Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1416/12.5TBCVL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
EXECUÇÃO
PENHORA
RENDIMENTO INTANGÍVEL
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - INST. CENTRAL - 2ª SEC. F. MEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 2008 CC, 189 OTM, 738 Nº4 CPC
Sumário: 1.- Estando em causa a realização coerciva do direito a prestação alimentar de filhos menores, o referencial do rendimento intangível, para assegurar a subsistência do obrigado, é a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

2.- A norma do art.738º, nº4, do Código de Processo Civil, opera um balanceamento adequado entre o mínimo de existência constitucionalmente garantido ao progenitor, vinculado a um dever alimentar fundamental, e o próprio direito à dignidade e sobrevivência do filho.

Decisão Texto Integral:            

            Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

J (…) apresentou oposição à execução por alimentos, em que é exequente o Ministério Público, em representação dos filhos menores daquele, pedindo que não seja retirado qualquer montante do seu salário ou que seja reduzido o desconto para 100 euros mensais.

Para tanto, aquele alegou, em síntese:

As contas foram apresentadas à revelia do executado, desconhecendo este a origem e os dados concretos que permitiram o cômputo final.

A situação sócio económica do executado alterou-se para pior: aquando do acordo em 2009, no pagamento mensal de 240 euros, o executado obtinha um vencimento mensal de 1200 euros líquidos; hoje aufere um vencimento mensal de 646 euros, tem despesas com a renda de casa, 350 euros mensais, com a aquisição de carro, 260 euros mensais, condomínio de 40 euros mensais, água, eletricidade de 65 euros mensais e gás de 54 euros. A companheira do executado aufere um salário de 576,18 euros mensais, tendo um filho de 15 anos, que vive com o agregado familiar do executado. Ambos têm uma filha com 17 meses.

É impenhorável o equivalente a um salário mínimo nacional.

Sofre de inconstitucionalidade material a penhora efetuada.

O pedido do executado foi indeferido liminarmente.


*

Inconformado, o executado recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1 – A sentença em causa enferma de ilegalidade, por erro material ou lapso manifesto;

2 – Inexequibilidade do título executivo, artº 729º al. a), c) e e) do CPC;

3 – Bem como se encontra eivada de inconstitucionalidade a decisão judicial;

4 – Clara contradição entre os factos provados, fundamentação e decisão, o que determina a nulidade da sentença;

5 – Falta de fundamentação do direito e de facto, mormente quando diz

“quanto à impenhorabilidade” aridamente;

6 – A sentença não teve em consideração os Relatórios da Segurança Social, estando exaurido o executado, sem margem de sobrevivência, iminentemente no que tange à menor B (…) ajudado pelo Banco Alimentar, temporariamente, mas que será retirado a breve trecho, porquanto só existe para desempregados;

Nestes termos deverão proceder as nulidades invocadas, ser a sentença julgada totalmente improcedente e os embargos decretados, excluindo a penhora ao salário. Ou atentos os considerandos tecidos, solicita, respeitosamente a V. Exa. a retificação dos manifestos lapsos, dando continuidade aos embargos, tudo isso sem quebra do respeito devido ou isentar de penhora, ou reduzir a penhora mensal para o mínimo da sobrevivência e dignidade humana.


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            O Ministério Público contra-alegou, defendendo a legalidade e a constitucionalidade da decisão recorrida.

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            Questões que importa decidir:

            A nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação e por contradição;

            A inexequibilidade do título executivo, face ao disposto no art. 729º, alíneas a), c) e e), do Código de Processo Civil;

            Os limites da penhora e o desconto concreto sobre o salário.


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            Estão provados os seguintes factos (embora não destacados na decisão recorrida):

A execução especial de alimentos, nº 1416/12.5TBCVLC, funda-se em sentença judicial proferida em 30.10.2013, transitada em 29.11.2013, nos autos de Incumprimento das Responsabilidades Parentais, apensos, na qual se julgou verificado o

incumprimento por parte do ora Recorrente e se condenou o mesmo a pagar 5.125,24 Euros, correspondentes a quantias devidas de prestação de alimentos e de despesas médicas e escolares, relativas aos seus filhos menores B (…) e B (…).

A condenação naquele valor resultou da confissão do devedor Recorrente.

No seu recibo de salário de janeiro de 2015 (o mais recente no processo) constam recebimentos de 1.207 € e descontos de 514 €, nestes últimos já incluídos os relativos à pensão de alimentos (240 €) e à penhora (106 €).

Corre já o apenso E, relativo ao pedido de alteração da regulação das responsabilidades parentais


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A nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação e por contradição.

O artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República impõe que as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.

            Obedecendo a esse comando constitucional, no Código de Processo Civil, o n.º 1 do artigo 154º estabelece que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, acrescentando o artigo 615º,1,b), que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

            E diz-nos ainda o art.607º, nº4, que a decisão sobre a matéria de facto declara quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

            A fundamentação consiste no conjunto nas razões de facto e/ou de direito em que assenta a decisão; os motivos pelos quais se decidiu de determinada maneira. Se a decisão é a conclusão de um raciocínio, a fundamentação são as premissas de que ela emerge.

            No que toca à fundamentação jurídica, ela contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada.

            No atual quadro constitucional, em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de

direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.

            (ver acórdãos do STJ, de 2.3.2011, processo 161/05.2TBPRD.P1.S1 e da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, processo 1483/09.9TBTMR.C1, em www.dgsi.pt; ainda L.Freitas, M.Machado, R.Pinto, C.P.C. Anotado, vol.2º, 2ª edição, C.Editora, pág.661.)

E conforme dispõe o art.615º, nº1, c), do Código de Processo Civil, a sentença é ainda nula quando os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão.

            “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.” (L. Freitas, M. Machado, R. Pinto, C.P.C. Anotado, volume 2, 2ª edição, Coimbra Editora, página 704.)

Estes vícios respeitam à estrutura da sentença, decorrendo de erro de construção ou de formação desta e não se confundem com o da sentença injusta que é fruto de um erro de julgamento dos factos ou das normas jurídicas aplicáveis.

            Confrontemos então estes normativos com a sentença proferida.

            Embora esta não tenha destacado os factos provados, ela pronunciou-se sobre os limites da penhora, que considerou respeitados, e sobre a exequibilidade do título executivo, considerando que se executa uma sentença, contra a qual não se invocou fundamento legítimo de oposição, de acordo com o art.729º do Código de Processo Civil (doravante CPC).

            A falta de destaque dos factos provados terá decorrido do facto de se tratar de um despacho liminar que aborda razões formais de indeferimento, não significando isso que não os relevou ao longo das suas considerações jurídicas.

Os seus termos, dada a relativa simplicidade das questões envolvidas, permitem ao destinatário da decisão a perceção das suas razões de facto e de direito.

Não se vislumbra também qualquer contradição lógica entre os fundamentos e a decisão.

Neste contexto, improcede a arguição, inexistindo as nulidades invocadas.


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A inexequibilidade do título executivo, face ao disposto no art. 729º, alíneas a), c) e e), do CPC.

A sentença judicial condenatória é título executivo, como o refere o artigo 703º, nº 1, alínea a), da lei em análise.

A sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo (art.704º, nº1, do CPC).

Contra a execução baseada em sentença só pode haver oposição baseada em fundamento referido no artigo 729º do CPC.

O Recorrente invoca formalmente os seguintes:

a) Inexistência ou inexequibilidade do título;

(…)

c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;

(…)

e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução.

Nenhum destes fundamentos está preenchido.

Quanto à alínea a), a sentença em causa é condenatória e transitou em julgado.

Relativamente à alínea c), o Recorrente confunde a instância declarativa e a executiva e invoca apenas vícios relativos à primeira. Nela, ao contrário do que parece concluir, no processo de incumprimento das obrigações parentais, nos termos do art.151º da Organização Tutelar de Menores, não é obrigatória a constituição de advogado (salvo na fase de recurso) e consta ter sido respeitado o contraditório, não podendo aqui alegar desconhecimento das contas apresentadas.

Em face da alínea e), facilmente constatamos que a condenação do Recorrente progenitor é concretizada em obrigação certa (qualitativamente determinada), exigível (não sujeita a condição ou a prazo por verificar) e líquida (quantitativamente determinada).


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Limites da penhora e o desconto concreto sobre o salário.

Está em causa a realização coerciva do direito a prestação alimentar de filhos menores.

O direito a alimentos é indisponível, não podendo ser renunciado ou cedido (artigo 2008º do Código Civil).

Porém, como forma de assegurar o limiar de subsistência do obrigado, tornou-se essencial definir o referencial do rendimento intangível deste.

O Supremo Tribunal já considerou que, “estando em causa a realização coerciva do direito a prestação alimentar no confronto de filho menor, o referencial do rendimento intangível, - como forma de assegurar o limiar de subsistência do obrigado , titular de subsídio de desemprego, operando um balanceamento adequado entre o mínimo de existência constitucionalmente garantido quanto ao progenitor, vinculado a um dever fundamental de prestação de alimentos ao seu filho menor, e o próprio direito à dignidade e sobrevivência do filho - é o rendimento social de inserção – e não o montante do salário mínimo nacional”. (Acórdão de 6.5.2010, no processo 503-D/1996.G1.S1, com referências de decisões do Tribunal Constitucional, em www.dgsi.pt.)

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 306/2005, julgou inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais – e considerou que o referencial de isenção de penhorabilidade não devia ser o critério do salário mínimo nacional mas o critério do rendimento social de inserção.

Este Tribunal também já notou que quando estão em causa obrigações alimentares, o direito do filho menor em assegurar uma existência condiga pode pôr em causa o “direito fundamental a uma existência condigna” do progenitor quando este dispõe de uma concreta pensão social abaixo do rendimento social de inserção. Ou seja, os direitos do filho menor podem entrar em colisão com os direitos fundamentais do progenitor. Assim, «o princípio da essencial dignidade da pessoa humana [impõe que tenha] de ser salvaguardado relativamente a todas as pessoas envolvidas, procurando-se a concordância prática dos respetivos direitos» (Acórdão n.º 312/2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).

Respeitando esta jurisprudência, a norma do art.738º, nº4, do Código de Processo Civil, opera um balanceamento adequado entre o mínimo de existência constitucionalmente garantido quanto ao progenitor, vinculado a um dever fundamental de prestação de alimentos ao seu filho menor, e o próprio direito à dignidade e sobrevivência do filho.

O limite mínimo a respeitar é a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, à data 201,53 €.

O Recorrente invoca estarem a ser retirados do seu vencimento mensal de 646 € os montantes de 240 € (valor das prestações mensais de alimentos devida aos filhos menores B (...) e B (...) ) mais 106 € (1/6 do vencimento para amortização da dívida de 5.125,24 €).

Não é isso o que resulta do seu recibo de vencimento mais recente.

O que se retira deste é que o Recorrente fica com 693 € líquidos depois de descontados 514 €, nestes já contabilizados os 240 € das pensões e os 106 € da penhora.

Aquele valor de 693 € é garantia suficiente da condição de vida do Recorrente.

 Mesmo que assim não fosse, e após aquelas deduções restassem livres ao Recorrente apenas 300 euros mensais, este valor é ainda superior à totalidade da pensão social do regime não contributivo.

Por fim, o Recorrente invoca um conjunto de factos reveladores de uma pretensa alteração da sua situação sócio económica.

Devemos considerar que tais factos são posteriores à sentença que se executa e não são relativos ao julgado incumprimento. Tais factos serão adequados à reponderação de novo valor para as pensões alimentares dos filhos, mas essa avaliação deverá ser feita no processo de alteração da obrigação alimentar parental, que já corre, não em sede executiva.

Por tudo isto, não merece censura a decisão recorrida.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo Recorrente.

            Coimbra, 2016-02-02


Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator )

 António Carvalho Martins

 Carlos Moreira