Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
932/13.6TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
CONFISSÃO
ACTOS INCOMPATÍVEIS
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.312, 313, 314, 317 CC
Sumário: 1.-A prescrição presuntiva cria a favor do devedor a presunção de que cumpriu.

2.-O objectivo dela é o de proteger o devedor da dificuldade de prova e corresponde, em regra, a dívidas que se pagam em prazos curtos e sem que ao devedor seja entregue documento de quitação, ou sem que seja corrente conservá-lo.

3. A presunção só pode ser ilidida por confissão do devedor, expressa ou tácita.

4. Os “actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”, a que se refere o artigo 314º do CódigoCivil, podem traduzir-se, como no caso, na alegação sobre o exagero da cobrança, da parcial responsabilidade do credor e no pedido de esclarecimento da concreta cobrança, alegadamente nunca feito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

J (…), advogado, intentou ação contra P (…), Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe € 7.421,26, acrescido de IVA, e juros vencidos e vincendos até integral pagamento, a título de honorários devidos por ter patrocinado a ré no âmbito de processos tributários.

Alega, findos os referidos processos, solicitou ao legal representante da ré o pagamento pelos serviços prestados, tendo esta protelado o mesmo; só à data da entrada desta petição terminou a sua ligação profissional com a ré, tendo aguardado por tal momento para proceder judicialmente contra esta, a fim de cobrar os honorários que lhe são devidos; apesar de por diversas vezes ter interpelado a ré para proceder ao pagamento dos honorários, esta não o fez.

A ré contestou, invocando a presunção prescritiva nos termos do disposto no artigo 317.º, alínea c) do Código Civil, alegando que pagou tudo quanto lhe foi reclamado; a reclamação é de 8.4.2011 e a ré foi citada em 02.05.2013.

            Realizado o julgamento, foi proferida decisão a julgar procedente a ação e a condenar a ré a pagar ao autor € 9.189,50, (nove mil, cento e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos), com juros de mora, à taxa de juro legal, contados a partir de 29.07.2011 até efetivo e integral pagamento.

A ré foi absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé.


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Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1 – A Nota de Honorários de 27/07/2011 apenas foi junta aos autos em 5/06/2013, data em que a recorrente dela tomou conhecimento através do seu mandatário.

2 – O prazo previsto no art.º 317 alínea c) do C.C. inicia a sua contagem com a cessação da prestação do mandatário.

3 – Tal prestação quanto aos processos fiscais cessou em 28 de Maio de 2009.

4 – Inexiste prova nos autos de qualquer confissão tácita.

5 – Na data da entrada da acção em Juízo em Maio de 2013, mostra-se já ultrapassado o prazo previsto naquele normativo de dois anos (art.º 317 alínea c)

6 - Deve assim ser declarado o cumprimento por parte da Ré, face à prescrição provada que deve ser declarada com as consequências legais nos termos do disposto no art.º 317 alínea c) do C.C.       

7 – Deve por outro lado, ser alterada a matéria dos pontos 23 a 32 dos factos provados, alterando-os para não provados, ou pelo menos referenciando que tais factos não dizem respeito à Ré recorrente, e por jamais ter sido enviada à mesma a nota de honorários referida no ponto 26.

8 – Nessa medida sendo alterados tais factos, por erro de julgamento da matéria de facto, sendo certo que a mesma apenas pode ter por base a prova documental, e assentada do legal representante da Ré, constante da acta de audiência, e nessa medida ser julgado improcedente o pedido por não provado.

9 – A aliás douta sentença violou além do mais o disposto nos art.º 317 alínea c) 312, 1157, 1158, 1161 e 1167, 406, 762 e 799 C.C.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação dos factos assentes sob os nº23 a 26 e 28 a 31 e verificar o funcionamento da prescrição presuntiva da dívida.             


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            Os factos considerados provados foram estes:

1. O Autor é advogado na comarca de Pombal, fazendo da advocacia profissão habitual e lucrativa.

2. O autor vive em exclusivo dos rendimentos da sua atividade profissional.

3. A ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à atividade de exploração de um parque de diversão aquático, no concelho de Pombal.

4. O sócio gerente da ré, (…), contratou os serviços do autor sabendo que ele era um especialista em matéria fiscal.

5. O autor, no início do mês de Outubro de 2001, foi mandatado pela ré para lhe proceder à impugnação judicial de duas coimas nos montantes de € 15.113,57 (3.030.000$00) e 10.225.35€ (2.050.000$00), no valor global de € 25.338.92 (5.080,000$00) fixadas pelo Senhor Diretor de Finanças de Leiria.

6. As referidas coimas foram aplicadas no âmbito de um processo de fiscalização tributária, no qual alegavam os referidos serviços tributários que a R teria indevidamente deduzido imposto de IVA no montante de € 126.345,50 (25.330.000$00), relativo aos trimestres 98.06T e 98.09T do ano de 1998, nos autos de contra-ordenação fiscal numero 0006/01.

7. Porquanto as faturas não tinham as formalidades do artigo 35.º do CIVA para conferirem direito a dedução, dado que a empresa emitente Simão & Ferreira Lda., que prestou os serviços à ré, por falta de capacidade logística para a execução das referidas obras, teria encomendado tais trabalhos a outras duas  empresas (…), sendo invocada a existência de um negócio simulado.

8. O assunto foi estudado e tecnicamente estruturado como um recurso de contra-ordenação, tendo o mesmo dado entrada a 11.10.2001 com as respetivas

alegações e prova testemunhal, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.

9. Entretanto, o autor, a 25.01.2002, deu entrada de uma impugnação judicial fiscal de IVA no mesmo Tribunal.

10. Depois de vários despachos interlocutórios, sempre acompanhados pelo autor, agendamento de inquirição, adiamentos e outros, a 12.08.2002 foi determinada a suspensão dos autos de contra-ordenação até que fosse proferida decisão no processo de impugnação de IVA.

11. A 28.05.2009 foi proferida decisão que julgou o recurso procedente e anulou a decisão do Senhor Diretor de Finanças.

12. No início do mês de junho de 2003, o autor foi contatado pela ré para lhe proceder à impugnação fiscal de duas liquidações de IRC relativas aos anos de 1999 e 2000, nos valores € 40.051,27 e € 9.322,10, respetivamente, no valor global de € 49.373,37€, em consequência de uma visita inspetiva levada a efeitos pelos Serviços de Finanças de Leiria.

13. A ré já tinha reclamado graciosamente das liquidações originárias nos montantes de € 67.619,32 e de € 31.523,66 dos anos de 1999 e 2000, respetivamente obtendo deferimento parcial.

14. O Relatório dos Serviços Inspetivos da Direção de Finanças foi estudado e analisado, tendo o autor deduzido impugnação judicial fiscal em 12.06.2003, acompanhada da respetiva prova documental e testemunhal.

15. Os autos correram a sua tramitação com vários despachos interlocutórios a que o autor foi sempre dando resposta, foi realizada audiência de inquirição de testemunhas e a final veio a ser proferida decisão que julgou a impugnação parcialmente procedente e anulou parcialmente as referidas liquidações.

16. O ERFP recorreu e o TC Administrativo confirmou a referida sentença.

17. Em consequência dos serviços prestados pelo autor a ré teve uma redução em IRC para os anos de 1999 e 2000 de € 39.732,04 e € 7.121,98 e juros de €3.619,43 e € 150,24, respetivamente, no valor global de € 50.623,69.

18. Com os autos fiscais atrás referidos ainda em curso, foi novamente solicitado ao autor que contestasse os autos da ação ordinária n.º 2491/05.4TBPBL que correu termos no 2.º juízo do Tribunal Judicial de Pombal, nos quais a aqui ré era demandada, em conjunto com a companhia de AXA, S.A., no pagamento solidário do montante de € 146.460,00 a título de danos morais e patrimoniais.

19. O autor estudou os referidos autos, elaborou a respetiva contestação, acompanhou e respondeu os despachos interlocutórios, foi realizada a audiência de discussão e julgamento e a final a ré veio a ser absolvida.

20. Entretanto, a 26/01/2004, o autor foi mandatado pelo sócio gerente César Pereira e sua mulher para desencadear um processo executivo no valor € 69.136,71€, por, na qualidade de avalistas, terem efetuado o pagamento de uma dívida em substituição dos executados devedores originários.

21. Essa execução correu termos até 2012 com o n.º 268/04.3TBPBL-A no 2.º juízo Tribunal Judicial de Pombal, tendo sido deduzida oposição dos executados e proferidos vários despachos interlocutórios a que o autor sempre deu resposta.

22. Depois de realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida decisão que julgou a oposição à execução totalmente improcedente.

23. Em 08.04.2011, o autor, através de carta junta aos autos a fls. 72 e cujo teor se dá por reproduzido, solicitou à ré o pagamento de € 10.419,65, IVA incluído fazendo menção ao envio em anexo de uma nota de honorários.

24. Sendo que, em 29.04.2011, a ré, mediante carta assinada pelo seu legal representante, missiva junta aos autos a fls. 73 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, respondeu ao autor entre o mais, nos seguintes termos: “A sua carta

informa-me que lhe devemos a importância de 10,419€, não acha um grande exagero? Até agora não tivemos necessidade de ficar a dever nada a ninguém mas não é motivo para pagar somas indevidas ou seja, pedimos que nos informe de que processos se refere para encontrar uma soma tão exorbitante e descabida, e não fala do dinheiro que recebeu directamente do tribunal e que nos pertence e nada disse. (…) Pedimos esclarecimento total e individualizado esclarecendo os valores que diz a receber, mas antes de responder com realidade e honestidade porque só pagamos o que devemos e não o que nos pedem.”

25. Em 27.07.2011, o autor enviou à ré carta registada com aviso de receção, junta aos autos a fls. 74 e cujo teor se dá por reproduzido, no qual o autor explicou os honorários peticionados - € 2.533,89 quanto aos autos de contra-ordenação n.º 33/01, € 4.937,37 quanto aos autos de impugnação n.º 52/03 e € 10.000,00 quanto ao proc. n.º2491/05.4TBPBL e não € 1.000,00 como inicialmente peticionado – estando em dívida o montante global de € 20.319,00.

26. Tal missiva foi acompanhada de nota de despesas e honorários referentes aos processos fiscais, que se encontra junta aos autos a fls. 99 e 100 e se dá por integralmente reproduzida.

27. Tal carta foi recebida em 29.07.2011 por Humberto dos Ramos Pereira, filho do legal representante da ré.

28. A ré entregou ao autor uma provisão inicial no montante de € 500,00.

29. O autor, com os processos referidos em 5. a 18., suportou despesas no valor de € 95,00, conforme consta da nota de honorários junta a fls. 99 e 100 e que se dá por integralmente reproduzida.

30. O montante de € 7.971,26, acrescido de IVA, é adequado aos serviços prestados pelo autor.

31. A ré não pagou qualquer outro montante ao autor pelos serviços referidos em 5. a 18.


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Reapreciação da matéria de facto impugnada (factos assentes sob os nº23 a 26 e 28 a 31).

(…)

Pelo exposto, julga-se a impugnação da matéria de facto improcedente.


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Mas beneficia a ré da presunção prevista no art.317º, c), do Código Civil?

As prescrições presuntivas encontram-se previstas nos arts. 312º a 317º do Código Civil.

O art.312º refere que “as prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de cumprimento”.

O art.313º prescreve: “1. A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão; 2. A confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito”.

De acordo com o art. 314º, “Considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento”.

Dispõe, finalmente, o art.317º, c), que “prescrevem no prazo de dois anos (…) os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes”.

Fundando-se na presunção de cumprimento, ela não confere ao devedor o poder de se opor ao exercício do direito correspondente à prestação que lhe compete, como acontece na prescrição extintiva.

A razão de ser da prescrição presuntiva tem a ver com a natureza das obrigações em causa, dizendo respeito a créditos gerados pelo exercício de actividades profissionais e de prestação de serviços, cujos pagamentos são normalmente reclamados pelos credores em prazos curtos e em que os devedores também pagam em prazo curto, sem exigirem recibo de quitação ou não guardando este recibo durante muito tempo.

A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo pode ser ilidida por prova em contrário do credor, limitada à confissão do devedor.

Esta confissão pode ser judicial ou extrajudicial, neste caso só se tiver sido reduzida a escrito. Ela pode ser expressa ou tácita, verificando-se esta última se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou se praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento. (Com interesse, ver acórdãos do STJ, de 22.01.2009, no processo 08B3032, e de 19.05.2010, no processo 1380/07, em www.dgsi.pt.)

São vários os exemplos desta prática incompatível, salientando-se os casos em que o réu devedor nega a dívida, discute o seu montante, não alega com clareza que pagou a concreta dívida reclamada e reconhece não ter cumprido a obrigação.

No caso, consideremos:

Na sua contestação, a ré reconhece a sua carta de 29.04.2011, cujo teor está assente em 24 supra e se mostra incompatível com a presunção de cumprimento.

O teor da carta em questão tem implícito que a ré admite dever alguma coisa, o que está por esclarecer e contabilizar. Se a ré diz não saber a que processo(s) se refere o pedido, e alega que o autor não prestou os esclarecimentos pedidos, como pode ela dizer que pagou (o que não foi esclarecido)? Por outro lado, ainda, a ré relativiza os serviços prestados e os ganhos obtidos.

Na referida carta, se a ré admite dever alguma coisa e que estão contas por clarificar, o pagamento só poderia ter ocorrido depois desta carta. Na mesma carta, a ré pede esclarecimento total e individualizado dos valores reclamados. Ora, no processo, a ré alega que este esclarecimento, (que só poderia ter ocorrido em prazo razoável posterior a 29.04.2011), nunca foi feito pelo autor. Se assim fosse, a ré nunca teria pago.

A alegação de pagamento é incompatível com a alegação de não esclarecimento (cfr.arts.3º e 27º da contestação).

Por outro lado, só depois de 29.04.2011 o autor esclareceria a cobrança e a ré tomaria uma posição definitiva; estes factos, naturalmente, não poderiam acontecer antes de  02.05.2011, a data correspondente à citação da ré dois anos depois.

O início da contagem do prazo, em 28.05.2009 (conclusão 3ª do recurso), não só é contraditório com o alegado na contestação (nesta, a ré refere a data de 08.04.2011), como o é com o reconhecimento da carta de 29.04.2011 e da falta de definição da cobrança.

Com este contexto comportamental, a ré não pode beneficiar da presunção de pagamento, cabendo-lhe a ela prová-lo, o que não fez.

Pelo exposto, a recorrente não tem razão na invocação da prescrição, não tendo havido qualquer inversão do ónus da prova.

(Uma nota final: no seu recurso, a ré procura estabelecer uma diferenciação das personalidades envolvidas nas comunicações (ré/legal

representante/pessoa singular), procedimento que não teve na contestação, constituíndo ela agora uma questão nova, não admitida. Na contestação, a ré não coloca qualquer problema de relação autor/ré, sendo esta a beneficiária dos serviços em questão e a interlocutora na troca de mensagens.)


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            Decisão.

            Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pela recorrente.

Coimbra, 2015-09-08


Fernando de Jesus Fonseca Monteiro( Relator )

Luís Filipe Dias Cravo

 António Carvalho Martins