ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.
1.
J (…) e mulher E (…), intentaram contra M (…) ação de condenação, declarativa constitutiva, com processo comum.
Pediram:
Que seja declarada a nulidade do contrato de arrendamento em vigor entre as partes, com a consequente restituição do locado por parte da ré.
Alegaram:
O locado destinou-se a fins não habitacionais, o contrato que foi celebrado em 1976 entre a ré e os anteriores proprietários não foi reduzido a escrito, pelo que enferma de nulidade nos termos conjugados dos arts. 1069.º e 220.º do Código Civil, recusando a ré a proposta dos autores em reduzi-lo a escrito.
A ré contestou.
Alegou que a culpa por o contrato ainda não ter sido reduzido a escrito é exclusivamente dos autores, pois que pretendem obter, ilegalmente, aumento de renda.
Concluiu pugnando pela improcedência da ação.
2.
Em sede de despacho saneador foi proferida a seguinte sentença:
«Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a acção totalmente improcedente e, em consequência:
A – Não declarar a nulidade por vício de forma do contrato de arrendamento…»
3.
Inconformados recorreram os autores.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª O tribunal “a quo” decidiu considerar improcedente a presente acção justificando, resumidamente, a sua douta sentença da seguinte forma, “Uma vez que este contrato de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal foi celebrado em 1976, é-lhe aplicável o art. 1029.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 67/75, de 19/02, o que significa que os Autores não têm legitimidade para arguir a nulidade deste contrato com fundamento na inobservância da forma legalmente prescrita, sendo que o tribunal também não a pode declarar oficiosamente.” 2ª No caso dos autos, destinando-se o locado ao exercício da actividade de restauração, temos um contrato de arrendamento urbano para comércio ou indústria.
3ª Estando adquirido que o contrato é de 1976, como é a lei em vigor à data da respectiva celebração que regula as condições da sua validade formal, não é aqui convocável o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) nem a redacção dada ao artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril. Estas alterações não tiveram carácter interpretativo, pelo que não têm aplicação aos contratos vigentes à data da sua entrada em vigor. Antes se trataram de lei nova, sem eficácia retroactiva (artigo 12º, 2, do Código Civil). Nesta conformidade, concordamos com o tribunal “a quo” em que as condições de validade do negócio em causa são reguladas pela lei em vigor à data da sua celebração.
(sublinhado nosso)
4ª O disposto no citado art. 1029º nº03 do CC, na redacção vigente à data do início do contrato, reporta-se apenas e expressamente à arguição de nulidade por falta de escritura pública, que não por ausência de redução do contrato a escrito
5ª Os recorrentes consideram que a falta de escrito sempre implicará a nulidade do contrato de arrendamento por força do regime geral das invalidades por vício de forma, pois estando em causa um contrato de arrendamento comercial, a forma escrita sempre seria exigida para a sua prova. Tendo sido verbalmente celebrado, o mesmo sempre estaria afectado de nulidade, já que a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220º do Código Civil). Invalidade que, inspirada em razões de interesse e ordem pública, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286º do Código Civil). Nulidade que a sentença recorrida afastou, indevidamente, pela interpretação que deu ao revogado art.1029º nº03 do Cód. Civil. Assim, considera-se que o contrato dos autos é nulo por ser verbal, nos termos dos arts.220º e 286º do C.C.
6ª Os recorrentes nunca actuaram junto da recorrida reconhecendo-a como inquilina nem agiram criando-lhe confiança para o futuro e na irreversibilidade do contrato.
7ª A nulidade é, como sabemos, de conhecimento oficioso (art. 286º do C. Civil).
Inexistiram contra alegações.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
Declaração da nulidade do contrato e entrega do locado aos autores.
5.
Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, celebrada em 11/04/2012, os Autores compraram o prédio urbano sito na Rua (...) , em Termas de M (...) , composto por prédio em propriedade total com dois pisos e quatro andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1725, anterior artigo 1374, da União das Freguesias de M (...) e S (...) .
2. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio referido no ponto 1.
3. Em data não concretamente determinada do ano de 1976, por acordo verbal, a Ré tomou de arrendamento o rés-do-chão, fracção D, do prédio referido no ponto 1.
4. O arrendamento foi destinado a estabelecimento de restauração e bebidas.
5. Por escritura pública de trespasse de estabelecimento comercial, celebrada em 11/09/1976, o estabelecimento comercial de comércio de café, chá, chocolate, leite, cerveja e outras bebidas e pastelaria, instalado no rés-do-chão do prédio referido no ponto 1. foi trespassado à Ré e ao seu marido.
6. Pela compra referida no ponto 1., os Autores sucederam em todos os direitos e obrigações dos transmitentes, incluindo a sua posição contratual no contrato de arrendamento ora em apreço.
6.
Apreciando.
O julgador decidiu alcandorado no seguinte, nuclear, discurso argumentativo:
«…(importa)atentar na regra geral de aplicação no tempo das leis reguladoras da forma dos actos jurídicos (tempus regit actum), consagrada nos n.ºs 1 e 2 do art. 12.º do Código Civil. A norma ressalva expressamente, quanto às relações já constituídas, as condições da sua validade formal e substancial. Com efeito, o contrato, enquanto acto constitutivo de uma relação jurídica, é um facto que se produziu inteiramente num certo momento do passado, pelo que, as exigências de validade formal e substancial devem ser regidas pela lei em vigor nesse momento.
…nos termos do art. 1069.º do Código Civil, o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. Sendo que a inobservância da forma legalmente exigida importa a nulidade do contrato, nos termos do art. 220.º do Código Civil.
Vimos, no entanto, que segundo a regra geral de aplicação no tempo das leis reguladoras da forma dos actos jurídicos – art. 12.º, n.º 1 do CC –, o regime que regula a validade formal e substancial do presente contrato de arrendamento é o Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 67/75, de 19/02.
Ora, nesta versão do Código Civil, a norma que rege sobre a forma dos contratos de arrendamento encontra-se no art. 1029.º, n.ºs 1 e 2.
Nos termos desse art. 1029.º, n.º 1, al. b), os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal deviam ser celebrados por escritura pública. A falta de escritura pública era cominada com a nulidade do contrato nos termos do art. 220.º do mesmo código.
Assim sendo, não tendo o presente contrato de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal sido celebrado por escritura pública – nem tampouco foi reduzido a escrito – é forçoso reconhecer que o referido contrato é nulo por vício de forma, nos termos dos arts. 1029.º, n.º 1, al. b) e 220.º, ambos do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 67/75, de 19/02.
Mas …
O Decreto-Lei n.º 67/75, de 19/02, veio aditar um n.º 3 ao já referido art. 1029.º do CC com o seguinte teor: “No caso da alínea b) do n.º 1.º, a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio”…
Só a parte contrária (o locatário) podia alegar a nulidade do contrato, mesmo que, na realidade dos factos, fosse ela a única culpada da falta do documento; Se, em lugar da nulidade, o locatário preferisse a validade da locação, ser-lhe-ia permitido recorrer a qualquer meio de prova, designadamente à prova testemunhal, para demonstrar a existência do contrato”
…o locador não podia, em circunstância alguma, arguir a nulidade do contrato de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal por falta de celebração da escritura pública.
E por incrível que possa parecer, este regime vigorou até à aprovação do RAU pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, que no seu art. 5.º ditou que fosse “revogado o n.º 3 do artigo 1029.º do Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 67/75, de 19 de Fevereiro”.
Contudo, o art. 6.º do mesmo diploma ressalvava que “O disposto nos artigos 7.º e 8.º do Regime do Arrendamento Urbano [relativos à forma e conteúdo do contrato] não prejudica os precisos efeitos que os artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro, e 1029.º, n.º 3 do Código Civil reconheciam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma”.
Ou seja, o art. 6.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, que aprovou o RAU, manteve a aplicação do n.º 3 do art. 1029.º do Código Civil aos contratos que vinham do passado (contratos celebrados antes da entrada em vigor do RAU).
Situação que ainda hoje se mantém visto que o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, não foi revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, que aprovou o NRAU. Com efeito, o art. 60.º desta Lei revoga o RAU (com excepção de algumas matérias), mas não revoga o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10.»
Este discurso mostra-se, em tese, curial, e, no que ao caso concreto concerne, certo e adequado, considerando os seus contornos, rectius os factos dados como provados.
Efetivamente:
«Conforme se estabelece no art. 59º, nº1, do NRAU, este regime aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
Conforme preceitua o art. 26º, do NRAU..por força do disposto no art. 28º, os contratos para fins não habitacionais celebrados antes de 5 de Outubro de 1995, data da entrada em vigor do DL 257/95, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades ai previstas.
Porém, relativamente à validade, atendendo ao disposto no art. 12º, nº2, do CC, os negócios jurídicos válidos face à lei vigente, no momento da sua conclusão, não verão essa validade e a correspondente eficácia afectada pela entrada em vigor de uma nova lei que passe a exigir outros requisitos de substância ou de forma, que não preenchem por não serem necessários na data da sua conclusão.» - Ac. da RL. 23.06.2009, p. 104/2008-7 in dgsi.pt.
Assim:
« Celebrado verbalmente, em 1989, um contrato de arrendamento comercial, quando era exigida a escritura pública, só ao locatário é reconhecida legitimidade para arguir a nulidade do contrato por inobservância de forma. Não tendo o locador oposto que essa inobservância decorreu da conduta da locatária, resulta inconsequente a sua evocação pelo locador.» - Ac. da RP de 08.05.2012, p. 1181/09.3TVPRT.P1.
Na verdade, e independentemente da crítica que, de jure constituendo e em termos de política legislativa, se possa fazer à justeza do nº3 do artº 1029º do CC na redação pretérita, certo é que ela estava vigente à data da celebração do contrato em causa.
Tal cláusula constituiu uma salvaguarda e proteção da posição do locatário, sendo suposto que este, quando celebrou o contrato, com esta proteção contou.
Pois que se assim não fosse, ele poderia salvaguardar-se celebrando o contrato por escritura pública, sendo concebível que assim não atuou por considerar que a sua posição estaria acautelada por tal segmento normativo.
Urge, pois, por chamamento do princípio previsto no artº 12º nº2 e daqueloutro atinente à proteção das legítimas expectativas futuras dos contraentes que se vincularam no âmbito de uma dada previsão/proteção legal, concluir que a questão da nulidade dos contratos celebrados ao abrigo de tal segmento por ele continua a ser tutelada.
Tanto assim que, como bem se aduz na decisão, não obstante este segmento ter sido revogado pelo artº 5º nº1 do DL321-A/90 de 15/10, a revogação apenas opera para contratos celebrados após a mesma.
Pois que o legislador, logo no artº 6º, sob a epígrafe Invalidades mistas de pretérito, excluiu dos efeitos de tal revogação os contratos anteriormente celebrados, nos seguintes termos:
«O disposto nos artigos 7.º e 8.º do Regime do Arrendamento Urbano não prejudica os precisos efeitos que os artigos 1.º do Decreto-Lei n.º 13/86, de 23 de Janeiro, e 1029.º, n.º 3, do Código Civil reconheciam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma.».
E, como sagazmente o Sr. Juiz outrossim plasmou, este preceito encontra-se ainda em vigor, pois que: « o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10, não foi revogado pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, que aprovou o NRAU. Com efeito, o art. 60.º desta Lei revoga o RAU (com excepção de algumas matérias), mas não revoga o Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10.»
Na verdade, em termos jurídico formais, o diploma que aprova certa legislação não se confunde com o corpo normativo por ele aprovado.
Até porque nele se inserem normas de direito transitório que pretendem operar a transição harmoniosa de regimes, pelo que, por via de regra, tais normas valem em si e por si, assumindo autonomia.
Pelo que, se não forem expressamente revogadas, mantêm-se em vigor quanto à matéria nelas regulada, salvo se conflituarem, expressa e intoleravelmente, com a nova lei.
E, no caso vertente, não conflituam, antes, pelo contrário, as razões - certeza, segurança e proteção das legítimas expectativas - que presidiram à exclusão, pelo citado artº 6º do DL 321-B/90, dos contratos anteriores ao efeito da revogação do mencionado nº3 do artº 1029º, qual seja, a possibilidade de também o locador poder invocar a nulidade do contrato por falta de forma legal, mantêm-se.
Decorrentemente, e relativamente aos contratos celebrados na vigência de tal segmento, a nulidade por falta de forma continua a poder ser invocada apenas pelo inquilino.
No caso vertente o recorrente aceita esta interpretação.
Porém, aduz que ela não tem aplicação, pois que:
«O disposto no citado art. 1029º nº03 do CC, na redacção vigente à data do início do contrato, reporta-se apenas e expressamente à arguição de nulidade por falta de escritura pública, que não por ausência de redução do contrato a escrito
5ª Os recorrentes consideram que a falta de escrito sempre implicará a nulidade do contrato de arrendamento por força do regime geral das invalidades por vício de forma, pois estando em causa um contrato de arrendamento comercial, a forma escrita sempre seria exigida para a sua prova. Tendo sido verbalmente celebrado, o mesmo sempre estaria afectado de nulidade…»
Esta argumentação, obviamente, não colhe.
A nulidade emerge no caso de preterição de escritura pública.
Esta não é apenas elemento ad probationem, antes constituindo requisito ad substanciam, ie. atinente à (in)validade e (in)eficácia do contrato.
Assim, se esta escritura não tiver sido outorgada, o contrato é nulo quer ele tenha sido celebrado por mero escrito particular, quer ele tenha sido celebrado apenas verbalmente.
E, bem assim, o nº3 do artº 1029, releva e pode ser invocado, no caso de o contrato ser nulo por falta de escritura publica, independentemente de ele ter sido celebrado por escrito particular ou verbalmente.
A lei, para que o nº3 seja invocável, não opera qualquer destrinça quanto aos motivos da nulidade. E onde a lei não distingue não cumpre a intérprete distinguir.
Destarte, desde que a nulidade emirja, este segmento é, para os contratos celebrados na sua vigência, como o presente, válido, relevante, eficaz, e invocável.
E, até, de conhecimento oficioso.
Quer porque, de jure novit curia, quer por aplicação, ao menos mutatis mutandis, do disposto no artº 286º do CC.
Improcede o recurso.
7.
Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.
O artº 1029º nº3 do CC na redação dada pelo DL n.º 67/75, de 19/02 continua a aplicar-se aos contratos de arrendamento para comércio ou indústria celebrados durante a sua vigência – artº 6º do DL 321-B/90 de 15/10 –, pelo que apenas o locatário pode invocar a sua nulidade por preterição da forma legal então exigível: escritura pública.
8.
Deliberação.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pelo recorrente.
Coimbra, 2017.06.20.
Carlos Moreira ( Relator)
Moreira do Carmo
Fonte Ramos