no art.º 498.º, n.º 1, do Código Civil, e às respectivas suspensão e interrupção do prazo da prescrição, não estando, por conseguinte, sujeito ao prazo ordinário de prescrição de vinte anos previsto no art.º 309.º do CC, nem ao prazo especial de prescrição de três anos previsto no art.º 498.º, n.º 2, do CC para o direito de regresso entre os responsáveis civis pela indemnização, contados a partir da data da sub-rogação legal pelo Fundo de Garantia Automóvel.
[…]”.
* Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/03/2011 (Vaz Gomes), proferido no processo nº 582/09.1TJLSB.L1-2, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ca320187a8eca2ae802578840051256c.
“[…]
Não resultando dos exactos termos da lei que o direito aos reembolso das quantias pagas ao lesado pelo Fundo como um verdadeiro direito novo, sub-rogando-se o Fundo nos direitos do lesado, adquirindo, na medida da satisfação dada ao direito do lesado credor, os poderes que ao lesado competiam (art.ºs 593/1 do CCiv), inexistindo norma ou dispositivo legal no DL 522/85 que expressamente estabeleça o prazo prescricional para essa situação, nem por isso se aplica o prazo prescricional de 20 anos do art.º 309 do CCiv, antes o prazo que o Código Civil estabelece para o exercício do direito de regresso entre os responsáveis, estabelecido no 2 do art.º 498 do CCiv, prazo esse que, não sendo a norma de cariz excepcional, se aplica ao caso que nos ocupa dada a similitude da função recuperadora creditícia das duas figuras (art.ºs 10 e 11 do CCiv).
[…]”.
* Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2012 (Gregório de Jesus), proferido no processo nº 82-C/2000.C1.S1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/91aac4b5cb46805f80257a29003e280e.
“[…]
I - Tendo o FGA pago aos lesados a indemnização que lhes foi arbitrada na decisão condenatória proferida em acção declarativa – em cujo pagamento foi condenado solidariamente com o condutor do veículo responsável pela produção do acidente de viação em causa –, ficou, legalmente, sub-rogado nos direitos daqueles.
II - Configura-se no art. 25.º, n.º 1, do DL n.º 522/85, de 31-12, uma verdadeira sub-rogação legal, em que a investidura do solvens FGA na posição até então ocupada pelos credores, os lesados/autores da sobredita acção declarativa, se dá ope legis, independentemente de qualquer declaração de vontade do credor ou do devedor nesse sentido, abarcando os interesses dos garantes do direito transmitido (art. 592.º, n.º 1, do CC); nessa medida, de acordo com o disposto no art. 593.º, n.º 1, do CC, o sub-rogado FGA adquire, na medida da satisfação do interesse dos credores, os poderes que a estes competiam.
III - Constituindo a sentença exequenda título executivo, tem o FGA, como sub-rogado nos direitos dos lesados, legitimidade para, com base nela, instaurar execução contra o condenado solidário.
IV - Se os lesados/autores que, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, dispunham do prazo de três anos para fazer valer o seu direito à indemnização (art. 498º, n.º 1, do CC), após o trânsito em julgado da sentença que obtiveram na aludida acção declaratória passaram a dispor de um novo prazo de vinte anos para exercitar o seu direito (art. 311.º, n.º 1, do CC), forçoso é então reconhecer que o FGA, sub-rogado nos direitos daqueles, investido na posição jurídica até aí pertencente àqueles, ficou com os mesmos direitos dos lesados.

V - Considerando que o direito está definido pela sentença dada à execução e que o FGA ocupa, pelo pagamento das indemnizações, o lugar dos lesados, ficou também ele com o direito de pedir o pagamento das indemnizações que satisfez aos lesados no prazo de vinte anos a partir do trânsito em julgado em causa.
[…]”.
* Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/2013 (João Bernardo), proferido no processo nº 157-E/1996.G1.S1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b5226a03f42e5da180257af0005122ef.
“[…]

1 . O dies a quo da contagem do prazo prescricional relativamente ao direito que assiste ao FGA, emergente de sub-rogação por ter satisfeito a indemnização relativa a acidente de viação, corresponde ao do pagamento.

2 . Prima facie e por analogia, tal prazo é o fixado no nº 2 do artigo 498º do Código Civil.

3 . Mas se o direito do FGA estiver reconhecido por sentença transitada em julgado ou outro título executivo vale o prazo prescricional de vinte anos previsto no artigo 309.º deste código, exceto quanto às prestações vincendas (nestas se incluindo os juros vincendos) que é de 5 anos.

4 . A sentença em que se condenam solidariamente o FGA e os responsáveis civis a pagarem indemnização ao lesado constitui reconhecimento para estes efeitos, dado o disposto no artigo 56.º, n.º1 do Código de Processo Civil.

5 . As certidões emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal nos termos do n.º5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º289/2001, de 13.11, atestando o pagamento de indemnizações aos lesados pelo FGA, constituem documentos autênticos e fazem prova plena de tal pagamento.
[…]”. 
[10] V., sobre a caracterização das situações que revelam o propósito interpretativo subjacente à lei nova, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 4ª ed., reformulada e actualizada, Coimbra, 2012, p. 859.
[11] V. item 1.2. supra e nota 5 nessa parte do texto deste Acórdão.
[12] Que a Apelante, aliás, cita nas suas alegações.
[13] Disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/87aaa2bd51794a5380257c3d004c00e.
[14] Remetemos para o respectivo item 2.2.2. registado na localização indicada na antecedente nota:
“[…]
2.2.2. Opera tal incidência – a anulabilidade por omissão dolosa –, como resulta do trecho final do nº 1 do artigo 25º da LCS ‘mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro’. Ora, centrando-nos apenas nas incidências do caso concreto, no qual o fundamento da anulabilidade ocorreu concomitantemente à formação do contrato de seguro (está esse elemento mesmo na génese do contrato marcando-o indelevelmente), mas só foi descoberto pela seguradora com o sinistro (quando foi “confessada” pelos indutores do erro no próprio procedimento de regularização do sinistro), neste quadro de facto, dizíamos, a declaração da seguradora ao tomador visando a anulabilidade aparece-nos sob a forma de excepção peremptória invocada na presente acção quando a seguradora intervém em função da atribuição a ela, pelos RR. originários, da responsabilidade que a eles era (originariamente e em exclusivo) referida pelo A. Vale esta defesa, pois – é o que aqui entendemos –, com o sentido de declaração ao destinatário em vista da produção do efeito anulatório previsto no artigo 25º, nº 1 da LCS.
Esta forma de declaração da seguradora em vista da anulabilidade do contrato de seguro por inexactidão dolosa reportada à declaração inicial de risco pelo tomador, constitui uma forma habitual e adequada, que já era equacionada no regime do artigo 429º do Código Comercial e do DL nº 522/85, e continua a valer inteiramente no regime actual (artigo 25º, nº 1 da LCS e DL nº 291/2007). Esta asserção, referida ao regime anterior (especificamente ao artigo 14º do DL nº 522/85), é afirmada expressamente por José Alberto Vieira: “[n]a prática como a invalidade do contrato de seguro ocorre no momento da sua celebração e não em momento posterior, a seguradora nunca vê afectado o seu direito a excepcionar a nulidade (ou a anulabilidade para quem entenda ser esta a invalidade em causa) do contrato de seguro celebrado com falsas declarações por força do artigo 14º do DL nº 522/85”
[22].
Assenta este entendimento numa particular caracterização do sentido do artigo 14º da anterior lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, entendimento antagónico da leitura deste preceito realizada na decisão aqui recorrida, sendo que entendemos que essa outra caracterização vale, por total paralelismo das normas e absoluta identidade de razão, para o actual artigo 22º do DL nº 291/2007 (v. os textos respectivos nas notas 18 e 19 supra). A este respeito, refere José Alberto Vieira:
‘[…]
Concluímos, afirmando que o artigo 14º do DL nº 522/85 admite a oponibilidade da invalidade do contrato de seguro por falsas declarações do tomador de seguro, mesmo quando se interpreta o artigo 429º do Código Comercial no sentido de consagrar a anulabilidade do contrato de seguro.
[…]
O artigo 14º não coarcta à seguradora o direito a defender-se por invocação da invalidade do contrato de seguro ou de qualquer facto extintivo do mesmo.
[O] artigo 14º veda unicamente a oponibilidade ao lesado dos fundamentos de extinção ou de invalidade do contrato de seguro que sejam posteriores ao sinistro do qual resultou o seu direito de indemnização e não estabelece que qualquer daqueles fundamentos deva ter sido judicialmente declarado como condição de oponibilidade ao lesado.
[…]’(sublinhado acrescentado).

E este mesmo entendimento é actualizadamente referenciado por Luís Poças ao artigo 22º do DL nº 291/2007, no quadro da anulabilidade estabelecida no artigo 25º, nº 1 da LCS:
‘[…]
[O] artigo 22º visa apenas impedir a oponibilidade ao lesado das causas de extinção posteriores ao sinistro, não requerendo (como requisito de oponibilidade) que as causas anteriores ao sinistro tenham sido judicialmente reconhecidas.

[…]’.
[…]” (notas no original aqui omitidas).